Jornal de Leiria fev 2017

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Jornal de Leiria 9 de Fevereiro de 2017 47

História de Vida

Lurdes Trindadegeral@jornaldeleiria.pt

�“Não!/Não abro mão da minha maré./As escarpas negrasenvoltas nas espumas/que o mar/arremessa/escorrem maradentro/como a pele que dispo para te envolver./E tu sa-bes/Que eu sei/Que nunca aconteces./ E que te quero.” Em18 de Maio de 2009, Maria João Franco escreve o poema,deixando ficar no papel o reflexo do seu estado de alma,quase como “uma afirmação de consciência do querer,mesmo até ao impossível, como se a Terra se tornasse ab-surdamente mínima, na imposição máxima de contrariartodas as forças do cosmos”. Maria João Franco é conhe-cida por ser uma pintora exímia, mas é também poetisae escritora. As palavras saem ao sabor da pena, aliás comoos traços que pontuam as suas telas. Em silêncio. Sempre.

Não foi ao acaso que escolheu aquele poema paratema da exposição de pintura no MAC - MovimentoArte Contemporânea. Reconhecidamente um ícone dapintura expressionista e abstrata do país, a pintora nãoabre mão dos seus princípios como pessoa, mas so-bretudo da sua posição no mercado da arte. “Se al-guém me pedir para fazer uma criança com uma florna mão, recuso”, conta a pintora, nascida em Leiria em1945. “Vem de dentro, é uma questão de princípio,uma tomada de posição.” Explica ainda: “não me ven-do. Se o fizesse, a esta hora poderia estar na China afazer companhia ao galo de Joana Vasconcelos.”

Maria João Franco herdou do pai esta maneira de estarna vida, tal como a sua paixão pela arte e pela cultura. Mi-guel Franco, homem do teatro, e um dos mais importan-tes dramaturgos do país dos anos 1970, também era assim.Um homem de princípios.

Desafiadora por natureza, Maria João recorda “as per-guntas que o professor de História do liceu, que suspei-tava ser da PIDE, lhe colocava sobre o divórcio, sobre a di-visão entre a Igreja e o Estado…eu respondia com since-ridade…”. Um dia, em 1961/62, apercebendo-se da estra-tégia do docente, entrou no jogo. “No exame, respondicomo se fosse um salazarista convicto, só faltou assinar:a Bem da Nação”, conta bem-disposta. Nunca mais teveproblemas.

No dia 25 de Abril de 1974 e nos meses que se lhe suce-deram Maria João teve “a maior sensação de alegria davida… a tristeza surgiu com o 25 de Novembro quando tudodescambou”.

A artista plástica bebeu muito da influência de NelsonDias, o homem com quem casou. É, aliás, a “heroína” dolivro de Banda Desenhada Wanya - Escala em Orongo, querevolucionou a BD dos anos 70 em Portugal. Nelson Diasutilizou a figura esbelta da mulher para protagonizar a per-sonagem do livro com figuras muito bem desenhadas quesurgiu como uma lufada de ar fresco naquela época dita-torial. A história, com textos de Augusto Mota, é uma crí-tica à sociedade daquele tempo. “Nelson desenhou comuma canetilha, daquelas de molhar no tinteiro. Era um de-senhador e um pintor exímio”, conta.

Maria João Franco começou a frequentar o Círculo deArtes Plásticas, em Coimbra, com 15 anos. Dali saiu parao curso de Pintura na Escola Superior de Belas-Artes, emLisboa, em alternativa ao curso de arquitectura, o seu so-nho. Assim que fez matemática, partiu para o Porto paracumprir o seu desejo na Escola Superior de Belas Artes. Per-cebeu que, apesar de criativo, o curso era “mais frio”, peloque regressou à pintura.

Os seus trabalhos revelam “uma explosão de sensibi-lidade, cheia de cor e de sentido, de entrega”, lê-se nos co-mentários dos críticos de arte, por ocasião da exposiçãodos seus 45 anos de carreira.

A pintora começou cedo a sentir a dor da perda. Com19 anos, perdeu o irmão Miguel [com 16 anos],represen-tando um dos maiores choques da sua vida. Saiu do Por-to nessa época, retomando os estudos uns anos mais tar-de, na ESBAL, já casada.

LURDES TRINDADE DR

DR

A morte do pai foi outra dor que custou a passar. “Erao pai… Liguei para casa, ele sentiu-se mal e pressenti. Per-di uma das minhas grandes referências”, conta a filha, queaprendeu a gostar de música clássica com o pai.

“Tinha três anos quando recebi dele um disco com a Ca-valleria Tusticana, ópera de Pietro Mascagni, do séculoXIX. Lembro-me de estar sentada ao seu colo a ouvir o dis-co, que tinha do outro lado Oberon, ópera do compositoralemão Carl Maria von Weber.”

Miguel Franco era um homem ímpar. Defendia que oshomens sem medo não morrem, como escreveu numa dassuas obras mais polémicas e emblemáticas, O Motim, ondecontou a história da revolta do povo do Porto contra a cria-ção da Companhia de Vinhos do Alto Douro.

Maria João deseja reeditar este livro intemporal. Já fa-lou com editores, alguns da sua idade que conhecerambem o pai. Teme que “razões políticas estejam por detrásdas dificuldades levantadas”.

A obra, escrita para teatro, foi estreada em 6 de Feve-reiro de 1965, no Teatro Avenida, pela Companhia Na-cional. Na plateia, o presidente Américo Tomás e a mu-lher, os ministros da Educação Nacional e das Corporaçõese ainda aquele que viria a ser o sucessor político de OliveiraSalazar, Marcelo Caetano. Não foi pacífico. No dia da es-treia Marcelo Caetano disparou: “Então agora o governosubsidia motins?!” E nem o facto de António Augusto Me-nano, no Jornal de Notícias, do Porto, ter concedido a Mi-guel Franco “um lugar na primeira fila dos nossos dra-maturgos contemporâneos” salvou a peça de teatro. APIDE, sob o testemunho de actores e de espectadores queaguardavam a abertura das bilheteiras, invadiu o teatroe suspendeu a abertura dos guichês, rasgou e confiscouos cartazes da peça…

1 - Maria Joãocom um anode idade2 - Com o pai,MiguelFranco, a suaprimeira egrandereferência, napraia daNazaré3 - Com 17anos: o desejodearquitecturaainda muitovincado!

Maria João Franco, artista plástica, poetisa e escritora

A pintora que não abre mão da sua maré

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Miguel Franco estava habituado. Assim como Maria Joãoestá habituada a viver nesta dicotomia entre a dor e o belo.

Quando em 1993 Nelson Dias morre, Maria João, que vi-via em Lisboa nessa altura, cai no abismo. Regressa a Lei-ria, com a filha mais nova e o neto ainda bebé. Reergue--se de novo. Durante algum tempo a sua pintura reflecteo luto, mas a alegria e o sorriso de outros tempos estão denovo presentes nos seus olhos grandes e amendoados ena sua pintura. “Bebi muito da influência da escola de pin-tura do Porto e da pintura que surgia na Europa e EUA nosanos 1960. A pintura abstrata era o outro lado do mundo,das coisas. A figuração aparece e desaparece. Não gostoque os meus trabalhos sejam descritivos, gosto de criaruma obrigatoriedade de pesquisa, da procura, por partede quem os aprecia”.

Ao longo da carreira, Maria João tem exposto quase to-dos os anos em várias salas do país. Actualmente em Lou-lé, na Galeria de Arte do Convento do Espírito Santo, masaguarda por uma exposição na Escola Superior de BelasArtes, em Lisboa, onde concluiu o curso de Pintura depoisde sair do Porto.

Maria João é uma mulher muitoligada às novas tecnologias.Gere vários perfis nas redessociais para divulgar não sóos seus trabalhos de pin-tora, escritora e poetisa,mas também para nãodeixar esquecer as figurasde Miguel Franco e de Nel-son Dias. “Tenho páginas defacebook e blogues dedicadosa cada um deles.” 3