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Texto de Cornélio à Lápide traduzido da Obra "TESOROS DE CORNELIO Á LÁPIDE" - Tomo I, por Uyrajá Lucas Mota Diniz.
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Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)+
DEMÔNIOS
Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz
Há demônios
Não há dúvida que há espíritos malfeitores que se chamam demônios, pois a
Sagrada Escritura no-lo testemunha e todas as nações o reconhecem unanimemente.
As nações pagãs acreditaram na existência de certos entes, uns bons e outros
maus, deduzindo disto que era preciso ganhar o afeto dos bons com respeito,
oferendas e orações. E apaziguar a cólera e a malignidade dos maus. Daí, nasceram
a idolatria, o politeísmo, as práticas supersticiosas, a magia, a adivinhação etc. Esta
crença também foi a dos filósofos pagãos.
A Revelação veio a esclarecer-nos sobre a existência dos demônios. Moisés
diz-nos que a primeira mulher foi enganada e desobedeceu a Deus por sugestão de
um inimigo pérfido oculto sob a forma de serpente (Gen. III, 1). Diz o livro do
Deuteronômio que os israelitas imolaram seus filhos aos demônios (Deuter. XXXII,
17). O Salmista menciona o mesmo fato: Immolaverunt filios suos et filias suas
demoniis (Psalm. CV, 37).
Jesus Cristo falou da existência dos demônios; os expulsava dos corpos dos
possuídos. Também os Apóstolos falam-nos deles. A existência dos demônios é um
dogma da Igreja Católica.
Quem são os demônios
Demônio quer dizer espírito, gênio, inteligência: assim é que esta palavra,
que significa um ser dotado de conhecimento, que nada tem de odioso em si
mesmo. No Novo Testamento, o nome do demônio toma-se sempre de forma
negativa, significando um espírito mal, inimigo de Deus e dos homens.
Ao princípio da criação, Deus criou os Anjos do nada, como tudo o mais. Ele
os fez bons, porque Deus não pode ser autor de nenhuma coisa má. Está escrito que
todas as obras de Deus eram muito boas: Erant valde bona (Gen. I, 31).
A Escritura ensina-nos que, desde o momento de sua criação, todos os Anjos,
quase inumeráveis, acharam-se colocados no Céu. Ensina-nos também que muitos
deles rebelaram-se contra seu Criador, e que no castigo de seu crime foram
condenados a eternos suplícios. A estes últimos aplica a Escritura o nome de
demônios. Os demais Anjos permaneceram fiéis a Deus e foram confirmados na
graça.
Por sua natureza, os anjos são espíritos inteligentes, ativos, imortais,
desprendidos de toda matéria, e destinados por Deus a viver e a alimentar-se
puramente da contemplação.
Os Anjos são as criaturas que mais proximamente se assemelham à
Majestade Divina, infinita em perfeições. Deus criou-os para formar sua corte. E eis
uma coisa segura: a munificência de Deus derramou, a mãos cheias, sobre aquelas
formosas inteligências dons naturais dos quais nós, homens, recebemos apenas
alguns fragmentos.
Quando caíram, os anjos rebeldes nada perderam de sua natureza, de sua
vasta inteligência, de sua agilidade, de sua espiritualidade; não perderam senão sua
inocência, sua formosura e felicidade. É bem verdade que para eles foi uma
imensíssima perda.
O que aconteceu a esses anjos decaídos? Santo Agostinho no-lo responde. O
demônio é o doutor da mentira, o preceptor do orgulho, o príncipe da malícia, o
autor dos crimes, o príncipe de todos os vícios, o instigador dos vergonhosos
deleites1. Poderia haver algo mais corrompido ou pior que nosso inimigo?, diz em
outra parte aquele grande Padre: Quid pravius, quid malignus, quid adversario
nostro nequius (In Serm. Commun,, Serm. IV).
A Sabedoria pinta aos demônios do seguinte modo: são monstros de uma
espécie desconhecida, plenos de furor inaudito, respiram chamas, vomitam uma
negra fumaça, e lançam de seus olhos horríveis centelhas; não somente podem
exterminar com suas mordeduras, senão que, unicamente com sua vista, pode-se
matar alguém de espanto2.
Jesus Cristo e seus Apóstolos atribuem aos demônios os maiores crimes, a
incredulidade dos judeus, a traição de Judas, a cegueira dos pagãos, as enfermidades
cruéis, as possessões e as obsessões. Chamam a Satanás de pai da mentira, príncipe
deste mundo, príncipe do ar, antiga serpente, diabo.
Nos exorcismos, o demônio é chamado espírito imundo, miserabilíssimo,
tentador, enganador, pai da mentira, ser desprovido de prudência, insensato,
devastador, horrível, efeminado, envenenador, monstro dos monstros, ser expulso
do Paraíso, da graça de Deus, da mansão da felicidade, da assembleia e da
sociedade dos anjos, criatura reprovada e maldita de Deus por toda a eternidade,
orgulhosa, infame, plena de crimes, de abominações e de blasfêmias, coberta de
maldições, carregado de excomunhões e merecedora dos fogos do Inferno. Eis aqui
1 Diabolus doctor mendacii, adversarius generis nostri, inventor mortis, superbiae institutor, radix malitiae, scelerum caput, princeps omnium vitiorum, perusasor turpium voluptatum (Ad Julian.)2 Aut novi generis ira plenas ignotas bestias, aut vaporem ignium spirantes, aut fumi odorem proferentes, aut horrendas ab oculis scintillas emitentes: quarum laesura poterat illos exterminare, sed et espectus per timorem occidere (Sap. XI, 19-20).
os nomes e os títulos que Igreja dá ao demônio, apostrofando-o nos exorcismos. Por
eles, julgai quem seja o demônio efetivamente.
Causas da queda dos demônios
Tertuliano, São Basílio, São Cipriano, São Bernardo, o abade Rupert, Suarez,
e uma multidão de teólogos, dão como provável que aquilo que fez Lúcifer pecar no
Céu e levou-o ao orgulho, foi a inveja que ele experimentou no momento em que
Deus revelou-lhe que seu Filho se faria homem, e mandou-lhe sujeitar-se a Jesus
Cristo encarnado. Teve inveja de que o Filho de Deus tomasse a natureza humana, e
não pode sofrer ser posposto ao homem, ele o mais nobre, o mais formoso e o mais
inteligente dos anjos; não pode sofrer esta união hipostática do Verbo com o
homem; desejou que esta união se verificasse nele mesmo e negou-se a reconhecer
como Seu superior ao Deus feito Homem pela Encarnação.
Não havendo Deus querido aceder a seu desejo, Lúcifer rebelou-se com Ele e
contra Jesus Cristo, e aconselhou aos Anjos que lhe seguissem em sua rebeldia.
Em sua Carta aos Hebreus, parece que São Paulo favorece este sentimento.
Ao introduzir a seu Primogênito no mundo, disse: Adorem-no todos os Anjos de
Deus: Et cum iterum introducit primogenitum in orbem terrae: Et adorent eum
omnes angeli Dei (Heb. I, 6). Os anjos que adoraram os segredos de Deus,
submeteram suas vontades e reconheceram por seu Dono a Jesus Cristo feito
Homem, foram conservados em seu feliz estado; ainda mais, foram elevados até o
mais alto dos céus e, finalmente, confirmados na graça.
O orgulho é o que fez cair ao anjo desgraçado, que foi comparado, por causa
de suas luzes, à estrela da manhã. Como, diz Isaías, caíste do Céu, ó Luzeiro, tu que
tanto brilhavas pela manhã? Como foste precipitado por terra? Quomodo cecidisti
de coelo, Lucifer, qui mane oriebaris, corruisti in terram? (Isai., XIV, 12). Como, ó
Lúcifer, tornaste-te tenebroso e és, agora, o espírito mau das trevas? Como caístes
velozmente do mais alto grau ao mais baixo, da glória à ignomínia, da vida à morte,
do Céu ao Inferno?
O príncipe dos anjos rebeldes chama-se Lúcifer, porque brilhava de graça e
de glória no Céu, como brilha no firmamento a estrela da manhã. Por isso é que se
chama Lúcifer, isto é, portador da luz. Isto, em sentido místico, significa que a
ruína de Lúcifer teve lugar na aurora, isto é, no princípio mesmo da criação do
mundo.
Lúcifer – continua Isaías – tu dizias em teu coração: Escalarei o Céu e
levantarei meu trono sobre os astros de Deus: Dicebas in corde tuo: in Coelum
conscendam, super astra Dei exaltabo solium meum (Isai. XIV, 14).
Como caístes, tu que eras o selo da imagem de Deus? Tu signaculum
similitudinis; isto é, nenhuma criatura parecia-se mais a Deus que tu; estavas pleno
de sabedoria e cumulado de formosura! Vivias em meio às delícias do Paraíso de
Deus; em tuas vestes brilhavam toda a sorte de pedras preciosas; perfeito tens sido
em tuas obras desde o dia de tua criação, e permanecestes como tal até quando a
maldade foi encontrada em ti (Ezech. XXVIII, 12-15).
E qual foi esta iniquidade, senão o ter-te vislumbrado demais a ti mesmo e
haver-te armado um laço com tua própria excelência?
Desgraçada, cem vezes desgraçada, exclama Bossuet, a criatura que não quer
contemplar-se em Deus; e, fixando-se em si mesma, separa-se do manancial de seu
ser, que o é também, por conseguinte, de sua perfeição e de sua felicidade.
Este orgulhoso, que se tinha constituído em deus de si mesmo, pôs o Céu em
rebelião; e Miguel, que se fez cabeça da restauração da ordem, vendo que esta
rebelião fazia talvez mais prosélitos, exclamou: Quem como Deus? Quis ut Deus?
Disto vem-lhe o nome de Miguel, isto é: “Quem é como Deus?” Como se houvesse
dito: Que é aquele que pretende se apresentar como ‘outro Deus’ e diz em seu
orgulho: elevar-me-ei até aos Céus, dominarei todos os espíritos e serei semelhante
ao Altíssimo? Quem é, portanto, este ‘novo deus’ que assim quer se elevar sobre
nós? Porém, não há mais que Um só Deus; unamo-nos todos para perseguir (este
rebelde), e digamos todos juntos: Quem é semelhante a Deus? Quis ut Deus?
Porque, vede o que sucede, de repente, a este falso deus que queria se fazer adorar:
Deus feriu-o, e ele caiu com os outros anjos, seus imitadores. Tu que te elevavas ao
mais alto dos Céus, foste precipitado ao Inferno, até a mais funda masmorra: Ad
infernum detraheris, in profundum laci (Isai. XVI, 15). Em sua queda, conservou
todo o seu orgulho, porque seu orgulho deve ser seu suplício (Bossuet, Sobre os
Demônios).
Travou-se uma grande batalha no céu, diz o Apocalipse: Miguel e os seus
Anjos pelejavam contra o dragão; e o dragão com seus anjos litigiava contra ele.
Porém, estes foram os mais débeis, e depois, não restou mais nenhum lugar para
eles no Céu. Assim foi abatido aquele dragão descomunal, aquela antiga serpente
chamada diabo, e também Satanás, que anda enganando a toda a terra, e foi
precipitado, e com ele os seus anjos3.
Serei semelhante ao Altíssimo: Similis es Altissimo. O demônio, diz São
Bernardo, não permanece na verdade, porque não se apoiou no Verbo.
Quis se sentar aquele que, nem de pé, conseguiria se manter por si mesmo. E
ele dizia: “Sentar-me-ei!”. Porém, Deus, pensando de outra maneira, não lhe
permitiu sentar-se, nem aguentar de pé; então o demônio caiu.
Jesus Cristo o disse: Eu vi Satanás desde o princípio do mundo cair do céu à
maneira de relâmpago: Videbam Satanam sicut fulgur de coelo cadentem (Luc. X,
18). Assim, pois, que não se apoie em si mesmo aquele que está de pé, se não quer
cair; antes, descanse sobre o Verbo. O Verbo disse: Sem mim nada podeis fazer:
Ergo, qui stat, si non vult cadere, non fidat sibi, sed nitatus Verbo. Verbum
loquitur: Sine me nihil potestis facere (Serm. LXXXV, in Cant.).
Sentar-me-ei, e serei semelhante ao Altíssimo. Ó despudorado, exclama o
mesmo São Bernardo: Ó despudorado! Milhões de anjos servem a Deus, e centenas 3 Et factum est praelium Magnum in coelo. Michael et angeli ejus praeliabantur cum dracone, et draco pugnabat, et angeli ejus. Et non valuerunt, neque locus inventus est, eorum ampliusin coelo. Et projectus est draco ille magnus, serpens antiquus qui vocatur diabolôs, et Satanas, qui seducit universum orbem; et projectus est, et angeli ejus cum illo (Apoc. XII, 7-9).
de milhões estão prontos para executar suas ordens; e tu te sentarás?! Os querubins
estão de pé, e não se sentam. Que fizestes para seres digno de sentar-te?4
Vi, diz Isaías, o Senhor sentado em um trono excelso e elevado; e os Serafins
estavam de pé: Vidi Dominum sedentem super solium excelsum, seraphim stabant
(Isai. VI, 1-2). Porque, prossegue São Bernardo, tu que aparecias pela manhã, ó
Lúcifer, porque não permanecestes na verdade, senão é porque não fostes Serafim?
Pois, Serafim quer dizer iluminado e inflamado.
Porém, tu, miserável, tiveste a luz sem calor. Mais te valeria ser abrasado que
brilhante. Devias reprimir aquele orgulho de opinião! E como tu servias de espelho,
devias humilhar-te! Porém, ao contrário, tu disseste: Subirei sobre as nuvens, e me
sentarei. E, então, caíste! Os serafins estão de pé e firmes, porque a caridade nunca
fenece, diz São Paulo: Caritas numquem cecidit (I Cor XIII, 8). Estão de pé,
admirados, abismados na contemplação Daquele que está sentado sobre seu Trono.
Permanecem na eterna incomutabilidade e em insubstituível eternidade. Tu, Lúcifer,
propuseste sentar-te, ó ímpio. Por isto, vacilaram teus pés, e querendo subir, caíste.
O Filho do eterno Pai, que está sentado sobre um trono, é o Senhor dos Exércitos
que tudo julga com calma. Somente a Trindade assenta-se; somente Ela tem
imutabilidade; porém, os Serafins estão de pé (Serm. III, in Isai.).
O crime dos anjos rebeldes foi, pois:
1º uma excessiva complacência em sua formosura e excelência;
2º sua negativa a querer depender de Deus, a vontade de bastar-se a si
mesmos e de viver unicamente em autossuficiência;
3º ter querido irrogar-se a beatitude e alcançá-la com suas próprias forças,
sem a querer obter do poder e da bondade de Deus; e
4 O impudens, o impudens! Millia millium ministrant ei, et decies milia assistunt ei, et tu sedebis! Cherubin stabant, et non sedebant. Quid laborasti, ut jam sedeas? (Serm. III, in Isai.)
4º ter querido elevar-se sobre os outros Anjos, e negar-se a estar sob as
ordens de alguém, nem sequer de Deus.
Lúcifer pecou:
1º por um orgulho intolerável;
2º por sua rebelião, assim como pela revolta de seus anjos contra Deus e
contra a Igreja Celestial;
3º Lúcifer e seus anjos cometeram um crime de lesa majestade divina,
querendo apoderar-se do trono do próprio Deus;
4º Lúcifer tratou de arrastar à rebelião os outros anjos; e ainda trata, todos os
dias, de alistar os homens sob sua bandeira; e
5º é o autor de todos os pecados; porém também é a criatura que se acha
submergida no mais profundo do Inferno.
Resumindo...
A primeira causa da queda dos anjos foi o orgulho.
A segunda causa de sua caída foi seu próprio nada. Tinham recebido sua
grandeza e sua perfeição das mãos de Deus. Deveriam tê-lo assim
reconhecido; porém, pobres e débeis, por causa de seu nada, de onde foram
tirados, quiseram se apoiar sobre si mesmos. Não acharam mais que o nada, e
caíram! Afastando-se de Deus, sua única força, foram todos reduzidos à
suprema debilidade.
A terceira causa de sua queda foi o mau uso que fizeram de sua liberdade.
O que ganharam? Ai,... perderam tudo
Eram Anjos de luz, e converteram-se em espíritos das trevas; eram bons,
formosos e felizes, e se tornaram maus, perversos, horríveis e muito desgraçados.
As mesmas causas que levaram os anjos à perdição levam à perdição os
homens que lhes imitam. Adão quis seguir seu exemplo, e caiu em um abismo de
males, do qual jamais haveria saído sem a infinita misericórdia de Deus.
Tremamos. Se os anjos caíram estando no Céu, se Adão caiu estando no
paraíso terreno, se Sansão, Davi e Salomão caíram, se caem os cedros do Líbano,
quanto temor e que humildade devemos cultivar, nós que não somos mais que
débeis canas? Por isto, o grande Apóstolo exorta-nos a trabalhar na obra de nossa
salvação com temor e tremor: Cum metu et tremore vestram salutem operamini
(Philipp. II, 12).
Por que Deus salvou o homem e não ao anjo
Os Santos Padres indicam cinco causas principais que fizeram o perdão ser
negado ao anjo mau e concedido ao homem:
1ª causa: o homem pecou por fragilidade da carne, enquanto que o anjo, não
tendo corpo, não tinha esta fragilidade;
2ª causa: o anjo pecou sem ser tentado por ninguém; enquanto que o homem
foi tentado e seduzido pelo demônio;
3ª causa: é que não caiu toda a raça dos Anjos, senão somente uma parte
deles; enquanto que, na pessoa de Adão, toda a natureza humana caiu. A
posteridade de Adão não era indigna do perdão, posto que ela não havia
tomado parte com sua vontade no pecado do primeiro homem. Assim o
percebe Santo Agostinho;
4ª causa: o anjo, por causa de sua grande inteligência, pecou com plena
vontade e malícia; enquanto o homem, dotado de uma inteligência mais
escassa, pecou por debilidade e obedeceu a um impulso estranho, em vez de
ter sido por uma vontade muito deliberada e por malícia.
5ª causa: o anjo foi criado no mais alto grau de honra que poderia alcançar
enquanto ainda estava no caminho do mérito e devia ser confirmado em
graça pela contemplação de seu Criador. O homem, pelo contrário, fora
criado em uma ordem inferior. Colocado na terra, destinado a multiplicar sua
raça antes de chegar à melhor vida, achava-se mais afastado da bem-
aventurança.
O demônio é homicida
Vós sois filhos do diabo, disse Jesus Cristo aos escribas e fariseus,
orgulhosos e criminosos, e assim quereis satisfazer os desejos de vosso pai. Ele foi
homicida desde o princípio, e criado justo, não permaneceu na verdade: Vos ex
patre diabolo estis, et desideria patris vestri vultis facere. Ille homicida erat ab
initio, et in veritate non stetit (Johann. VIII, 44).
Com sua rebelião, o demônio deu-se a morte. Foi homicida do primeiro
homem, e o é da raça humana. Até quereria destruir o próprio Deus se lhe fosse
possível, a fim de usurpar seu posto. E o que não pode fazer a Deus no Céu, ele o
fez na terra, fazendo com que os judeus matassem a Jesus Cristo.
O demônio é o pai da morte; jamais gerou outra coisa além da morte. Não
sabe fazer viver. Como um ladrão hábil e feroz, não sabe fazer nada além de
despojar, degolar e rir-se dos crimes que pode cometer.
O demônio é pai de todos os crimes e de todas as heresias
Aquele que comete pecado é filho do diabo, porque o diabo continua
pecando desde o momento de sua queda, diz o Apóstolo São João: Qui facit
peccatum, ex diabolo est, quoniam ab initio diabolos peccat (I Johann. III, 8). O
demônio é o príncipe do pecado, e o pai de todos os males, diz São Cirilo: Princeps
peccati diabolus est, et pater malorum (Catech. II).
O demônio é o autor de todos os crimes, de todas as mentiras e de todos os
erros; por isso, é pai dos hereges e das heresias. Sem ele, jamais haveria existido o
pecado; e sem ele, por conseguinte, jamais teria havido misérias, enfermidades,
morte e Inferno; porque todas essas coisas terríveis são a pena do pecado. Nenhum
ser é tão culpável, criminoso, depravado e infame como o é Satanás.
Por que Jesus Cristo comprara o demônio ao relâmpago e ao raio
Eu vi, diz Jesus Cristo a seus Apóstolos, Satanás cair do céu a maneira de um
relâmpago: Videbam Satanam sicut fulgur de coelo cadentem (Luc. X, 18).
Lúcifer é comparado ao relâmpago e ao raio:
1º por causa de sua agilidade;
2º por causa de seu poder para causar dano;
3
º porque chega logo; porém, passa e desaparece da mesma maneira, se não
lhe damos ouvidos;
4º porque aparece algumas vezes sob a forma brilhante e pura. Deste modo,
mesmo que esteja rechaçado, desprezado e maldito, transforma-se em anjo
de luz.
Porque o demônio é chamado “leão”
Sede sóbrios e vigilantes, diz o Apóstolos São Pedro, porque o diabo, vosso
inimigo, rodeia-vos como um leão a rugir, procurando uma presa a quem devorar:
Sobrii estote et vigilate, quia adversarius vester diabolus tamquam leo rugiens
circuit, quaerens quem devoret (I Petr. V, 8).
Satanás é chamado leão, porque:
1º como um leão, vigia;
2º é cruel como um leão;
3º ruge como um leão;
4º o leão que se lança sobre sua presa obedece à ira, à raiva, à fome; e o
mesmo acontece ao demônio. O leão despreza e pisoteia as sobras de sua
presa; o demônio despreza e pisoteia todos aqueles que ele perverte e mata;
5º o leão oculta-se para surpreender sua presa; o demônio também;
6º o leão enfurece-se; Satanás também;
7º o leão exala mau odor; o demônio esparge por todas as partes o mau odor
das paixões e do pecado;
8º o leão e o demônio desejam o poder devorar;
9º o leão e o diabo rondam buscando sua presa: Circuit quaerens quem
devoret;
10º o leão ataca, sobretudo, aos animais de grande porte e potentes, despreza
aos pequenos e aos débeis, e não come senão aquilo que devora vivo; o
demônio faz do justo sua vítima privilegiada, ataca, sobretudo, às almas mais
piedosas, mais santas, mais elevadas em virtude e mais heroicas; despreza os
corações covardes e carnais;
11º o leão e o demônio lançam-se com mais furor sobre o homem quando se
veem feridos.
O demônio é forte
O Evangelho chama ao demônio o forte amardo: Fortis armatus (Luc. XI,
21). Tratais de indagar qual a natureza deste inimigo? É um espírito? Desejais vê-
lo? É invisível. Quereis conhecer seu caráter? É muito mau e muito astuto. Seu
poder? É, diz São Paulo, o dono e o governador do mundo, isto é, dos séculos:
Mundi rectores (Ephes. VI, 12).
Revesti-vos, diz aquele grande apóstolo, de toda a armadura de Deus para
poder neutralizar as emboscadas do diabo; porque nossa peleja não é somente
contra homens de carne e sangue, senão contra os príncipes e potestades, contra os
combatentes destas trevas do mundo, contra os espíritos malignos que pairam nos
ares5.
Notais estas palavras: principados, potências, príncipes do mundo. Segundo
os Santos Padres, os demônios conservaram, depois de sua queda, o mesmo nome
hierárquico que tinham no Céu antes de caírem.
Como em um exército, uns mandam, outros obedecem; e tem assinalado um
posto mais baixo. Daí sua força imensa! Os que são chamados Principados,
Potências, Príncipes, são chefes entres os demônios.
Se tendes os desejos de conhecer o lugar que o demônio ocupa, sabei que
domina a terra e cai sobre nós desde o alto dos ares. Se buscais sua morada, sabei
5 Induite vos armaturam Dei, ut possitis stare adversus insidias diaboli. Quoniam non est nobis conluctatio adversus carnem et sanguinem, sed adversus principes et potestates, adversus mundi rectores, contra spiritalia nequitiae in caelestibus (Ephes. VI, 11-12).
que está em todas as partes, noite e dia. Se perguntais qual é a sua inteligência, sabei
que é muito mais vasta e superior à dos homens mais sábios.
Homens de grande força, diz o Salmista falando dos demônios, arremetem
contra mim: Irruerunt in me fortes (Psalm. LVIII, 4).
Como arrancar sua presa a um homem forte?, questiona Isaías. Como
recobrar aquilo que foi arrebatado a um varão valente? Numquid tolletur a forti
preda? Aut, quod captum fuerit a robusto salvum esse poterit (Psalm. XLIX, 24).
Se considerais a sua natureza, o demônio é um gigante, diz Orígenes (Homil.
VII, c. XII).
Espíritos inteligentes, ativos, ágeis e vigilantes sem cessar, os demônios tem
um grande poder, triplicado por sua audácia, seu ódio e crueldade. Caindo,
conservaram todas as suas forças.
Os demônios são tão fortes, que São Paulo até os chama deuses deste século:
Deus hujus seculi (II Cor IV, 4).
Semelhantes expressões provam-nos com evidência quão forte e poderoso é
o diabo. É o que obriga São João Crisóstomo a dizer com muita razão: Se os
demônios estão organizados em exércitos, se são espíritos, se são senhores do
mundo, como, dizei-me, vós vos entregais ao prazer, e como os venceremos sem
armas?6 Acrescentai à força e ao poder dos demônios, seu número prodigioso. E
toda esta espantosa multidão não cessa de fazer-nos uma guerra encarniçada!
De que modo e contra quem o demônio é forte
Ouvi a Santo Agostinho: São Paulo, exclama, chama príncipes aos demônios;
porém, para que não acrediteis que são príncipes do Céu e da terra, chama-os
somente de príncipes deste mundo, isto é, príncipes dos amantes do mundo, deste
6 Si tales instructae sunt acies, si incorporales principatus, si mundi domini, quomodo, dic, queso, deliciaris? Quomodo inermes vincere poterimus! (Homil. XXII).
mundo pleno de trevas, deste mundo dos ímpios e dos maus, deste mundo de que se
diz no Evangelho que, ao apresentar-se Jesus Cristo nele, não O reconheceu. São os
príncipes daquele mundo contra o qual o Salvador lançou o aterrador anátema: Vae
mundo! Desgraçado mundo!...
Meu Pai, diz Jesus Cristo em outra parte, Eu não vos rogo pelo mundo: Non
pro mundo rogo (S. Aug., In Psalm. LIV). Os demônios são os príncipes daquele
mundo de que fala Jesus Cristo quando dirigindo-se a seu Pai, diz: Ó Pai justo, o
mundo não Te conheceu: Pater juste, mundus te non cognovit (Johann. XVII, 25);
do mundo que o Rei Profeta chama terra do esquecimento: Terra oblivionis (Psalm.
LXXXVII, 13); do mundo a respeito do qual se diz no Apocalipse: Vae, vae, vae
habitantibus in terra! Ai, ai, ai, dos habitantes da terra (Apoc. VIII, 13).
Os demônios são os príncipes de um mundo semelhante àquele que o dilúvio
cobriu com suas águas; são os príncipes daqueles que levam o sinal ou marca da
besta, e adoram sua imagem, como diz o Apocalipse: Habebant characterem
bestiam, et adoraverunt imaginem ejus (Apoc. XVI, 2).
Diz-se no Apocalipse que o dragão apostatou na areia do mar: Draco... stetit
dupra arenam maris (Apoc. XII, 17-18). O que estas palavras significam? Porque o
demônio, que é este dragão, deteve-se às margens do mar, na areia? A Escritura
quer dizer com isso que o demônio não é forte e não prevalece senão contra os
homens estéreis de boas obras e inconstantes como a areia das praias do mar; quer
dizer também que Satanás não domina ninguém além daqueles que se expõem a
seus furacões, às tempestades, às ondas encapeladas e furiosas das paixões,
daqueles que, em uma palavra, parecem-se à areia das margens do Oceano, areia
exposta a todas as tempestades, e muitas vezes, arrebatada, dispersa, submersa. Nas
praias do mar do mundo é onde está o Dragão para atormentar e submergir suas
vítimas nas agitadas ondas da concupiscência, do vício e do crime.
Jesus Cristo veio, diz Santo Agostinho, e acorrentou ao demônio. Porém, dir-
me-eis: Se está acorrentando, porque, todavia, é tão poderoso? É verdade, meus
irmãos, que ele é muito poderoso; porém, não reina senão sobre os tíbios, os
negligentes e os que não temem verdadeiramente a Deus7. Satanás reina sobre todos
os filhos do orgulho, diz Jó: Ipse est rex super universos filios superbiae (Job. XLI,
25).
Contra quem o demônio é forte
Contra os surdos, os cegos, os mudos, os coxos, os paralíticos, os mortos
espirituais.
Contra quem o demônio é forte? Contra os pais negligentes, escandalosos,
que fecham seus olhos para não ver os vícios de seus filhos.
Contra os filhos desobedientes, sem amor e sem respeito para com aqueles
que lhes deram a vida.
Contra quem o demônio é forte? Contra aquele jovem que imita ao filho
pródigo, contra aquela jovem que, faltando às promessas de seu batismo, despoja-se
da sagrada veste de Jesus Cristo, veste-se com a de Satanás, não mais recata seus
sentidos, e expulsa de seu coração o amor de Deus, substituindo-lhe pelo amor
corrompido do mundo e das paixões da carne.
Contra quem o demônio é forte? Contra os avarentos, os impudicos, e os que
abandonam a oração, a vigilância e os Sacramentos etc.
O demônio é forte somente porque lhe ajudamos. Enquanto os homens
dormiam, diz Jesus Cristo, veio certo inimigo seu e semeou cizânia no meio do
trigo: Cum dormirent homines, venit inimicus, et super seminavit zizania in médio
tritici (Matth. XIII, 25).
Jesus Cristo, na verdade, acorrentou o demônio com sua Cruz. Disse-lhe,
como outrora, ao Oceano: Até este lugar chegarás, e daqui não passarás; aqui será
7 Venit Christus, et alligavit diabolum. Sed dicit aliquis: Si alligatus est, quare adhuc tantum praevalet? Verum est, fratres, quia multum praevalet, sed tepidis et negligentibus, et Deum in veritatem non timentibus, dominator (Serm. CXCVII).
abatido o orgulho de tuas ondas: Usque huc venies, et non procedes amplius; et hic
confringes tumentes fluctus tuos (Job. XXXVIII, 11).
Olhai aquele leão acorrentado: vê uma presa, lança-se; porém, encontra-se
detido; lança-se novamente com mais furor, e morde sua corrente com raiva. Vãos
esforços, raiva inútil; sua presa está demasiadamente distante, não a pode alcançar;
ela nada teme. Porém, se se aproxima muito o leão, lançando-se novamente, ele a
capturará e a devorará.
O cachorro acorrentado pode ladrar, porém não pode morder, diz Santo
Agostinho, senão ao imprudente que se põe ao seu alcance (Serm. CXCVII).
Quão insensato é quem se deixa devorar por um leão acorrentado ou morder
por um cachorro amarrado! A eles vos pareceis, ó pecadores imprudentes. Como
eles, deixai-vos morder e devorar pelo demônio. Acorrentado, não vos pode
alcançar para rasgar-vos; pode rugir, ladrar, solicitar-vos; porém, não pode
exterminar quem não o queira, acrescenta Santo Agostinho. Porque o demônio não
prejudica violentando, senão persuadindo; ele não arranca, à viva força, o nosso
consentimento; mas somente o pede8.
O demônio não nos combate porque fazemos a sua vontade, diz o abade
Abraão; são nossas vontades que se transformam em demônios para, então,
atormentar-nos.
Perguntado sobre a maneira de que poderiam se valer os demônios para
aprisionar-nos, o abade Aquiles respondeu: Com a ajuda de nossa vontade: Per
voluntates nostras! E acrescentou: Nossas almas são a lenha, o diabo é o machado,
e o lenhador é nossa vontade. Nossas vontades perversas são, pois, as que fazem
que sejamos cortados e derrubados: Ligna sunt animae, secutis diabolus,
manubrium voluntas mostra. Per malas ergo voluntates nostras incidimur.
8 Et ille ad te non praesumet accedere: latrare potest, sollicitare potest; mordere omnino non potest, nisi volentem. Non enim cogendo, sed suadendo nocet; nec extorquet a nobis consensum, sed pedit
Eis aqui porque São Bernardo diz: Que cesse a vontade própria, e não haverá
Inferno: Cesset voluntas própria, et infernos non erit (Serm. de Ressurrect.).
O demônio é muito débil
Sujeitai-vos a Deus, diz o Apóstolo São Tiago: Resisti ao demônio, e ele
fugirá de vós: Subdite estote Deo: resistite diabolô, et fugiet a vobis (Iac. IV, 7).
Resisti-lhe com uma fé viva e firme, diz o Apóstolo São Pedro: Cum resistite fortes
in fide (I Petr. V, 9).
Quando o demônio aproxima-se e trata de excitar em vós movimentos de ira,
de orgulho, de impureza etc. resisti-lhe com valor; e, no mesmo momento, vós o
afugentareis. Porque diante de uma alma firme, o demônio treme; com quem
titubeia, é, pelo contrário, terrível como um leão.
O antigo inimigo, diz São Gregório, é forte contra aqueles que lhe escutam, e
débil contra quem lhe opõe resistência. Se cedemos às suas sugestões, é formidável
como um leão, é vencedor; porém, se o rejeitamos forte e prontamente, restará
esmagado como uma formiga. Assim, pois, para uns é um leão, e para outros, uma
formiga. As almas carnais tem trabalho para escapar de sua crueldade, enquanto que
as almas puras pisam sua debilidade com o pé da virtude9.
De que modo, diz Isaías, arrancaremos sua presa a um homem tão esforçado?
Como recobrar aquilo que um varão tão valente arrebatou? Eis aqui o que diz o
Senhor: Serão tirados do homem esforçado os prisioneiros que fez, e será recobrada
a presa que arrebatou o valente (Isai. XLIX, 24-25).
Se considerais a natureza do demônio, diz Orígenes, é um gigante, e nós, uns
pigmeus; porém, se seguimos a Jesus, que privou o demônio de forças, este não
9 Antiquus hostis contra consentientes fortis est; ita contra resistentes debilis. Si enim ejus suggestionibus assensos praebetur, quase leo tolerari nequaquam potest; si autem resistitur, quase formica atteritur. Aliis ergo leo est, aliis formica; quia crudelitatem illius carnales mentes vix toelerant; spiritales vero infirmitatem illius pede virtutis calcant (Lib. V Moral.)
mais nos inspirará nenhum temor10. O demônio é muito débil perante homens
valorosos e heroicos.
É um leão a rugir, é terrível: Leo rugiens (I Petr. V, 8)., mas é uma serpente
que se arrasta pelo solo. É muito débil. Deus, que lhe deixou suas forças para seu
próprio suplício, impôs-lhe, contudo, um freio. Não pode dominar senão aqueles a
quem Deus despreza e abandona: triste poder e reino vergonhoso.
O demônio é débil, posto que emprega a habilidade, a astúcia, os rodeios, a
mentira; é débil, posto que se arrasta e se oculta. É impotente; Jesus Cristo derrotou-
o. Quem é aquele que vence o demônio? Quem o derruba? Aquele que estiver
vigilante, aquele que fugir e que rogar, aquele que desconfiar de si mesmo e
mortificar-se.
Uma só palavra de Jesus Cristo afugenta a legiões de espíritos infernais do
corpo dos possessos; quanta força não haverá de ter, portanto, a presença de Jesus
Cristo, sua graça, a sagrada Comunhão. Basta um sinal da cruz para assustar aos
espíritos das trevas e fazer-lhes fugir.
São Bernardo assegura que quem invocar os santos Nomes de Jesus, de
Maria e de José, será invencível, ainda que todos os demônios lutem contra tal
pessoa.
Tertuliano dizia aos perseguidores da Religião que um possuído, qualquer
que fosse, não poderia resistir a um simples cristão. O demônio é, pois, muito débil
(Apolog.).
Uma simples resistência despedaça suas forças e põe-no em derrota, diz o
Apóstolo São Tiago: Resistite diabolo, et fugiet a vobis (Iac. IV, 7).
10 Si naturam spectes, daemon gigas est , nos locustae, si sequamur Jesum, qui eum enervatit, quase nihil erit in conspecto nostro (Homil. VII, c. XII).
Os Santos de todos os séculos, de todas as idades e de todos os séculos,
triunfaram do demônio e esmagaram-lhe a cabeça; seguindo seu santo exemplo,
todos nós poderemos triunfar deste inimigo selvagem.
O demônio está em todas as partes e vigia sem cessar para levar-nos à perdição
O demônio está no ar, nas águas, na terra, no Inferno.
Nossos perseguidores, diz Jeremias, foram mais rápidos que as águias;
perseguiram-nos nas montanhas; armaram-nos laços no deserto: Velociores fuerunt
persecutores nostris aquilis coeli: super montes persecuti sunt nos; in deserto
insidiati sunt nobis (Lament. IV, 19).
Em um abrir e fechar de olhos, estão onde querem; andam mais velozes que
o pensamento; tudo eles vem sem serem vistos; tudo ouvem sem serem ouvidos
nem percebidos. O demônio está sempre à espreita, e dá voltas sem cessar ao nosso
redor, buscando vítimas: Circuit quaerens quem devoret (I Petr. V, 9).
Estas idas e vindas, este círculo que forma ao nosso redor, indicam:
1º que o demônio é um vagabundo entregue à instabilidade, porque ao
abandonar Deus com o pecado, perdeu a instabilidade do espírito. Ele, que se
queria sentar no trono do Onipotente, foi condenado a andar sempre errante,
a não sentar-se nunca, nem sequer no Inferno. Jamais terá descanso ou sono;
2º estas expressões indicam bem a ira e o desejo insaciável de prejudicar que
lhe anima;
3º pintam suas astúcias, seus enganos e seus rodeios;
4º príncipe do mundo, percorrer sem cessar seu império;
5º faz miras como um caçador;
6º as voltas que dá são o emblema de sua sagacidade e de suas explorações;
7º obriga aos homens culpáveis a acabar de percorrer o círculo de suas
iniquidades, a fim de cair, então, no círculo da desafortunada eternidade.
Ciência do demônio
Satanás, antes de atacar, examina o vício, a inclinação, a parte mais débil de
cada um.
Ouçamos a São Leão: Satanás conhece a quem há de abrasar com o fogo da
cobiça, a quem há de prender pela gula, a quem há de possuir pela luxúria, em quem
há de inocular o veneno da inveja, conhece aquele que há de se turbar pelos
arrependimentos, exceder-se pela alegria, sobrecarregar-se pelo temor, e deixar-se
seduzir pela administração. Calcula as inclinações de cada um, descobre os
cuidados, esquadrinhas os afetos, busca os meios de prejudicar, explorando,
sobretudo, as inclinações do homem11.
Satanás:
1º conhece tudo o que passa na terra;
2º vê os pensamentos, os desejos, as palavras, os passos, as ações e as
omissões de todos os homens;
3º sabe e conhece tudo o que sucedeu desde o princípio do mundo; e
4º Sonda as entranhas e os corações. Sabe todos os giros e rodeios, as pregas
e as dobras que tem a seguir para insinuar-se, seduzir, vencer, derrubar,
assassinar e levar ao Inferno.11 Novit cui adhibeat aestus cupiditatis; cui illecebras gulae ingerat; cui apponat incitamenta luxuriae; cui infundat vírus invidiae. Novit quem moeror conturbet , quem gaudio fallat, quem metu opprimat, quem admiratione seducat. Omnium discutit consutudines, ventilat, scrutatur affectus: et ibi causas quaerit nocendi, ubicumque viderit studiosus occupari (Serm. VII Natal. Dom.)
Tudo nele converte-se em olhos, em ouvidos, em língua, em espírito, em
inteligência, em astucia, em ciência. Ainda que submerso nas mais profundas trevas,
tudo vê, tudo compreende, tudo nota, tudo aprecia.
Malícia, habilidade e astúcias do demônio
O demônio, diz São Cipriano, é chamado serpente, porque
1º desliza e arrasta-se como ela;
2º adianta-se de forma imperceptível pelos sentidos, ocultando sua marcha a
fim de enganar;
3º sua astúcia é tão grande, seus planos, tão hábeis e capciosos, que nos faz
tomar a noite pelo dia, o dia pela noite, o veneno por remédio;
4º leva ao desespero sob o pretexto de esperança, à deserção sob o pretexto
de fidelidade; e
5º oferece o Anticristo para nossas homenagens sob o nome de Cristo. Desta
sorte, fazendo passar a mentira por verdade, escamoteia sutilmente a mesma
verdade (De Simplic. Pelator).
Satanás transforma-se em anjo de luz, diz o grande Apóstolo: Ipse enim
Satanas transfigurat sse in angelum lucis (Comment.).
A malícia, a habilidade e as astúcias de Satanás manifestam-se no fato de
que, como também diz São Jerônimo, jamais apresenta ao homem o pecado
descoberto, senão que se serve de rodeios; não se lança de repente, senão que se
adianta pouco a pouco, e lança a pique a débil embarcação.
Para fazer cair no pecado, oculta-se; porque é tão asqueroso, tão horrível e
tão infecto que, caso se apresentasse, faria morrer de medo o mundo inteiro;
ninguém quereria se aproximar dele. Ele oculta a fealdade do pecado, o qual, sendo
filho do próprio Satanás, é asqueroso, horrível e infecto como seu pai.
Satanás disfarça o pecado com a aparência e o nome de doçura, de flores
louçãs de felicidade e até de virtude. Oculta o anzol do pecado e, sobretudo, do
deleite, a fim de que vos torneis presas deste aguilhão penetrante e mortal, enquanto
saboreais um prazer enganoso e envenenado. Satanás impele o homem ao vício
passo a passo; começa por fazer-lhe cometer faltas leves, e arrasta-lhe assim a
maiores (Homil. ad pop.).
O demônio, tão audaz, bem quisera, desde logo, se se atrevesse e pudesse,
fazer-nos tão malvados quanto ele; porém, demasiado astuto, prevê que não teria
êxito em sua missão. Bem quisera atacar-nos em campo aberto; porém, demasiado
maligno, teme que sua presa lhe escape. Vai por graus, diz Bossuet, e oculta-se. Sua
feiura, como já dissemos, e a fealdade do pecado que quer nos fazer cometer,
dariam horror; oculta uma e outro; porque se o homem pudesse ver ao demônio e ao
pecado tais quais são, jamais, jamais se entregaria ao demônio nem ao pecado.
O demônio arrasta-se como a serpente, e toma seus movimentos e rodeios,
seja mostrando a cabeça, seja a cauda. Arrasta-se quando está longe, para que não a
vejam; e morde assim que está próximo.
Estuda nossas inclinações e admite-as; assim ele o faz porque não tentará por
impureza o avarento, porque para ser libertino teria de ser esbanjador. Ele não
tentará por avareza ao impudico. Ele transportará em espírito ao ambicioso ao cume
do poder; levará o orgulhoso à adorar-se a si mesmo, enviará fome ao homem
dominado pela gula etc. Seduz ao libertino de um modo, ao intelectual de outro, ao
escrupuloso de diferentes maneiras. Ataca a criança, aos jovens, ao homem adulto,
ao ancião, a cada qual segundo a sua idade, sua parte débil, sua inclinação.
Ataca ora ao corpo, ora ao espírito, ora ao coração. Fere seja por fora, seja
por dentro; busca o lugar mais débil, sobe por assalto, apresenta a flor e esconde o
espinho, doura a taça...
Olhai esta flor, que formosa! Respirai o agradável odor que exala. Examinai
esta taça, que excelente licor contém! Bebei, bebei...
Mas atenção, detende-vos! Esta flor e esta taça estão envenenadas; se as
tocais, morrereis prontamente para a eternidade.
Não é mais que um pensamento, diz aquele espírito maligno, um simples
olhar, uma complacência... Provai-o, diz ele, e vos detereis no momento em que o
quiserdes. Se buscais a felicidade, aqui a podereis achar.
Tende cuidado, já se avança o assassino; o incêndio começa por uma faísca...
Que um barco vá a pique, seja recebendo, de repente, uma grande quantidade de
água, seja tomando-a pouco a pouco, o fato que é o barco vai a pique.
O demônio, este monstro astuto, diz Bossuet, avança por graus. Inclina Judas
primeiramente à avareza; logo depois, induz o homem a vender a seu Deus; mais
tarde ainda, leva-o à traição; e, por fim, lança-o ao desespero, ao enforcamento, ao
Inferno.
Vede como o maligno espírito ataca a nossos primeiros pais: a serpente, diz-
nos a Escritura, que era o mais astuto de todos os animais, disse à mulher: “ –
Porque motivo vos ordenou Deus que não comessem do fruto de todas as árvores
do paraíso?” Cur praecipit vobis Deus, ut non comederetis de omni ligno paradisi?
(Gen. III, 1). Esta pergunta sozinha já é um crime. Por que, serpente infernal, tu te
metes naquilo que Deus mandou? Aquilo que Deus prescreveu é sagrado!
Para seduzir todos os homens, não é assim que age Satanás? “ – Por que não
faríeis isto?”, pergunta ele aos homens. “ – Por que não veríeis tal pessoa?” “ –
Por que não iríeis a tal lugar?” “ – Por que...” “ – Por que...” etc.
Eva respondeu-lhe: “ – Deus proibiu-nos comer do fruto da árvore que está
no meio do paraíso, para que não morramos”: Cui respondit mulier: De fructu ligni
quod est in médio paradisi, praecepit nobis Deus ne comederemus, et ne
tangeremos illud, ne forte moriamur (Gen. III, 2-3). Imprudente Eva! Teve a
debilidade de escutar, por um instante, a serpente; e, somente por isso, começou a
sucumbir e a ser culpável. Ai de nós..., não nos conduzimos nós também deste
modo?
A serpente, vendo a debilidade de Eva, vai mais longe: ao crime da pergunta
une o crime da negativa, e responde à mulher: “ – De maneira alguma, não
sofrereis a morte”: Nequaquam morte moriemini (Gen. III, 4). Percebeis como o
demônio age de uma maneira parecida para conosco? “ – Não há tanto mal nisto...”
como se dissesse: “ – Que exagero, são demasiados severos... Que nada! Merecer o
inferno por tão pouca coisa?”
Em terceiro lugar, ao crime da pergunta e da negativa, a serpente acrescenta
o crime da afirmação, para instar a Eva e seduzi-la de vez: “ – Não morrereis, diz,
porque Deus sabe que no dia em que comais desta fruta, abrir-se-ão os vossos
olhos, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”: Scit enim Deus quod
in quocumque die comederitis ex eo, aperientur oculi vestri, et eritis sicut dii,
scientes bonum et malum (Gen. III, 5).
Já está Eva seduzida e perdida! A mulher viu, pois, que aquela fruta era boa
para comer, e bela aos olhos, e de um aspecto deleitável. E colheu o fruto e comeu-
o; e o deu também a seu marido, que comeu, tal como ela o fez: Vidit igitur mulier
quod bonum esset lignum ad vescendum, et pulchrum oculis, aspectuque
delectabile; et tulit de fructu illius, et comedit; deditque viro suo, qui comedit (Gen.
III, 6). E os olhos de ambos abriram-se; e reconheceram que estavam nus etc. (Gen.
III, 7). Estes são os “felizes” e os “deuses” que o demônio fez. Todos aqueles que
escutem a serpente, acham as mesmíssimas recompensas.
Ó desgraçados mortais, que dais ouvidos ao demônio, pai da mentira e da
morte, inimigo jurado da felicidade do homem e de Deus mesmo!
Os demônios, diz São Pedro, seduzem-nos com palavras enganosas, e farão
com vossas almas um tráfico infernal: Fictis verbis de vobis negotiabuntur (II Petr.
II, 3).
Estes orgulhosos espíritos das trevas, diz o Salmista, ocultaram-me suas
redes e seus laços: Absconderunt superbi laqueum mihi (Psalm. CXXXIX, 16).
Diz São Jerônimo que quando o demônio, aquela serpente resvaladiça, não
pode capturar, apresenta-se; se, então, não o esmagais a cabeça, isto é, se não
resistis imediatamente à sua primeira sugestão, precipita-se totalmente inteira ao
fundo do vosso coração, sem que possais suspeitá-lo: Cum venerit diabolus, serpens
lubricus, cujus si capiti, is est, primae sugestioni non resistitur, totus in interna
cordis, dum non sentitur, illabitur (Comment.).
O demônio é chamado serpente, e tomou a forma deste réptil para seduzir
aos nossos primeiros pais, por que:
1º a serpente é hábil e astuta por natureza;
2º mantém-se em emboscada, ataca ao homem sem ser vista, e morde de
improviso;
3º a serpente arrasta-se, inocula seu veneno e mata ao homem: o demônio
opera da mesma maneira; e
4º a serpente toca no solo com todas as partes do seu corpo: o demônio não
inspira mais que o amor aos coisas terrestre e carnais.
Para surpreender e enganar a Adão e Eva, a serpente, observai-o, disse cinco
mentiras evidentes:
1ª Não morrereis: Nequaquam moriemini;
2ª Vossos olhos abrir-se-ão: Aperientur oculi vestri;
3ª Sereis como deuses: Eritis sicut dii;
4ª Conhecereis o bem e o mal: Scientes bonum et malum;
5ª Deus sabe que aquilo que digo é verdade: Scit enim Deus quod in
quoqcumque die etc.
O Senhor, diz Isaías, o Senhor com sua espada cortante, larga e forte, punirá
a Leviatã, serpente enorme, a Leviatã, o tortuoso monstro, e o matará: Visitabit
Dominus in gladio suo duro, et grandi, et forti super Leviathan, serpentem vectem,
et super Leviathan, serpentem tortuosum, et occidet (Isai. XXVII, 1). Armado com
espada, isto é, com sua Cruz.
Esta serpente é chamada enorme, por causa de sua força. E tortuosa:
1º por causa de seu gênio depravado; e
2º por causa de suas astúcias e duplicidades com que ronda ao homem.
O demônio afasta sempre do bem; apresenta-o como inútil, demasiado
penoso, e impraticável etc. Sempre leva ao mal e o apresenta como vantajoso, doce,
agradável etc.
Autor da morte, o demônio jamais conduz à vida da graça e da glória, mas à
perda da inocência e à morte espiritual na terra e na eternidade.
Ódio do demônio contra o homem e a guerra que lhe faz
O demônio, que se declarou inimigo pessoal de Deus, não podendo fazer
nada contra Ele, vinga-se contra sua imagem, diz Bossuet, e dilacerando-a até a
desonra, enchendo seu espírito invejoso, espírito furioso e desesperado, que afeta
uma ostentação no lugar de sua grandeza natural; que emprega astúcias maliciosas
no lugar de uma sabedoria celestial; que não respira mais que ódio, dissensão e
inveja no lugar da caridade e da sociedade fraternal.
Parece que Satanás e todos os anjos dizem: Não seremos nós os únicos
miseráveis; quantos homens morrerão por nossas mãos? Ah! Quantos lugares
deixaremos vacantes12, e quantos se acharão entre os pecadores que poderiam estar
sentados entre os juízes!
O ódio dos demônios contra nós é tal, notai-o bem e pasmai-vos de tanto
excesso, é tal o ódio que contra nós eles tem, que se deleitam não somente em
arruinar-nos, senão também em manchar a nossa alma e degradá-la.
Sim, preferem, todavia, corromper-nos a atormentar-nos, preferem roubar a
inocência a tirar-nos o repouso, fazer-nos mais do que desgraçados. E é verdade
que, quanto estes cruéis vencedores tornam-se donos de uma alma, entram nela com
fúria, roubam-na, saqueiam-na, e violam-na.
Estes corruptores violam-na, não tanto para satisfazerem-se quanto para
desonrá-la e envilecê-la. Inclinam-na até que se entregue a eles. E, logo, desprezam-
na! Tratam-na como são tratadas as mulheres que vem a ser o escárnio daqueles por
quem elas, covarde e indignamente, prostituíram-se.
Os demônios estão plenos de ódio e de inveja contra nós; fazem-nos uma
guerra encarniçada por causa das graças e dos bens celestiais que Deus nos concede,
12 Lugares celestiais preparados por Nosso Senhor Jesus Cristo para os seus convidados (cf. Jo 14, 2).
e porque estamos destinados a ocupar, um dia, os tronos que eles perderam por
causa de seu orgulho.
O demônio é vosso inimigo, diz o Apóstolo São Pedro: Adversarius vester
diabolus (I Petr. V, 8).
O demônio é um fautor de querelas, uma falsa testemunha, um acusador.
Ataca-nos a nós, ataca a nossa salvação e a nossa felicidade eterna. Quer nos
conquistar a fim de ter-nos por companheiros, depois de haver nos transformado em
seus cúmplices. E tudo isto:
1º por ódio a Deus, a fim de que Deus não receba nossas adorações. Seu
orgulho inspira-lhe um ódio tão grande a Deus, que, segundo o parecer de
vários importantes autores, ainda quando Deus lhe prometesse perdoar-lhe
sob a condição de que ele se humilhasse, o demônio preferiria sofrer
eternamente antes de renunciar a seu orgulho e a seu ódio.
2º faz-nos guerra por inveja;
3º faz-nos guerra por orgulho; deseja que nos tornemos semelhantes a ele
para dominar-nos e reinar sobre nós.
Temos que sustentar um combate contra os demônios, insiste São Paulo. É
uma luta sem tréguas.
Os ódios mais furiosos e mais implacáveis entre os homens não são mais que
uma sombra se comparados com os dos demônios. Neles tudo é ódio, ciúmes,
desejos de eterna vingança.
O demônio teve a audácia de atacar ao próprio Jesus Cristo
Porque permitiu Jesus Cristo que o demônio o tentasse?
1º para ensinar-nos que a tentação não é pecado, não se expondo
temerariamente a ela e resistindo-lhe;
2º para ensinar-nos a vencer, pois, Jesus Cristo é nosso modelo, nosso
capitão; e, por isso, quis entrar na lide para derrubar o demônio e fazer-nos
ver como se lhe vence; e
3º para tomar parte em nossas tentações.
Por que se permitiu Jesus Cristo que o demônio o tentasse? Responderei com
Santo Agostinho: Porque quis se fazer homem, nascer em um presépio, sofrer e
morrer em uma Cruz? Foi por bondade para conosco; e igualmente por bondade
para conosco foi tentado (Serm.).
Jesus Cristo, diz São Gregório, quis vencer nossas tentações com suas
tentações, assim como quis ser vitorioso de nossa morte com Sua morte (Homil.
XVI in Evang.).
Se a enfermidade de Jesus Cristo é nossa força, se suas feridas são nossa
cura, se sua morte é nossa vida, podemos também assegurar que sua tentação é
nossa vitória. Por isso, veio o Filho de Deus, diz o Apóstolo São João, para destruir
a obra do demônio: In hoc apparuit Filius Dei, ut dissolvat opera diaboli (I Johann.
III, 8).
Em seu ódio e despudor, Satanás atreve-se a atacar a Deus. Como há de
deixar-nos de lado? Jesus Cristo sofreu tentações advindas do demônio; porém o
expulsava dos corpos dos possuídos; e deu o mesmo poder aos seus discípulos.
Crueldade e furor do demônio contra os homens
O demônio, como um leão a rugir, anda ao redor de vós em busca de uma
presa, a fim de devorá-la, diz o Apóstolo São Pedro (I Petr. V, 8). Não nos diz o
Apóstolo que o demônio trata de morder, mas que trata de devorar.
Ai da terra e do mar! diz o Apocalipse, porque o diabo desceu a vós lançado
do céu e está pleno de furor, sabendo que lhe resta pouco tempo: Vae terrae et mari,
quia descendit diabolôs ad vos, habens iram magnam, sciens quod modicum tempus
habet (Apoc. XII, 12).
Simão, Simão, disse Jesus a Pedro, olha que Satanás irá atrás de vós para
peneirar-vos como ao trigo quando se seleciona: Simon, Simon, ecce Satanas
exspetivit vos, ut cribaret sicut triticum (Luc. XXII, 31).
Ensina o Apocalipse que o dragão irritou-se e marchou para guerrear: Et
iratus est draco, et abiit facere praelium (Apoc. XII, 17).
A crueldade e a raiva do demônio, diz o Salmista, levam-no a perseguir-me,
a apoderar-se de mim, e a fundir no pó a minha glória (Psalm. VII, 6). Meus
inimigos, acrescenta o autor sagrado, cercaram-me por todas as partes; eles tem
posto como meta o lançarem-me por terra; estão à espreita como o leão preparado a
lançar-se sobre sua presa, ou como o leãozinho que em lugares escondidos está a
espera. Levanta-Te, ó meu Deus; impede o golpe, e lançai-os ao solo, livra minha
alma das garras do ímpio (Psalm. XVI, 11-13).
O javali da mata virgem tudo devastou, e apascenta-se na floresta esta fera
singular ou solitária: exterminaverit eam aper de sylva, et singularis ferus departus
est eam (Psalm. LXXIX, 14).
Servireis a deuses estranhos, que não vos darão descanso, nem de dia e nem
de noite, diz o profeta Jeremias: Servietis diis aliens die ac nocte, qui non dabunt
vobis requiem (Jer. XVI, 13). Esses pretensos deuses, que são tão cruéis, são os
demônios.
Cada vez que pecamos, diz São Jerônimo, caímos sob o império do demônio,
que jamais nos dá descanso, pois nos impele sempre a acrescentar um crime a outro
crime, até fazermos deles uma montanha: Quidquid peccamus, imperium est
demonum, qui numquam nobis dant réquiem; sed semper impelunt delictis augere
delicta, et cumulum facere peccatorum (Comment.).
Devastações produzidas pelos demônios
O que há de mais depravado, que há de mais pérfido e pior que nosso
adversário?, questiona Santo Agostinho. Introduz a guerra no céu, a sedução e o
pecado no paraíso terreno, o ódio no quarto dos primeiros irmãos, e semeia a
cizânia em todas as nossa obras.
- No alimento, o demônio oculta o anzol da gula;
- na geração, o da luxúria;
- no trabalho, o da preguiça
- na conversação, o da inveja;
- na administração, o da avareza;
- na correção, o da ira;
- na autoridade, o do orgulho.
Desperta no coração os maus pensamentos, coloca nos lábios a mentira, a
maledicência, o falso testemunho, a blasfêmia; emprega os membros para cometer
atos de iniquidade.
Se estamos despertos, o demônio induz-nos a agir mal; se dormimos, suscita
sonhos vergonhosos. Leva à dissolução quem tem um caráter alegre, e ao desespero
quem é triste. Enfim, para abreviar o assunto, todos os males do mundo vem de sua
infernal depravação13.
13 Quid pravius, quid malignus, quid adversário nostro nequius? Qui possuit in coelho bellum, in paradiso fraudem, odium inter primos fratres; et in omni opere nostro zizania seminavit. Nam in comestione possuit
“– Não semeastes boa semente em vosso campo? Como há cizânia?” Dizem
os criados ao seu senhor. “– Algum inimigo meu a semeou”, responde o dono:
Nonne bonum sêmen seminasti in agro tuo? Unde ergo habet zizania? Inimicus
homo hoc fecit (Matth. XIII, 27-28).
Em todas as partes e em todo o tempo, o demônio semeia a cizânia: semeia-a
no céu, na terra, no coração do homem, no seio da família e da sociedade, e a
semeará eternamente Inferno!
Até quando, ó espíritos de desordem, exclama o Rei Profeta, estareis
acometendo a um homem todos juntos para destruí-lo, e levá-lo a tombar como uma
parede desnivelada, ou como uma parede ruinosa! (Psalm. LXI, 4-5). Não tratais de
outra coisa senão de precipitar o justo de sua elevação; ao homem adulais com a
ponta dos lábios para levá-lo à perdição, e o amaldiçoais em segredo.
Ó Deus, os gentios entraram em tua propriedade profanaram teu santo
Templo (Psalm. LXXVIII, 1). Os inimigos do homem serão seus próprios
dominadores, oprimem-no e fazem-no sofrer a humilhação de seu tirânico poder
(Psalm. CV, 42).
Os guardas que percorrem a cidade, encontraram-me, diz a esposa no Livro
do Cântico dos Cântico; golpearam-me, feriram-me (Cant. V, 7).
Vede as devastações que o demônio produz em nossos primeiros pais e ao
seu redor. Eles tem a desgraça de escutá-lo; e, logo vem sua nudez, a vergonha, o
temor, a desculpa, a concupiscência, a escravidão, os sofrimentos, a maldição, sua
expulsão do jardim de delícias, a esterilidade da terra, o trabalho, a tristeza, o
remorso, as lágrimas, a penitência, a morte temporal e espiritual, o Céu fechado, o
gulam, in generatione luxuriam, in exercitatione ignaviam, in conversasione invidiam, in gubernatione avaritiam, in correctione iram, in dominatione superbiam: in corde posuit cogitationes malas, in ore posuit locutiones falsas, in membris operationes iniquas: in vigilando movit ad prava opera, in dorminendo ad somnia turpia. Laetos movet ad dissolutonem, tristes autem ad desperationem. Sed, ut brevius loquar, omnia mala sua sunt pravitate commissa (Serm.)
Inferno aberto. E estas desgraças recaem, por sua vez, não somente sobre Adão e
Eva, senão também sobre toda a sua posteridade.
Depois de submergir aos nossos primeiros pais neste abismo, desparece
Satanás. Já não lhes diz: “– Sereis como deuses”. Já os fez semelhantes a ele... já
estão cumpridos seus cruéis desejos.
É natural que a serpente derrame seu veneno e dê a morte. Fiando-se na
serpente, Adão tornou-se terrestre, carnal, embruteceu-se, e não pensou em nada
mais senão em matéria. A mesma sorte aguarda aqueles de sua raça que escutem
Satanás.
O demônio, diz São Gregório, aprisiona e oprime; seduz à força de espreitar,
assusta com ameaças, persuade com elogios, abate com o desespero, e engana
artificiosamente com promessas14.
São Bernardo faz também uma descrição dos demônios e de seu carro: sua
malícia, diz tem um carro de quatro rodas, que são a crueldade, a ira, a audácia, e a
impudência. Este carro é movido à efusão de sangue, não se detém ante a inocência,
não diminui a velocidade com a paciência, nem lhe apavora o temor, nem o pudor.
Arrastam-lhe dois cavalos fogosos e sem freio, prontos a levar a toda parte a
desolação e a morte: são o poder e o luxo; dois cocheiros, o orgulho e a inveja,
dirigem-lhe15.
O demônio, diz Orígenes, rouba ao homem a virtude da alma, priva-lhe de
liberdade e de muitas vantagens do corpo, arrebata-lhe os bens espirituais e
temporais, afasta-lhe o temor de Deus, entrega-lhe às paixões, precipita-lhe nas
misérias desta vida e nos suplícios da eternidade (Homil.).
14 Opprimendo rapit, insidiando circunvenit, minando terret, suadindo blanditur, desperando frangit, prometendo decipit (Homil. in Evang.).15 Habet manque malitia (diabolus) currum suum quatuor rotis consistentem: [...], impatientia, audácia, impudência. Valde enim velox est currus iste ad effundendum sanguinem; qui nec innocentia sistitur, nec patientia retardatur, nec timore fraenatur, nec inhibetur pudore: trahitur autem duobus admodum pernicibus equis, et ad omnem perniciem paratis, terrena potentia et secular pompa; praesident duobus his equis aurigae duo, tumor et livor (Serm. XXXIX, in Cant.)
O pescador apanha o peixe com o anzol, o caçador apodera-se dos animais
selvagens com o auxílio dos laços; e dos pássaros, por meio do visgo e da rede. O
demônio faz inauditos esforços para sujeitar e apanhar o corpo e a alma por meio de
diversas dores, grandes cuidados, pesares, dificuldades, escrúpulos, querelas, más
inclinações etc., a fim de que não se lhe escapem e sejam sua presa nesta terra, e,
sobretudo, no Inferno.
Vede, diz São Basílio, com que malícia e perfídia age o demônio naquilo que
nos concerne: priva-nos das virtudes, as quais lhe entregamos, e nos dá os vícios
que não queríamos. Sacrificamos-lhe nossas virtudes, a ele que é rico em malícia e
em vícios; e isto acontece para nosso imenso e visível detrimento; porque quanto
mais lhe damos, mais feridas ele trata de abrir em nós (In Deuter. XV).
Homem infeliz, exclama São Bernardo, a quem serves, a quem segues! Não
vês a Satanás, precipitado no abismo eterno, que cai do céu com a velocidade do
raio? (Serm. XXXIX in Cant.).
Quando Deus inspira saudáveis pensamentos de penitência, de esmola ou de
piedade, chega o demônio para dissipá-los, a fim de que não os executemos, ou
valendo-se de meios perversos ou, ao menos, fazendo-o indiscretamente, isto é, com
demasiada ou com pouca aplicação.
Como pôde ficar solitária a cidade antes tão populosa?, pergunta-se Jeremias
em suas lamentações: Quomodo sedet sola civitas plena populo? Foi tomada por
seus perseguidores em meio de angústias: Omnes persecutores ejus apprehenderunt
eam inter angustias (Lam. I, 1-3). Seus inimigos apoderaram-se dela; seus jovens
foram arrastados ao cativeiro, arrancando-os dali o opressor: Facti sunt hostes eius
in capite, [...] parvuli ejus; ducti sunt captivitatem ante faciem tribulantis (Lam. I,
5). Já desapareceu toda a sua formosura; seus príncipes vieram a ser como carneiros
desgarrados que não acham pastos, e marcharam desfalecidos diante do perseguidor
que os conduz (Lam. I, 6). Os inimigos vieram a Sião, e zombaram de suas
solenidades: Viderunt eam hostes, et deriserunt sabbata ejus (Lam. I, 7). Até a seus
pés chegam suas imundícies: ela não se dá conta de seu fim; está profundamente
abatida sem o saber, e sem ter quem a console: Sordes ejus in pedibus ejus: nec
recordata est finis sui; deposita est vehementer, non habens consolatorem (Lam. I,
9). O inimigo lançou suas mãos sobre todas as coisas que Jerusalém possuía como
mais admiráveis: Manum suam misit hostis ad omnia desiderabilia ejus (Lam. I,
10). Estendeu uma rede a meus pés, e fez-me cair para trás; transbordou-me de
desolação; e, durante todo o dia, fui consumida de tristeza: Expandit rete pedibus
meis, convertit me retrorsum, posuit me desolatam, tota die maerore confectam
(Lam. I, 13). Tornou-se para mim como um urso em emboscada, como um leão em
lugar oculto: Ursus insidians factus est mihi; leo in absconditis (Lam. II, 10). Ele
destruiu minhas veredas, e me destroçou: Semitas meas subvertit, et confregit me
(Lam. III, 11). Encheu-me de amargura, e me embriagou de absinto (Lam. III, 15).
Quebrou todos os meus dentes, dando-me pão repleto de areia; cinza deu-me para
comer (Lam. III, 16). E a paz fugiu de minha alma; não sei mais o que é felicidade
(Lam. III, 17).
Tal é o quadro que o Profeta pinta a respeito das devastações que os inimigos
causaram à cidade de Jerusalém. Todos esses estragos, todas essas desgraças não
são mais que uma débil imagem dos estragos e das desgraças que o demônio causa
quando reina em uma alma, e finalmente a domina.
Não tendo conseguido o demônio vencer a Deus quando O atacou no Céu,
ataca-O na terra; e, não podendo alcançar a Deus, corrompe tudo, até os elementos.
Como nada pode criar, emprega suas forças para tudo destruir. É um velho adúltero,
diz Santo Agostinho, que nada mais faz senão seduzir (In Psalm.).
Vede como trata Jó. Rouba seus rebanhos e degola os seus pastores; faz cair
fogo do Céu sobre suas ovelhas e sobre seus criados, e os consome. Rouba os seus
camelos e mata os seus guardas. Envia um furacão violento que derruba a casa onde
se encontravam à mesa os filhos de Jó, e eles caem mortos. Enche ao mesmo Jó,
desde os extremos dos pés até ao alto da cabeça, de uma lepra horrível. E com os
restos de um caco de argila quebrado, aquele Patriarca, sentado em uma esterqueira,
limpa a podridão das úlceras que lhe recobrem o corpo (Job. I, 11). O demônio teria
ido muito mais longe, se Deus lhe houvesse dado a permissão.
Vede como trata o demônio aos possessos... Citemos um só exemplo tomado
do Evangelho: um homem pobre do povo disse a Jesus:
“– Mestre, eu trouxe a Ti meu filho possuído de certo espírito maligno que o
faz ficar mudo, o qual, onde quer que o tome, lança-o ao chão, faz-lhe
espumar pela boca e cerrar os dentes; e torna-o inteiramente rijo”.
“– Trazei-mo”, respondeu Jesus.
Trouxeram-Lho. Apenas viu a Jesus, o espírito começou a agitar-se com
violência; e, atirando o jovem contra o solo, revolvia-se, fazendo-o espumar. E
Jesus perguntou ao genitor:
“– Desde quanto tempo sucede-lhe isto?”
“– Desde a tenra idade – respondeu o pai – e muitas vezes o demônio
precipita-o no fogo e na água, a fim de acabar com ele (Marc. IX).
Se o demônio causa tantos estragos no corpo, julgai vós quais estragos ele
causará na alma do pecador, quando a possui e reina nela como um tirano; e julgai
ainda quais tormentos ele deve impor aos réprobos no Inferno.
Tudo é bom para o demônio enquanto possa derrubar e destruir. Toda a
ocupação dos demônios, diz Tertuliano, é fazer ao homem cair: Opera eorum est
hominis averso (Epist.).
Esta raiva e estes estragos de Satanás acham-se pintados pelo profeta
Ezequiel sob o nome e a figura do Faraó, rei do Egito. Espetáculo espantoso! Ao
seu redor estão os mortos, a quem deu cruéis feridas. Ali jaz Asur, diz o Profeta,
com toda a sua mansidão, ali caiu Elam e todo o povo que o seguia; ali Mosoc e
Tubal, e seus príncipes, e seus capitães, e todos os outros que estão nomeados;
numero incomensurável, tropel infinito, multidão imensa: estão ao seu redor
derrubados por terra e nadando em sangue. E o Faraó está no meio saciando sua
vista com uma carnificina tão terrível, e consolando-se com sua perda e a ruína nos
seus: o Faraó com seu exército,... é Satanás com seus anjos (Bossuet, sobre os
demônios).
Porém, se o demônio causa tantas desgraças na terra, que horríveis tormentos
não fará sofrer aos réprobos no Inferno! Ó Deus, não permitais que jamais caiamos
nas mãos deste inimigo feroz!
O demônio é o deus do mundo
O deus deste século, diz São Paulo, cegou o entendimento dos incrédulos:
Deus hujus seculi excoecavit mentes infidelium (II Cor. IV, 4).
O Deus deste século é o demônio, que é o deus daqueles que vivem a
corrupção deste século. É o deus deste mundo, não por direito de criação, senão por
sua perversidade, seus escândalos, suas sugestões, seu império e sua tirania.
O próprio do orgulho, diz o eloquente bispo de Meaux, é atribuir-se tudo a si
mesmo; e, por isso, os soberbos consideram-se deuses de si mesmos, sacudindo o
jugo da autoridade soberana. Por esta razão, havendo-se preenchido o demônio com
uma arrogância extraordinária, as Escrituras garantem que ele havia aspirado à
divindade. Escalarei o Céu, disse, e colocarei meu trono acima dos astros, e serei
semelhante ao Altíssimo (Isai. XIV, 13-14). Porém, lançado do Céu e precipitado
no abismo, e reunidos com ele todos os companheiros de sua insolente empresa,
conspirou com eles para sublevar contra Deus todas as criaturas. Porém, não
contente com sublevá-las, concebeu, então, o insolente desígnio de submeter todo o
mundo à sua tirania. Atacou, com este propósito, a Adão, e fez deste seu escravo; e
não esquecendo seu primeiro desígnio de igualar-se à natureza divina, declarou-se
abertamente rival de Deus. Tratando de revestir-se da majestade divina, como não
tem poder para fazer novas criaturas, e para enraizá-las na oposição a seu Dono, o
que o demônio fez? No mínimo, adulterou todas as obras de Deus, diz o grave
Tertuliano; ensinou aos homens o modo de corromper o uso das criaturas; e os
astros, os elementos, as plantas, os animais, e a tudo converteu em motivo de
idolatria; aboliu o conhecimento de Deus, e por toda a redondeza da terra, fez-se
adorar no lugar de Deus, segundo o que disse o Salmista: Os deuses das nações são
os demônios: Dii gentium daemonia (Psalm. XCV, 5). Por isso, o Filho de Deus
denomina-o príncipe do mundo: Princeps mundi (Johann. XIV, 30). E o Apóstolo,
chama-o deus deste século: Deus hujus seculi (II Cor. IV, 4).
E com que insolência portou-se este rival de Deus? Sempre tratou de fazer o
que Deus fazia, afetando a mesma pompa. Deus tem suas virgens que lhe estão
consagradas! Não teve o diabo suas vestais? Não teve seus altares e seus templos,
seus mistérios e seus sacrifícios, e ministros de suas impuras cerimônias tão
semelhantes quanto pôde fazer às de Deus, porque tem inveja de Deus, e em tudo
quer parecer seu igual?
Quando Jesus Cristo veio a terra, acrescenta Bossuet (Hist. Universal), tudo
era considerado deus, menos o mesmo Deus, e o universo não era mais que um
vasto templo de ídolos.
Como as paixões e o pecado são filhos do demônio, este pai faz também
adorar a seus filhos, ou melhor, faz-se adorar nas paixões e nos pecados.
Assim é que o avarento adora o ouro; o bêbado, a Baco; o impudico, adora a
Cupido e Vênus etc. Eis aqui, portanto, a todos os homens amantes de suas
depravadas paixões, adoradores dos demônios; são idólatras! E eis aqui ao demônio
adorado nas paixões, nos crimes e nos escândalos.
O demônio não se cansa nunca. É muito perseverante em perseguir-nos
O Evangelho diz-nos que o demônio, acabadas estas tentações, retirou-se de
junto de Jesus Cristo; porém, somente por algum tempo: Es consumata omnia
tentatione, diabolos recessit ab illo, usque ad tempus (Luc. IV, 13). Como o
demônio persevera na afeição ao pecado, de nada descuida despois de haver feito o
homem cair. Continua a agir mal, seja para impedir-lhe que volte a levantar-se, seja
para fazer-lhe cair de novo, caso levante-se.
O demônio estava todo o dia maquinando enganos, diz o Salmista: Et dolos
tota die meditabandur (Psalm. XXXVII, 13). Este antigo inimigo de tudo quanto
existe não deixa de estender, por todas as partes, as redes da decepção.
A grande aplicação com que o demônio reúne todas as forças, todos os seus
recursos, todos os seus momentos, com o desígnio de causar nossa ruína, é o que o
faz tão terrível.
Todos os espíritos angélicos, diz Santo Tomás, são muito decididos e
determinados em suas empresas: a resolução que o demônio fez de levar-nos à
perdição é fixa, decidida e invariável. É um inimigo que jamais dorme, jamais deixa
sua odiosa malícia (De Peccat.).
Os demônios, diz São Martinho, estendem laços aos que não estão de alerta:
apodera-se daqueles que não sabem lhes resistir, e devoram aqueles que eles
conseguem aprisionar; jamais estão satisfeitos: Insidiantur incautis, capiunt
nescientes, captos devorant, exsaturari non queunt devoratis (Test. Sulpit., in ejus
vitae).
Ainda quando derrubeis ao demônio, diz Tertuliano, não abatereis sua
audácia; pelo contrário, inflamareis a sua ira: Tunc plurimum accenditur dum
extinguitur (Epist.). Quando parece que seu furor está totalmente apagado, então, é
quando se acende com maior força.
Isto afirma Jesus Cristo o Evangelho. Quando um espírito imundo sai de um
homem, ainda errante por lugares desertos buscando onde fazer sua morada, sem
que o consiga. E diz: Voltarei para minha casa, da qual eu saí. Então, vai e toma
consigo outros sete espíritos piores do que ele; e, entrando, habitam ali. Donde
resulta que o último estado daquele homem é mais lastimoso que o primeiro: Et
fiunt novíssima hominis illius pejora prioribus (cf. Matth. XII, 43-45).
Sempre ativo, não repousa, nem se cansa nunca. Três vezes, atacou Jesus
Cristo; três vezes, foi rechaçado. E, todavia estava decidido a voltar ao começo.
Aguarda a hora favorável, e jamais perde a esperança de vencer-nos. Rechaçai-o mil
vezes, e mil vezes ele voltará à empresa. Cuspi-lhe o rosto, desprezai-o, maldizei-o;
e ele zombará disso, pois não tem vergonha. Seu único fim é seduzir-nos, possuir-
nos, perder-nos. Não há entre os homens, por maus que eles sejam, um ócio
comparável aos dos demônios. Os homens que tem ódio afastam-se daqueles a
quem detestam, fogem-lhes, não querem vê-los nem falar-lhes. O demônio, ao
contrário, apesar de seu ódio implacável, não se afasta, não foge; quer sempre ver e
adular ao homem a quem ele detesta. Enfim, faz-nos tremer até quando
conseguimos contra ele uma vitória, porque, então, põe-se furioso contra nós.
O demônio persegue mais aos justos que aos pecadores
Os navios que nada levam, diz São João Crisóstomo, não temem aos piratas;
os navios que os temem são aqueles que vão carregados de ouro, de prata e de
pedras preciosas: eis aqui porque o demônio não se decide facilmente a perseguir o
pecador, senão preferencialmente ao justo, que possui grandes riquezas, isto é,
muitas virtudes e méritos: Sicut navigia vacua non metuunt piratas, sed onustra
auro, argento et lapidibus pretiosis; sic et diabolôs non facile persequitur
peccatorem, ed justum potius, ubi multae sunt opes, id est, virtutes t merita (Homil.
IV, in Isai.).
O ladrão não ataca o mendigo, senão ao rico. O demônio, que é o ladrão dos
ladrões, deixa descansar, por assim dizer, ao pecador, porque já tudo saqueou dele:
o corpo e a alma, o espírito e o coração, o tempo e a eternidade. Porém, trata de
roubar e de assassinar ao homem carregado com o tesouro das virtudes.
O justo é uma presa que o demônio mira como muito deliciosa.
Alimentando-se constantemente de pecadores, Satanás, encontra insosso um
alimento que é sempre o mesmo; repugna-lhe, despreza-o e deita-o fora. Porém,
cobiça ao justo, que não lhe pertence, e do qual, todavia, não se pode alimentar.
Persegue-o tenazmente, a fim de devorá-lo com desejo!
É muito difícil escapar do demônio
Os demônios, diz Sálvio, estendem ao homem tantos laços sedutores na
terra, que é quase impossível escapar deles. Evitando muitos destes laços,
costumamos acabar quase sempre por ser colhidos em alguma parte: Daoemones
tam multas in via ista humano generi illecebrorum insidias praetendant, ut itiamsi
plurimas eraum aliquis eflugiat ab aliqua capiatur (Lib. VI, de Previd.).
Diz-se, no Evangelho, que Jesus Cristo afugentava uma multidão de espíritos
infernais do corpo dos possessos. E, tendo perguntado a um demônio que se havia
apoderado de um desgraçado, como ele se chamava: “– Chamo-me Legião,
contestou, porque somos muitos (Marc. V. 9).
Deste modo, quando um demônio não pode vencer sozinho, reúne um grande
número; reúnem-se todos, se preciso for, para prender e exterminar a um alma;
atacam-na por todos os lados.
Alegria dos demônios quando podem vencer e assassinar uma alma
O demônio ri-se de sua presa, e devora-a com alegria.
Todos os inimigos, diz o profeta Jeremias, souberam de meus desastres, e
regozijaram-se: Omnes inimici mei audierunt malum meum, laetati sunt (Lam. I,
21). Deleitam-se no mal que fazem, dizem os Provérbios, e gabam-se de sua
maldade: Laetantur cum malefacerint, et exultant in rebus pessimis (Prov. II, 14).
Sua maligna alegria manifesta-se mais quando consegue destruir o Reino de
Jesus Cristo. Seu prazer é ter cúmplices na terra e nos infernos. Havendo-se perdido
sem esperança, e afundado sem recursos, diz Bossuet, não tem outra capacidade
senão aquela negra e maligna alegria que sentem os maus em ter cúmplices; os
invejosos, em ter companheiros; os iracundos abatidos, em arrastar depois de si
todos os outros. “– Não seremos os únicos miseráveis”... dizem eles. “– Quiseram
nos igualar aos homens, e ei-los finalmente que já são nossos iguais no pecados e
nos tormentos”. Esta igualdade deleita-os. Não lhes resta mais que o prazer
obscuro, maligno e cruel de fazer vítimas, depois de haverem perdido para sempre a
felicidade suprema.
Os demônios são executores da justiça de Deus
O demônio, diz Orígenes, é um tirano a quem Deus entrega os homens para
atormentá-los e castigá-los quando se rebelam contra sua admirável Majestade, a
fim de que, humilhados, aflitos e abatidos, voltem-se a Ele, e sujeitem-se a seu
divino jugo: Tyrannus est diabolos, cui Deus vexandos tradit homines, dum contra
eum superbiunt, ut eos humiliet, affligat et conterat, donec resipiscant, et sub Deo
se humilient (Homil.). E, se os homens não se corrigem, os demônios ser-lhes-ão
executores das vinganças de Deus durante a eternidade!
Os demônios, diz o Eclesiástico, são espíritos aproveitados para serem
ministros da vingança divina. Eles, com seu furor, fazem os homens sofrer
continuamente seus castigos, e aplacarão a cólera daquele Senhor que os criou: Sunt
spiritus qui ad vindictam creati sunt, et in furore suo confirmaverunt tormenta, et
furorem ejus qui fecit illos placabunt (Eccli. XXXIX, 33-34).
Foram criados para a vingança, isto é, destinados a cumprir a vingança
divina. Deus fez dos demônios os perseguidores e os verdugos dos ímpios; são os
ministros de Sua ira, e castigam os crimes dos pecadores obstinados.
Como os pecadores sujeitaram-se voluntariamente aos demônios, por meio
de seus pecados, então estarão também sujeitos a eles, não obstante o seu pesar,
para sofrer a pena de seus extravios.
Depois de sua queda, os demônios conservaram seu poder e a força de sua
vontade. Se se diz que a força de vontade dos anjos rebeldes provinha, antes de sua
queda, da conformidade de sua vontade com a de Deus, conformidade que
perderam, não se costuma pensar que Deus quer fazê-los servir como ministros de
Sua justiça. Deste modo, a vontade dos demônios acha-se, em última instância, em
conformidade com a de Deus, pois, satisfazendo sua vontade depravada, eles
executam o que Deus decidiu por sua Vontade, que é sempre boa.
Castigos dos demônios
O juízo dos demônios, que há muito tempo lhes ameaça, vem chegando a
grandes passos, diz São Pedro: Quibus judicium jam olim non cessat (II Petr. II, 3).
Estão acorrentados, atormentados e reservados até o dia do juízo: Tradidit
cruciandos in judicium reservari (II Petr. II, 4). Isaías diz que Satanás, o orgulhoso,
foi precipitado no Inferno: Ad infernum detraheris (Isai. XIV, 15).
Condenados a um suplício eterno e sofrendo a terrível maldição de Deus, os
demônios estão na mais funda masmorra do Inferno, debaixo de todos os réprobos.
De que modo se triunfa do demônio
Fortalecei-vos no Senhor, e em sua virtude onipotente, diz São Paulo:
Confortamini in Deo, et in potentia virtutis ejus (Ephes. VI, 10). Para poder
neutralizar as emboscadas do diabo, revesti-vos de toda a armadura de Deus: Induite
vos armaturam Dei, ut possitis stare adversus insidias diaboli (Ephes. VI, 11).
Empregai, sobretudo, o escudo da fé para poder apagar todos os dardos
inflamados do espírito maligno: In omnibus sumetes scutum fidei, in eo possitis
omnia tela nequissimi ígnea extinguere (Ephes. VI, 16). São Pedro indica o
mesmo meio: Resisti ao demônio firmes na fé, diz: Cum resistite fortes in fide (I
Petr. V, 9).
A tentação de nosso inimigo, o demônio, é terrível, diz São Bernardo; porém,
nossa oração é, todavia, mais temível para ele. Sua malignidade e sua falsidade
tratam de condenar-nos; porém, nossa simplicidade e nossa caridade opõem-lhe
uma vitoriosa resistência, e constituem o seu tormento. Não pode suportar nossa
humildade; nosso amor para com Deus queima-o; nossa mansidão e nossa
obediência atormentan-no: Gravis equidem nobis est inimici tentatio, sed longe
gravior illi oratio mostra. Laedit nos iniquias ejus atque versutia; sed multo
amplius mostra eum siplicitas et misericórdia torquet. Humilitatem mostram non
sustinet; uritur caritate mostra, mansuetudine et obediência cruciatur (Serm. in
Cant.).
Quando pisoteamos os pecados, nós nos sobrepomos ao poder do demônio,
diz São João Crisóstomo. Caso irritemo-nos contra ele, ele irritar-se-á inutilmente
contra nós; e, pelo contrário, quando nos manifestamos débeis para com ele, será
cruel para conosco: Conculcabimus diaboli potentiam, si peccata conculcaverimus
si nos soeverimus adversus eum, ipse non erit nobis soevus; si nos mansueti in eum
fuerimus, tunc ipse soevus erit (Homil. XXII).
Não percais jamais de vista o objetivo de vosso adversário, o qual, imóvel,
contempla-nos, diz São Basílio: In adversarium immotum oculum intendito fixius
(In Epist. S. Petri.).
Aquele que deseja expulsar o demônio deve começar por fazer-se dono das
inclinações de seu próprio coração. A resistência detém ao demônio, a energia
subjuga-o, a fé fere o poder demoníaco.
Fortificada com a esperança, inflamada com a caridade, e armada com a
oração, a fé termina vitoriosa sobre Satanás.
Os príncipes das trevas, diz São Bernardo, espantam-se pela luz das boas
obras; porque as trevas não podem resistir à luz: terentur príncipes tenebrarum visa
luce bonorum operum; quia stare ante lucem tenebrae non possunt (Serm. in
Cant.).
Sede sóbrios e estai alertas, diz o Apóstolo São Pedro: Sobrii estote et
vigilate (I Petr. V, 8). Resisti ao demônio, diz o Apóstolo São Tiago, e ele
fugirá para longe de vós: Resistite diabolo, et fulgiet a vobis (Iac. IV, 7).
A fim de sair vitorioso, o soldado de Jesus Cristo deve se preparar, cingir-se,
armar-se e prover-se de todo o necessário para o combate que deve apresentar ao
demônio.
Ademais, desde quando Jesus Cristo destruiu, com sua morte, o império do
demônio, o poder deste espírito debilitou-se demais; sobretudo, no tocante ao
cristão consagrado a Deus pelo batismo, que, por isso, foi salvo das potências
tenebrosas.
Clemente de Alexandria garante-nos que Jesus Cristo, com seu precioso
Sangue, libertando-nos de nossos pecados, que nos mantinham sob o jugo dos
espíritos malignos, emancipou-nos daqueles senhores cruéis a quem, antes,
estávamos sujeitos (De Poedag., c. V).
Santo Agostinho ensina-nos, por sua vez: Quando a Escritura nos exorta a
resistir ao demônio e a combater contra ele, entende que devemos resistir a nossas
paixões e a nossos desregrados apetites; porque é por meio deles que o demônio
nos subjuga (Lib. I, de Agon. Christ., c. II).
A Confissão, a sagrada Comunhão, o temor de Deus, o pensamento de sua
Presença, e o Sinal da Cruz são as armas que nos fazem invencíveis e abatem
sempre ao demônio!
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