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Dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, que faz uma revisão bibliográfica sobre o ritual Areruya, dos povos indígenas Kapon e Pemon, e os movimentos proféticos aparentados.
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A CAMINHO DO MUNDO-LUZ CELESTIAL: O ARERUYA E OS PROFETISMOS KAPON E PEMON
Maria Virgnia Ramos Amaral
Orientadora: Prof Aparecida Maria Neiva Vilaa
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
Rio de Janeiro Fevereiro de 2014
A CAMINHO DO MUNDO-LUZ CELESTIAL: O ARERUYA E OS PROFETISMOS KAPON E PEMON
Maria Virgnia Ramos Amaral
Orientadora: Prof Aparecida Maria Neiva Vilaa Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social. Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Prof Aparecida Maria Neiva Vilaa _______________________________ Prof. Carlos Fausto _______________________________ Prof. Luiz Costa
Rio de Janeiro Fevereiro de 2014
Amaral, Maria Virgnia Ramos.
A caminho do mundo-luz celestial: o Areruya e os profetismos Kapon e Pemon/ Maria Virgnia Ramos Amaral. - Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS, 2014.
xi, 167f.: il.; 31 cm. Orientador: Aparecida Maria Neiva Vilaa Dissertao (mestrado) UFRJ/ PPGAS/ Programa de Ps-
graduao em Antropologia Social, 2014. Referncias Bibliogrficas: f. 148-155 1. Profetismos Indgenas. 2. Kapon e Pemon. 3. Etnologia
Amerndia. I. Aparecida Maria Neiva Vilaa. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Ps-graduao em Antropologia Social. III. Ttulo.
RESUMO
A CAMINHO DO MUNDO-LUZ CELESTIAL: O ARERUYA E OS PROFETISMOS KAPON E PEMON
Maria Virgnia Ramos Amaral
Orientadora: Prof Aparecida Maria Neiva Vilaa
Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social. Esta dissertao tem como objetivo principal revisar a bibliografia dedicada ao Areruya, ritual praticado por subgrupos kapon e pemon povos karib que habitam a regio circum-Roraima da Guiana ocidental. Privilegio temas levantados por antroplogos que fizeram etnografias junto aos Kapon e Pemon. Tais pesquisadores demonstraram que o Areruya est em total continuidade (histrica e cosmolgica) com outros cultos praticados por esses povos, bem como com os movimentos profticos que irromperam na regio circum-Roraima (pelo menos) desde o sculo XVIII, de modo que me pareceu oportuno incorpor-los a este estudo. Procuro tambm pensar os fenmenos profticos kapon e pemon luz de e em contraste com estudos antropolgicos sobre profetismos de alhures, isto , estudos sobre movimentos poltico-religiosos que sublevaram outros povos indgenas das terras baixas sul-americanas. A maioria deles tomou os brancos como objeto de reflexo e como alvo poltico. E com os movimentos dos Kapon e Pemon no foi diferente. Foi-me, ento, necessrio investigar a histria de seu contato com os brancos. Disso resultou uma seleo de episdios que me parecem ilustrar bem as diferentes estratgias polticas tomadas pelos povos da regio circum-Roraima, e por outros Karib da Guiana ocidental, diante das polticas colonialistas iniciadas no sculo XVII. Finalmente, esta dissertao prope temas a serem explorados e questes a serem revistas em pesquisas futuras. Na medida em que se apoia em etnografias que datam, em sua maioria, de duas ou mais dcadas atrs, h muito a ser reavaliado.
Palavras Chave: Profetismo Indgena; Kapon e Pemon; Etnologia Amerndia
Rio de Janeiro Fevereiro de 2014
ABSTRACT
ON THE WAY TO THE HEAVENLY LIGHT-WORLD: THE ARERUYA AND THE KAPON AND PEMON PROPHETISM
Maria Virgnia Ramos Amaral
Advisor: Aparecida Maria Neiva Vilaa Abstract of the Dissertation for the Masters Degree submitted to the Post-Graduate Program in Social Anthropology of the National Museum of the Federal University of Rio de Janeiro, as part of the necessary requirements for obtaining the Masters degree in Social Anthropology.
This dissertation mainly aims at reviewing the bibliography dedicated to the
Areruya, ritual practiced by the Kapon and Pemon subgroups - karib people who inhabit
the circum-Roraima region on the West Guyana. I give preference to themes raised by
anthropologists who have carried out ethnographies with the Kapon and Pemon. Such
researchers have shown that the Areruya is in total (historical and cosmological) continuity
with other cults practiced by these people, as well as with the prophetical movements
which have arisen in the circum-Roraima region (at least) since the 18th Century, in such a
way to be deemed opportune to incorporate them to this study. I also seek to think the
prophetical phenomena Kapon and Pemon in the light of and opposed to anthropological
studies about prophesizing in other places, that is, studies about political-religious
movements that have stirred other indigenous people of the South American lowlands.
Most of them took the white people as a reflection object and as a political target. And it
was no different with the Kapon and Pemon movements. So, it was necessary for me to
investigate the history of their contact with the white people. Therefrom a selection of
episodes, which seem to me to illustrate well the different political strategies taken by the
peoples of the circum-Roraima region and by other Karib from West Guyana in face of the
colonialist policies initiated in the 17th Century resulted. Finally, this dissertation raises
themes to be explored and issues to be reviewed in future research. As it is supported in
ethnographies which mostly date from one or two decades ago, there is much to be
reevaluated.
Keywords: Indigenous prophetism; Kapon e Pemon; Amerindian ethnology
Rio de Janeiro February 2014
Para Estvo
e os Ingarik, que seguem com
seu Areruya
Agradecimentos Esta dissertao fruto de uma pesquisa financiada pela CAPES, agncia a que sou sinceramente grata. Agradeo tambm aos funcionrios do PPGAS do Museu Nacional,
que sempre me trataram com gentileza. Mais precisamente, o pessoal da secretaria, da
limpeza, da lanchonete, da biblioteca e do xerox. Eduardo, Marcio e Luiz Fernando foram
professores atenciosos. Aparecida foi uma orientadora incrvel: interessada, presente, firme
e incentivadora. Mas, acima de tudo, uma pessoa que eu gostaria de ter sempre em minha
vida. Agradeo tambm ao Carlos e ao Luiz por aceitarem participar de minha banca e
encarar este trabalho em progresso. Oiara, que sempre foi muito solcita. E a todos os
colegas do museu que me deram qualquer tipo de fora. Sou particularmente grata aos
colegas de sala, que me quebraram vrios galhos e com quem compartilhei algumas
cervejas catrticas (como ns ralamos nesses ltimos dois anos!). Mando um al especial
para o Gui, meu paulistano favorito. Aos amigos do IFCS: Mara, Paloma, Marina, Irene,
Laila, Ana, Luciana, Marcos, Hlio, Alex e Luisinho. Todos eles acompanharam e
apoiaram minha trajetria universitria. Principalmente Aninha, com quem eu adoro
conversar sobre antropologia. H outros amigos que h anos vm me apoiando com
carinho: as meninas do cl, Pedro, Lu Torquato, Lu Macedo, Angelina e Brenda. Acha
uma amiga mais recente, mas muito querida. Agradeo tambm aos parentes queridos de
minhas enormes famlias: a apolnea famlia Amaral e a dionisaca famlia Ramos. Incluo
R e Mrio neste bonde. Mando um beijo especial para as Ramos Alice, Lou e Nange,
que me auxiliaram em questes especficas da dissertao. Recentemente, ganhei uma
linda e queridssima famlia qual no poderia deixar de agradecer: Pita, Joo, Jlia,
Arthur e Nat. Sou imensamente grata ao Ricardo B. Mlynarz, e os motivos ficaro
evidentes adiante, na introduo. Em Roraima, o apoio de Gilmar e Mariana da FUNAI foi
crucial para que eu chegasse aos Ingarik. Odileiz foi generosa ao me receber e
compartilhar um material precioso sobre os Kapon. Tenho enorme respeito por seu
trabalho. O padre Vanthuy da Diocese de Roraima tambm foi bastante solcito. Emerson
me repassou um material importantssimo e me colocou a par de uma srie de questes
interessantes sobre os Kapon e os Pemon. O pessoal do ISA foi atencioso desde a primeira
vez em que estive em Boa Vista. E continua nos dando, a mim e ao Estvo, todo tipo de
apoio. Agradeo a todas essas pessoas que vivem esse Brasil profundo e apoiam a luta
indgena. Agradeo aos Ingarik, sobretudo, ao povo da Manalai, que me acolheu com
muita gentileza. Mando um abrao especial para Dilson, Secelita, Samuel e Larangera.
Tambm sou muito grata Mary, a diva da comida mineira, ao Nzio e ao Toms, meu
irmo. Suas crticas academia tm me ajudado a suportar as mazelas desse meio que tem,
cada vez mais, me capturado. E talvez tenham contribudo para que eu me interessasse pela
etnologia amerndia, uma cincia que me parece estar longe da mediocridade que ele
condena. Finalmente, as pessoas mais importantes: Estvo, a quem agradeo pelos mapas,
a formatao, os almoos, a pacincia, o respeito, o companheirismo e o amor. E a meus
pais pelo apoio infinito e o carinho. Meu pai por ter sempre me escutado e levado a srio.
Minha me pela dedicao, a cumplicidade e o amor incondicional.
Sumrio
Introduo .................................................................................................................... 1
Os Kapon e os Pemon: localizao e etnonmia ................................................................ 7
1. Os Kapon, os Pemon, seus aliados e inimigos de alm-mar: estratgias indgenas na colonizao da Guiana ocidental ......................................................................... 13
As Guianas e os etnlogos .................................................................................................. 13 Pawana, os parceiros de troca ........................................................................................... 23 A fronteira quase esquecida .............................................................................................. 26 As estratgias espanhola e portuguesa ............................................................................. 30 Os paranakiri ...................................................................................................................... 31 A liderana guianense e a autonomia do grupo local ..................................................... 34 Os missionrios ................................................................................................................... 37 As recepes dos missionrios ........................................................................................... 39 Pichiwng ............................................................................................................................ 40 I promisse ........................................................................................................................ 41 Os contratempos do padre Cary-Elwes ........................................................................... 42 As aldeias de Jeremiah e de Schoolmaster ...................................................................... 45 Os limites da influncia proftica ..................................................................................... 48
2. Os profetismos na etnologia: um sobrevoo pelas terras baixas sul-americanas 51
Do mito ao .................................................................................................................... 54 O messianismo krah ......................................................................................................... 55 O messianismo canela ........................................................................................................ 60 Os profetas tukano e aruak ............................................................................................... 63 A Terra sem Mal: dois olhares clssicos .......................................................................... 71 Do profetismo como ao xamnica ................................................................................. 79 Antropologia Reversa ........................................................................................................ 82
3.O Areruya e os profetismos kapon e pemon ........................................................ 86
Os tradutores da nova f ................................................................................................... 86 Movimento proftico kapon do fim do sculo XVIII: o primeiro de que se tem notcia 89 Beckeranta .......................................................................................................................... 90 O profeta kapon do Demerara .......................................................................................... 91 A extraordinria mania eclesistica ................................................................................. 92 Chimiding e Chochimuh .................................................................................................... 93 San Miguel .......................................................................................................................... 96 Areruya ............................................................................................................................... 99 O Areruya hoje: ritual e cosmologia .............................................................................. 104 A cataclismologia manifesta nos cantos e nas rezas ...................................................... 106 O voo do piyaichang ........................................................................................................ 116 Virar branco? ................................................................................................................... 125 A dupla troca de pele ....................................................................................................... 126 O fascnio pelas palavras ................................................................................................. 131 A inconstncia de Jeremiah ............................................................................................ 134
Consideraes Finais ............................................................................................... 137
Referncias Bibliogrficas: ..................................................................................... 148 Anexo I ...................................................................................................................... 156 Anexo II .................................................................................................................... 157
1
Introduo Se ainda existe uma cultura autnoma, isso se deve em razo dos Ingarik no aceitarem outras religies
Dilson Ingaric Foi por conta de uma visita aos Ingarik, povo kapon que vive na Terra Indgena
Raposa Serra do Sol (extremo norte do estado de Roraima), que decidi escrever uma
dissertao sobre seu ritual, o Areruya, seu desdobramento em outros rituais, praticados
por alguns subgrupos kapon e pemon, e os movimentos profticos aparentados.
Eu j cursava o mestrado em antropologia no PPGAS do Museu Nacional e vinha
planejando realizar uma pesquisa que refletisse, a partir de um caso especfico, sobre a
participao indgena no debate ecolgico que urgiu s nossas sociedades capitalistas.1
Historicamente associados, de maneiras um tanto depreciativas, ao domnio que
conceituamos por natureza seja atravs da imagem do bom selvagem, seja por meio de
noes primitivistas como culturas de subsistncia , em tempos de crise ecolgica, os
povos indgenas (com destaque para os da Amaznia) tm sido reconhecidos por povoarem
algumas das regies mais preservadas do planeta. Desse modo, h uma crescente
expectativa, por parte dos brancos, de que eles incorporem o papel de guardies das
florestas, dos rios, etc. o que, em parte (conforme alguns discursos), repercute as velhas
projees preconceituosas e, em parte, garante-lhes um lugar poltico interessante. Um
lugar que muitos deles tm ocupado de bom grado e por direito, convenhamos.
Em sntese, diante desse processo, interessa-me, sobretudo, acompanhar e refletir
sobre o que os povos indgenas vm pensando e fazendo a partir do papel que lhes tem sido
atribudo. Se Carneiro da Cunha (2009c) procurou extrair as implicaes de sua
apropriao da cultura, o que acontece agora que eles tm se apropriado da natureza?
Esse tipo de reflexo pareceu-me adequada situao dos Ingarik: h quase uma
dcada, eles vm reivindicando maior participao no manejo e no conselho deliberativo
do Parque Nacional Monte Roraima, Unidade de Conservao que se sobrepe a seu
territrio, Wi tp, localizado no norte da TI Raposa Serra do Sol. Processo este que foi 1 Um tema a que diversos antroplogos j vm se dedicando. Para mencionar alguns: Manuela Carneiro da
2
parcialmente acompanhado e discutido por Ricardo Burg Mlynarz (2008) em sua
dissertao de mestrado.
Quando o procurei, Ricardo no s foi bastante receptivo com as ideias que
elucubrei a partir da leitura de seu trabalho, encorajando-me a contatar os Ingarik, como
apresentou-as ao lder Dilson Ingaric. Resumo da pera: de posse da papelada exigida
pela FUNAI (cujo apoio, diga-se de passagem, foi fundamental minha visita aos
Ingarik), embarquei, em maro de 2013, num monomotor que partiria de Boa Vista rumo
Manalai, maloca ingarik da regio serrana da TI Raposa Serra do Sol.
Ali eu ficaria cerca de uma semana por ocasio do I Encontro de Fortalecimento e
Incentivo Economia Ingarik, cuja programao inclua a apresentao de minha
proposta de pesquisa (que quela altura havia se transformado num projeto de doutorado a
ser iniciado no ano seguinte, naquela mesma aldeia). Depois que as lideranas do Conselho
do Povo Ingarik (COPING) consentiram que eu desse incio minha pesquisa de
doutorado em 2014, tentei deixar claro que at l eu me ocuparia com um trabalho
bibliogrfico que, provavelmente, teria como tema o Areruya e os rituais profticos
aparentados dos quais tomei conhecimento a partir da leitura das respectivas dissertaes
de Abreu (2004) e Andrello (1993). A visita s fez aumentar o interesse.
Com efeito, a viagem Manalai toda especial. A comear pelo trajeto. O pequeno
avio primeiro sobrevoa uma extensa regio do lavrado, um ecossistema completamente
diferente de tudo o que eu j havia visto. Sua vegetao gramnea to montona que
causa a sensao de infinitude o que talvez explique a beleza da paisagem. Em alguns
trechos, h pequenos lagos intermitentes formados pelas chuvas e que, dada sua colorao
escura, do ao viajante que os sobrevoa a impresso de serem crateras lunares.
Infelizmente, no vi nenhum dos tepuis nome de origem indgena dado aos gigantescos
blocos de arenito caractersticos do escudo guianense; formaes rochosas que, maneira
do Monte Roraima, apresentam um peculiar formato de mesa. Assim, os momentos mais
emocionantes do trajeto foram, sem dvida, aqueles em que avistamos um ou outro
povoado indgena nas margens do rio Cotingo e de seus afluentes cor de coca-cola.
Ao nos aproximarmos do extremo norte da TI Raposa Serra do Sol, a paisagem
muda radicalmente. O que vemos so serras encobertas de rvores sobre as quais paira, ao
menos no perodo da manh, uma espessa neblina. E, ento, quando aterrissamos na
Manalai, um agradvel friozinho matinal nos surpreende. Afinal, estamos na Amaznia e
apenas um pouco acima da linha do Equador.
3
No meu voo, havia um professor ingarik, o tuxaua de uma maloca vizinha, junto
da esposa e do filho pequeno, e outra universitria branca. Fomos, eu e ela, as primeiras
pessoas no indgenas a chegar para o encontro poltico-festivo que receberia
pesquisadores, gente da FUNAI e autoridades de Roraima. E, apesar de sermos apenas
duas, fomos recebidas com beiju, damorida o caldo apimentado dos Kapon e Pemon e
caxiri, a bebida de mandioca fermentada dos Karib. O mais interessante, porm, que,
antes de nos oferecerem a refeio, os anfitries (um grupo de uns dez adultos) fizeram
questo de cantar algumas das belas canes que, mais tarde eu saberia, integram o
conjunto de prticas rituais que os Ingarik reconhecem como sua religio: o Areruya.
Aquela recepo deveria nos mostrar o valor que os Ingarik do a seus costumes,
a fim de que os respeitssemos enquanto estivssemos l foi mais ou menos isso que um
deles, falante do portugus, nos explicou. Com efeito, alm de gentis e um pouco
reservados, os Ingarik me pareceram altivos bastante orgulhosos do que so e de como
vivem; postura que parecem potencializar diante dos karaiwa (os brancos), com quem
convivem cada vez mais e cuja cultura tem, para a preocupao dos mais velhos, exercido
maior influncia sobre os jovens ingarik. Talvez, por isso mesmo, por conta dessa altivez,
eles faam questo de que todos os visitantes karaiwa participem das rodas onde eles
cantam e danam o Areruya. Talvez esse seja o sentido da soberania que Mlynarz (2008)
identificou entre eles: esto abertos ao exterior desde que possam se apropriar dele; desde
que o domestiquem e o faam sua imagem. Talvez isso lhes permita melhor controlar a
maneira como o exterior os transformar. Fato que colocam literalmente todos ns, os
karaiwa, para danar conforme sua dana.
Na internet h um vdeo, relativamente recente, onde os Ingarik da Manalai so
visitados pela equipe de reportagem de um programa de auditrio brasileiro. Com toda sua
imbecilidade televisiva, o reprter e suas duas acompanhantes chegam aldeia com o
evidente intuito de exotizar o modo de vida de seus habitantes. Todavia, algo de
surpreendente ocorre: o reprter, que acabara de participar do Areruya, convidado para
uma conversa com a comunidade e desata a chorar. Ele d a entender que se comoveu
com a espiritualidade daquele povo qual ele, aparentemente, atribui seu estilo de vida
sustentvel. O que me pareceu, entretanto, que ele prprio se deu conta de sua
futilidade (que, de resto, a futilidade de nossa cultura) que a altivez dos Ingarik s fez
realar impresso que tive sobretudo num momento do vdeo em que uma professora
ingarik faz um discurso admirvel aos visitantes. Ela lhes diz, entre outras coisas, que os
4
Ingarik lhes deram um espao e que, em contrapartida, eles deveriam cuidar do meio
ambiente. E que, quando fossem embora, no deixassem para trs as coisas industrializadas
que levaram.
Quanto quelas canes do Areruya, do momento de minha chegada em diante, eu
as ouviria noite e dia. realmente impressionante a assiduidade com que os Ingarik
praticam seu ritual ao menos em perodos de festa como aquele. No apenas os velhos,
mas adultos e crianas participam das cerimnias que chegam a durar horas. E, apesar de
muitos jovens no danarem e cantarem com os demais, reuniam-se em pequenos grupos
para aprender os cantos do Areruya que ouviam em gravadores. Alm disso, um jovem
Akawaio da Guiana contou-me, orgulhosamente, que possua um caderno repleto daqueles
cantos.
Assim, aos poucos, fui entendendo que os costumes ingarik, a que meus anfitries
se referiram no momento de minha chegada, so indissociveis da tica que fundamenta
sua religio. De acordo com Larangera M.S. Ingaric, cuja monografia de concluso de
curso conta do calendrio cultural dos Ingarik,
o lder religioso repassa o conhecimento de religio, participando de todas as atividades comunitrias
ou individuais. E o povo vive mantendo a sua prpria religio. Podemos ver tambm esse processo
como uma forma de valorizar e conscientizar o conhecimento das crianas, jovens, adultos e idosos
(2012:17).
Percebi, ento, que se eu quisesse falar sobre algo que realmente interessa aos
Ingarik, eu teria, mais cedo ou mais tarde, que mergulhar na cosmologia de sua religio.
Da a deciso de comear por um levantamento bibliogrfico, que resultasse menos num
apanhado pois isso j foi feito por Abreu (2004) , e mais numa reflexo a partir do que
j foi escrito sobre o Areruya.
Nesse sentido, ainda que esta dissertao reproduza muitos relatos de viajantes e
missionrios, recorrendo a uma ou outra fonte primria, privilegia os temas que foram
levantados pelos antroplogos que fizeram etnografias junto aos Kapon e Pemon. Tais
pesquisadores tiveram o mrito de demonstrar que o Areruya est em total continuidade
(histrica e cosmolgica) com outros cultos praticados pelos Kapon e Pemon, bem como
com os movimentos profticos que irromperam na regio circum-Roraima (pelo menos)
desde o sculo XVIII, de modo que me pareceu oportuno incorpor-los a este estudo.
5
Mas esta dissertao consiste tambm numa tentativa de pensar esses fenmenos
profticos kapon e pemon luz de e em contraste com estudos antropolgicos sobre
profetismos de alhures, isto , sobre movimentos poltico-religiosos que sublevaram outros
povos indgenas das terras baixas sul-americanas. Como ficar evidente, a grande maioria
desses movimentos tomou os brancos sua cultura material, sua cosmologia crist e sua
degradao moral como objeto de reflexo e como alvo poltico. E com os movimentos
kapon e pemon no foi diferente.
O primeiro captulo tem, portanto, a pretenso de refletir sobre seu contato com os
brancos, ou melhor, de resgatar episdios que, a meu ver, so boas ilustraes das
diferentes estratgias polticas tomadas pelos povos da regio circum-Roraima, e por
outros Karib da Guiana ocidental, diante das polticas colonialistas iniciadas no sculo
XVII. Como no pretendi reconstituir uma histria do contato na Guiana ocidental, o leitor
notar algumas lacunas. Por exemplo, a pouca ou nenhuma meno ao colonialismo da
Coroa britnica, ao qual me refiro apenas indiretamente, quando trato da catequese
anglicana.
Dado que os profetismos regionais incorporaram diversos elementos do
cristianismo, conferi ateno especial s estratgias indgenas face ao colonialismo
missionrio. Assim, se no ltimo captulo exploro aspectos da cosmologia dos Kapon e
Pemon que parecem fundamentar seu interesse pelo cristianismo, o que fica claro, no
primeiro captulo, a natureza poltica de suas relaes com os missionrios 2 isto , a
maneira como estes foram inseridos na dinmica poltica indgena e conforme seu cdigo
de reciprocidade.
Por fim, ficar evidente que o conceito de afinidade potencial, tal como elaborado
por Viveiros de Castro (1993), foi importante para que eu pensasse nos pressupostos e nas
implicaes sociopolticas das alianas e das rivalidades entre alguns dos Karib da Guiana
ocidental e os colonizadores. Assim, pode-se dizer que, no incio do primeiro captulo,
recupero questes tericas, discutidas por diversos antroplogos amazonistas, que
configuram uma sorte de pano de fundo contra o qual podemos melhor apreciar o
rendimento daquele conceito.
O segundo captulo destinado a uma investigao dos temas e problemas tericos
levantados pelos antroplogos que se debruaram sobre os movimentos profticos de 2 Entretanto, o ideal seria que esses dois domnios o poltico e o cosmolgico no fossem tratados separadamente. Creio que isso que Sztutman (2012) de quem falarei bastante tem em mente quando recupera as cosmopolticas de Stengers (2007) e Latour (2007) para pensar a ao poltica amerndia.
6
outros povos indgenas das terras baixas sul-americanas. Como eu no tinha qualquer
conhecimento sobre esses fenmenos poltico-religiosos, fui tateando o trabalho daqueles
pesquisadores a fim de me familiarizar com os aspectos que eles julgaram mais relevantes
(por exemplo, a continuidade entre os discursos profticos e a mitologia); e com o intuito
de identificar solues tericas mais interessantes, que me ajudassem a refletir sobre os
profetismos kapon e pemon.
Uma vez que o ritmo de escrita de uma dissertao mal nos permite sistematizar as
ideias antes que tenhamos que escrev-las, dei incio ao segundo captulo sem saber aonde
chegaria de modo que ele exprime perfeitamente, em estrutura e contedo, meu processo
de trabalho; que foi, acima de tudo, um processo de aprendizagem.3 Isso significa que, hoje,
eu faria um captulo totalmente diferente.
O terceiro captulo a parte central do trabalho: onde trato do Areruya, de sua
derivao em outros cultos praticados pelos Kapon e Pemon e dos movimentos profticos
aparentados. Por ora, no teria algo de relevante a dizer sobre esse captulo; algo que
acrescentasse sua leitura. Limito-me, ento, a comentar que o de minha preferncia.
A ltima parte foi designada consideraes finais porque nada conclui. Tem,
antes, a pretenso de enriquecer e complexificar o segundo captulo com temas mitolgicos
que ele poderia ter explorado. Procura, alm disso, multiplicar as ressonncias entre o
Areruya e os profetismos de alhures que foram comentados.
Finalmente, gostaria de ressaltar que este um trabalho estritamente bibliogrfico.
Ainda que eu tenha conhecido os Ingarik da aldeia Manalai e testemunhado algumas
cerimnias do Areruya, em nenhum momento conversei com qualquer um deles sobre o
ritual. E no fossem as monografias de concluso de curso dos Ingarik Larangera M.S.
Ingaric (2012) e Samuel C. Williams (2012), eu nada saberia sobre seus atuais princpios
cosmolgicos aos quais esses autores fazem apenas breves menes. Com exceo delas
e dos pouqussimos momentos em que evoco minha experincia pessoal para corroborar ou
problematizar pontos apresentados pelos etngrafos do Areruya, minhas reflexes acerca
do ritual e de sua cosmologia apoiam-se no trabalho destes ltimos. Na medida em que
suas pesquisas de campo datam, em sua maioria, de duas ou mais dcadas atrs, h muito a
ser reavaliado.
Antes de passarmos ao primeiro captulo, vejamos uma breve apresentao dos
Kapon e Pemon e da regio onde eles esto localizados. 3 O que, talvez, parecer enfadonho aos iniciados nos estudos de profetismos amerndios.
7
Os Kapon e os Pemon: localizao e etnonmia
A regio Algo que distingue os Kapon e os Pemon dos demais grupos de filiao lingustica
karib das Guianas o fato de eles povoarem, com exclusividade, o entorno do Monte
Roraima. No por acaso, a literatura convencionou designar circum-Roraima a totalidade
da regio por onde eles esto distribudos (ver mapa 1 infra): trata-se de um territrio que
tem como zona central a Gran Sabana venezuelana. Dali ele abrange o vale do alto Cuyuni
no Norte; os mdios cursos do Mazaruni e do Potaro a Leste; ao Sul, as savanas das
cabeceiras do rio Branco (os vales do Surumu e do Cotingo) e as savanas compreendidas
entre as montanhas Kanuku e o vale do Rupununi; finalmente, o rio Paragua a Oeste. Os
maiores cursos dgua que cortam a regio so o rio Branco e seus principais tributrios: o
Uraricoera que nasce na Serra Parima, local de fronteira entre o Brasil e a Venezuela; e o
Takutu, cujas pores mdia e alta desenham parte de fronteira do Brasil com a Guiana
(antiga Guiana Inglesa). As coordenadas 3-7N e 59-64W do as limitaes aproximadas
do territrio (Butt Colson 1983-84; Santilli 2001).
H dois ecossistemas predominantes: a savana ou, como se diz no Brasil, o lavrado,
e a floresta densa que cobre as reas serranas. O regime pluvial do lavrado no favorece a
fertilidade do solo, pois a alternncia entre uma estao chuvosa e outra seca implica ora a
inundao das gramneas, ora uma estiagem demasiado prolongada. Na regio serrana,
pelo contrrio, o equilbrio pluvial enriquece a qualidade da vegetao. Ainda assim,
grande parte dos povos indgenas regionais prefere viver no lavrado a ocupar as serras de
difcil acesso. A vegetao rasteira do lavrado foi encarada pelos europeus como um pasto
natural, o que motivou o desenvolvimento da pecuria j no sculo XVIII, quando os
portugueses resolveram que a permanncia de colonos seria a melhor forma de proteger o
vale do Rio Branco das cobias espanhola e holandesa. Essa atividade econmica
predominou nos sculos seguintes e contou largamente com a mo de obra indgena,
sobretudo, com os Wapixana e os Makuxi, povos de lnguas aruak e karib, respectivamente.
Assim, no lavrado, a cultura do gado desenvolveu-se de tal maneira que no seria um
exagero falar em geraes de ndios vaqueiros. Nas serras, boa parte da populao indgena
masculina se envolveu com a atividade garimpeira introduzida no sculo XX. Isso significa
que foi mais tardio o contato sistemtico dos povoados serranos com as sociedades
8
nacionais envolventes, de modo que eles sofreram menor influncia da cultura dos brancos
(Centro de Informao da Diocese de Roraima (CIDR) 1989; Rivire 1972; Whitehead
1996).
Mapa 1: regio circum-Roraima e localizao aproximada dos Kapon e Pemon
A rea circum-Roraima situa-se na poro ocidental do macio das Guianas,
compreendida pelas bacias do rio Orinoco a Oeste, o Essequibo a Leste, e o Negro ao Sul
um territrio entrecortado por Venezuela, Guiana e Brasil (ver mapa 2 infra), que formam
uma trplice fronteira exatamente no topo do Monte Roraima.
Quanto regio das Guianas em sua totalidade, ela conhecida por suas
peculiaridades geomorfolgicas, sobretudo, por configurar uma grande ilha martimo-
fluvial: ao Sul, delimitada pelo rio Negro e pelo Amazonas, que alcana o Atlntico; a
Oeste, pelo Orinoco, que tambm desgua naquele oceano. Entretanto, no fosse o
pequeno canal do Cassiquiare e a improvvel conexo que estabelece entre o Orinoco e o
Rio Negro, essa vasta regio no seria totalmente circunscrita por uma malha aqutica. Nos
9
trs primeiros sculos de colonizao europeia, ela foi alvo da disputa acirrada entre
Holanda, Frana, Inglaterra, Espanha e Portugal. Atualmente, abrange os territrios
nacionais da Venezuela, da Guiana, do Suriname, da Guiana Francesa e do Brasil (ver
mapa 3 infra) (Rivire 2001; Melatti 2011).
Mapa 2: Guiana ocidental
Mapa 3: Guianas
10
Os Kapon e os Pemon
Quando tratamos alguns dos povos karib da regio circum-Roraima pelo etnnimo
Kapon, consideramos a autodenominao que eles compartilham. E o fazemos, sobretudo,
no intuito de diferenci-los dos vizinhos que, embora lhes sejam semelhantes em muitos
aspectos, se autodenominam Pemon. Ora, se Kapon e Pemon so termos que se
referem gente verdadeira, aos seres humanos por excelncia ou, simplesmente, ao
povo humano, a diferena mais evidente entre os grupos indgenas que habitam o
entorno do Monte Roraima e adjacncias o modo como eles conceituam a humanidade
verdadeira da qual fazem parte (Butt Colson 1983-84:81-82; Santilli 2001:16).
Distribuem-se de tal maneira que um grupo regional kapon (por exemplo, um
conjunto de aldeias que margeiam um rio) costuma ter como vizinho um grupo pemon.
Isso significa que eles se inter-relacionam com muita frequncia, participando, inclusive,
de um mesmo sistema de trocas. Assim, no so raros os casamentos entre Kapon e Pemon.
Alm disso, sua mitologia e seus costumes muitas vezes se confundem, de modo que
possvel conceber um nico complexo cultural Kapon-Pemon. Tratar-se-ia, porm, de uma
generalizao, pois to logo nos debruamos sobre cada um de seus subgrupos, as
especificidades comeam a se delinear (Butt Colson 1983-84; CIDR 1989; Santilli 2001).
Aqueles que se autodenominam Pemon esto subdivididos em vrios etnnimos
dos quais quatro se tornaram mais conhecidos: Makuxi, Arekuna, Kamarakoto e
Taurepang. Cada um designa um subgrupo dialetal identificado a determinada regio (ver
mapa 1 supra):4
Atualmente, os Makuxi habitam reas de lavrado e de serra na bacia do Rio Branco,
principalmente nos vales do Surumu, do Cotingo e do Tacutu o qual faz fronteira com a
Guiana. Na poro noroeste da Guiana, esto no interflvio dos rios Ireng e Rupununi
(Butt Colson 1983-84; CIDR 1989; Santilli 2001; Soares Diniz 1972). Os Arekuna
distribuem-se nas regies venezuelanas do alto Caron, do alto Cuyuni e do vale do
Kamarang, que avana a Guiana. Aqueles que habitam o noroeste da Grand Sabana
venezuelana so conhecidos pelo etnnimo Kamarakoto, "o povo que habita a regio de 4 Convm salientar que, em muitos casos, os prprios grupos no se reconhecem pelos etnnimos que lhes so atribudos. Este seria o caso de Arekuna, cuja conotao parece ser pejorativa. Por outro lado, um grupo regional pode receber mais de uma designao. E isso vai variar entre os grupos designadores e conforme o contexto poltico, de modo que mais seguro tratar esses povos por sua autodenominao, a saber, Kapon e Pemon. Todavia, ao optar por estes termos, o etnlogo deixa escapar as especificidades (lingusticas, culturais, regionais etc.) dos subgrupos que eles abrangem (para a relatividade dos etnnimos ver Butt Colson op.cit.).
11
Kamarata". J os Taurepang habitam a circunvizinhana do Monte Roraima, em um
territrio que abrange um trecho venezuelano e outro brasileiro. Uma vez que sua cultura
se assemelha bastante dos Makuxi, especula-se se, no passado, eles no teriam
constitudo um nico povo. A diferenciao teria ocorrido aps sua migrao para o
lavrado. Mais de um autor destacou o movimento migratrio dos Taurepang do Brasil
rumo Venezuela a partir do sculo XIX. Porm, foi Andrello quem revelou as
motivaes religiosas desse deslocamento. At ento, ele vinha sendo concebido em
funo de conflitos polticos (Butt Colson 1983-84; CIDR 1989; Andrello 1993). A autodenominao Kapon abrange os subgrupos dialetais mais conhecidos como
Akawaio, Patamona e Ingarik. Os Patamona habitam as savanas dos vales dos rios Potaro,
Siparuni e Ma (chamado Ireng na Guiana). Mais ao Norte, os Akawaio se concentram no
alto Mazaruni, regio serrana da Guiana, habitando tambm os baixos cursos do Mazaruni
e do Potaro, a Leste e, ainda, podendo ser encontrados a Oeste, em aldeias mistas do mdio
Kamarang (onde coabitam com famlias pemon), das cabeceiras do Cuyuni e de seu
tributrio, o rio Wenamu.5 J os Ingarik habitam o vale do Cotingo, a Noroeste dos Patamona e ao Sul dos Akawaio do alto Mazaruni.6
De acordo com a autora da gramtica ingarik, Maria Odileiz Cruz, Atualmente,
predomina entre este povo um sentimento coletivo de que o nome Ingarik incorpora
hibridamente diversos membros oriundos dos (sub)grupos tnicos (2005:5). Em 5 De acordo com Butt Colson (op.cit.), na dcada de 1980, pequenas famlias akawaio viviam no alto Demerara e no rio Waini regies mais prximas costa da Guiana. No tenho informaes sobre a atualidade destes dados. 6 At recentemente eram tratados pela literatura antropolgica como os Akawaio do rio Cotingo, ou os Kapon do Brasil. Apesar dos muitos anos de trabalho de campo entre os Akawaio, a antroploga Audrey Butt Colson jamais os viu usar o etnnimo Ingarik em referncia aos habitantes do Cotingo. Tampouco Santilli (2001) os distingue enquanto grupo tnico. Este mesmo autor nota, a partir de observaes de Koch-Grnberg (1982 III:21-22), que Ingarik no parecia ser, at recentemente, a autodesignao de qualquer grupo, mas um etnnimo atribudo por diferentes grupos a vizinhos que viviam na mata fechada. Esta seria a maneira como os Arekuna e os Makuxi se referiam, respectivamente, aos Akawaio e aos Patamona do Ireng. Quando Santilli esteve com os Makuxi, j no final do sculo XX, eles reconheciam os habitantes do alto Cotingo por Ingarik uma designao que nunca deixara de carregar os qualificativos de selvagens e canibais. (Santilli op.cit.:25). Todavia, no presente, os mesmos habitantes do alto Cotingo se autodenominam Ingarik. Ao que parece, o termo designa um povo que vive tanto "no alto" "no topo" ou "nas montanhas" quanto na mata espessa. De acordo com Butt Colson (op.cit.), tratava-se de uma designao usada sobretudo pelos Makuxi, que habitam os vales do Cotingo e do Surumu, regio de transio entre a savana e as serras. Nesse sentido, Ingarik consistiria num etnnimo ecologicamente motivado, referente s serras de mata densa do alto Cotingo as quais contrastavam com as caractersticas ambientais da maior parte do territrio makuxi (Butt Colson op.cit.:96; CIDR op.cit.:63). Ora, como os Makuxi so influentes na cena poltica indgena de Roraima, de se supor que seu modo de designar os vizinhos Kapon tenha se tornado predominante na regio e, consequentemente, na literatura etnolgica brasileira. Talvez, por conta disso, o etnnimo tenha sido adotado como autodesignao.
12
consonncia, alguns dos Ingarik mais velhos informaram linguista, no incio dos anos
2000, que o povo ingarik constitudo por pessoas de diferentes subgrupos kapon e
pemon, que vivem juntas h mais de um sculo. Outros idosos consideram que os Ingarik
so um povo de origem exclusivamente kapon.
De qualquer maneira, ainda que suas aldeias abriguem pessoas de procedncias
diversas que, a meu ver, no parecem somar um nmero expressivo a ponto das aldeias
poderem ser consideradas hbridas 7 h uma lngua kapon predominante. Por outro lado,
os estrangeiros so consanguinizados e passam a pertencer ao novo grupo, a despeito de
sua origem. (Cruz 2005:6). Isso significa que mesmo aqueles de origem pemon que
habitam o territrio dos Ingarik acabam se fazendo sua imagem (falam sua lngua,
praticam seus rituais, compartilham de sua comida, etc.). Assim, se outrora Ingarik foi
um etnnimo ecologicamente motivado e difuso a ponto de diferentes subgrupos
habitantes da mata serem designados de tal maneira por grupos vizinhos (ver nota 6) em
algum momento, que no saberamos precisar, aquele povo kapon do vale do Cotingo
resolveu se autodenominar Ingarik e, mais recentemente, a pleitear o reconhecimento do
Ingarik como lngua e no apenas como dialeto kapon, reivindicando uma autonomia
lingustica e poltica em relao aos demais subgrupos kapon (Cruz 2005).
Em suma, se os Ingarik se afirmam como povo autnomo e distinto dos vizinhos,
no temos motivos para consider-los apenas como Kapon (at porque os Patamona e os
Akawaio costumam ter suas especificidades reconhecidas); muito menos para corroborar a
designao que lhes tem sido atribuda por parte da literatura etnolgica, a saber, os
Akawaio do Cotingo.
7 Nos anos 2000, dentre os 290 habitantes da aldeia Manalai, havia 273 Ingarik, 9 Akawaio, 5 Patamona, 1 Taurepang e 2 Makuxi (Cruz 2005:28).
13
1. Os Kapon, os Pemon, seus aliados e inimigos de alm-mar: estratgias indgenas na colonizao da Guiana ocidental
Em todos esses lugares, reas de colnia espanhola, reas de colnia portuguesa, inglesas, os nossos parentes sempre reconheceram na chegada do branco o retorno de um irmo que foi embora h muito tempo, e que indo embora se retirou tambm no sentido de humanidade, que ns estvamos construindo.
Ailton Krenak
As Guianas e os etnlogos
Os povos indgenas das Guianas pertencem a famlias lingusticas distintas e, no
entanto, compartilham uma srie de traos culturais. 8 Isso levou os estudiosos da regio a
engrossar o coro daqueles etnlogos que j no viam vantagens em tratar os padres
culturais amerndios em correspondncia s famlias lingusticas (Basso 1977; Melatti
2011). 9 Assim, desde o ltimo quartel do sculo XX o macio guianense tem sido tratado
como regio etnogrfica: os etnlogos passariam a falar em sociedades guianenses, em
um sistema de trocas das Guianas, redes de relaes nas Guianas e assim por diante.
Os dois principais enfoques etnogrficos que repercutiram essa virada da literatura
guianense nos colocam, entretanto, diante de uma desconcertante contradio.
8 Em sua maioria, eles so falantes de lnguas karib. Mas h grupos aruak, tupi-guarani, entre outras lnguas isoladas. Os Yanomami esto no extremo oeste da regio. Devido sua especificidade cultural, foram excludos da sntese de Rivire (2001). Entretanto, outros estudiosos das Guianas preferiram contempl-los em suas anlises comparativas, seja porque eles compartilham a terminologia dravidiana com a maioria das etnias guianenses, seja porque eles mantm intensas relaes de troca com os vizinhos Yekuana e Pemon (Gallois 2005; Overing 1983-84). 9 Apesar de Basso ter organizado Carib-Speaking Indians (1977), uma coletnea destinada comparao entre os estudos de sociedades da famlia lingustica Karib, ela mesma concluiu que, quando se trata de povos amerndios, o mais interessante pens-los regionalmente, isto , em relao aos grupos com quem eles interagem. Sejam eles de diferentes origens histricas e lingusticas. Seguem na mesma linha a coletnea Themes in political organization: the Caribs and their neighbours (1983-84) e a sntese de Peter Rivire Indivduo e Sociedade na Guiana (2001) embora este autor privilegie claramente organizaes sociais karib. Sua preocupao em apontar os traos comuns a vrias sociedades das Guianas foi tal que ele chegou a ser acusado de forjar um tipo ideal guianense (Rivire et al. 2007).
14
De um lado, as sociedades guianenses foram concebidas como mnadas fechadas
em si mesmas (porque xenofbicas), descentralizadas devido ao repdio coero e,
portanto, atomizadas (ver Rivire 2001 e Overing 1983-84).
De outro lado, h toda uma literatura que se empenhou em dissolver a imagem
destas organizaes sociais como mnadas bem delimitadas. Essa abordagem se desdobrou
em dois vieses. O primeiro deles pode ser identificado nos estudos histricos isto , nos
estudos antropolgicos que recorrerem histria que revelaram a discrepncia entre os
traos das sociedades guianenses no presente e no passado. Se, atualmente, elas parecem
se conformar a modelos atomsticos, h relatos de exploradores europeus que pintam um
quadro significativamente distinto. Ao que tudo indica, no passado, as sociedades
guianenses mantinham entre si uma comunicao intensa por meio de um vasto sistema de
trocas e de guerra. Os grupos eram hierarquizados e h quem fale em dinastias polticas.
Assim, os autores de tais estudos propem que a discrepncia entre o passado e o presente
guianense no seja tratada como ruptura, e que os etngrafos se esforcem em pensar as
continuidades entre os dois modelos de sociedade apresentados (Dreyfus 1993, Whitehead
1988, Costa 2000). H tambm quem defenda que as redes de troca e de comunicao dos
povos guianenses permaneceram ativas at a atualidade ou, pelo menos, at recentemente
(Thomas 1982; Butt Colson 1983-84; 1972; Gallois 2005).
Ainda que o trabalho de Rivire (2001) venha sendo tomado como paradigmtico
da primeira abordagem, foi ele quem mais se dedicou ao exame da referida contradio,
concluindo que os traos que o levaram a conceber um modelo atomstico se manifestam
sobretudo enquanto ideal dos povos guianenses. Na prtica, as coisas se passam de modo
distinto. A seguir fao um brevssimo resumo de seu percurso analtico, sempre em dilogo
com as reflexes e crticas de outros etnlogos. A reviso de tais debates enriquecer nossa
percepo acerca da dinmica sociopoltica dos povos guianenses.
Os padro de assentamento guianense
Indivduo e Sociedade na Guiana, de 1984, a primeira e nica grande sntese das
questes etnogrficas que a literatura da regio vem discutindo desde os surveys de Roth,
de 1915 a 1929, e da monografia seminal de Gillin, de 1936. Da comparao entre diversas
etnografias, Rivire (2001) extraiu um modelo scio-poltico guianense cuja unidade
mnima o grupo local.
15
Num plano ideal, o grupo local consiste num assentamento composto por uma
parentela endogmica. As relaes matrimoniais so do tipo dravidiano, em que se
prescreve o casamento entre primos cruzados bilaterais. Conforme muitos autores j
notaram, se as prescries matrimoniais so respeitadas, o comportamento determinado
pelas relaes de afinidade no difere, significativamente, daquele suposto nas relaes
entre consanguneos. Uma vez que o noivo pertence famlia extensa dos sogros e dos
irmos da noiva, o casamento no exige que suas atitudes para com estes se modifique
tanto.
Quando o casamento exogmico, e o ideal no cumprido, o quadro bem
diferente (ver Arvelo-Jimenez 1971; Kaplan 1975; Henley 1982): o princpio de
uxorilocalidade exige a mudana do afim para a aldeia do sogro, a quem prestar o servio
de noiva por determinado prazo. Como veremos adiante, as relaes entre afins no
aparentados sempre supem uma inimizade potencial. E o receio de abrigar um forasteiro
leva a famlia da noiva a exigir um excesso de observncias do noivo. Por outro lado,
possvel que este seja explorado pelo sogro um risco que os rapazes procuram evitar,
efetivando a endogamia e no se casando alhures. Essa tenso inerente ao matrimnio
exogmico evidencia a reserva dos povos guianenses quanto queles de procedncia
longnqua. Em contrapartida, a proximidade fortalece a confiana e a reciprocidade entre
os co-residentes. Vejamos.
Os esquemas relacionais das etnografias
A desconfiana que os estrangeiros inspiram nos grupos locais guianenses
assunto exaustivamente tratado pela literatura. A exemplo de Overing (1983-84), que
prope a associao piaroa e, de modo geral, amerndia entre o perigo e a diferena.
J os etngrafos que estiveram entre os Kapon e os Pemon contam que estes povos
estabelecem uma correspondncia entre a localizao de um grupo regional e a fonte das
feitiarias que os atormentam. Quanto mais afastado estiver o grupo, mais canaim so
seus membros.10 No de se surpreender, portanto, que aqueles que vivem em lugares 10 Canaim (aportuguesamento de kanaim ou kanaim) um conceito central na economia poltica dos povos da regio circum-Roraima. difcil traduzi-lo uma vez que designa um feiticeiro cruel, mas tambm a ao de enfeitiar algum, assim como o prprio feitio que incide sobre a vtima. Fala-se que algum foi vtima de canaim ou que determinada pessoa canaim ( um feiticeiro perigoso). Canaim tambm pode significar o mal ou aquilo que perigoso e est associado a ele (Koch-Grnberg 1979-82; Thomas1982; Butt Colson 2001; Whitehead 2001; 2004).
16
mais isolados sempre tiveram a pior fama (Butt Colson 1983-84; Koch-Grnberg 1979-82;
Whitehead 1996).
Tudo isso se traduz na correlao que Rivire identificou, em vrias etnografias das
Guianas, entre o risco apresentado por um indivduo ou grupo e o fator espacial:
O espao social estruturado em termos de dentro:fora :: parentes:estranhos :: familiar:no-familiar ::
segurana:perigo. A ambiguidade do afim, o estranho que vem se casar, tem de ser entendida a partir
dessa estrutura, pois deriva dela (2001:103).
Os dualismos presentes nessa equao, como o autor adverte, se conformam a um
modelo concntrico, cujo crculo interno corresponde ao espao habitado por ns. Trata-
se do grupo local o domnio da endogamia, da segurana e da consanguinidade. O crculo
perifrico, em contraste, o terreno sociopoltico habitado por eles, pelos afins e,
portanto, pelos estranhos potencialmente perigosos (ver o esquema paradigmtico de
Albert 1985 para a dinmica relacional yanomam). Como esse modelo constitudo por
um ponto central, do qual um dos termos est mais prximo e o outro mais afastado, a
oposio entre eles hierrquica. Na prtica isso significa que o forasteiro inserido no
grupo local estar, possivelmente, margem do ncleo endogmico, cujos membros
possuem uma confiana mtua e inequvoca.
Cumpre retermos que, nas sociedades guianenses, a definio de parentesco est
mais sujeita co-residncia que consanguinidade. So os aspectos espaciais (a
proximidade e a distncia) que determinam, por um lado, o grau da familiaridade atribudo
a uma pessoa pelos co-residentes, por outro lado, o grau de afinidade dos no co-residentes.
Consanguneos que vivem longe do grupo local so considerados no cognatos, ao passo
que os afins efetivos que vivem no grupo local so consanguinizados terminologicamente,
tornando-se cognatos. Ora, se eles frequentemente penetram o plano ideal de ns por
meio do casamento, h mecanismos que suavizam a ambiguidade da presena de um afim
no crculo consanguneo. Um deles a tecnonmia. Nos Waiwai temos um bom exemplo.
Eles empregam a categoria epeka em referncia s relaes fraternas (entre irmos ou
irmos classificatrios). Entretanto, h cunhados que se declaram epeka (Fock 1963).
Para Rivire, essa no tanto uma maneira de suprimir a afinidade, como havia
sugerido Thomas (1978), pois Em uma aldeia ideal, a afinidade no existe (Rivire
2001:102). Trata-se, na verdade, de enfatizar a consanguinidade. Mas a que reside o
17
paradoxo: apesar da fico de um parentesco endogmico, a afinidade, a exemplo daquilo
que se encontra do lado de fora, continua a insinuar-se. (2001:103).
Com efeito, seu livro todo estruturado de maneira a evidenciar o contraste,
inerente vida social guianense, entre a autossuficincia ideal e a prtica dependente do
exterior. Em sua dissertao de mestrado, Costa (2000) problematizou esta abordagem. Ela
sugeriria que a sociedade guianense enquanto tal apenas o resultado de um ideal
endogmico frustrado. Assim, este autor prefere no imaginar que as estatsticas de
exogamia, a intensidade das trocas e a constatao histrica de mecanismos de apropriao
da alteridade (a captura de inimigos e de noivas, a extensa rede de trocas etc.) so indcios
do fracasso da autonomia, do isolamento e da endogamia. Pelo contrrio, todos estes
elementos parecem indicar que a constituio e a reproduo das organizaes sociais
guianenses dependem largamente da abertura ao exterior, da incorporao de elementos
aliengenas e, portanto, de uma tendncia exogmica ainda que ela no se manifeste
como discurso.
A leitura crtica de Costa nos dirige para uma abordagem distinta da poltica dos
povos das Guianas. Em vez de tratar a comunicao entre os grupos locais como prticas
contraditrias aos princpios endogmicos que regem sua ideologia, ela atribui semelhante
contradio nfase excessiva que a antropologia guianense vinha conferindo ao plano do
parentesco, portanto, s relaes que se limitam ao grupo local. Em contraste, conviria dar
a devida importncia s relaes de afinidade que no podem ser reduzidas ao idioma do
parentesco, justamente, por no se tratarem de alianas matrimoniais. As relaes de
afinidade por excelncia envolveriam figuras de alteridade que no so consanguinizadas
pelo grupo local.
Esta, como se sabe, a abordagem proposta por Viveiros de Castro (1993) em um
notvel artigo que discute os limites e as potencialidades das aplicaes do modelo
dravidiano nos contextos etnogrficos amaznicos. primeira vista, o autor parece
endossar as observaes de Rivire acerca da socialidade concntrica dos povos
guianenses: se, no grupo local, a consanguinidade se sobrepe afinidade, a afinidade
predomina no plano scio-poltico correspondente ao crculo perifrico.
Alm disso, o autor destaca a contribuio de Rivire para os avanos do
dravidianato amaznico, mediante a distino de aspectos da afinidade que costumavam a
ser confundidos: a afinidade (affinity) efetiva a relao entre afins aproximados pela
unio matrimonial, isto , afins consanguinizados; e a afinabilidade (affinability) o
18
potencial de se tornar consanguneo por meio da unio matrimonial (Rivire 2001:86). O
que estaria em jogo a a marcao terminolgica ou atitudinal da diferena entre
afinidade efetiva e afinidade virtual ou potencial. (Viveiros de Castro 1993:167)
Por outro lado, Rivire identificou dois tipos extremos de afinidade entre os quais
haveria uma srie de gradaes: os afins aparentados (relacionados pela co-residncia antes
da unio matrimonial); os afins no-aparentados (sem qualquer parentesco prvio unio).
Essa classificao relevante na medida em que permite ao analista qualificar as
diferenas comportamentais entre o cnjuge aparentado e o cnjuge no aparentado; como
foi dito acima, o primeiro est livre dos constrangimentos e das obrigaes que a famlia
da noiva colocam ao ltimo.
O problema que, tanto num caso quanto no outro, os termos contrastados por
Rivire no permitem ir alm da afinidade que gira em torno do matrimnio. Esto
comprometidos, portanto, com a imagem do exterior scio-poltico como um plano de
negociao matrimonial.
Diante disso, Viveiros de Castro (1993) atenta para uma diferenciao fundamental
que teria escapado a Rivire e outros: alm do afim efetivo (aquele que, de fato, se casou
dentro do grupo), h o afim virtual (aquele que pode se casar no grupo local, no caso, o
primo cruzado bilateral). E este eis o ponto deve ser distinguido do afim potencial (o
estrangeiro com quem no se casa e que, no entanto, o afim por excelncia) (ver tambm
Viveiros de Castro e Fausto 1993)
A dificuldade da literatura em precisar os esquemas de alteridade das sociedades
guianenses talvez se deva tendncia delas consanguinizarem os afins efetivos, por um
lado, e afinizarem os estrangeiros e parceiros polticos, por outro lado. Os Piaroa, por
exemplo, designam seus afins efetivos por um termo que faz referncia afinidade virtual
(o genro designa o sogro por um termo correspondente a irmo da me). J o aliado
poltico, o afim potencial, costuma a ser chamado cunhado ou sogro. Ele jamais
consanguinizado pela terminologia e, portanto, compe a verdadeira relao de afinidade.
Isso significa que o crculo perifrico do esquema relacional guianense deve ser concebido
como o plano das relaes de afinidade potencial aquelas que, ao contrrio do que
propunha Rivire , no esto subsumidas pela terminologia e pelas atitudes prescritas pelo
parentesco. Aqui a consanguinidade englobada pela afinidade, pois at mesmo os
consanguneos que habitam alhures so afinizados.
19
Por fim, Viveiros de Castro (1993) lembra da existncia de uma regio externa ao
crculo scio-poltico. Um lugar povoado por figuras de extrema alteridade, onde o idioma
da inimizade engloba o da afinidade. Rivire (2001) tambm no lhe deu ateno, mas
convm lembrarmos que Lvi-Strauss (2003) j havia observado que todo modelo
concntrico supe um terceiro termo. Nas sociedades amerndias, ele corresponderia
exterioridade extrema, floresta que circunda a esfera sociolgica, enfim, ao domnio da
inimizade. E o mais importante: essa exterioridade que dinamiza todo o sistema.
Com efeito, no contexto guianense, percebemos que a inimizade insinuante das
relaes de afinidade potencial exige que os afins sempre movimentem a mquina da
reciprocidade caso desejem evitar o conflito.11 Ou seja, a inimizade o que motiva as
trocas e garante a prpria continuidade dos laos sociais. A passagem a seguir sintetiza o
ponto:
se no nvel local a consanguinidade engloba a afinidade, no nvel supralocal a afinidade engloba a
consanguinidade, e ao nvel global a prpria afinidade que se v englobada (definida, determinada)
pela inimizade e a exterioridade. o parentesco como um todo que se v, primeiramente englobado
pela afinidade, finalmente subordinado relao com o exterior (Viveiros de Castro 1993:173).
Tais constataes, no custa lembrar, tm como principal fundamentao
etnogrfica o modelo concntrico elaborado por Bruce Albert (1985) a partir da dinmica
relacional yanomam. Em dilogo com Rivire, ele prprio confirmaria a existncia de
mnadas yanomam idealmente endogmicas. Observaria, entretanto, que
Esse modelo indgena de atomismo sociolgico e poltico, que o etnlogo deve evitar reificar a partir
de uma abordagem analtica focalizada no grupo local, se inscreve num espao scio-simblico
intercomunitrio (Albert 1992:155).
Essa proposta nos interessa sobretudo porque desloca o foco da abordagem poltica:
se antes ela incidia sobre a esfera do parentesco, agora, passa a abranger outros domnios
da socialidade daqueles grupos idealmente endogmicos. 12 Ao faz-lo, evidencia que o 11 E se considerarmos, maneira de Dreyfus (1993), que a guerra amerndia tambm se conforma lgica da reciprocidade onde a troca de mulheres se traduz em captura de esposas, e a dvida paga na vindita teremos exemplos ainda mais bvios da inimizade como motor do sistema scio-poltico. 12 Essa abordagem ser fundamental a este trabalho na medida em que nos permitir apreciar a maneira como os brancos, enquanto figuras de extrema alteridade, foram inseridos na dinmica relacional dos Kapon e Pemon.
20
ideal endogmico das Guianas no corresponde, necessariamente, a um atomismo poltico.
Como notou Viveiros de Castro, O atomismo guians uma iluso sociolgica gerada
pela tica restrita do parentesco. (1993: 175-76) (para um estgio embrionrio dessa
crtica ver Viveiros de Castro 1986b:275).
Mais tarde, em resposta quela e outras leituras crticas, Rivire concordou que, no
momento da escrita de Indivduo e Sociedade na Guiana, ele no conjugara os ideais
sociolgicos caracterizados pela natureza consangunea, endogmica e autnoma das
unidades residenciais com as ideias metafsicas e sociolgicas e cosmolgicas
dominadas por um relacionamento conceitual entre o dentro e o fora (2001:11). Naquela
poca, ele se limitara a analisar as relaes polticas que giram em torno do casamento e,
assim, dizia:
O relacionamento ao qual vimos nos referindo como afinidade no produto apenas do casamento,
mas nasce de um casamento que envolve um indivduo de fora. (2001:102).
Posteriormente, ele reconheceria o rendimento analtico da noo de afinidade
potencial tal como proposta por Viveiros de Castro, levando em conta o terceiro termo que
dinamiza o modelo do dualismo concntrico e faz com que ele no seja, justamente,
dualista:
Com isso refiro-me ao modo pelo qual a oposio entre o centro e a periferia da casa abrangida pela
prpria casa, em oposio a algum outro trao externo, talvez a roa ou a floresta. Isso possibilita uma
compreenso mais dinmica da ordenao dualstica do universo. (2001:12).
De qualquer maneira, se agora Rivire parecia inclinado a incorporar a
exterioridade no esquema relacional guianense, em 1984, ele j atentava para o dinamismo
do sistema concntrico, advertindo que era preciso nuanar os graus de distncia:
Ser estranho, porm, no uma qualidade absoluta, mas relativa; existem graus de alteridade. Do
mesmo modo, no existe uma dicotomia entre ns e eles, mas na verdade, uma escala mvel,
sendo a distino estabelecida de acordo com o contexto. (2001:103).
O esquema relacional concntrico consistiria, portanto, num continuum, em que h
graus e no polos de afinidade e consanguinidade (2001:86). Em consonncia, Viveiros de
Castro (1993) lembraria que, se o plano da consanguinidade recebe afins efetivos do plano
21
da afinidade potencial, o plano scio-poltico pode receber afins potenciais do plano da
inimizade.
E, nas Guianas, onde predomina uma lgica da reciprocidade, um afim potencial
pode ser consanguinizado caso reitere as relaes de troca com o grupo local. Ora, esta
uma das proposies centrais de Joanna Overing (1983-84) que, a meu ver, foi quem
melhor elaborou o problema da ambiguidade constitutiva da socialidade guianense.
maneira de Rivire, ela notou entre os Piaroa a contradio entre um ideal
endogmico e uma poltica externa que promove a aproximao de afins potenciais e
estrangeiros. Embora eles se digam endogmicos, casam-se com afins potenciais; apesar de
temerem os estrangeiros, relacionam-se com eles; alm disso, sua mitologia sugere que a
continuidade social depende da coexistncia de capacidades antagnicas: aquelas
associadas a um heri mtico canibal e perigoso e aquelas relativas a um heri mtico que
tenta reparar e equilibrar os estragos provocados pelo outro.13 Na prtica, os Piaroa
associam tais capacidades, respectivamente, ao plano perigoso da afinidade e da diferena;
ao plano seguro da endogamia e da semelhana. Assim, as caractersticas de Kuemoi, o
canibal mitolgico, so geralmente atribudas aos afins potenciais e aos adversrios
polticos.
Ora, se a metafsica piaroa exige a interao entre capacidades antagnicas e
complementares, isso se deve ao temor de que uma das duas se torne predominante e
controle a cultura o que resultaria num desequilbrio insustentvel a ponto de levar a
sociedade ao extermnio. Este parece ser o grande tema mtico dos Piaroa. Disso resulta
uma necessidade social de afins, isto , de foras antagnicas identidade endogmica que,
caso seja excessivamente enfatizada, pode desencadear o monoplio das capacidades
culturais (pensemos num lder-sogro que nunca tivesse seu poder ameaado por afins
forasteiros).
Note-se que a problemtica de Overing repercute o tema clastreano da
predominncia do Um como o grande Mal da sociedade amerndia (Clastres 2008). E o
mais interessante que, para evitar os perigos da coero, os Piaroa optam por neutraliz-
la atravs de relaes de afinidade igualmente arriscadas. No por acaso, eles e os demais 13 O mundo piaroa foi construdo por dois afins mticos, Kuemoi e Wahari, cujos poderes antagnicos so complementares: as capacidades incontrolveis do primeiro criaram as coisas da cultura, alm de tudo aquilo que perigoso. Wahari, cujas capacidades so controladas, criou as coisas da natureza. Wahari, Kuemois son-in-law and Master of the jungle, spends much of the mythic time attempting not only to steal culture from Kuemoi but also to trasnform his spoils into tamer, more efficacious forces for their safe use by jungle beings. (1983-84:339).
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povos guianenses se empenham em maquiar os perigos insinuantes e enfatizar os
mecanismos que garantam sua segurana. Um deles, como j vimos, a tecnonmia. O
outro a reciprocidade.
Isso significa que um afim potencial, ou mesmo um estrangeiro mais perigoso, com
quem os Piaroa possuem uma relao de reciprocidade imprpria, sero afinizados
medida que reiterarem a reciprocidade apropriada com membros de um grupo local. The
danger intrinsic to the in-law relationship can only be averted through proper reciprocity.
(Overing 1983-84:342). E uma vez que eles so acolhidos pelo crculo consanguneo, sua
condio de afim logo camuflada.
Atravs de seu esquema de reciprocidades, os Piaroa trazem figuras de alteridade
para seu campo relacional sem que isso enfraquea seu princpio endogmico, pelo
contrrio, a proximidade do risco s o refora. E o mais importante: so estas figuras que
encarnam a diferena necessria continuidade da existncia social de um povo que pouco
tolera a coero.
Em suma, os autores mencionados nesta sesso parecem concordar que, ainda que
os povos amerndios saibam dos perigos que as relaes com figuras de alteridade extrema
podem trazer-lhes, elas ocorrem. Acima de tudo, elas so cruciais para a continuidade de
sua socialidade, que se realiza na troca.14 Como Overing bem lembrou, it is only through
affinity that reciprocity can be activated. (1983-84:344). Assim, as redes de troca, os
casamentos exogmicos e, como veremos, o interesse pela catequese e pela linguagem dos
brancos tudo isso sugere a inclinao dos povos guianenses a lidar com figuras de
alteridade que eles julgam perigosas.
Ora, quando os estrangeiros potencialmente perigosos se dispem a participar de
uma relao recproca com os grupos guianenses, bem possvel que sejam afinizados.
Isto , tornados afins potenciais. As relaes pan-caribenhas denominadas pawana so
bons exemplos de alianas polticas que promovem, justamente, essa transformao dos
estrangeiros em afins potenciais que so como terceiros includos na medida em que
escapam ao dualismo consanguneos/afins e parentes/estrangeiros, e que desempenham
funes mediadoras fundamentais (Viveiros de Castro 1993:178).
14 Em contraste com Overing, Clastres e outros, creio que melhor seria se falssemos na socialidade de Strathern (2006) ao tratarmos de povos como os Karib, que no toleram a coero e parecem estar mais comprometidos com a gesto de relaes sociais do que com a manuteno e a reproduo de uma totalidade tal como a sociedade durkheimiana essa entidade transcendente e coercitiva, que se institui pelo gesto fundacional de excluso de um exterior (Viveiros de Castro 2002a:220).
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Pawana, os parceiros de troca
Pawana ou Pawanaton so termos karib que fazem referncia s relaes e aos
parceiros de troca. Uma vez que os Ye'kuana povo do extremo Oeste da regio das
Guianas sempre foram os grandes fornecedores de artefatos valorizados pelos Kapon e
Pemon, estes o reconheciam como pawana. Entretanto, aos poucos, a literatura entendeu
que no se trata de um etnnimo, mas de um conceito relacional. Pawana era igualmente a
maneira pela qual os Kapon se referiam aos Kamarakoto, os quais serviam de
atravessadores a seus vizinhos Arekuna (Butt Colson 1972, 1983-84; Thomas 1982).
Thomas conta que, entre os Pemon, os grandes comerciantes so to prestigiosos
quanto qualquer liderana influente. Porm, se o lder de um grupo local concentra os laos
polticos em uma rea circunscrita (ou seja, agrega genros e cunhados), o comerciante
prefere acumular aliados alhures, expandindo e no tanto intensificando sua influncia. E
tudo indica que quanto maior for sua zona de circulao, mais prestgio ele ter dentro e
fora de seu grupo local: os Pemon valorizam aqueles que so capazes de cruzar fronteiras e
mediar as relaes do grupo com estrangeiros, cultivando o conhecimento de rotas, de
regies afastadas e de outras lnguas. exemplar o caso de um comerciante pemon que
Thomas conheceu pessoalmente: Fabian Ortega was a welcome visitor anywhere in the
northwest portion of the Uonken region, even if he brought only news and had no goods to
trade on a particular visit (Thomas 1982: 130).
De tais constataes decorre um problema, pois, tal como os demais povos
guianenses, os Pemon evitam e at mesmo temem o contato com estrangeiros. Butt Colson
(1973) lembra que eles e os Kapon preferem obter artefatos atravessados por seus vizinhos
a adquiri-los diretamente dos produtores estrangeiros. O que ento explica o bom
acolhimento dos negociantes fora de seu territrio? O que lhes permite transpor fronteiras
polticas?
Evidentemente, os comerciantes so figuras bem-vindas por providenciarem e
colocarem em circulao os bens mais desejados. Entretanto, isso no suficiente para que
algum se transforme num comerciante bem sucedido. Thomas conta o caso de Egberto,
que herdou do falecido sogro uma relao de parceria com Pizarro. Apesar de ambos serem
Pemon, moravam em regies bem afastadas o que os tornava reciprocamente
ameaadores. No por acaso, apesar da aliana bem consolidada entre Pizarro e o sogro de
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Egberto, foi preciso que este reafirmasse a reciprocidade para que ele prprio pudesse se
considerado um parceiro confivel.
Como Overing, Rivire, Thomas e tantos outros perceberam, a confiana mtua
dos parceiros de troca depende de sua capacidade de reafirmar os laos de reciprocidade.
Mas sempre bom lembrar que a lgica da reciprocidade infinita, e o comprometimento
que ela exige pode falhar a qualquer momento, atualizando a inimizade virtual da relao
de afinidade potencial. Isso explica, em parte, a relao ambgua que se tem com os
estrangeiros.15
bem sabido que a intensificao da presena colonial nas Guianas contribuiu para
o estreitamento e a desacelerao das redes de troca indgenas. E ainda que essas
transformaes tenham ocorrido pelo menos desde o sculo XVII, foi na passagem do
sculo XVIII para o XIX que os efeitos da presena colonial realmente desfiguraram as
extensas redes comerciais. Desde ento, o que se viu foram resqucios daquele sistema
outrora mais amplo e dinmico (para este contraste ver Costa 2000; Dreyfus 1993;
Rodrigues 2013).
Ainda assim, quase todos os viajantes e etnlogos, que estiveram nas Guianas a
partir do sculo XIX, se impressionaram com a intensidade da circulao de bens e da
comunicao entre os povos indgenas da regio. Isso fica muito claro nos relatos de Koch-
Grnberg que passou pela regio circum-Roraima entre 1911 e 1912. O etnlogo alemo
no s participou, ele prprio, de relaes de troca com os ndios que visitava, como
testemunhou sua propenso a viajar a negcios. Alm disso, identificou a existncia de
uma rede indgena de comunicao, onde as notcias corriam vastas extenses de um dia
pro outro.
Embora no sculo XIX o colonialismo j tivesse extinguido as prprias relaes
polticas que ajudara a criar, a saber, as redes de troca guianenses fundamentadas na
disputa pelo controle de bens manufaturados, elas deixaram, todavia, uma marca at
nossos dias, no notvel circuito de troca de bens que se manteve no interior da Guiana
Ocidental. (Dreyfus 1993:36).
Com efeito, Butt Colson (1973) entende que o sistema de trocas akawaio-arekuna
entrou em declnio apenas no sculo XX. Ela conta que, a partir da dcada de 1950, a
presena adventista no alto Kamarang e a instalao de uma estao governamental e de 15 Antecipo que as ltimas observaes sero importantes para muitas das questes subsequentes. bom no perd-las de vista.
25
pistas de pouso no alto Mazaruni atraram um grande contingente de colonos para os
territrios akawaio e arekuna o que desencadeou o aumento do fluxo de mercadorias na
regio e as consequentes alteraes no escambo indgena. No obstante, para tais
transformaes, o uso do dinheiro foi mais relevante do que a proliferao de objetos. Os
ndios passaram a ser chamados para realizar diversos tipos de trabalho pelos quais eram
pagos. Desse modo, podiam adquirir, diretamente e sem percorrer grandes distncias, os
bens manufaturados que tanto cobiavam. Tudo isso enfraqueceu, por exemplo, o papel
dos atravessadores.
Ainda assim os relatos de Butt Colson permitem-nos entrever que at a
intensificao do uso do dinheiro pelos Kapon e Pemon daquelas regies, os bens
manufaturados pareciam circular como qualquer outro artefato indgena: atravs de trocas
e no de pagamento. Num primeiro momento, a regio do Mazaruni testemunhou o papel
crucial dos pawana na distribuio das mercadorias que vinham proliferando. Aqueles que
tinham mais acesso s misses, aos postos governamentais e, principalmente, s minas,
tornaram-se atravessadores privilegiados. Este o caso dos Akawaio e Arekuna que se
reafirmaram como pawana apesar de no produzirem, eles prprios, bens valorizados
como o ralador de mandioca e as vasilhas feitas de uma argila mais resistente.16
Thomas tambm conta que o Pemon Fabian Ortega participava de um sistema de
escambo pemon-yekuana, onde negociava tanto artefatos indgenas adquiridos dos
Yekuana, quanto produtos industrializados atravessados pelos Arekuna.
This system has been sustained by an influx of non-Pemon goods from British Guiana (now Guyana) and from Brazil, but the rules by which it operates are indigenous ones (Thomas 1982:124).
Esses exemplos mostram que os bens manufaturados dos brancos eram, at
recentemente, apropriados pelos povos Kapon e Pemon por meio de seus tradicionais
sistemas de troca e conforme suas regras. Veremos tambm que inclusive os brancos
foram enquadrados na lgica de reciprocidade que movimenta tais relaes.
Antes de avanar a questo, proponho um breve sobrevoo pela histria da
colonizao da regio circum-Roraima. Como a maior parte dos trabalhos histricos a que
tive acesso tratam do vale do Rio Branco, ser inevitvel privilegi-lo. 16 Dado o posicionamento de seu territrio a meio termo entre os habilidosos Yekuana e Waiwai, estes povos sempre foram atravessadores privilegiados. Com o aumento do fluxo de bens manufaturados e a proximidade de seus fornecedores brancos, reafirmaram este papel (Butt Colson 1973; Thomas 1982).
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A fronteira quase esquecida
Portugal, Pases Baixos e Espanha foram as trs potncias europeias que
colonizaram a Guiana ocidental. Ocuparam, respectivamente, o Rio Branco, o Essequibo e
o Orinoco os maiores cursos dgua da regio (ver mapa 2 supra).17
Sabe-se que, j no fim do sculo XVI, os espanhis e os ingleses vinham
explorando a regio do Orinoco. Alguns perseguiam a mtica cidade de ouro, Manoa,
governada por El Dorado motivo, alis, de muitas expedies europeias que ocorreram
at meados sculo XVIII (Swan 1961; Whitehead 1992). Um desses pioneiros foi o ingls
Walter Raleigh que, em 1595, subiu o Orinoco at sua confluncia com o Caroni. E seu
tenente Laurent Keymis percorreu, no ano seguinte, a costa guianense at o delta do
Orinoco. Tambm temos notcia de que os holandeses instalados no Corentyne expulsaram
espanhis que se meteram a explorar aquela regio por volta de 1612. Disso resultou a
construo, em 1613, de um forte holands no esturio do Essequibo. Kijkoveral foi o
primeiro forte europeu das Guianas e, desde ento, o cenrio poltico da regio mudaria
radicalmente. Como veremos adiante, o projeto colonial holands teve um impacto
profundo nas relaes de troca e guerra dos povos guianenses.
Nas dcadas seguintes, os holandeses ocuparam pontos estratgicos da costa: o
delta do Orinoco, bem como os baixos cursos do Essequibo e do Berbice. Alm disso,
ergueram postos nos mdios cursos do Essequibo, do Cuyuni e do Mazaruni, de onde
podiam lanar expedies que alcanavam, especula-se, o Rio Branco. Em suma, em
meados do sculo XVII, os holandeses j dominavam uma vasta extenso do ocidente
guianense. O mesmo no pode ser dito dos espanhis que, durante aquele sculo, foram
alvo de repetidas incurses indgenas e s lograram se estabelecer no mdio Orinoco
esporadicamente. Os portugueses, por sua vez, parecem ter tomado conhecimento do Rio
Branco em meados do sculo XVII. Todavia, a explorao da regio s veio mais tarde,
quando no sculo XVIII particulares e militares promoveram as primeiras entradas, com o
principal objetivo de capturar escravos indgenas (Dreyfus 1993; Soares Diniz 1972).18 17 Em 1688, num tratado denominado Paz de Breda, Espanha, Portugal e Pases Baixos definiram a partilha colonial. Entretanto, quase um sculo depois, as fronteiras ainda eram desrespeitadas, de modo que Espanha e Portugal s acordaram que o Canal do Cassiquiare faria a fronteira entre seus respectivos territrios por volta de 1760 (Dreyfus 1993). 18 Antes de 1755, quando estas Tropas de Resgate foram proibidas por Lei, o Estado portugus no apenas legitimava a escravido indgena como participava ativamente do mercado escravocrata. Tratava-se de uma atividade econmica muito lucrativa. Com a sano da lei, iniciou-se uma era de capturas clandestinas.
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Embora a atividade extrativista e o mercado de escravos indgenas conferissem
regio um potencial econmico j no sculo XVIII, foi por outra razo que a Coroa
portuguesa resolveu ocup-la. Tratava-se de uma zona fronteiria, cercada por holandeses
e espanhis, cuja presena em territrio portugus se fazia notar, de modo que cumpria
defend-la da cobia dos vizinhos. Desde a dcada de 1730, os portugueses estiveram
alarmados por conta da participao holandesa no comrcio indgena. Seus bens
manufaturados tinham ampla circulao e alcanavam at mesmo os povos do Rio Negro.
No entanto, sabe-se que, com tais parcerias, os holandeses no vislumbravam tanto
expandir seu territrio poltico quanto aumentar sua influncia comercial. Uma ameaa
mais real foi a espanhola. Em 1775 os portugueses foram surpreendidos com a notcia de
que os espanhis haviam se instalado na regio do Rio Branco. Eles partiram do Orinoco e
fizeram a improvvel travessia de uma cordilheira tida pelos portugueses como barreira
natural entre os respectivos territrios coloniais. O fato que, no mesmo ano, os
portugueses alcanaram os invasores espanhis no Uraricoera, um dos principais afluentes
do Rio Branco. Apesar dos espanhis justificarem que aquela era uma expedio de busca
pela cidade de El Dorado, bem verdade que, desde 1773, haviam se fixado e erguido dois
aldeamentos na regio. Portanto, era clara a pretenso da Espanha em anex-la sua
colnia.
Nesse quadro, a ocupao efetiva do Rio Branco tornou-se uma questo central para os portugueses:
j a tropa de guerra enviada ao Branco para combater os espanhis levava no s a ordem de expuls-
los, mas tambm de iniciar a construo de uma fortaleza e o aldeamento de ndios na regio (Farage
1991:123).
Em 1777, os portugueses inauguraram o Forte So Joaquim na confluncia dos rios
Branco, Uraricoera e Tacutu. E, assim, aquela regio seria definitivamente ocupada pelo
governo portugus.
Comentarei adiante a estratgia portuguesa de colonizao, que privilegiou a
construo de fortalezas militares e a poltica de aldeamentos. Por ora, basta dizer que, no
mesmo ano de 1777, eles j eram seis e somavam uma populao de 1019 ndios aldeados.
Como Farage notou, essa estratgia visava sobretudo a proteo do territrio. O que estava
em jogo era o uso da populao indgena como barreira humana de conteno das
possveis invases holandesas e espanholas. Da Joaquim Nabuco comentar que o
indigenismo portugus teve como principal poltica a transformao dos povos indgenas
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em Muralhas dos Sertes (apud Farage 1991:42). Contudo, nas dcadas de 1780 e 1790,
as revoltas dos ndios aldeados anunciavam o fracasso daquela poltica que, em 1798, seria
finalmente abolida por Carta Rgia.
Pouco antes deste episdio, a Coroa tentou estimular a pecuria com a criao das
Fazendas Nacionais So Bento, So Jos e So Marcos todas elas administradas por
oficiais. Entretanto, essa atividade econmica apenas engataria no fim do sculo XIX, com
a chegada dos primeiros colonos. Rivire (1972) observou que a pecuria uma atividade
tpica de fronteiras isoladas, que predomina enquanto a regio no se integra a um mercado
mais amplo. Ocorre que o isolamento de Roraima durou mais que o normal. At a criao
do Territrio Federal do Rio Branco (mais tarde, denominado Territrio Federal de
Roraima), em 1943, a regio pertencia ao estado do Amazonas. A exportao de gado tinha
Manaus como principal mercado consumidor, contudo, era restringida por fatores
ecolgicos. Uma vez que o acesso regio se dava por vias fluviais, era custoso deix-la
na seca. Na estao chuvosa, pelo contrrio, o percurso Manaus-Boa Vista era dificultado
por corredeiras e pela subida de um volumoso Rio Branco. Ainda assim, entre 1890 e 1930,
a pecuria proliferou de tal maneira que predominaria como fonte econmica regional at o
fim do sculo XX.
O primeiro grande fluxo imigratrio parece ter ocorrido no ltimo quartel do sculo
XIX, quando a seca nordestina forou o deslocamento, sobretudo, de maranhenses. Grande
parte destes colonos dedicou-se criao de gado, de modo que, em 1885, quando Henri
Coudreau esteve na regio, havia mais de trinta fazendas nas margens dos rios Brancos e
Tacutu (Coudreau 1886).19 A partir da criao do Territrio Federal do Rio Branco, o
governo abriu estradas e incentivou o transporte areo regional. Estes e outros
investimentos deram novo flego atividade pecuria, que vinha declinando. Foi quando
surgiram as primeiras fazendas de porte latifundirio. Tal como os primeiros colonos, os
novos fazendeiros se valeram da mo de obra indgena. Ainda na dcada de 1940, a
descoberta de jazidas de diamante atraiu outra leva de imigrantes para a regio. Os efeitos 19 Ao que tudo indica, a rea que ocuparam era parte da Fazenda Nacional So Marcos que, no fim do sculo XIX, fundira-se com as outras duas. Um tero dela servia para a criao de gado e os outros dois eram habitados pelos Makuxi, os Wapixana e os Taurepang. Mas isto estava longe de intimidar a invaso dos colonos. Koch-Grnberg, que esteve em So Marcos em 1911, conta: En estos gigantescos domnios estatales se han asentado en los ultimos decenios numerosos ganaderos particulares que tomaran posesin de la tierra sin tener derecho a ello y que marcaron con sus prprias marcas el ganado sajvaje que encontraron. (1979-82 I: 35). Em 1916, a Fazenda Nacional passou a ser administrada pelo Servio de Proteo aos ndios que se empenhou em torn-la um centro produtivo com mo de obra indgena (CIDR 1989:29).
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do garimpo se fizeram sentir em todo o Territ
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