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A CHARGE POLÍTICA EM GOIÁS COMO FERRAMENTA DA ARTE-
COMUNICAÇÃO NA ABORDAGEM DE MARIOSAN
Renato Fonseca Ferreira
Mestrando em Cultura Visual na Universidade Federal de Goiás
Bolsista CNPQ/ CAPES
rfonsecaferreira@gmail.com
Resumo
A charge proporciona uma infinidade de olhares que não se resumem apenas à forma,
mas ao seu conteúdo informativo e características que lhe são singulares como o discursivo
persuasivo e a mensagem de protesto. Há um olhar tendencioso para a charge enquanto
ferramenta humorística, porém seu alcance vai além de uma imagem cômica partindo para a
comunicação de fatos através de uma linguagem visual, revelando um discurso próprio contra
a estrutura sociopolítica, econômica e cultural de um determinado grupo. Este trabalho visa a
análise de uma charge executada por Mariosan em 2008 que se caracteriza como prática
discursiva e ideológica de natureza persuasiva. A abordagem política ressaltada nas charges
revela o posicionamento ideológico que o artista possui e, por se tratar de um sujeito que
acompanhou a evolução e desenvolvimento da charge no Estado e as mudanças políticas,
econômicas e sociais – de meados da década de 1970 até os dias atuais – constituem-se
também em uma fonte de conhecimento não apenas de seu trabalho, mas também um resgate
de parte da história da charge de Goiás.
Palavras-chave: Mariosan, charge goiana, arte-comunicação
Introdução
A charge, na maioria das vezes, possui publicação diária em jornais ou revistas de
atualidades que organizam um conjunto predominante de textos em torno dela com o intuito
de transmitir a informação. Geralmente, a charge é apresentada nos gêneros opinativos de um
dado jornal ao lado de editoriais e artigos com a função de elucidar situações e personalidades
que estiveram em destaque durante o dia ou semana.
As charges sugerem uma comicidade despertada pela capacidade lúdico-criativa do
artista denotando não apenas sua técnica, mas seu ponto de vista crítico e perceptivo
distinguindo suas diferenças estéticas e culturais. Calabrese (1993, p. 21-22), afirma que na
observação de uma imagem, são considerados seus princípios culturais e estéticos, a noção de
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estilo constitui um conjunto significativo de figuras com as quais um sujeito, um grupo ou
uma época se expressa. Logo, a caricatura ou charge possui elementos gráficos que
diferenciam cada artista como uma espécie de assinatura identificando o estilo de um
determinado cartunista. Embora a charge possua elementos plásticos que a caracterizam nas
artes visuais, a recorrência a elementos verbais e a construção de valores históricos e sociais,
tornam a charge em um dispositivo transdisciplinar, portadora de um discurso persuasivo e
ideológico que utiliza o humor como ferramenta de orientação crítica e de protesto.
O humor presente na charge não pressupõe uma atitude negativa, mas “é justamente a
constituição humorística que permite à charge, dissimulando seu caráter de oposição, tentar
desvelar, pela linguagem verbal e não-verbal, sentidos muitas vezes silenciados no contexto
político.” (ATHAYDE, 2010, p. 9)
Esta afirmação da autora demonstra que o discurso ideológico presente na charge
considera o humor como uma “função desestabilizadora de sentidos” que revela aquilo que
não é dito diretamente, mantendo um posicionamento de protesto e rebeldia. Nesse sentido, a
imagem assim como os elementos textuais que a cerca, obtém destaque não apenas pela
irreverência que trata o assunto, mas por sua capacidade de atingir a cognição de determinado
fato pelo viés visual como forma de expressão.
A análise será realizada na observação de uma charge, baseada nos pressupostos
teóricos de JOLY (2007) e CALABRESE (1987, 1993) com o intuito de revelar conteúdos e
significados intrínsecos em sua composição. A análise do discurso presente na charge contará
também com os conceitos expostos por FIORIN (1999) e ORLANDI (2007) como método de
descrever e explicar criticamente os processos de produção e circulação da charge e, visando
compreender os mecanismos dos processos de significação e não apenas interpretar a imagem,
buscando verdades ocultas, mas reconhecer seu simbolismo a cerca da realidade e a
construção de ideologias, da identificação do sujeito e de historicidade a partir da
subjetividade utilizada pelo artista.
A CHARGE EM GOIÁS
A trajetória da charge no Estado de Goiás não é historicamente catalogada, logo várias
lacunas existem sobre a origem da mesma, não sendo possível definir com exatidão seu
precursor uma vez que a grande maioria dos trabalhos não possuía assinatura ou data. A
primeira charge que surgiu em Goiás foi publicada no antigo Jornal de Notícias, de Alfredo
Nasser segundo reportagem publicada no jornal O Popular (1978). Como não trazia
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assinatura, não se sabe quem é o autor. No entanto, José Asmar (1924-2006) é considerado
pelos artistas proeminentes da década de 70 (Mariosan e Jorge Braga – em entrevista – dentre
outros) e, inclusive fontes de jornais goianos (O Popular, 1978) como o artista pioneiro na
elaboração e publicação da charge no Estado.
Ilustração 1. Folha de Goyáz. 10 de agosto de 1949. Goiânia. p.1
Todavia, após consultas realizadas no Instituto Histórico Geográfico de Goiás,
constatei que a charge em Goiás não passou a ser difundida apenas com Asmar por volta da
década de 1940 a 1960, mas também em 1949, por Augusto Rodrigues (1913-1993)i
conforme ilustração 1.
Esta ilustração é uma evidência de que a charge esteve inicialmente divulgada ainda
na década de 1940. Nesta imagem podem-se identificar dois indivíduos aparentemente
pertencentes à classe média, identificados pela indumentária da época que discorrem sobre
outro sujeito: Adhemar. Aparentemente o referido indivíduo seria Adhemar Pereira de Barros,
político influente entre as décadas de 1930 e 1960, nomeado interventor federal na Era Vargas
e, posteriormente eleito prefeito e governador de São Paulo. A charge não apresenta nenhuma
relação com os acontecimentos ocorridos no Estado de Goiás, conforme observado no diálogo
dos dois indivíduos, pois apesar da impressão ser realizada no Estado, em pequena escala, a
charge era importada de outros jornais de circulação nacional, pela ausência de artistas locais.
Este fato é explicado pelo período anterior à Revolução de 30 e transferência da capital em
Goiás cuja população, em sua maioria, era de origem rural havendo a predominância dos
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latifúndios, a ausência de centros urbanos e a economia quase que exclusivamente de
subsistência, (PALACÍN, 1994; MORAES, 1994) justificando a carência de cartunistas que o
Estado possuía. Somente a partir de 1940, imprime-se um ritmo acelerado ao progresso de
Goiás, com a campanha nacional “Marcha para o Oeste” para intensificar a popularização do
Estado de Goiás que culmina na década de 50 com a construção de Brasília (PALACÍN,
1994; MORAES, 1994). Assim com o processo de urbanização, a formação de um mercado
interno, o desenvolvimento da indústria e o crescimento da população urbana de Goiás com
altos índices de imigração, sobretudo de Estados como Minas Gerais, Bahia e Maranhão,
favoreceram o aparecimento de artistas interessados em publicar seus trabalhos nos periódicos
da época.ii
José Asmar, nascido em Anápolis, escritor e jornalista, membro da Academia Goiana
de Letras, também caricaturista, conferencista, administrador, dentre outras atividades atuou
na imprensa durante um período de praticamente 73 anos marcando história em jornais como
O Globo e, contribuindo para a inserção da charge no Estado de Goiás lançando artistas como
Bosco Fontinelli e Fróes no jornal Cinco de Março (a partir de 1970), cartunistas que
propiciaram a inclusão da charge nos periódicos goianos, ampliando o alcance da charge e
fornecendo subsídios para que o artista Mariosan que, através do experimentalismo e de
forma autodidata, surge em um cenário em que a charge goiana ainda estava sendo
experimentada nas impressões dos jornais da época.
A circulação da charge nos jornais entre as décadas de 40 e 50 era quinzenal ou
esporádica, conforme observação constatada na análise dos periódicos goianos da mesma
época e, a repetição de imagens que alteravam somente os diálogos também se revela uma
constante conforme se pode observar nas imagens abaixo:
Ilustração 3. Jornal de Notícias 03 de setembro de 1958.
Ilustração 2. Jornal de Notícias 09 de julho de 1958.
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As imagens são idênticas, não possuem autoria e trazem dois indivíduos que discorrem
sobre a política local. Novamente a classe social dos sujeitos é identificada pela indumentária
refletindo o poder aquisitivo pertencente à classe média. O sujeito que está em pé orienta o
diálogo a partir de uma afirmação que posteriormente é respondida pelo sujeito sentado com
uma indagação em ambas as imagens. Na ilustração 2, o interlocutor cita uma afirmação de
José Feliciano em Trindade – localizada no Estado de Goiás – a respeito de Dr. Pedro de que
o mesmo é um grande condutor de almas. Em seguida o segundo sujeito indaga: “Será o
eleitorado fantasma?” A fim de compreender a situação exposta, o Dr. Pedro a qual José
Feliciano se refere é Pedro Ludovico Teixeira e, o fato de ser um bom condutor de almas se
baseia na capacidade que o político possuía em cativar a população devido à caracterização de
seu governo de origem populista. A ironia da charge surge com a indagação “Será o
eleitorado fantasma?” uma vez que o antigo interventor manteve-se no poder por 15 anos e o
sistema eleitoral brasileiro facilitava a fraude como manter ativos nomes de eleitores já
falecidos com o intuito de fraudar as eleições e prejudicar os candidatos adversários.
Na ilustração 3, a mesma imagem é impressa com a alteração dos dizeres. Nesta, o
sujeito que está em pé afirma que o Dr. Pedro irá ganhar as eleições por 80%. Em seguida o
indivíduo sentado indaga: “E os outros 90%?” A ironia novamente se faz presente na
indagação do sujeito sentado. Os outros 90% são os intelectuais, jornalistas e opositores ao
governo de Pedro Ludovico, enquanto os 80% que garantirá a vitória de Pedro Ludovico é
formado por uma elite disposta a manter cargos e privilégios e pela massa composta por
trabalhadores, beneficiada pela política populista de Pedro
Ludovico. B
Somente houve o desenvolvimento de uma
produção quase diária com o jornal Cinco de Março,
sendo o primeiro jornal a inserir em suas páginas um
periódico de humor chamado Café de Esquina (ilustração
4) e, foi também a escola de vários caricaturistas como
Fróes, Jorge Braga, Mariozan, Pádua e Marcondes (O
Popular, 1978, p. 17). E essa reunião de tantos cartunistas
que iniciaram seus trabalhos em um mesmo local, se dá
pela oportunidade que o jornal fornecia e a própria
ideologia e linha política que atraiu estes artistas,
conforme afirma Mariosan em entrevista. Pode-se afirmar que a charge goiana passou a ser
desenvolvida com mais veemência durante o regime militar, pois a publicação deixou de ser
Ilustração 4. Cinco de março de 24 a 30 de dezembro de 1973.
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semanal e passou a ser diária possibilitando que os artistas goianos manifestassem suas
opiniões e contribuíssem de forma significativa para este período que marcou o Estado.
Mariosan, nascido em Iraí-MG, Triângulo Mineiro, iniciou seu trabalho no jornal O
repórter e em seguida foi para o jornal Cinco de Março em 1978 passando pelo jornal Diário
da Manhã em sua fase inicial em 1980. Atualmente trabalha como chargista e caricaturista no
jornal O Popular.
Mariosan é um artista contemporâneo que acompanhou a evolução da charge no
Estado e as mudanças dos periódicos goianienses pela intensa censura imposta pelo Governo
dos anos da Repressão (1964-1985), criando um estilo próprio, uma objetivação e uma crítica
do assunto que é singular em sua produção.
A charge como ferramenta da arte-comunicação
A charge é sobretudo um elemento dotado de plasticidade que utiliza recursos da
lingüística como figuras de linguagem constituídas por metonímias, hipérboles, ironia,
ambigüidades, entre outros, em sua construção com a finalidade de atribuir sentido a
determinado fato ou assunto.
Diversos autores já afirmaram que vivemos em uma “civilização da imagem” e a
utilização, a fabricação e ao consumo destas imagens, leva-nos a decifrá-las e interpretá-las
(JOLY, 2007). As imagens – e porque não dizer as charges – em um primeiro momento nos
faz ler a informação contida na ilustração de maneira “natural”, sem exigir qualquer
aprendizado, mas por outro lado, esta mesma imagem – ou charge – nos manipula e nos
mantêm passivos diante de tal informação. Para Joly (2007, p. 10)
uma iniciação mínima à análise da imagem deveria precisamente ajudar-nos a escapar dessa impressão de passividade e até de “intoxicação” e permitir-nos, ao contrário, perceber tudo o que essa leitura “natural” da imagem ativa em nós em termos de convenções, de história e de cultura mais ou menos interiorizadas. Precisamente porque somos moldados da mesma massa que ela, a imagem nos é tão familiar e não somos cobaias como às vezes acreditamos ser.
Através da agitação política e dos constantes avanços tecnológicos existentes no
século XIX, principalmente na França, a disseminação da caricatura como expressão de sátira
política, para provocar o riso e destruição da posição dos líderes políticos conduziu a um
processo de marginalização e exclusão social do indivíduo representado (ATHAYDE, 2010,
p. 33). A charge moderna e contemporânea busca referências neste passado, embora a
elaboração dela não esteja apoiada apenas no combate violento aos indivíduos e instituições,
visando não apenas a única e exclusivamente exposição de idéias e inferiorização do sujeito
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retratado, mas também o levantamento de uma reflexão em torno do tema, mediado (ou não)
pelo humor, sendo este relevado a uma característica secundária, mas não menos importante
e, baseado neste modelo, Mariosan desenvolve seu trabalho de caráter subversivo e muitas
das vezes, subjetivo. A charge se caracteriza por ser um texto visual sarcástico e opinativo,
criticando um personagem ou fato específico.
A comunicação que a charge estabelece está vinculada à emissão e recepção de uma
mensagem em que a informação é divida por dois interlocutores (artista e leitor ou emissor e
receptor) através de um canal (a página do jornal) e por meio de um código visual (a charge)
que propõe uma interpretação de seu conteúdo. Essa comunicação é um fenômeno complexo
de uma linguagem presente na charge goiana que, por sua vez, não comporta apenas os
elementos estéticos ou somente comunicativos, mas ambos focados na produção de sentidos e
na constituição de um discurso persuasivo.
Omar Calabresi (1987, p. 17.) afirma:
... o significado do binômio “arte-comunicação” começa a se fazer mais claro. Ele
pretende lançar luz sobre o fato de que a arte, enquanto qualidade de certas obras
produzidas com fins estéticos e enquanto produção de objetos com efeito estético é
um fenômeno de comunicação e de significação, e como tal pode ser examinado.
O vínculo da charge com a imprensa vai além da função ilustrativa das páginas dos
jornais e das revistas. Ela representa um meio de crítica, carregada de expressividade e
autenticidade dividindo espaço com as notícias e manchetes jornalísticas. Sua relação com
texto possui três tipos de possibilidades sendo elas: relação direta, indireta ou até ausência de
relação aparente.
O estabelecimento de relações diretas, indiretas com o texto, inclusive não possuir
relação alguma com o mesmo é evidenciado no conteúdo de um gênero opinativo em volta de
dois núcleos de interesse: o informativo (apresentar o que está acontecendo) e de opinião
(reflexão sobre o que está acontecendo). A centralização da charge no conteúdo opinativo do
jornal constitui uma espécie de formatação dos elementos visuais, já que a charge possui esse
caráter de opinião que pode ser aliado aos textos opinativos como as crônicas, o editorial, o
artigo, a coluna, entre outros.
Conforme Joly (2007, p.115-123), a interatividade entre imagem/ texto indica uma
espécie de “nível correto de leitura”, assumindo formas variadas de acordo com o contexto em
que é inserida. Assim a complementaridade entre palavra e imagem estabelece funções de
revezamento, da qual as palavras traduzem o sentido que a imagem não alcança; função de
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símbolo que consiste em conferir significado à imagem, propondo uma interpretação que vai
além de algo, uma reflexão ou um discurso interior presente na imagem. A última função
seria que a correlação entre a imagem e as palavras que reside no fato da interdependência, ou
seja, as palavras necessitam das imagens e as imagens dependem das palavras na busca por
um sentido ou por vários sentidos. Assim, uma mesma charge pode apresentar apenas uma
destas funções ou todas a partir do ponto de vista do artista e do método aplicado para
transmitir a informação.
No entanto, a correlação verbal e visual nem sempre ocorre de forma intencional. “A
possibilidade do tema da charge possuir vínculo com o texto jornalístico da página ou das
manchetes do jornal pode denotar uma coincidência de assuntos” segundo relato do cartunista
Mariosan, já que o trabalho do artista é destinado para uma parte específica do jornal em que
o mesmo demonstra seu ponto de vista sobre determinado assunto.
Mariosan afirma que a charge representa uma espécie de coluna jornalística da qual o
artista, tem liberdade (supervisionada pelos redatores) para discorrer sobre determinado fato
ou notícia. O cartoon é utilizado com mais freqüência para ilustrar situações com conteúdo
direto nos jornais goianienses especificadamente no jornal O Popular, no entanto o artista
utiliza outras formas de relacionar a imagem com o texto com intenção de provocar o leitor
conduzindo-o a um processo reflexivo a partir da interpretação do fato ou assunto através da
leitura da imagem, com objetivo informativo e posicionamento crítico.
Omar Calabresi (1987, p. 15) aponta uma definição que pode ser perfeitamente
adequada para a comunicação interativa que a charge exerce diante do público, sendo uma
qualidade intrínseca a certas obras pela inteligência humana em geral constituída de materiais
visuais, que manifeste um efeito estético, leve a um juízo de valor sobre cada obra, sobre seu
agrupamento ou sobre seus autores e que dependa de técnicas específicas ou modalidades de
produção da própria obra.
Mariosan explora toda a ambientação que a imagem proporciona (ilustração 5)
representando o volume através das cores (mesmo em preto e branco, pode-se notar a variação
dos tons claros e escuros), a perspectiva utilizada, demonstrando a influência das técnicas
acadêmicas e a equivalência da concentração do foco tratado na imagem de fundo (o Palácio
do Planalto) com o diálogo entre os personagens. Figura e fundo neste desenho desempenham
funções idênticas de reconhecimento da situação retratada e de formulação da natureza crítica
do pensamento racional.
Esta imagem ou lugar enunciativo que define o sujeito da enunciação ou enunciador inclui tanto a imagem que o emissor faz de si mesmo, quanto a imagem que faz do “mundo” ou universo de discurso em jogo. (PINTO, 1999, p. 31.)
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Ilustração 3. Charge. Mariosan. Jornal O Popular de 23 de junho de 2008. CEDOC
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O cartunista, ao produzir a imagem é conduzido por sua formação ideológica incluída
no discurso da charge. Fiorin (2001) afirma que as formações ideológicas são “visões de
mundo”, ou seja, a interpretação da realidade vivida que é ensinada a cada um dos membros
da sociedade ao longo da aprendizagem lingüística. O modo como o tema é exposto e a forma
como adquire sentido é determinado por essa “visão de mundo” de Mariosan e o discurso
presente na charge é a materialização de suas formações ideológicas inseridas no texto.
Segundo Fiorin (2001, p. 41), o texto é unicamente um lugar de manipulação consciente, em
que o homem organiza da melhor maneira possível os elementos de expressão que estão à sua
disposição para veicular seu discurso. Na charge, Mariosan expressa sua capacidade
interpretativa sobre os temas noticiados, inspirando-o a produzir um trabalho que articula a
técnica do desenho e as palavras em um conjunto de grafismos que traduzem sua opinião à
cerca do ocorrido, assumindo um posicionamento crítico e ideológico típico de uma
manifestação individual, mas que possui função social.
[...] a ideologia se liga inextricavelmente à interpretação enquanto fato fundamental que atesta a relação da história com a língua, na medida em que esta significa. [...] E é isto que podemos observar quando temos o objeto discurso como lugar específico em que se pode apreender o modo como a língua se materializa na ideologia e como esta se manifesta em seus efeitos na própria língua. (ORLANDI, 1993, p. 96)
A temática utilizada na charge de Mariosan possui caráter atemporal em seu discurso
uma vez que pode ser interpretada em diferentes épocas – mesmo tendo sido realizada em
2008, o assunto tratado na charge ainda se mostra atual – exercendo uma crítica que
generaliza todos os políticos que compõe o Congresso Nacional em uma mesma massa
corrupta.
Ainda na mesma imagem, temos uma comunicação da qual o artista utiliza-se da
ironia do termo “quadrilhas” enquanto representação típica de festividade nacional com a
ambigüidade que o próprio termo sugere quando se refere às quadrilhas de criminosos. O
artista se apropria desse conjunto de significados para compor o desenho, que denota as
atitudes de corrupção e transgressão da lei.
A utilização da palavra em uma frase adquire o significado de festa junina pela data
que foi publicada e pela representação figurativa das bandeirolas na charge. Entretanto, o
significado atribuído as organizações criminosas com a representação do planalto central que
também é incluído neste contexto, se refere aos integrantes que compõem o quadro de
parlamentares no local. Isso significa que partiremos de algumas premissas:
a) o lexema quadrilha enquanto núcleo da ironia;
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b) a função comunicativa e estética da charge;
c) a relação que a comunicação do desenho possui com o texto
d) a qualidade estética que a charge possui e a disposição dos objetos presentes na
imagem dependente da mensagem que é transmitida ao destinatário;
Essas premissas levantam hipóteses críticas que são reordenadas na página do jornal
ora sob a fachada do texto, ora da imagem que se intercalam favorecendo uma ligação direta
em texto/charge. A explicação dessa relação se dará adiante sendo que, os textos foram
enviados por leitores e tratam da corrupção de diversas formas. Sabe-se que a charge é um
importante meio de propagação de idéias que se alia à técnica do desenho formatando ou
ampliando as características de determinado fato ou objeto (PINTO, 1999). Os contrastes na
imagem no realce dos pontos de luz e sombra e a preocupação com a perspectiva demonstram
não apenas a primazia pela estética relacionando-se com sua própria formação artística. O
artista buscou uma estilização da forma, mas não se desvinculou das técnicas acadêmicas de
construção da imagem e distribuição dos elementos como se pode notar na perspectiva
aplicada e na disposição da luz e da sombra. Nesta imagem, o plano de fundo adquire
destaque perante o diálogo dos indivíduos. Essa arte-comunicação serve a um propósito
sempre definido tramitando entre a abstração (do assunto) ou a obviedade que neste caso,
refere-se à corrupção.
A corrupção aparece não no sentido literal da palavra, mas por meio de ações
corruptas. No primeiro texto, sob o título de “Cadê a ideologia?”, a leitora Luzmarina Arantes
levanta questões sobre as estratégias e as alianças realizadas na política visando benefícios
próprios, correlacionando-os com as festividades e as festas juninas e a Judas.
[...] Candidatos que em outros tempos se odiavam, hoje estão reunidos para conversar, ora com um, ora com outro. [..] Bom, junho é o mês das formaturas, festas juninas, convenções e mês das rifas e de Judas.
A seguir, o texto de outro leitor, remete à conscientização do voto e a escolha dos
representantes públicos com o título de “Voto e consciência” que relata: “[...] A eleição tem
importância fundamental no nosso cotidiano, pois nos dá a possibilidade de escolher aqueles
que vão interferir diretamente nas nossas vidas [..]” seguida da opinião destacada de uma
leitora sobre a corrupção: “Na política, o desapreço pelo povo e a corrupção vêm se repetindo
porque votamos sempre nos mesmos.” interligando os dois textos e fornecendo subsídios para
o quarto e último texto do leitor José Domingos . Este parabeniza a ação pública na aplicação
das leis na denúncia do “mensalão” e seus envolvidos e realiza um alerta sobre a punição às
antecipações das campanhas eleitorais:
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Admiro o trabalho do Ministério Público, como fiscal da correta aplicação da lei e em defesa do interesse maior da coletividade, bem como a brilhante atuação da magistratura brasileira, que pode muito bem ser ilustrada pela isenção e altíssimo nível das ações do Supremo Tribunal Federal na aceitação da denúncia do mensalão e do pronunciamento de 40 envolvidos. Se em São Paulo a pré-candidata do PT Marta Suplicy dá entrevistas falando de seus projetos, ainda vá lá que esteja implícita uma antecipação de campanha [...] onde estaria a infração às normas eleitorais?
Temos um ciclo que se completa através da
mensagem lingüística presente nos textos
relacionados à conveniência e à corrupção que
perpetua oriunda da má escolha dos candidatos e
ao andamento das investigações dos esquemas de
corrupção. Portanto o núcleo que une imagem e
texto se refere à corrupção e, Mariosan levanta um
enfoque para a reflexão pessoal em virtude das
informações veiculadas sobre o golpe dos
“mensaleiros” para escapar de uma possível
condenação (in Veja, ed. 2066, p.71) da qual os envolvidos nos processos de corrupção não
seriam julgados pelo STF e seriam julgados pela Justiça comum. Expedito filho (Veja, Ed.
2066, p. 71), afirma:
O foro privilegiado é um instrumento que permite aos políticos responder a processos criminais, como os de corrupção, apenas perante tribunais superiores. [...] Na semana passada, uma comissão da Câmara dos Deputados, aprovou por unanimidade, um texto que devolve políticos mal-intencionados ao mundo dos cidadãos comuns. [...] Prevendo um desfecho incomum para o caso – a real possibilidade de cadeia – o grupo começou a buscar alternativas para manter a tradição da impunidade dos crimes que tem políticos como personagens principais [...] veio a solução: ficou decidido que a melhor alternativa para escapar da justiça seria protelar o julgamento do caso até sua prescrição legal. Como fazer isso? Aprovando a emenda que põe um ponto final no foro privilegiado.
A justificativa para a aprovação desta emenda deve-se à negação, por parte do STF,
dos recursos dos “mensaleiros” para anular a ação, conforme notícia veiculada no Estadão
(2008): “O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou nesta quinta-feira, 19, todos os embargos
apresentados pelos réus do mensalão, que questionavam o recebimento da denúncia. Apenas o
recurso apresentado pelo Ministério Público Federal foi acolhido parcialmente.”
Pode-se observar na afirmação contida na ilustração: “Estou louco para ver a quadrilha
dançar...” seguida da indagação do segundo elemento na imagem: “Qual delas?” a
necessidade de justiça aparece implícita no diálogo dos personagens. Neste recorte os termos
Voto inconsciente
Atuação do poder público
Conveniência
partidária
Corrupção
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quadrilha e dança, são utilizadas com dois sentidos: um relacionado à dança típica das festas
juninas e outro relacionado à queda ou a desestruturação de uma organização criminosa. Um
terceiro sentido dá significado à existência de várias quadrilhas de criminosos no Congresso
Nacional, através da resposta do segundo individuo “Qual delas” deixando de lado à temática
das festas juninas.
A cena se completa com a imagem do Congresso Nacional do Brasil, símbolo do
poder executivo do país, ornado com as bandeirolas juninas, também típicas desta tradição
folclórica. Essa exibição do Congresso Nacional identifica os “integrantes da quadrilha” e
deixa subtendida que a nação espera a “quadrilha do Mensalão” ou os parlamentares corruptos
sejam punidos com os rigores da lei.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A estrutura de construção da relação texto/imagem centrado na corrupção liga-se à
opinião dos leitores através do diálogo dos personagens no desenho, das bandeirolas
(remetendo às festas juninas) e do Congresso Nacional (caracterização dos delinqüentes)
como um conjunto de grafismos. Tal interação se dá forma automática e intencional devido à
linearidade dos assuntos e a forma como é retratada e até resumida na charge. A concentração
da crítica no núcleo “corrupção” exposta na charge, é um reflexo da ânsia por justiça diante
dos escândalos que envolveram o governo Lula durante os últimos anos.
O método que Mariosan utiliza para expor sua crítica se baseia na ironia que a
linguagem verbal possibilita associada ao desenho da charge que provoca a reflexão do leitor
com o intuito não apenas de provocar o riso, mas também estimular o posicionamento crítico
diante dos fatos ocorridos. Orlandi (1993, p. 82-83) se refere sobre o dito e o não dito nos
discursos como meio de dizer algo nas entrelinhas, podendo possuir dois ou mais
significados. Trata-se do silêncio, que indica que o sentido pode ser outro e, a opção de
Mariosan em criticar a corrupção presente no Congresso Nacional por meio da ambigüidade
dos termos “quadrilha” e “dança” demonstra à intenção de deixar subentendido a opinião do
artista convertido em um método, apresentando o ocorrido de maneira direta, relacionando
com a memória e com os símbolos presentes na cultura regional facilitando a assimilação.
A análise desta charge goiana representa a opinião pública sobre os atuais
acontecimentos visto que, os indivíduos representados são anônimos e expõem seus
comentários sobre sua necessidade de justiça e sua indignação perante a sensação de
impunidade que envolve os representantes políticos de maneira geral. Mariosan expressa parte
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de sua própria emoção de maneira que evoca no público uma atitude à intenção emocional
idêntica em relação à situação que ele apresenta (OSBORNE, p. 224, 1993). Ele dá voz aos
inúmeros brasileiros indignados deixando não apenas seu ponto de vista sobre a situação
política, mas incluindo-se entre os cidadãos que exigem a moral, a dignidade e a transparência
do Governo como condições unânimes para a manutenção dos direitos e da democracia.
A charge analisada faz parte da trajetória do artista que por quase 40 anos de trabalhos
realizados e publicados nos periódicos goianienses, remontam a história de Goiás, informam
os acontecimentos locais e do cenário nacional, constituindo uma importante ferramenta de
protesto e inserindo o artista entre aqueles que ajudaram a propagar a charge no Estado,
criando espaço para o desenvolvimento da produção regional. A análise da charge de
Mariosan não acarreta apenas a identificação de aspectos estéticos e formais, envolve também
uma poética que não estabelece compromisso com a forma ideal ou ideal de beleza de uma
pessoa, animal ou coisa, de uma cena ou episódio, conduz a um processo plástico que não
respeita a lógica e as medidas acadêmicas. E nesta liberdade criativa, destituída dos padrões
clássicos, reside a poética da charge representada pelo exagero e pelas alegorias grotescas que
constituem seu universo particular.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALABRESE, Omar. Como se lê uma obra de arte. Lisboa/Portugal: Edições 70, 1993. _________________. A linguagem da arte. Rio de Janeiro. Editora Globo, 1987, p. 15-20. D’ATHAYDE, E. M. Entre o dizer e o não-dizer: a charge política e a relação com o silêncio. 2010. 111 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-graduação em Letras. Universidade Católica de Pelotas-RS, Pelotas, 2010. FILHO. Expedito. O golpe dos mensaleiros Veja, ed. 2066 de 25 de junho de 2008, p.71. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx?edicao=2170&pg=10> acesso em 11 de novembro de 2010. FIORIN, José Luíz. Linguagem e ideologia: Formações ideológicas e formações discursivas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2001, p. 32, 33. _________________. A trapaça discursiva. In Linguagem e ideologia. 7. ed. São Paulo: Ática, 2001, p. 41-42. JOLY. Martine. Introdução à análise da imagem: A imagem, as palavras. 11. ed. Campinas: Papirus Editora, 2007, p. 115-123. JORDÃO, Eduardo. Os humoristas da nova safra pedem passagem. O Popular, Goiânia, 07 de junho de 1978. p. 17.
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ENTREVISTA Mariosan, entrevista informal realizada em 13 de julho de 2010 na Organização Jaime Câmara. ARQUIVOS Instituto Histórico Geográfico de Goiás CEDOC do Jornal O Popular NOTAS i Augusto Rodrigues nascido em Recife-PE atuou como pintor, ilustrador, gravador e caricaturista,
obtendo diversos prêmios durante sua carreira artística, passando a contribuir com seu trabalho
ilustrativo na imprensa carioca após fixar residência na capital a partir de 1935. Em 1948, deixa seu
maior legado na contribuição e estímulo para a educação moderna, fundando a primeira escolinha de
arte do Brasil no Rio de Janeiro, passando a irradiar o ensino de arte como componente fundamental
para a educação escolar. ZOLADZ, Rosza W. Biografia de Augusto Rodrigues. O artista e a arte,
poeticamente. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1990. ii A partir da década de 60 com o governo Mauro Borges que propôs como diretriz de ação, um “Plano
de Desenvolvimento Econômico de Goiás” (1961-1965) abrangendo áreas como: agricultura e
pecuária, transportes e comunicações, educação e cultura, saúde e assistência social, turismo e
integração econômica, o Estado de Goiás obteve um desenvolvimento e urbanização que tornaram a
capital goiana em um novo território para novas oportunidades (PALACÍN, 1994; MORAES, 1994).
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