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1A3 - Abril a Agosto/2014
REVISTA DE JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURAL UNIVERSIDADE FEDERALDE JUIZ DE FORA
Nº06ABRIL A AGOSTO/2014
www.ufjf.br/secom/A3ISSN 2317-112X
ESPECIAL
A ciência entra em campoPARQUE TECNOLÓGICO
Zona da Mata na rota da inovaçãoJARDIM BOTÂNICO
Pesquisas revelam riqueza de flora e fauna
2 A3 - Abril a Agosto/2014
3A3 - Abril a Agosto/2014
EDITORIAL
Da pesquisa à patente a UFJF inova na geração de conhecimento
O “país do futebol” se prepara para a Copa do Mundo. Hoje, mais do que
arte, o futebol é conhecimento. Por isso, nos laboratórios da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisadores se esmeram para responder
perguntas que estão mudando o perfil e o treinamento dos atletas, além
das táticas de jogo. De paixão, mostramos como o futebol se transformou
em pauta acadêmica, objeto de estudo das mais diversas áreas, que pesqui-
sam, com rigor científico, o desempenho dos jogadores e o comportamento
dos torcedores. E a matéria de capa desta edição ainda traz surpresas que
podem abalar a versão, até então incontestável, de o futebol ter chegado às
várzeas tupiniquins pelas mãos de Charles Miller, em 1894. Juiz de Fora pode
mudar esta história.
Para um país que almeja o crescimento com autonomia, uma palavra foi
definitivamente incorporada ao repertório das universidades: inovação. Não
se pensa mais apenas em ciência, mas em ciência atrelada à geração de
tecnologia. De assunto tabu, o desenvolvimento de produtos e processos
destinados a gerar recursos e tornar o país mais competitivo, no cenário glo-
bal, é hoje o diferencial capaz de inserir definitivamente uma instituição no
cenário internacional. A UFJF cresce neste setor e inaugura o Parque Cien-
tífico e Tecnológico, integrado com o governo e os setores privados, e que já
nasce com um desafio: ser reconhecido, até 2023, como o melhor ambiente
nacional para o desenvolvimento de negócios inovadores.
A UFJF inova também ao investir na consolidação do Jardim Botânico, um
grande laboratório ao ar livre, no centro da cidade, que já se destaca por
abrigar dezenas de pesquisas sobre espécies animais e vegetais, e propiciar
a educação ambiental da população do entorno. Os investimentos realiza-
dos para obras como o teleférico e o trenó de montanha vão possibilitar à
população em geral usufruir de forma sustentável do espaço, criando um
novo destino turístico na região.
Esta edição não poderia deixar de pautar o assunto que foi tema de cen-
tenas de matérias na mídia nacional: os 50 anos do golpe militar no Brasil.
Neste caso, procuramos privilegiar o olhar regional e interpretar os fatos do
passado, que colocaram Juiz de Fora no centro das atenções do país, pelos
relatos de pesquisadores que ressignificam a memória a partir de um minu-
cioso trabalho investigativo.
A história é dinâmica e sua narrativa compreende disputas de sentido que
refletem as batalhas de poder. Se, em 1964, as ruas de Juiz de Fora foram
tomadas pelas famílias que saudaram e legitimaram o golpe militar, rece-
osas da ameaça comunista, em plena guerra fria, duas décadas depois, as
mesmas ruas foram tomadas pela sociedade civil, que clamava pelo reor-
denamento institucional, nas campanhas das “Diretas Já”. Em belo ensaio
de imagens e texto, contemplamos a realidade captada pela sensibilidade
do olhar e a tecitura das palavras, ferramentas indispensáveis ao trabalho
jornalístico.
Este número ainda traz dados reveladores sobre o crescimento do número
de depósitos de patentes, que reitera a política inovadora da UFJF e mostra
os novos paradigmas que norteiam a pesquisa institucional. Registramos,
também, a criação do Laboratório de Estudos sobre Violência, cuja tarefa
é pesquisar e atuar na compreensão deste fenômeno, quase naturalizado
no cotidiano urbano. E, entre outros muitos assuntos, ainda mostramos o
vigor dos trabalhos produzidos nos nossos Programas de Pós-Graduação.
No Programa de Ambiente Construído, uma dissertação de mestrado conta
como o crescimento da cidade de Juiz de Fora provocou mudanças no traçado
e na relação dos habitantes com o rio Paraibuna, uma referência paisagísti-
ca da cidade. A tese defendida no Programa da Faculdade de Educação de-
monstra como o desempenho dos alunos é influenciado por uma boa gestão
do ambiente escolar, evidenciando a importância da liderança para mobilizar
corações e mentes.
Uma ótima leitura!
Christina Ferraz Musse
(Editora-chefe)
4 A3 - Abril a Agosto/2014
ÍNDICE
06 www.ufjf.br/secom/A3
REVISTA DE JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURALDA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
REITORHenrique Duque de Miranda Chaves Filho VICE-REITORJosé Luiz Resende Pereira
CONSELHO EDITORIALAlexander Moreira (Faculdade de Medicina)Cristhiane Flôr (Faculdade de Educação)Cristiano José Rodrigues (Faculdade de Comunicação)Edimilson de Almeida Pereira (Faculdade de Letras)Heloísa D’Avila (Instituto de Ciências Biológicas)João Queiroz (Instituto de Artes e Design)Marcelo do Carmo (Instituto de Ciências Humanas)Paulo Monteiro Vieira Braga Barone (Instituto de Ciências Exatas)Paulo Nepomuceno (Faculdade de Engenharia)Paulo Roberto Figueira Leal (Faculdade de Comunicação)Robert Willer Farinazzo Vitral (Faculdade de Odontologia)Suzana Quinet (Faculdade de Economia)
COMISSÃO EDITORIALAnne Marie Autissier (Universidade de Paris VIII)Antônio Fernandes de Carvalho (Universidade Federal de Viçosa)Cícero Inácio da Silva (Software Studies no Brasil)Cláudio Soares (Fapemig)Frederic Guerrero-Solé (Universidade Pompeu Fabra-Espanha)Jorge Mtanios Iskandar Arbach (Professor convidado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFJF)Luiz C. Wrobel(School of Engineering and Design - Brunel University - Middlesex, UK)Luis Felipe Feres Pereira (University of Wyoming – USA)Márcio Simeone Henriques (Universidade Federal de Minas Gerais) Sofia Gaio (Universidade Fernando Pessoa - Portugal)
EXPEDIENTEEditora-chefe Christina Ferraz MusseEditoraOseir CassolaReportagensBárbara Duque; Carolina Nalon; Fernando Lobo; Flávia Lopes; Fred Belcavello; Raul Mourão; Zilvan MartinsColaboradoresAlessandra Brum; Daniella Aguiar; Glauco Moreira de Moura; Haruf Espíndola; Iacyr Anderson Freitas; João Queiroz; Jorge Arbach; Julia Castro Mendes; Márcio de Paiva Delgado; Ricardo Lopes; Rodrigo Barbosa; Valéria FariaCoordenação de CriaçãoFred BelcavelloFotógrafosBruno Corrêa Barbosa; Márcio Brigatto; Stefênia Sangi; Natália Ferreira IlustraçãoCléber “Kureb” Horta; Raniel Andrade; Zé Zorzan MarketingValéria Borges CostemalleProjeto GráficoCléber “Kureb” HortaRevisãoRafael Costa MarquesProduçãoJuliana Araújo; Taís Marcato
REVISTA A3 Rua José Lourenço Kelmer, s/n – Campus UniversitárioBairro São Pedro – CEP: 36036-900 - Juiz de Fora - MGTelefones: (32) 2102-3967 / 3968 / 3997E-mail: revistaa3@secom.ufjf.brImpressão: Gráfica e Editora BrasilTiragem: 10 mil exemplares
6 - VOZ DO LEITOR O Pórtico Norte da UFJF em dia de chuva, do professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Ricardo Lopes, ilustra o espaço destinado aos leitores
7 – PESQUISA
Para conciliar conservação e preservação de recursos naturais com atividades para alunos e população, a UFJF adquiriu, em 2010, 845 mil metros quadrados de vegetação remanescente da Mata Atlântica. Desde então, o Jardim Botânico reúne pesquisadores cujos trabalhos – de flora, fauna e recursos hídricos – traçam panorama geral da mata e servem de base para novas pesquisas e ações a serem implantadas
15 – INOVAÇÃOA UFJF demonstra com índices o sucesso da diretriz estabelecida de produzir conhecimento de forma conectada com o mercado e com a sociedade. Nos últimos cinco anos, o número de depósitos de patentes saltou de 7 para 74
18 – PESQUISAEstudos desenvolvidos por pesquisadores da Pós-graduação em Ciências Biológicas mapeiam recursos genéticos da erva cidreira. Principalmente, o gênero Lippia alba, que possui grande riqueza química e farmacológica, sendo uma das espécies medicinais mais utilizadas pela população brasileira
21 – PESQUISAA disparada dos índices de violência em Juiz de Fora motivou a criação do Laboratório de Estudos sobre Violência, sediado no Centro de Pesquisas Sociais da UFJF. Os trabalhos terão início por meio de um Observatório sobre a Violência que reunirá e analisará os registros de polícias e as informações sobre políticas e serviços públicos do município
24 – TESES A intensa participação de um diretor no dia a dia da escola é fator crucial para a aprendizagem do aluno. O fato foi comprovado em tese defendida na Pós-graduação em Educação da UFJF por Anderson Córdova Pena. O estudo foi realizado em colégios da rede pública estadual de Minas Gerais
ISSN 2317-112X
5A3 - Abril a Agosto/2014
28 – MEMÓRIAHá 50 anos um golpe militar calava o país. O doutor em História Márcio de Paiva Delgado analisa os argumentos utilizados pelos golpistas para a quebra da democracia no Brasil. E o também doutor em História Haruf Espíndola aborda os conflitos em Governador Valadares, que registrou a primeira morte antes mesmo de o golpe ser deflagrado em 31 de março
32 – ESPECIAL
No país do futebol e da Copa do Mundo, a ciência também quer dar olé. Professores, alunos e treinadores são escalados para investigar desde o índice de aproveitamento da bola lançada pelo goleiro e o perfil do jovem jogador à influência da maturação biológica na conquista de prêmios. Os estudos integram as mais de 50 produções científicas na UFJF
40 – DESENVOLVIMENTO REGIONALO Parque Científico e Tecnológico da UFJF se tornou realidade em 2014 com o início das obras de infraestrutura. Previsto para começar a operar no primeiro trimestre de 2015, colocará a Zona da Mata Mineira no mapa da inovação
46 – ENCONTROS POSSÍVEISEm passagem recente pelo Brasil, a chefe do Departamento de Cultura, Mídia e Indústrias Criativas da King’s College de Londres, Anna Reading, conversou com a “A3” e expôs conceitos e pesquisas que fundamentam a discussão acerca da memória na atualidade, em face do contexto digital
50 – DISSERTAÇÕESTrabalho defendido no Programa de Pós-Graduação em Ambiente Construído da UFJF resgata as modificações realizadas no trajeto do rio Paraibuna através dos séculos
54 – INICIAÇÃO CIENTÍFICAPara contrariar a máxima de que engenheiros não dominam o português, o Grupo de Educação Tutorial (GET) do curso de Engenharia Sanitária e Ambiental lançou um desafio a seus estudantes: um concurso de Redação. Confira o texto vencedor
55 – ARTEArtigo assinado pelo professor do Instituto de Artes e Design João Queiroz e pela pós-doutoranda em Letras Daniella Aguiar aborda a invenção e a descoberta de novos processos de linguagem
56 – LANÇAMENTOSConfira boas dicas de leitura entre os lançamentos da Editora UFJF
57 – LITERATURANo artigo “O Holocausto Brasileiro: 60 mil mortes em Barbacena”, o advogado Glauco Moreira de Moura, enfoca a obra da jornalista Daniela Arbex que desvendou o sofrimento de milhares de famílias, colocando em xeque o tratamento psiquiátrico no Brasil
58 – CINEMA“Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo”, primeiro longa-metragem de ficção do professor do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF, Luís Rocha Melo, é desvendado pela também docente do IAD, Alessandra Brum
59 – ENSAIO FOTOGRÁFICO
Nas ruas de Juiz de Fora (MG) o povo fez história. E na década de 80 explodiu em inúmeras manifestações. O secretário-adjunto de Comunicação da UFJF, Rodrigo Barbosa, revela como o jornalista e poeta da imagem, Humberto Nicoline, registrou estes momentos
66 – LEIA-MEO poeta, ensaísta e contista Iacyr Anderson Freitas presenteia os leitores com uma de suas obras: “Tamanhos rigores”
ÍNDICE
6 A3 - Abril a Agosto/2014
Voz do LeitorA aquarela sobre papel retrata o Portão Norte da UFJF, criação do professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da instituição, Ricardo Lopes.A obra tem 25cm x 17cm e foi realizada em dezembro de 2013
Esta seção é reservada para ser o seu espaço. Contribua para que aprimoremos a nossa publicação. Envie sugestões, críticas e temas de pesquisas,
dissertações e teses que gostaria de ver nas nossas páginas. Também abrimos espaço para trabalhos autorais, desenhos e fotos. Aguardamos a sua
contribuição. E-mail: revistaa3@secom.ufjf.br
A fotomontagem digital, que ilustra a 4ª Capa, é criação da fotógrafa, artista plástica e docente do Instituto de Artes e Design da UFJF, Valéria Faria. A inspiração é uma janela do Forum da Cultura, importante espaço cultural da instituição
6 A3-Abril a Agosto/2014
EXEMPLO EDITORIAL
“A revista ‘A3’ é um excelente exemplo edi-
torial de como podemos mesclar jornalismo
cultural e científico. Por esta razão, tenho
utilizado a revista como material de estudo
dentro da disciplina Jornalismo Cultural na
UFRJ, mostrando também para os alunos como
um produto em suporte tradicional (impresso)
migra para a internet de forma inovadora a
partir de uma edição que permite as duas vi-
sualidades: no impresso e no on-line. Por esta
razão, ela é sempre mostrada aos alunos como
um bom exemplo de um excelente produto de
jornalismo, cultural ou científico não importa,
mas sobretudo jornalismo.”
Marialva Barbosa
(professora da Universidade Federal
do Rio de Janeiro-UFRJ)
CONTRIBUIÇÃO
“Agradecemos o envio do exemplar nº 5 e
aproveitamos para afirmar que, com certeza,
nossa instituição de ensino beneficiou-se da
contribuição intelectual dessa prestigiada
universidade.”
Toivi Masih Neto
(diretor geral do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará -
Campus de Acaraú)
7A3 - Abril a Agosto/2014
Diretrizes do espaço preveem apoio a atividades de ensino e extensão, conservação de espécies ameaçadas de extinção e promoção de ações de educação ambiental
Flávia LopesRepórter
Pesquisas revelam riquezade flora e fauna
PESQUISA
Uma das principais reservas com vegeta-
ção remanescente da Mata Atlântica da
região, o Jardim Botânico tem sido alvo
de relevantes estudos realizados por alunos e
pesquisadores da Universidade Federal de Juiz
de Fora (UFJF) na tentativa de mapear o espaço
e conhecer um pouco mais sobre a diversidade
da área, localizada na região central de Juiz de
Fora, em Minas Gerais.
Com 845 mil metros quadrados e considerado
um dos fragmentos urbanos de maior dimensão,
foi adquirido pela Universidade em 2010, com a
proposta de conciliar conservação e preservação
dos recursos naturais com atividades lúdico-
científicas para alunos e para toda a população.
Desde então, esse laboratório vivo tem reunido
inúmeros pesquisadores cujos trabalhos iniciais -
que contemplam flora, fauna e recursos hídricos
- traçam um panorama geral da mata e servem
de base para novas pesquisas e ações a serem
implantadas. Dezenas de estudos já foram
desenvolvidos por pesquisadores vinculados à
UFJF e alguns deles podem ser conferidos nesta
reportagem.
Segundo a pró-reitora de Pesquisa da UFJF, Mar-
ta D’Agosto, trata-se de uma Área de Especial
Interesse Ambiental que poderá ser ampla-
mente estudada. “A grande diferença entre um
jardim botânico e um parque é que o jardim bo-
tânico é um local de estudo. Todas as unidades
poderão desenvolver atividades importantes lá,
não apenas as ligadas às ciências biológicas.”
Ainda de acordo com a pró-reitora, as diretrizes
do espaço preveem a realização de estudos e
pesquisas sobre flora e fauna, apoio a atividades
de ensino, pesquisa e extensão e conservação
de espécies ameaçadas de extinção, além de
promoção de ações de educação ambiental.
“É um grande laboratório ao ar livre.” Para a
professora do Departamento de Botânica da
UFJF, Fátima Salimena, os estudantes serão
os maiores beneficiados, principalmente os da
graduação ou da pós-graduação envolvidos com
trabalho de campo e atividades reais em meio
à natureza. “Os alunos poderão contar com um
campo real de estudo, ampliando, assim, sua
grade curricular.”
O envolvimento da comunidade do entorno é a
principal aposta do também professor do Depar-
tamento de Botânica da UFJF, Daniel Pimenta,
para a preservação. “Acredito que o melhor
segurança será aquele que foi conscientizado.
Acho, inclusive, que esse é o principal motivo
da implantação do Jardim Botânico: contribuir
com a mudança de cultura de explorativa/con-
sumista para a preservacionista/integrativa.
Temos que mostrar à comunidade universitária
e a toda a população que ali não é um parque, e
sim uma área de aprendizado. Temos que estar
conscientes de como conciliar desenvolvimento
tecnológico com preservação da natureza.”
Com 845 mil metros quadrados e considerado um dos fragmentos urbanos da Mata Atlântica de maior dimensão, o Jardim Botânico foi adquirido pela Universidade em 2010
Foto
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Dor
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8 A3 - Abril a Agosto/2014
O interesse por parte da Universidade em
adquirir a área veio em função do envolvimento
de vários setores da sociedade civil organizada,
juntamente com ambientalistas, que lutavam
contra a instalação de um empreendimento
imobiliário no local. Segundo o reitor Henrique
Duque, com a aquisição do Jardim Botânico, a
UFJF possibilitará o melhor aproveitamento do
espaço por toda a comunidade. ”Nosso papel foi
resgatar esse local que é considerado o pulmão
de nossa cidade. Além das atividades de pesqui-
sa e extensão, esperamos criar uma importante
área de turismo e lazer no município.”
A partir da aquisição, um amplo trabalho para
traçar diretrizes de intervenção e adequação da
infraestrutura do Jardim Botânico começou a
ser executado. Recentemente, recursos de R$
36 milhões foram anunciados pelo reitor para
contemplar obras e transformar o espaço em
uma grande área de estudo e lazer, estimulando
o turismo regional.
Além de obras civis, que incluem criação da casa
autossustentável, laboratórios, restaurante e
todo o paisagismo do local, os investimentos
também preveem a instalação de um teleféri-
co, que conduzirá ao mirante e de um trenó de
montanha, que percorrerá a área preservada,
possibilitando o acesso de visitantes e facili-
tando o trânsito de pesquisadores. Os recursos
foram aplicados na recuperação de uma área de
degradação existente no local (voçoroca), cujos
trabalhos já foram concluídos.
Segundo a pró-reitora de Pesquisa, Marta
D’Agosto, também está prevista a construção
de borboletário, sauvópolis (permitirá a visua-
lização de colônias de formigas), bromeliário,
orquidário, deque na margem do lago, viveiro de
mudas, salas de aula e quiosques. “Com a aqui-
sição, a UFJF garante a utilização do espaço
para toda a comunidade para lazer, cultura e
educação ambiental.”
Um dos arquitetos responsáveis pela
elaboração do projeto, o professor do curso
de Arquitetura e Urbanismo, Klaus Chaves
Alberto, explica que todas as intervenções
buscaram conciliar as demandas da visitação à
necessidade de preservação do meio ambien-
te. “Ao buscarmos um trajeto para o teleférico,
optamos por aquele que causaria o menor im-
pacto ambiental possível. No caso do trenó de
montanha, o baixo impacto ao meio ambiente
se dá pela flexibilidade do meio de transporte,
que acompanha a topografia local e não pede
intervenções no terreno. O trenó também não
utiliza combustíveis fósseis, o que é impor-
tante.” O espaço tem projeto paisagístico do
escritório Burle Marx.
LAZER E EDUCAÇÃO AMBIENTAL
Há relatos de que os antigos donos do Sítio
Malícia, área onde está situado hoje o Jardim
Botânico, encomendaram da África dezenas de
serpentes conhecidas como mambas negras
para assustar e espantar eventuais indivíduos
que invadiam o espaço para caçar, pescar ou
retirar a vegetação do local. Lenda ou não, o fato
é que os donos do imóvel não precisariam buscar
os animais tão longe.
Segundo estudo desenvolvido pela então bol-
sista de iniciação científica do Departamento de
Zooologia da UFJF e hoje mestranda em Ecologia
pela mesma instituição, Pilar Cozendey, há no
Jardim Botânico pelo menos quatro espécies de
serpente, como jararaca, cobra cipó, falsa coral
e cobra d’água, encontradas durante estudo
realizado entre 2010 e 2011. Orientada pela pro-
fessora do Departamento de Zoologia da UFJF,
Bernadete Maria de Sousa, a estudante buscou,
em sua pesquisa, inventariar a fauna de répteis
presentes no Jardim Botânico a fim de criar um
mapa de distribuição de espécies na área. Mam-
bas negras, no entanto, não foram encontradas.
Durante as coletas, Pilar reuniu 19 exemplares de
répteis. Entre os lagartos foram capturados oito
de camaleão (ou lagarto-verde) e um de lagarto.
As coletas foram realizadas semanalmente e
as capturas foram possíveis por meio de de três
conjuntos de armadilhas instalados em pontos
estratégicos no Jardim Botânico: lago central,
ponto intermediário da mata e ponto mais alto
do sítio. “Curiosamente, o local onde encontra-
mos mais espécies foram nas duas áreas mais
próximas da casa. Como o Jardim Botânico será
aberto à visitação pública, estes dados já podem
configurar como base para elaboração de estra-
tégias educativas e subsidiar novas pesquisas
sobre a área e região e sobre as espécies que se
destacarem no estudo.”
CAMALEÃO, JARARACA E FALSA CORAL
Um estudo que procura investigar a estrutura
e a diversidade da flora do Jardim Botânico
como subsídio para restauração e conservação
MAIS DE OITO MIL ÁRVORES CATALOGADAS
PESQUISA
florestal do espaço já está rendendo frutos.
Mais de oito mil árvores estão catalogadas e
são monitoradas permanentemente por um
grupo de pesquisadores liderado pelo professor
do Departamento de Botânica, Fabrício Alvim
Carvalho.
Segundo ele, os trabalhos na mata começaram
em 2010 e, neste período, foram reconhecidas
mais de 300 espécies. No levantamento, o que
causou maior curiosidade foi o fato de a espécie
com maior predominância ser a do palmito-
juçara, ameaçada de extinção e uma das mais
valorizadas no mercado. Foram contabilizados
quase mil pés.
Além disso, há uma grande área com presença
de pés de café sob a floresta, várias espécies de
madeira de lei e pelo menos seis ameaçadas,
como jequitibá, jacarandá da Bahia, ipê amarelo,
canela, braúna e cedro.
“O que verificamos nessa vegetação foi um
grande potencial de regeneração da Mata Atlân-
tica nos últimos 80 anos. O número de espécies
encontradas é considerável se pensarmos no
fato de este fragmento florestal estar localizado
na área urbana de Juiz de Fora e já ter sido ex-
plorado.” Ainda conforme Carvalho, a tendência
no local é de avanço da floresta. Ele também
estuda a possibilidade de criação de um horto,
para ampliar o plantio de vegetação nativa na
região.
9A3 - Abril a Agosto/2014
DEZ ESPÉCIES DE MAMÍFEROSMensurar a comunidade de pequenos mamíferos
não voadores presentes no Jardim Botânico foi o
objetivo do estudante Michel Carneiro Delgado,
orientado pelo professor do Departamento
de Ciências Naturais da UFJF, Pedro Henrique
Nobre. Entre junho de 2012 e julho de 2013, o
pesquisador realizou, para o levantamento,
48 dias de coleta. Ao todo, foram capturados
87 pequenos mamíferos distribuídos em dez
espécies, sendo seis delas de roedores de
pequeno porte. Mas também foram encontrados
cachorro-do-mato, lobo-guará, furão-grande,
lontra, quati, gato-mourisco, bugio, mico-
estrela, sauá, porquinho-da-Índia, capivara, paca
e cutia.
Segundo o pesquisador, cinco destas espécies
são sabidamente raras na Mata Atlântica e
também se mostraram raras no Jardim Botânico,
como a cuíca-de-três-listras (Monodelphis) e
o rato-do-mato-ruivo (Rhagomys rufescens).
Além disso, a presença de algumas espécies de
mamíferos de médio e grande porte ameaçadas
destaca a importância da preservação do frag-
mento do Jardim Botânico, como lontra, bugio,
paca e cutia. “O rato-do-mato (Akondon) foi a
espécie mais abundante neste estudo, repre-
sentando 68% do total de animais capturados.”
Ainda de acordo com Delgado, por serem muito
dependentes de micro-habitats específicos, as
espécies de pequenos mamíferos não voadores
são sensíveis a pequenas mudanças no am-
biente natural, sendo assim boas indicadoras da
qualidade dos habitats remanescentes.
A pesquisa, defendida em fevereiro deste ano,
apontou ainda que este padrão de preponderân-
cia de pequenos roedores pode ser consequência
da ação antrópica dentro do fragmento. Como
medidas de preservação, o graduado propõe
ações de educação ambiental com a população
do entorno e o estabelecimento de um corredor
ecológico entre fragmentos vizinhos. “Esses
animais compõem a base da cadeia alimentar
dos vertebrados de maior porte. Há estudos que
mostram que cães são responsáveis pelo exter-
mínio de cerca de 70% da fauna de fragmentos
florestais. Há muitas residências no entorno do
Jardim Botânico, e foi constatada a presença de
cães e gatos invadindo a área do estudo. Ainda
conforme o pesquisador, é preciso uma estra-
tégia imediata de ação junto à comunidade do
entorno do Jardim Botânico. “Temos que minimi-
zar o número de animais domésticos circulando
dentro da floresta e estabelecer uma parceria
com o Centro de Controle de Zoonoses para
conter e capturar cães que sejam encontrados.”
A pesquisa foi financiada pela empresa Hiperroll
Embalagens, por meio de passivo ambiental.
CONHECIMENTO POPULAR E PRESERVAÇÃO
Aliar conhecimento popular e educação ambien-
tal e integrar a população do entorno do Jardim
Botânico para ajudar a preservar a área foi jus-
tamente o objetivo do estudo desenvolvido pelo
atual doutorando em Ecologia pela UFJF, Bruno
Esteves Conde, sob orientação do professor do
Departamento de Botânica da UFJF, Daniel Pi-
menta. A partir dos preceitos da etnofarmacolo-
gia - ciência que estuda o conhecimento popular
sobre as plantas medicinais -, o pesquisador
realizou um trabalho de aproximação com os
moradores dos bairros Santa Terezinha, Nossa
Senhora das Graças, Eldorado, Alto Eldorado e
Vista Alegre, na Zona Leste de Juiz de Fora e que
integram o entorno no Jardim Botânico, a fim de
averiguar se o conhecimento cultural coincidia
com o científico em relação a determinadas
plantas. O trabalho também procurou mensu-
rar o interesse da população em participar de
projetos no espaço.
PESQUISA
Das espécies capturadas pelo pesquisador Michel Carneiro Delgado, cinco são raras na Mata Atlântica
10 A3 - Abril a Agosto/2014
Trinta e cinco espécies de vespas sociais foram catalogadas pelo pesquisador Bruno Corrêa Barbosa
PESQUISA
O pesquisador visitou 303 casas na região e pro-
curou, com a pessoa mais velha de cada residên-
cia (e capaz de influenciar os demais membros
da família) que as plantas medicinais utilizava
e em quais situações, e se haveria interesse em
participar de um horto medicinal no Jardim Botâ-
nico. “Constatamos que 90% dos entrevistados
utilizam plantas medicinais, mas percebemos
que esse tipo de conhecimento sobre o uso de
plantas terapêuticas muitas vezes vem deixando
de ser repassado.”
A pesquisa levantou 103 plantas do conheci-
mento popular, mas três delas foram citadas
por todos os entrevistados e foram estudadas
mais a fundo: hortelã, assapeixe e algodão. “Ao
compararmos com a literatura científica, algu-
mas pessoas faziam o uso incorreto da hortelã,
por exemplo, ao administrá-la como calmante (a
planta é estimulante).”
O pesquisador também constatou o grande
interesse da população em participar da implan-
tação e da manutenção do horto. “Ele poderá
funcionar como fonte de plantas medicinais e
de resgate cultural, ao mesmo tempo em que
tornará possível a disseminação de educação
ambiental e conservação do espaço.”
VARIEDADEDE INSETOS SURPREENDE
O Jardim Botânico da UFJF abriga pelo menos
35 diferentes espécies de vespas sociais. Isso é
o que apontou um dos estudos desenvolvidos
no âmbito do mestrado em Ciências Biológicas -
Comportamento e Biologia Animal, desenvolvido
pelo pesquisador Bruno Corrêa Barbosa. O núme-
ro foi considerado grande na comparação com
outros parques de Minas Gerais, com a diferença
de que o Jardim Botânico é um fragmento rela-
tivamente pequeno e situado em área urbana,
mais suscetível à ação antrópica. O maior núme-
ro de espécies registrada em estudos em Minas
Gerais foi de 43 no Parque Estadual do Rio Doce,
no Vale do Aço, próximo a Timóteo, e 42 na Mata
do Baú, em Barroso, em área rural.
O trabalho foi realizado entre 2011 e 2013 e
foram identificadas mais de 300 colônias de
vespas. As coletas foram realizadas uma vez por
mês com diferentes metodologias. A partir do
estudo, o aluno está identificando as preferên-
cias de nidificação (construção de ninhos) das
vespas no ambiente, pretendendo saber se há
uma preferência entre as vespas e as plantas.
“Para fragmentos urbanos, o que encontramos
no Jardim Botânico foi o maior registro de espé-
cies”, explica Barbosa. Entre os mais frequentes
no local estão os marimbondos tatu, chapéu,
chumbinho, caboclo e cavalo. “Além de relatar a
riqueza de espécies do local e hábitos de nidifi-
cação, minha dissertação discutirá a diferença
de espécies que habitam alturas diferentes da
floresta, onde comparo o sub-bosque e dossel
(resultado das sobreposição de galhos e folhas
das árvores).”
Outro estudo, que está sendo desenvolvido pela
estudante Tatiane Tagliatti em sua graduação,
mapeou borboletas e mariposas. Em cinco
coletas, recolheu 142 borboletas e mariposas,
totalizando 60 morfotipos diferentes que
serão analisados posteriormente. “Em traba-
lhos similares, em Belo Horizonte (MG), foram
encontradas 50 espécies incluindo borboletas e
mariposas. Espero que o número encontrado no
Jardim Botânico seja bem significativo.” O traba-
foto
: Bru
no C
Barb
osa
11A3 - Abril a Agosto/2014
lho de Tatiane estava previsto para terminar em
março de 2014 e dará origem ao seu projeto de
mestrado.
Interação entre vespas sociais e bromélias foi
o tema da pesquisa da aluna Marcelle Leandro
Dias que cursa mestrado em Comportamento
Animal na UFJF. A ideia de estudar o tema surgiu
a partir de sua monografia de conclusão do
curso de Ciências Biológicas também na UFJF.
“Encontrei muita nidificação de vespas embaixo
das folhas das bromélias e procurei aprofundar
para ver se essas vespas utilizavam os recursos
florais das bromélias.”
A estudante encontrou três espécies de vespas
e outros três registros fotográficos de diferentes
espécies em três tipos de bromélias diferentes
(portea e uma espécie noturna cuja floração só
ocorre à noite). Segundo a mestranda, a maior
parte foi encontrada nas folhas secas da bromé-
lia, já que pássaros e outras espécies de animais
utilizam a água para se alimentar e acabam pre-
dando as larvas. Mas ela também descobriu uma
espécie mimetizando folhas verdes o que causou
surpresa. “É possível que tenham desenvolvido
esse mimetismo devido à maior resistência das
folhas verdes.”
ABELHA SOLITÁRIAAvaliar as abelhas e seu processo de construção
de ninhos foi o objetivo da mestranda em Com-
portamento Animal Karine Munck, cuja pesquisa
também se encontra em andamento. O plano é
examinar diversidade e abundância das espécies
de abelhas e vespas que nidificam (constroem
seus ninhos) em ninhos armadilha (construídos
pela pesquisadora em bambus e garrafas PET) e
abelhas em ninhos naturais em ambiente mais
e menos influenciados pela atividade humana.
Para isso, foram pesquisados diferentes espaços
“A grande diferença entre um jardim botânico e um parque é que o jardim botânico é um local de estudo. Todas as unidades poderão desenvolver atividades importantes lá”
(Marta D’Agosto, pró-reitora de Pesquisa)
PESQUISA
Tatiane Tagliati recolheu 142 borboletas e mariposas em cinco coletas, totalizando 60 morfotipos diferentes que serão analisados posteriormente
12 A3 - Abril a Agosto/2014
Marconi Fonseca de Moraes e Renata de Oliveira Pereira em um primeiro momento, analisaram as características físicas do lago para identificar quais seriam os pontos importantes para o estudo qualitativo e quantitativo da água
PESQUISA
12 A3-Abril a Agosto/2014
13A3 - Abril a Agosto/2014
no Jardim Botânico: a área de visitação, que
conta com construções e atividade de pessoas
e veículos, e a trilha no interior da mata, com
grande variedade de árvores de médio e grande
porte, sem interferência humana relevante.
Até fevereiro de 2014, foram retirados 33 ninhos
armadilha, sendo que, dentre esses, 16 tiveram
insetos emergentes e 17 permanecem fechados,
dentro de garrafas PET. Foi localizado apenas um
ninho de abelha solitária, da tribo Euglossinae
(Hymenoptera, Apidae), que nidificou em tubo
de bambu. Já nos ninhos naturais, a mestranda
encontrou 28 ativos, 19 em ambiente antrópico
(11 em muro de pedra, cinco em cimento, dois
em árvores, um em barranco). Os outros dez
localizados dentro de trilhas mais preservadas,
todos em troncos de árvores.
“O fato de os ninhos de abelhas terem sido
encontrados em maior número, perto da área
mais antrópica fugiu um pouco do esperado,
pois achava que ia encontrar mais nas trilhas
de mata fechada.” Segundo Karine, o fenômeno
é compreensível e ela aponta algumas hipóte-
ses. “Pode estar relacionado à disponibilidade
de substratos adequados à nidificação nesses
ambientes, como parede, muro de pedra. Além
disso, os locais mais preservados são mais fe-
chados, sendo que as abelhas preferem lugares
mais descampados para realizar seus voos.”
Conforme o professor do Departamento de
Zoologia e coordenador das pesquisas acima,
Fábio Prezoto, os estudos começaram há três
anos e foram conduzidos no sentido de conhecer
o cenário na mata a fim de nortear melhor os es-
tudos na área. De acordo com ele, para qualquer
um dos grupos existe grande representação na
área do Jardim Botânico. “Fazemos um trabalho
de monitoramento constante para identificar,
convergir os estudos para o conhecimento da
população e ajudar a divulgar o espaço. O Jardim
Botânico abre possibilidades para muitas outras
áreas e são fundamentais para pesquisas: todos
os trabalhos darão origem a dissertações.”
QUALIDADE DA ÁGUA DOS LAGOSMonitorar qualitativamente e quantitativamen-
te os recursos hídricos disponíveis no Jardim
Botânico e incentivar o planejamento conserva-
cionista do local é o que pretendem os pesquisa-
dores do Departamento de Engenharia Sanitária
e Ambiental da UFJF, Marconi Fonseca de Mo-
raes e Renata de Oliveira Pereira, contribuindo
para a gestão sustentável do espaço.
O lago do Jardim Botânico é um importante
recurso hídrico da região por ser afluente à
margem esquerda do rio Paraibuna, que por sua
vez é afluente, também à margem esquerda,
do rio Paraíba do Sul. Segundo Moraes, em um
primeiro momento, o estudo analisou as carac-
terísticas físicas do lago e do seu entorno para
identificar quais seriam os pontos importantes
para o estudo qualitativo e quantitativo da água.
“Acreditamos que realizar esse monitoramento
é essencial para o controle dos recursos hídricos
do espaço.”
Ainda conforme o pesquisador, quantitativa-
mente foram analisadas as vazões do verte-
douro (estrutura utilizada para medição de
vazão). Qualitativamente foram definidos seis
pontos em locais diferentes no lago para coletas
mensais de água, com as quais foram analisados
parâmetros de temperatura; oxigênio dissolvi-
do; potencial hidrogeniônico (pH); cor; turbidez;
condutividade elétrica; e demanda bioquímica de
oxigênio. Já para mensurar a vazão do lago foram
efetuadas medições diárias, de segunda-feira a
sábado, no mesmo período.
Segundo os resultados do estudo, apesar de não
se ter observado fonte de poluição antrópica du-
rante o período de monitoramento, ao comparar
os resultados com o padrão do grupo das águas
doces (de classe 1) estabelecido pelo Conselho
Nacional do Meio Ambiente (Conama 357/05),
é possível perceber que alguns parâmetros não
atenderam a todas as exigências.
De acordo com Renata, os níveis foram satis-
fatórios em certos períodos do ano e em certos
pontos do lago. Em uma determinada parte do
lago monitorada na pesquisa,os parâmetros
oxigênio dissolvido e a demanda bioquímica de
oxigênio não se encontravam de acordo com os
padrões estabelecidos na referida norma. O oxi-
gênio dissolvido é essencial para a sobrevivência
das espécies aquáticas. Já a demanda bioquímica
de oxigênio é a quantidade de oxigênio necessá-
ria para oxidar a matéria orgânica biodegradável
presente na água.
Contudo, segundo o estudo, com a aeração que
ocorre na saída do lago, o oxigênio dissolvido es-
taria dentro dos padrões em 60% das amostras.
Os elevados valores de demanda bioquímica
de oxigênio encontrados são provenientes de
material orgânico de origem vegetal e não de
origem antrópica. “Muitas alterações ocorreram
em função da condição de estagnação da água.
Vamos continuar os estudos para verificar se
com a ação antrópica no local teremos alguma
mudança”, explica Renata.
Já a vazão média total variou, segundo Moraes,
com o aumento e a diminuição da precipitação
(intensidade de chuva) apenas nos 90 dias ini-
ciais de análise. “Isso não pode ser verificado nos
outros meses, pois foi feita apenas uma medida
a cada dia no período de segunda a sábado, e
nem sempre feitas após a precipitação.”
CONTROLE DE CARRAPATOSOutro estudo, liderado por pesquisadores Erik
Deamon e Marta D’Agosto, do Departamento
de Zoologia, realiza um biomonitoramento
de carrapatos. Segundo Daemon, havia uma
indicação prévia de que tinha uma quantidade
grande desses animais atacando as pessoas que
frequentavam o espaço. Situação que poderia
significar um risco, já que existe uma fauna
muito grande de capivaras, que são reservató-
rio do agente causador da febre maculosa. “O
carrapato pode transmitir a doença ao humano,
se estiver infectado.”
Diante desse cenário, os pesquisadores propõem
ações preventivas para formular a proposta de
controle dessa população. Iniciado em agosto de
2013, o trabalho ainda está em andamento.
O objetivo é realizar dois anos de coletas
mensais no entorno do lago, onde se concentra
a maior população de capivaras. “Conforme
esperado, estamos encontrando uma quantida-
de bem significativa de carrapatos. Uma análise
preliminar indica que há predominância da
espécie que pode transmitir a bactéria causadora
“Os alunos poderão contar com um campo real de estudo, ampliando, assim, sua grade curricular”
(Fátima Salimena, professora do Instituto de Ciências Biológicas)
PESQUISA
“Temos que estar conscientes de como conciliar desenvolvimento tecnológico com preservação da natureza”
(Daniel Pimenta, professor doInstituto de Ciências Biológicas)
14 A3 - Abril a Agosto/2014
INOVAÇÃO
Regimento do Jardim Botânico bit.ly/A3_RegimentoJB
Vídeos do projeto Etnofarmacologia no Jardim Botânico
Bit.Ly//enotofarmacologiampicb
MAIS
da febre maculosa, o carrapato-estrela. Mas os
estudos ainda são bastante iniciais.”
A partir dos resultados, a intenção é propor
medidas de controle. Atuam no projeto três
alunos de doutorado de Ciências Veterinárias
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), parceria da UFJF neste estudo. Além
de dois alunos de graduação da UFJF. “A febre
maculosa não é uma doença com altas taxas
de mortalidade, mas o diagnóstico impreciso
pode levar a sérias complicações para humanos”,
ressalta Daemon.
REPRODUÇÃO DE BROMÉLIASEstudo liderado pela pesquisadora do Departa-
mento de Botânica, Ana Paula Gelli, pretende
identificar o mecanismo de reprodução de
diferentes espécies de bromélias. Para isso, a
professora buscou a observação de diferentes
ações antrópicas como influenciadores nos
mecanismos reprodutivos das espécies e se as
áreas preservadas tinham um maior sucesso
reprodutivo.
Ao procurar o tipo de sistema reprodutivo de
cada uma das espécies, verificou quais necessi-
tam de animal polinizador e se em áreas menos
conservadas haveria mudança nesse quadro. O
levantamento, que teve início em 2010, apontou
que a maior parte das espécies pesquisadas pre-
cisam de um polinizador, e o beija-flor é o prin-
cipal agente. Essa característica foi verificada
entre dez espécies de bromélias pesquisadas. A
única espécie que se mostrou diferente foi aque-
la cuja floração ocorre à noite, sendo a poliniza-
ção realizada por morcegos. “Esses resultados
apontam um importante quadro, pois caso haja
uma diminuição da população dos polinizado-
res, os beija-flores, as espécies de bromélias
também podem estar ameaçadas.” Além disso,
ela verificou que cada espécie possui uma época
de floração diferente ao longo do ano, o que é
essencial para a manutenção das aves no local.
“É garantia de alimento para esses animais.”
DESCOBERTA DE UM GÊNERO NOVOConhecer as espécies de microorganismos
protistas ciliados que vivem no tanque (na área
que acumula água) das bromélias foi o objetivo
do pesquisador Roberto Júnio Pedroso Dias,
orientado pela professora Marta D’Agosto.
Durante o estudo, iniciado em 2010, o pesquisa-
dor encontrou cerca de 30 espécies diferentes
de protozoário e um gênero novo, que ainda
será publicado em artigo. Posteriormente, ele
pretende comparar a biodiversidade das espé-
cies encontradas nas bromélias com a do lago
do Jardim Botânico. O trabalho foi realizado em
parceria com a Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
“Caso haja uma diminuição da população dos polinizadores, os beija-flores, as espécies de bromélias também podem estar ameaçadas”
(Ana Paula Gelli, professora do Departamento de Botânica)
Entre 2011 e 2013, foram identificadas mais de 300 colônias de vespas
15A3 - Abril a Agosto/2014
Assim como as mais renomadas instituições de pesquisas do mundo, a Universidade demonstra com índices o sucesso da diretriz estabelecida de produzir conhecimento de forma conectada com a sociedade e o mercado
Bárbara DuqueRepórter
Depósito de patentes aumenta mil por cento em cinco anos
Produzir e disseminar conhecimento
estão no cerne do propósito primeiro da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
desde sua criação, em 1961. Nesses 53 anos de
história, muitos avanços foram conquistados.
Em consonância com as mais renomadas
instituições de pesquisas do mundo, a UFJF
demonstra com índices o sucesso da diretriz
estabelecida de produzir conhecimento de forma
conectada com a sociedade e o mercado.
Um dos demonstrativos dessa aposta foi
o crescimento do número de depósitos de
patentes nos últimos cinco anos, revelando uma
mudança de comportamento dos pesquisadores
que hoje vislumbram de forma objetiva a
possibilidade de contribuir mais efetivamente
com o setor produtivo. Até 2008, a UFJF havia
depositado sete patentes, entre invenção (PI)
e modelo de utilidade (MU), de lá até 2013
esse número saltou para 74. A tríplice base que
alicerça as universidades - ensino, pesquisa e
extensão - ganhou novo vértice: a inovação.
Não é possível hoje pensar o conhecimento sem
que ele esteja atrelado ao desenvolvimento
econômico e social e à solução de problemas.
Mesmo as pesquisas chamadas de base,
sem fins imediatos, fornecem conhecimento
científico que subsidia de forma fundamental a
inovação.
Para uma invenção ganhar o título de patente
é preciso ser uma novidade. Não pode haver
depósito igual em qualquer banco de dados
internacional. E, mesmo que não haja depósito,
não pode o produto ou processo ser de
conhecimento público. Outro ponto fundamental
é ser uma atividade inventiva, criativa, que
fuja do óbvio mesmo para especialistas e,
por fim, que tenha aplicação industrial, com
possibilidades fortes de inserção no mercado,
sendo viável sua produção em escala.
No Brasil, o responsável pela concessão e
garantia dos direitos à propriedade intelectual
é o Instituto Nacional da Propriedade Industrial
(Inpi). Trata-se de uma autarquia federal que
recebe e avalia os pedidos de patentes. Após
18 meses da apresentação das exigências
estabelecidas ao Inpi, o pedido é publicado
na “Revista da Propriedade Industrial” (RPI),
tornando a ideia acessível.
Esse título de propriedade temporário, concedido
pelo Governo aos inventores, é uma maneira
de recompensar o pesquisador pela dedicação
àquela criação, possibilitando-lhe alcançar
ganhos com sua industrialização ou com a
transferência dos direitos a terceiros. Uma
patente tem duração de 20 anos (PI) e 15 anos
(MU) a partir da data de seu depósito. Após esse
período, o conhecimento se torna de domínio
público. A invenção pode ser um produto, um
processo ou um aperfeiçoamento de produtos e
processos de fabricação já desenvolvidos.
DIÁLOGO ABERTOA possibilidade de tirar da bancada do
pesquisador o resultado de seus estudos e
transferi-lo para a indústria, fazendo com que
aquela nova tecnologia gere ganhos para a
empresa, transformando uma pesquisa em
desenvolvimento, é o que vem estimulando os
gestores públicos a incentivarem cada vez mais
a inovação. Vivemos em uma economia na qual
o negócio que não se mantiver na fronteira do
conhecimento, investindo constantemente
em novas tecnologias e mecanismos, perderá
rapidamente a competitividade no mercado.
Criada em 2004, a Lei de Inovação foi um fator
que revolucionou o mercado, deixando- o mais
favorável ao desenvolvimento de propostas
inovadoras em todo o país. A partir da lei
foram criados mecanismos de apoio e estímulo
à constituição de alianças estratégicas e ao
desenvolvimento de projetos cooperativos
entre universidades, institutos tecnológicos
INOVAÇÃO
16 A3 - Abril a Agosto/2014
INOVAÇÃO
16 A3-Abril a Agosto/2014
Pedro Paulo Oliveira Maia, Kizzi Stigert Orlando, Albertina Souza e Renan Porcaro de Bretas compõem a equipe do Setor de Proteção do Conhecimento do Núcleo de Inovação Tecnológica da UFJF que assessora os pesquisadores em todas as etapas para a obtenção de patente
17A3 - Abril a Agosto/2014
MASSA CRÍTICA DE ALTO VALOR DE MERCADOO mais importante fruto colhido de todo este
investimento são os chamados habitat de
inovação. Ambientes que concentram massa
crítica de alto valor de mercado. As maiores
riquezas de uma universidade são não só os
professores pesquisadores, que alimentam
com a ciência que produzem as possibilidades
de uma vida melhor para toda a sociedade,
como também os milhares de alunos envolvidos
nesse processo, que respiram ciência. “Nossos
alunos leem papers com tranquilidade, realizam
pesquisas complexas, estão habituados com
termos como propriedade intelectual, sigilo,
ética. Eles têm um olhar transformador, já
pensam na pesquisa visualizando o produto.
Isso gera maior empregabilidade, pois têm uma
mentalidade diferenciada, são mais proativos”,
afirma Nádia.
Vidal acrescenta que todos os trabalhos que
coordena na Universidade envolvem dezenas
de alunos. “Possuo muitas parcerias com a
iniciativa privada, além de ter desenvolvido
e incubado minha empresa no Critt. Em
todos esses projetos, inclusive na empresa,
envolvo meus alunos. O ambiente acadêmico
em que vivemos é esse. Os pesquisadores
também precisam de alunos bem treinados,
bons profissionais. Nos laboratórios que
montamos na UFJF, os quais estão sob minha
responsabilidade, não existe moleza, cobro
muita dedicação e trabalho, e o retorno para
todos é imediato.”
Outra vantagem para os alunos de conviverem
neste ambiente inovador é estimular o espírito
empreendedor. Muitos desenvolvem projetos e
protótipos na área tecnológica, que geram renda
por meio da criação de empresas chamadas
spin-offs - nova empresa que nasceu a partir de
um grupo de pesquisa - universitárias. É essa
riqueza de recursos humanos que alimenta o
setor produtivo e contribui para estimular o
mercado nacional a romper barreiras culturais e
ganhar competitividade entre os países líderes
em inovação e desenvolvimento humano e
econômico.
e empresas nacionais como: estruturação de
redes e projetos internacionais de pesquisa
tecnológica; ações de empreendedorismo
tecnológico; e criação de incubadoras e parques
tecnológicos.
Outro incentivo ao desenvolvimento de
parcerias entre a academia e a indústria foram
os Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) nas
universidades, também previstos na Lei de
Inovação. “No NIT da UFJF, orientamos e damos
assessoria para o pesquisador que deseja
proteger seu conhecimento. O ideal é que o
ele nos procure no início da pesquisa, para que
façamos uma busca criteriosa para nos certificar
de que aquela ideia é realmente nova e, ao
concluir o invento, verificamos se a proposta é
patenteável, pois pode ser inovadora e não se
enquadrar nas regras de patente. O próximo
passo é fazer uma boa redação para o pedido
de registro e enviá-la ao Inpi. Assessoramos
o pesquisador em todas as fases. Depois de
registrado, o processo é acompanhado pela
nossa equipe semanalmente para que nenhuma
parte do trâmite seja perdida e prejudique o
resultado. Consideramos que esse crescimento
apresentado pela Universidade é fruto de
muito trabalho, investimento do Governo e
mudança de atitude dos pesquisadores”, avalia
a secretária executiva do Setor de Proteção do
Conhecimento do NIT/UFJF, Albertina Souza.
O NIT é um dos setores do Centro Regional
de Inovação e Transferência de Tecnologia
(Critt) da UFJF, criado em 1995 e vinculado à
Secretaria de Desenvolvimento Tecnológico
(Sedetec). É de responsabilidade do Critt
gerenciar as diretrizes da política de inovação
da instituição. Um dos pesquisadores da UFJF
com maior número de patentes registradas
pela instituição, o professor do Departamento
de Engenharia Elétrica, Moisés Vidal, ressalta
que um dos fatores determinantes para a
formação desta cultura de diálogo com o setor
produtivo dentro da instituição é a incubadora
de empresas, também mantida pelo Critt.
“Sou ex-aluno da Universidade e na graduação
fui bolsista da primeira geração do Critt. Isso
fez muita diferença no meu comportamento
como pesquisador. Fui formado pensando
em desenvolver trabalhos para atender às
demandas do setor produtivo. Penso o tempo
todo em solucionar lacunas que nem o próprio
empresário vislumbra. A solução pode estar
em incrementar o que já existe na empresa ou
fazer o que chamamos de inovação de ruptura,
implantar algo totalmente novo.”
Para o secretário de Desenvolvimento
Tecnológico da UFJF, Paulo Nepomuceno, a
partir das leis de incentivo à inovação e das
políticas definidas pela UFJF houve uma
“transformação cultural”. Antes disso havia
iniciativas pontuais de interação com a indústria,
mas nada sistêmico. De uns anos para cá foi
criado um ambiente propício à inovação dentro
da Universidade. Iniciativas bem estruturadas
foram fundamentais, como o Programa de
Incentivo à Inovação (PII), criado pela Secretaria
Estadual de Ciência, Tecnologia e Ensino
Superior, que teve duas versões desenvolvidas
pela UFJF com muito sucesso, visto o elevado
número de propostas apresentadas, todas
muito bem fundamentadas. “O objetivo do
PII era basicamente transformar pesquisa em
inovação. Para isso, foi investida uma quantia
significativa nos melhores projetos de P&D. O
programa foi tão bem estruturado que enraizou
na comunidade acadêmica a cultura da inovação,
mostrando um formato arrojado, bem aceito
entre a academia e o setor empresarial. Agora,
estamos preparando a terceira versão do PII.”
Outra pesquisadora que se destaca pela
produtividade e proximidade com o mercado
é a professora da Faculdade de Farmácia,
Nádia Raposo, para quem o PII foi realmente
um divisor de águas dentro da Universidade.
Segundo ela, o programa não beneficiou
somente pela visibilidade que deu aos
projetos. O principal ganho foi despertar nos
pesquisadores a possibilidade de transformar
a pesquisa em negócio. “O próprio pesquisador
hoje consegue inscrever seus projetos em
concursos internacionais de inovação, dialogar
com as empresas para negociar seus produtos
ou detectar demandas. Estamos preparados
para esse ambiente de transformação da
pesquisa em riqueza. O elevado número
de patentes registradas é um indicador
de qualidade de grande relevância para
mostrar o patamar em que se encontra nossa
Universidade. Somente com essas prerrogativas
é que foi possível gerar um Parque Tecnológico.
Hoje podemos oferecer para as empresas
interessadas em se instalar em Juiz de Fora uma
pesquisa sofisticada, inovadora.”
INOVAÇÃO
18 A3 - Abril a Agosto/2014
Riqueza química e farmacológica do gênero Lippia estimulou pesquisadores a desenvolverem estudos sobre a Lippia alba e subsidiar pesquisas que visem aumentar o teor de princípios ativos de uma das espécies medicinais mais utilizadas pela população
Bárbara DuqueRepórter
Estudos mapeiam recursos genéticos da erva cidreira
PESQUISA
A diversidade biológica constitui um
patrimônio de difícil mensuração e que,
em função da sua importância, é foco de
inúmeras ações que contribuem para sua conser-
vação. Uma das razões para o estudo de nossa
biodiversidade se origina no fato de que ela
representa imenso potencial de uso econômico.
Subsidiar estratégias de uso e conservação deste
essencial grupo de recursos genéticos foi o gran-
de motivador dos trabalhos desenvolvidos desde
2003 por pesquisadores da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF). O líder do grupo e também
coordenador do Programa de Pós-graduação em
Ciências Biológicas, Lyderson Viccini, ressalta que
a ocorrência de várias espécies com interesse
medicinal e muitas delas com amplo uso pela
população chamou atenção dos pesquisadores
que decidiram investir tempo e recursos nesta
investigação.
O gênero Lippia possui cerca de 200 espécies dis-
tribuídas, principalmente, nos trópicos, com três
grandes centros de diversidade: Brasil – o maior
deles, com 111 –, México e Argentina. As primei-
ras ações para estudar o gênero resultaram de
coletas realizadas na parte mineira da Serra do
Espinhaço (cadeia montanhosa que estende
também pela Bahia). Outras foram coletadas
desde a região da Serra do Cipó até a região de
Grão Mogol (MG) além das mantidas na Estação
Experimental de Cultivo e Manutenção de
Plantas e no Laboratório de Fisiologia Vegetal
do Departamento de Botânica, ambos da UFJF.
Desde os trabalhos iniciais, uma abordagem
multidisciplinar foi estabelecida e diversos
colaboradores, inclusive de outras instituições,
fazem parte do processo.
Entre as espécies do gênero, uma delas chamou
a atenção, pela existência de variados tipos quí-
micos e morfológicos, uma peculiaridade desta
espécie. “Já trabalhava com o gênero Lippia,
quando uma pesquisadora parceira da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro me enviou
três indivíduos da espécie L. alba para que eu
analisasse o número de cromossomos.
Foi quando percebi que cada uma apresenta-
va um tamanho de genoma diferente. Estava
diante ou de uma incrível coincidência ou de uma
riqueza genética que poderia ser ainda maior.
Para nossa satisfação, foi a segunda opção.”
A partir de então, o grupo de pesquisa Genética,
Biotecnologia e Biodiversidade Vegetal se de-
bruçou em analisar as particularidades daquela
espécie. A característica que mais chamou
atenção foi a incidência da chamada poliploidia,
variados tamanhos de genoma, contrariando
antigos registros que descreviam um único
tamanho dentro da mesma espécie (diploides).
Até hoje o grupo identificou cinco, constatando
a existência de uma série poliploide. Dentre as
amostras analisadas na UFJF, algumas cedi-
das pela Embrapa ou pela Escola Superior de
Agricultura Luiz Queiroz da Universidade de São
Paulo (Esalq-Usp) e outros coletados pelo grupo,
existem cerca de 60% de indivíduos que são de
fato diploides e no restante há vasta variação.
O grupo foi responsável pelo primeiro relato
19A3 - Abril a Agosto/2014
PESQUISA
sobre a existência de variação no tamanho de
genoma para esse grupo de plantas.
A descoberta era sinal de dezenas de possibili-
dades que deveriam ser pesquisadas e poderiam
render excelentes frutos para a ciência. Aquela
diversidade biológica constituía patrimônio
potencial de uso, inclusive econômico. Um dos
desafios foi focar os trabalhos no entendimen-
to da poliploidia, considerada como um dos
principais fatores de evolução em plantas. Com
poucos estudos sobre isso nas regiões tropicais,
foi fundamental a inserção em grupos interna-
cionais de pesquisa. “Em função disso, permane-
ci durante aproximadamente um ano e meio nos
Estados Unidos com um grupo de especialistas
no assunto. Eu já possuía informações impor-
tantes sobre aquele grupo de plantas e pude
desenvolver outras abordagens em parceria. O
estudo vem rendendo belos resultados”, ressalta
Viccini.
LIPPIA ALBA
Entre as espécies do gênero Lippia, L. alba se
destaca por apresentar características impor-
tantes do ponto de vista econômico. L. alba
(Mill.) N. E. Br. ex Britton & P. Wilson é uma
espécie amplamente distribuída nas Américas.
Ocorrendo em praticamente todos os tipos de
ambientes, desde florestas, brejos e campos até
em beira de estradas, recebe destaque devido
às inúmeras propriedades medicinais. Conforme
as análises morfológicas realizadas a partir do
material examinado, fica evidente que a L. alba
apresenta grande variação nos caracteres morfo-
O grupo (de pesquisadores) conta com mais de cem acessos a amostras da espécie Lippia alba e é possivelmente um dos maiores depositários da espécie no Brasil. Ao longo dos anos o grupo vem se tornando uma referência para o estudo do gênero Lippia no país”(Nádia Raposo, professora da Faculdade de Farmácia)
19A3-Abril a Agosto/2014
Lyderson Viccini: “Permaneci durante aproxi-madamente um ano e meio nos Estados Uni-dos com um grupo de especialistas no assunto. Eu já possuía informações importantes sobre aquele grupo de plantas e pude desenvolver outras abordagens em parceria. O estudo vem rendendo belos resultados”
20 A3 - Abril a Agosto/2014
lógicos, o que muitas vezes dificulta a identi-
ficação correta do tipo químico. Tal fato ganha
extrema importância ao considerarmos que L.
alba apresenta extenso uso na medicina popular,
necessitando ser corretamente identificada para
preparação do produto.
A espécie é conhecida por vários nomes popu-
lares, como erva cidreira, falsa melissa, chá de
tabuleiro, erva cidreira do campo, salva do Brasil,
salva-limão e erva cidreira brava. Diferentes
atividades farmacológicas são atribuídas
aos componentes presentes no óleo essen-
cial extraído da espécie tais como atividade
analgésica; antitérmica; bactericida; fungicida;
anticonvulsivante; anti-inflamatória, e também
de efeitos sedativos entre outros. Lippia alba ou
erva cidreira é uma das espécies medicinais mais
utilizadas pela população brasileira. Esse é um
forte motivador da pesquisa por ser um dos prin-
cipais interesses da equipe. Apesar de ser uma
investigação de base, o estudo subsidia outros
trabalhos que utilizam esses princípios ativos.
A enorme plasticidade fenotípica da erva cidreira
se reflete nos inúmeros tipos químicos descritos,
o que dificulta a correta identificação da planta.
O desafio que o grupo assumiu foi tentar enten-
der a origem da variação morfológica descrita
para a espécie e tentar relacionar esta variação
aos seus componentes químicos que em última
análise estão relacionados a diferentes ações
biológicas.
INFLUÊNCIA NA EVOLUÇÃO DE ESPÉCIESA poliploidia é, de modo geral, a variação
natural ou induzida no número de cromosso-
mos. Comumente assume-se que o número de
cromossomos de um grupo de indivíduos de
uma mesma espécie é o mesmo. Essa situação
é a mais esperada, pois as espécies são, via de
regra, razoavelmente constantes nesse aspecto.
Com o passar dos anos, a variação cromossômica
pode levar à formação de novas espécies espe-
cialmente em plantas. Outra questão estudada
é de que os poliploides em geral podem habitar
lugares nos quais os ancestrais diploides não são
bem-sucedidos. É relativamente comum os poli-
ploides apresentarem uma capacidade maior de
adaptação comparada aos ancestrais diploides.
O número de cromossomos de uma espécie é
um dado biológico significativo e normalmente
invariável dentro de uma espécie, mas podem
mudar ao longo do tempo, assim como os genes,
sofrendo perda ou adição. O processo é esporá-
dico, pois as divisões celulares e cromossômicas
são fenômenos regulares. Contudo, ocorrem
variações, que, por vezes, são perpetuadas a fim
de dar origem a novas espécies vegetais.
CONTRIBUIÇÕES CIENTÍFICASUm dos principais resultados do trabalho até
hoje foi constatar que há variação genética em
larga escala dentro de uma única espécie (no
caso a Lippia alba) e que há possível associação
entre essa variação e o “tipo químico”. O produto
químico produzido pela planta pode estar direta-
mente relacionado ao tamanho do seu genoma.
Durante a pesquisa já foram relatados pelo
menos três tipos químicos diferentes em maior
frequência. O desafio deste trabalho é relacionar
essa variação genética com os quimiotipos exis-
tentes, e o estudo se propõe, entre outras ações,
a interação entre pesquisadores tanto de outros
setores da Universidade como interinstitucional.
Outra preocupação do grupo é contribuir para
o uso racional da espécie, por meio de identi-
ficação mais precisa dos quimiotipos, subsi-
diando diversas investigações com o intuito de
aumentar o teor de princípio ativo dos acessos
estudados por meio de ferramentas clássicas e
biotecnológicas.
Para a pesquisadora parceira do grupo, a
farmacêutica e chefe do laboratório Núcleo de
Identificação e Quantificação Analítica (Niqua)
da UFJF, Nádia Raposo, o trabalho liderado por
Viccini é fantástico. “Para quem atua com a
pesquisa aplicada, é fundamental contar com a
colaboração da investigação básica. Desenvol-
vemos parcerias com eles em diversos estu-
dos. Trabalhamos no laboratório com muitos
compostos químicos e o apoio em diferenciar
os cariótipos e as potencialidades biológicas de
cada composto é absolutamente complementar
ao que fazemos aqui, além de nos auxiliarem na
correta utilização do material, ou seja, no conhe-
cimento taxonômico das famílias de plantas. O
grupo conta com mais de cem acessos a amos-
tras da espécie Lippia alba e é possivelmente um
dos maiores depositários da espécie no Brasil.
Ao longo dos anos o grupo vem se tornando re-
ferência para o estudo do gênero Lippia no país”,
completa Nádia.
Já foram desenvolvidas cinco dissertações e duas
teses, produzindo informações inéditas sobre
a espécie além de levantarem a questão mais
importante no que diz respeito à ocorrência de
números cromossômicos diferentes dentro da
espécie, provavelmente oriundos de poliploidia.
O grupo vem dando continuidade a esta investi-
gação, avaliando as amostras por meio da con-
tagem cromossômica, estimativa da quantidade
de DNA, análises morfológicas e também por
meio de marcadores moleculares. Outra frente
de estudo pretende identificar genes relaciona-
dos à produção de princípios ativos de interesse,
possibilitando não somente a compreensão de
como estes compostos são formados, assim
como a manipulação destas vias com vistas
ao aumento destes componentes químicos de
interesse.
“A formação de recursos humanos nas áreas
de genética/citogenética, taxonomia, genética
molecular, propagação de plantas e fitoquímica é
uma das questões mais importantes para o gru-
po. Pretendemos, ainda, criar maior integração
entre departamentos da UFJF e reforçar a parce-
ria que já existe com a Universidade Federal de
Viçosa e a Embrapa” conclui Viccini.
PESQUISA
MAISLyderson Facio VicciniPós-doutor pelo Laboratory of Molecular Systematic and Evolutionary Genetics, Florida Museum of Natural History, University of Florida, EUA; doutor em Genética e
Melhoramento pela Universidade Federal de Viçosa
Atualmente é professor associado IV da UFJF e coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Biológicas.
lyderson.viccini@gmail.com
http://www.ufjf.br/pgcbio/
http://lattes.cnpq.br/0633665122312619
21A3 - Abril a Agosto/2014
PESQUISA
A busca por respostas sobre a violência Carolina Nalon
Repórter
Laboratório de Estudos sobre Violência, criado em 2013, visa encontrar alternativas para combater os altos índices de crimes em Juiz de Fora (MG). Somente no ano passado, foram registradas 139 mortes violentas, uma média de 11 assassinatos a cada mês.
21A3-Abril a Agosto/2014
Paulo César Fraga (no Laboratório de Estudos sobre Violência): “É muito importante essa indignação das pessoas com o aumento dos homicídios. Não é possível conviver mais com o crescimento das taxas de violência sem buscar alternativas para diminuí-las”
22 A3 - Abril a Agosto/2014
No ano de 2013, 139 pessoas foram vítimas
de mortes violentas em Juiz de Fora (MG),
uma média de 11 assassinatos a cada
mês. Número 40% maior do que o registrado
em 2012 e bem superior ao de 2011, quando
ocorreram 52 homicídios. O quadro pode se
agravar, já que outros 45 casos foram noticiados
nos primeiros três meses do ano pelo jornal
“Tribuna de Minas”. Os assaltos também se
tornaram mais frequentes e a nova realidade
da cidade de meio milhão de habitantes tem
mobilizado a sociedade na busca por medidas
imediatas e efetivas junto aos governos
municipal e estadual. O debate envolve, ainda,
pesquisadores da Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF), e motivou a criação do
Laboratório de Estudos sobre Violência.
A intenção do laboratório é, portanto, atender a
uma expectativa da própria sociedade, ávida por
respostas sobre a disparada dos índices. Para
o diretor do Centro de Pesquisas Sociais (CPS)
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
professor Paulo César Pontes Fraga, “é muitoo
importante essa indignação das pessoas com o
aumento dos homicídios. Apesar de não existir
sociedade sem crime, como observou Durkheim,
não é possível conviver mais com o crescimento
das taxas de violência sem buscar alternativas
para diminuí-las”. Segundo ele, grupos de
pesquisa de destaque já tratam do assunto
dentro da Universidade, mas, até então, ainda
não havia se firmado uma proposta de trabalho
em conjunto da academia com instituições
públicas municipais e estaduais voltada
especificamente para os problemas de violência
em Juiz de Fora.
A previsão é iniciar os trabalhos por meio de um
Observatório sobre a Violência, até que as fontes
de recursos para pesquisas em maior profundi-
dade sejam obtidas, possivelmente por editais
de agências de fomento.
O observatório reunirá e analisará os registros
de polícias e as informações sobre políticas e
serviços públicos do município, com o aval das
instituições, que repassarão os dados. “Pes-
quisas apontam caminhos, avaliam situações,
mas não criam políticas públicas, por isso, o
envolvimento desses atores faz toda diferença.”
Fraga ressalta que o observatório funcionará
a curto e médio prazo com equipe reduzida de
profissionais e estudantes. “Queremos saber,
por exemplo, se há relação na incidência de
crimes em determinados bairros ou regiões
da cidade onde há menos serviços voltados ao
cidadão, como educação, lazer e esporte.” Esse
cruzamento de dados será fundamental para
traçar, inclusive, um caminho para as pesquisas
de campo do laboratório. “Questão fundamental,
também, são as violações de direitos humanos.
Uma política democrática de segurança precisa
ter como prioridade o respeito aos direitos
humanos, pois o combate à criminalidade não
pode ser justificativa para desrespeitar direitos
fundamentais.”
A ideia é abordar todos os tipos de crime, não
só os violentos, e tratar o tema de modo a
considerar autores, vítimas e “sobreviventes
dos homicídios”. O termo se aplica às pessoas,
principalmente familiares, que conviviam com
a vítima assassinada. A abordagem ampla é
importante para uma avaliação mais profunda
e verdadeira sobre a violência. Isso porque,
PESQUISA
23A3 - Abril a Agosto/2014
“Queremos saber, por exemplo, se há uma relação na incidência de crimes em determinados bairros ou regiões da cidade onde há menos serviços voltados ao cidadão, como educação, lazer e esporte”
(Paulo César Fraga, diretor do Centro de Pes-quisas Sociais-UFJF)
É fundamental que as pesquisas tenham relevância e que sejam úteis para a sociedade, e é por meio delas que é possível conhecer as expectativas dos grupos sociais”
(Frederico Couto Marinho, pesquisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública- UFMG)
Paulo Cesar Pontes FragaDoutor em sociologia pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pela École de Criminologie da Université de Montréal, Canadá.
Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde atua como professor efetivo do
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais; diretor do Centro de Pesquisas Sociais
http://lattes.cnpq.br/0477617276709551
paulo.fraga@ufjf.edu.br
MAIS
Centro de Pesquisas Sociais (CPS)Atua como uma unidade investigativa com a missão de desenvolver pesquisas aplicadas a partir de aportes teóricos e metodológicos
das Ciências Sociais, tanto de cunho qualitativo quanto quantitativo. Além de atender demandas de pesquisas da UFJF, presta
serviços em parcerias com prefeituras, outros centros de pesquisa, empresas, associações, autarquias e entidades
http://www.cps.ufjf.br/
pesquisa.cps@ufjf.edu.br
PESQUISA
de acordo com Fraga, os registros ainda são
superficiais ou consideram apenas um dos lados
dos conflitos. No caso do DataSUS, por exemplo,
– banco de dados do Sistema Único de Saúde
(SUS) no qual é possível acessar registros de
mortes por homicídio –, trabalha-se apenas com
dados da vítima. Outra vertente importante são
as análises sobre os crimes contra os direitos
humanos, grupos vulneráveis e estigmatizados,
muitas vezes negligenciados.
OUTRAS EXPERIÊNCIASDiversas universidades do país têm ido além de
sua contribuição científica quando se trata de
violência, principalmente, nos grandes centros.
São referências na articulação entre pesquisas
e políticas públicas, os núcleos de estudos da
Universidade de São Paulo (USP), da Universida-
de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Centro de
Estudos de Criminalidade e Segurança Pública
(Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). De acordo com o pesquisador do Crisp,
Frederico Couto Marinho, finalizado o estudo,
há uma segunda etapa de trabalho que exige
bastante esforço da equipe, a de convencimento
das autoridades. “É preciso debater os resul-
tados, apresentar o embasamento teórico e
metodológico e também pesquisas semelhantes
realizadas em outros países, traçando um para-
lelo sobre o que acontece em outros lugares.”
Os dados apresentados podem levar a outras
pesquisas, a realização de treinamentos, ao
desenvolvimento de softwares e, o mais im-
portante, a novas políticas públicas. Em Minas
Gerais, os programas “Fica Vivo”, da Secretaria
do Estado de Defesa Social, e “Escola Viva,
Comunidade Ativa”, da Secretaria Estadual de
Educação, foram implantados após trabalhos
publicados pelo Crisp. No “Fica Vivo”, oficinas
de esporte, arte e cultura, destinadas a jovens
em situação de risco social, conseguiram reduzir
taxas de homicídios em áreas com alto índice
de criminalidade violenta. Já a pesquisa feita na
rede estadual de ensino, ouviu alunos e profes-
sores, apontando as fontes de conflitos.
Os dados fizeram com que o governo investisse
mais na infraestrutura das escolas participan-
tes e incentivasse ações de envolvimento da
comunidade. “Para nós, é fundamental que as
pesquisas tenham relevância e que sejam úteis
para a sociedade, e é por meio delas que é possí-
vel conhecer as expectativas dos grupos sociais”,
avalia Marinho.
24 A3 - Abril a Agosto/2014
TESES
O diretor e os desafios da liderança escolar transformadora
Raul MourãoRepórter
A cena típica do aluno entregando maçã ao
professor também poderia ocorrer com
outro profissional da escola retratado, de
forma estereotipada, como enérgica, distante e
repressora: o diretor. O papel do dirigente pode
ser crucial para a aprendizagem do estudante.
“Em geral, o efeito do professor sobre o desem-
penho, apesar de ser o fator de mais importância
para a aprendizagem, tende a ficar restrito à tur-
ma, enquanto o efeito da gestão escolar, mesmo
sendo menor que o provocado pelo docente,
tende a se estender a todos os alunos da escola,
o que lhe confere mais possibilidades de redução
das desigualdades educacionais”, argumenta o
educador Anderson Córdova Pena, autor da tese
de doutorado sobre liderança escolar, defendida
no Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
O pesquisador foi buscar entender afinal quais
eram as habilidades que poderiam descre-
ver uma liderança escolar transformadora
24 A3-Abril a Agosto/2014
Anderson Córdova Pena (autor da tese): “Ele (o diretor) se torna um criador de líderes na escola, é aquele que detém as maiores possibilida-des de maximizar o potencial das lideranças e canalizá-los em direção a objetivos coletivos”
Estudo mostra impacto do trabalho do diretor como líder em escola e o quanto interfere na aprendizagem do aluno
25A3 - Abril a Agosto/2014
TESES
(conheça nove habilidades na arte abaixo). O
foco foram as escolas da rede pública estadual
de Minas Gerais. Pena revisou estudos sobre a
área, competências esperadas para o cargo e
ouviu 1.486 diretores por meio de questioná-
rio on-line. Para saber se, de fato, a liderança
interfere na aprendizagem do aluno, o educador
comparou as respostas, realizando análises
estatísticas, com os resultados das provas de
Língua Portuguesa e Matemática do Programa
de Avaliação da Rede Pública de Educação Básica
(Proeb), aplicado pela Secretaria de Estado de
Educação de Minas Gerais (ver arte na página
26). Se a maçã entregue ao diretor pode alegrar
o dia do profissional, as ações do líder escolar,
conforme resultados da pesquisa, podem sim
melhorar os indicadores, ou seja, contribuir para
que o aluno saiba ler e interpretar melhor o texto
ou lidar com tarefas de matemática. E mais:
quando o dirigente não cumpre parte das habi-
lidades esperadas, como o controle de presença
de professores, o resultado pode ser pior. “Só o
fato de o diretor pensar que isso não é responsa-
bilidade dele os índices de desempenho podem
ser jogados para baixo.”
E o que mais interfere na concepção de liderança
escolar segundo o estudo? Quatro fatores:
comunicação, foco na aprendizagem, práticas
administrativas e atitudes contrárias à própria
liderança, isto é, aquelas que não são espera-
das de um diretor, como desconhecer índices
de evasão escolar. Assim, Pena chegou a este
conceito: “Liderança escolar é um exercício de
gestão democrática, coordenado pelo diretor e
executado de forma compartilhada na escola.
Seu objetivo é o incremento da qualidade da
educação e a promoção da equidade. Para tanto
são necessários: o permanente foco na apren-
dizagem; a adoção de ações de comunicação
efetiva; de práticas administrativas eficientes; e
de atitudes positivas do diretor em relação à sua
capacidade de liderança.”
Identificar e avaliar com precisão quais medidas
das diversas dimensões da gestão escolar, como
a liderança, interferem mesmo na aprendizagem
ainda é um desafio. Para isso, são imprescindí-
veis mais pesquisas e novos modelos. A tese já é
um avanço nessa direção, conforme o orientador
do trabalho e professor do Departamento de
Estatística da UFJF, Tufi Machado Soares. “O
estudo consegue mostrar de forma interessante
a relação entre liderança e proficiência. Isso é
razoavelmente inédito. Antes os estudos na
área não foram tão bem-sucedidos”, afirma o
orientador.
QUEM NÃO COMUNICA, NÃO LIDERA
Um dos fatores que tiveram mais alto grau
de concordância com baixa variação entre as
respostas está relacionado às habilidades
comunicativas. A maioria concorda que é preciso
se comunicar bem. “Em síntese, o diretor precisa
ser um habilidoso comunicador. Como gestor de
uma instituição pública, deve ser capaz de cons-
truir consensos, agir mais pelo convencimento e
pela exposição de ideias do que pela coerção, o
que requer, também, um trabalho de coordena-
ção política. É preciso mostrar confiança, clareza
e firmeza nos projetos que defende com a
comunidade. Estando em instituição pública, ele
possui limitações quanto à gestão de salários,
transferência de profissionais”, atesta o autor do
trabalho.
A liderança, portanto, é para ser compartilhada,
expandindo a responsabilidade e a tomada de
decisões para funcionários, alunos, professores e
pais. De acordo com o pesquisador, seria utopia
pensar que todas as soluções para o ambien-
te escolar cabem ao diretor. “Ele se torna um
criador de líderes na escola, é aquele que detém
as maiores possibilidades de maximizar o po-
tencial das lideranças e canalizá-los em direção
a objetivos coletivos.” Como enfatiza a diretora
da Escola Estadual Professor José Eutrópio, em
Juiz de Fora, Celene Abry, ser diretor é ser um
mediador.
“O diretor precisa ser um habilidoso comunicador. Como gestor de uma instituição pública, ele deve ser capaz de construir consensos, agir mais pelo convencimento e pela exposição de ideias do que pela coerção, o que requer também um trabalho de coordenação política”
(Anderson Córdova Pena, educador e autor da tese)
25A3-Abril a Agosto/2014
26 A3 - Abril a Agosto/2014
TESES
FORÇA, FÉ EFOCO NA APRENDIZAGEMOs resultados da pesquisa mostram que, quando
o diretor mantém o foco na aprendizagem do
aluno, ele influencia positivamente nos resulta-
dos do desempenho do quinto e do nono anos
do ensino fundamental. O resultado foi aferido
por meio da nota no Proeb. Manter o foco na
aprendizagem inclui cumprir o conteúdo pro-
gramático, ter atividades extraclasses, projetos
multidisciplinares e verificar o desempenho dos
alunos de forma sistemática. “Parece óbvio dizer
que o diretor precisa ter o foco na aprendizagem,
mas muitos deles, quando assumem o cargo,
perdem um pouco esse ponto central porque são
tantas atividades administrativas na secretaria
que vão minando essa competência”, explica
Pena.
Situações corriqueiras contribuem para manter
a atenção no âmbito pedagógico. “Só o simples
fato de o diretor ir à sala de aula, conversar com
o aluno e com o professor para perguntar-lhes
como está o andamento de uma disciplina faz
diferença. A hipótese é que o estudante percebe
que o coordenador geral está se preocupando
com ele; e o professor pode se sentir acolhido”,
certifica. Na Escola Estadual Álvaro Giesta, em
São Geraldo, na Zona da Mata Mineira, cada um
dos mais de 700 alunos são cumprimentados
pelo diretor e pela equipe na entrada ou na
saída dos três turnos de funcionamento. “Você
se sente mais bem recebido”, diz a estudante
Luanna Batalha da Costa, 17 anos. “Não quero
que os meninos e as meninas tenham medo de
mim, mas respeito”, ressalta o diretor do colégio,
Tiago Sartori, que também retirou os móveis
que poderiam ser obstáculos no caminho até a
sala dele.
Outra medida incentivada pelo dirigente foi
realizar anualmente um diagnóstico de apren-
dizagem. Os professores aplicam prova no início
do ano letivo para identificar o desempenho
dos estudantes sobre o conteúdo ofertado no
período anterior. Caso seja constatada difi-
culdade, novos tópicos são ensinados apenas
se as dúvidas forem sanadas. A partir desse
diagnóstico e da prova estadual, o colégio
implantou o Momento de Leitura, em que cada
docente, toda semana, precisa dedicar uma aula
para compreensão de textos, cujos resultados
foram percebidos em exames internos. O diretor
orgulha-se ainda de mostrar muros, paredes e
quadros pintados pelos estudantes, comemora
a redução dos índices de evasão (5,9% em 2013
contra 19,7% em 2011) e de reprovação (3,7% em
2013 ante 6,6% em 2011) no ensino médio, e o
envolvimento da comunidade em projetos como
Alimentação Saudável.
Em Juiz de Fora (MG), a Escola Estadual Pro-
fessor José Eutrópio, no bairro Santa Terezinha,
conquistou o primeiro lugar entre colégios
públicos estaduais e municipais da cidade no
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(Ideb) 2011, ao lado do Colégio Tiradentes, com
a nota 7 – acima da meta estipulada (6,6) para
a escola no quinto ano do ensino fundamental.
A diretora Celene Abry atribui o título de “escola
de excelência” à gestão baseada em decisões
colegiadas, dedicação de professores, reuniões
para trocas de experiências, planejamento e
intervenção pedagógica (o reforço escolar). “O
que o Estado nos pede agora para fazermos,
como a intervenção pedagógica, já implantamos
há mais tempo.”
ADMINISTRAR PARA EDUCARAinda que a pesquisa revele a necessidade de
manter o foco no projeto pedagógico, o líder
deve encontrar meios de conciliar a função com
as responsabilidades e as atribuições da gestão,
o que envolve as atividades administrativas,
burocráticas. A lista é imensa, haja fôlego: é
preciso planejar; controlar materiais; lidar com
a compra de equipamentos; conhecer regras de
licitação; organizar documentos; responder for-
mulários; prestar contas; coordenar a manuten-
ção e a conservação do espaço físico; monitorar
e avaliar o trabalho escolar; gerenciar pessoal; e
normatizar o cotidiano escolar.
A atuação do diretor na área administrativa,
“O estudo consegue mostrar de forma interessante a relação entre liderança e proficiência. Isso é razoavelmente inédito. Antes os estudos na área não foram tãobem-sucedidos”
(Tufi Machado Soares, professor da UFJFe orientador da tese)
27A3 - Abril a Agosto/2014
TESES
como gestor, surte mais resultados na aprendi-
zagem no ensino médio, conforme a pesquisa. A
possível explicação, segundo Anderson Córdova
Pena, é que essa fase escolar possui currículo
extenso, mais disciplinas e professores, que atu-
am em diversos estabelecimentos, o que reduz
a possibilidade de criação de vínculo mais forte
com a escola, exigindo mais monitoramento por
parte do dirigente no cumprimento do currículo,
da carga horária e da disciplina dos estudantes.
ESCOLA E EXCLUSÃOReduzir o índice de evasão no ensino médio é
um dos principais desafios da liderança escolar
e das políticas públicas de educação. Dos 17
milhões de jovens brasileiros entre 15 a 19 anos
que deveriam estar na escola, mais de 5 milhões
(32%) não estão nas salas de aula. E a taxa de
abandono é de 34,5%. No Chile, fica em 2,9%.
Entre os que conseguem concluir essa etapa da
vida escolar, apenas 10% aprendem o necessário
de matemática, conforme o Sistema de Avalia-
ção de Educação Básica (Saeb) do Ministério da
Educação (MEC).
A relação entre baixa escolaridade e criminali-
dade não é direta, mas é possível verificar que
o perfil do preso no Brasil é aquele que, em sua
maioria (77%), não possui ou não concluiu o
ensino médio. “São negros, pobres, jovens. É
esse o perfil que a escola brasileira historica-
mente e silenciosamente exclui. A culpa não é
do aluno. O professor em sala de aula consegue
fazer uma ação inclusiva. Mas essa função, em
toda a escola, é de responsabilidade do diretor”,
destaca Pena, que trabalha no Programa ensino
médio Inovador/Jovem de Futuro em parceria
com o MEC, que visa reestruturar o currículo do
ensino médio.
E quando o diretor concorda com nove atitudes
que não condizem com o perfil profissional
de liderança escolar, elas podem contribuir
para a queda do desempenho escolar. Entre as
atitudes, estão considerar que não é prioridade
do gestor monitorar as faltas e os atrasos de
professores e funcionários, que as avaliações de
sala de aula não conseguem medir com eficácia
a aprendizagem e que encontra dificuldade
em saber quantos alunos foram reprovados ou
evadiram no último ano. “Quanto mais atitudes
contrárias por parte do diretor, mais baixa é a
proficiência esperada. A interferência negativa
sobre o desempenho é percebida principalmente
no Ensino Médio”, diz o pesquisador. “A liderança
escolar, medida pelo instrumento proposto pare-
ceu exercer, portanto, impacto moderado sobre
a proficiência das escolas medidas pelo Proeb.
Assumindo o papel de articuladora, a liderança
pode contribuir para a construção e a efetivação
de uma escola pública, de fato, democrática.”
MAIS
Anderson Córdova PenaDoutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (UFJF)
bit.ly/lattes_Anderson
Tufi Machado SoaresDoutor em Engenharia Elétrica e coordenador de Pesquisa do Centro de Políticas Públicas e Avaliação
da Educação (CAEd/UFJF); professor do Departamento de Estatística da UFJF
bit.ly/lattes_Tufi
Leia a tese “Um conceito para liderança escolar: estudo realizado com diretores de escolas da rede pública estadual de Minas Gerais”, defendida em novembro de 2013:
bit.ly/teseAnderson
O diretor da Escola Estadual Álvaro Giesta, Tiago Sartori - que cumprimenta cada um dos seus 700 alunos na entrada ou na saída das aulas e retirou móveis para facilitar o acesso dos estudantes à sua sala -, comemora a redução dos índices de evasão e reprovação e o envolvimento da comunidade em projetos como Alimentação Saudável
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28 A3 - Abril a Agosto/201428 A3-Abril a Agosto/2014
MEMÓRIA
29A3 - Abril a Agosto/2014
Márcio de Paiva Delgado*
Há 50 anos os militares calavam o país
MEMÓRIA
A primeira dúvida que me ocorreu quando fui convidado a escrever esse
texto, foi qual seria a sua abordagem. Uma descrição cronológica,
didática e resumida sobre os principais acontecimentos entre 1964
e 1985? Um levantamento historiográfico das principais pesquisas feitas
nas últimas décadas? Por entender que este não é um texto voltado para o
público acadêmico, que retrospectivas
factuais são facilmente encontradas
em livros didáticos e pela consciência
de que a Ditadura Militar ainda é
um tema em disputa na memória
brasileira recente, preferi abordar,
brevemente, os argumentos usados
pelos golpistas para a quebra da
democracia em 1964.
Não é de hoje que a Democracia -
que está em constante construção
e aprimoramento - atingiu status
de “valor universal”, a ponto de ser
invocada até mesmo por aqueles que
lutam contra o seu estabelecimento.
Assim como era em 1964, ainda o é
no país que convive no meio político e
midiático com indivíduos sem qualquer
compromisso com a democracia: a vontade da maioria, resguardando os
direitos e proteção às minorias, a liberdade de expressão e associação, o
respeito aos direitos humanos e o compromisso com a justiça social.
Voltemos a 1964. Segundo os golpistas, o presidente João Goulart fora
derrubado em nome da Democracia. Para a maioria dos defensores do golpe,
Jango estava colocando o Brasil rumo ao “comunismo ateu contrário à família
brasileira” por meio de suas autodenominadas Reformas de Base. Também
estaria colocando “brasileiros contra brasileiros” ao estimular a “luta de
classes” e promovendo a “desordem
e a quebra da hierarquia” dentro das
Forças Armadas. Tais argumentos
e acusações, que ainda hoje ecoam
em publicações de colunistas da dita
“grande imprensa”, não resistem
sequer a uma superficial análise dos
fatos históricos.
Goulart, por meio da proposta
das Reformas de Base, buscava
promover mudanças estruturais
na sociedade brasileira dentro
da normalidade Constitucional.
Destacavam-se a Reforma Agrária,
Educacional, Política e Urbana.
Todas teriam que passar pelo
Congresso Nacional, notadamente
conservador, apesar do crescimento
do PTB nas eleições de 1962. Nas ruas, o período era de radicalização. Para
cada cartaz “Reformas na Lei ou na Marra”, havia uma senhora com um
rosário à mão orando contra os “comedores de criancinhas” e “incendiários
Para cada cartaz “Reformas na Lei ou na Marra”, havia uma senhora com um rosário à mão orando contra os “comedores de criancinhas”e “incendiários de Igreja”
30 A3 - Abril a Agosto/2014
MEMÓRIA
de Igreja”. Verborragia comum entre militantes em momentos de catarse,
mas que nas palavras e ações de lideranças políticas e militares sempre
se mostram explosivas e geradoras de violências. Apesar da defesa das
Reformas, ainda hoje necessárias no Brasil, Jango nunca adotou tal discurso
radical. Os decretos de desapropriação de terras assinados durante o
Comício das Reformas em março de 1964 tinham um caráter mais simbólico
(e espetaculoso) do que efetivo para a realização da Reforma Agrária.
Sobre o “perigo vermelho”, artificialmente fomentado com ajuda de setores
conservadores da Igreja Católica, do empresariado e da mesma grande
imprensa, na realidade não havia absolutamente nada no projeto da
presidência que pudesse ser identificado com a implantação do comunismo,
muito menos a defesa do “fim da religiosidade” e do “fim da família
brasileira”. Falácias absurdas usadas para amedrontar a população a fim de
conquistar a opinião pública para evitar tais Reformas e justificar o golpe em
fase de conspiração que já havia sido tentado em agosto de 1961, ou seja,
antes de qualquer ação “desestabilizadora” de Jango.
O argumento de que Jango estaria colocando “brasileiros contra brasileiros”
é novamente fruto da falta de compromisso com a democracia por parte
de seus detratores. Durante seu governo, o movimento operário, estudantil
e camponês, encontrava-se em franco desenvolvimento e mobilização,
que vinha desde os anos 1950, principalmente sob o Governo de Juscelino
Kubistchek, o qual lhes garantira liberdade. É inegável a influência dos
comunistas nesses movimentos, ainda mais em contexto de Guerra Fria,
mas estes não eram os únicos e suas demandas sequer faziam parte de seu
monopólio ideológico: educação pública e de qualidade, reforma agrária e
fim do latifúndio, soberania nacional e desenvolvimento nacional, salários
justos e diminuição das desigualdades sociais. Eram essas as bandeiras
daqueles que, segundo os golpistas, estavam colocando a nação brasileira
para fora do rumo da “ordem” e do “progresso”. E o desejo “revolucionário”
sempre existiu, mas qualquer forma de luta armada no pré 1964 já havia sido
abandonada pelo PCB desde o final da Segunda Guerra Mundial e reafirmada
em resoluções oficiais para a militância durante a década de 1950. A exceção
de um número ínfimo de pessoas que haviam se dirigido a Cuba para fazer
“treinamento guerrilheiro” (desbaratado pelo próprio Governo Goulart em
1962), não havia qualquer guerrilha no Brasil antes do golpe de 1964.
Sobre a quebra de hierarquia, uma vez mais o argumento não se sustenta,
além de expor seu caráter elitista. Juscelino Kubistchek, presidente, sofreu
duas quarteladas contra o seu governo, além de uma conspiração em 1955
contra a sua posse. Em todos os casos - envolvendo oficiais de alta e média
patente - houve anistia. O mesmo aconteceu com os militares promotores
da tentativa de impedir a posse de Goulart em agosto de 1961. Não se ouviu
palavra sobre quebra de hierarquia quando a presidência, conciliatoriamente,
perdoou os revoltosos. Entretanto, quando Jango anistiou sargentos
e marinheiros revoltosos - que não queriam derrubar governo algum e
sim garantir direitos e melhorias nas condições de trabalho - todo o alto
oficialato bradou contra tal ato de “desordem”.
Com o golpe, rasga-se a Constituição de 1946. Em nome da “operação
limpeza” nos quadros políticos, sindicais, estudantis e militares, o Executivo
passa a governar sem contestação por parte dos outros dois Poderes e a
não admitir qualquer oposição na sociedade civil. Com o pretexto de salvar
a Democracia, fecharam-se partidos políticos e cassaram-se mandatos e
carreiras, interviram no STF, proibiram sindicatos e entidades estudantis,
censuraram a informação, as artes e as ideias, praticaram prisões arbitrárias,
seguidas de torturas e outras formas de intimidação. Isso tudo, é importante
que se diga, antes de qualquer movimento de guerrilha e bem anterior ao
Ato Institucional nº 5 de dezembro 1968, que até hoje é considerado por
muitos, de maneira errada, como o início dos “Anos de Chumbo”.
Com o golpe, rasga-se a Constituição de 1946. Em nome da “operação limpeza” nos quadros políticos, sindicais, estudantis e militares, o Executivo passa a governar sem contestação por parte dos outros dois Poderes e a não admitir qualquer oposição na sociedade civil
* Doutor em História pela UFMG; mestre e graduado pela UFJF; professor do Instituto Federal de Educação (Ifet) Sudeste de Minas Gerais, campi de Juiz de
Fora e Santos Dumont. marcio.delgado@ifsudestemg.edu.br
31A3 - Abril a Agosto/2014
MEMÓRIA
*Doutor em História Econômica pela USP; mestre em História pela UnB; graduado em História pela UFMG; professor titular da Universidade Vale do Rio Doce
O ano de 1964 “cheirava” a pólvora e chumbo em Governador Valadares
e no Vale do Rio Doce, com pistoleiros atuando a serviço dos
poderosos. O semanário “O Combate”, criado pelo jornalista Carlos
Olavo da Cunha Pereira, tornou-se veiculo de defesa da justiça e da luta
dos posseiros pela terra que ocupavam. A mobilização de fazendeiros e
seus jagunços não intimidaram os camponeses - apoiados pelo PCB - que,
coordenados pelo partido, fundaram o Sindicado dos Trabalhadores Rurais
(STR) como instrumento de luta contra os despejos rurais e pela reforma
agrária. Em 1962, liderado por Francisco Raimundo da Paixão (Chicão), o
sindicato deixou a orientação dos comunistas e aderiu às Ligas Camponesas,
após o Primeiro Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores
Agrícolas, em Belo Horizonte, em novembro de 1961. As lideranças dos
fazendeiros consideravam a situação intolerável e, em resposta, formaram
milícia armada para enfrentar o que denominavam de invasões de fazendas
no Vale do Rio Doce.
Governador Valadares se tornou ponto de condensação dos acontecimentos
de 1964. A cidade estava dividida, com fazendeiros e familiares, Igreja e
poder público local de um lado; de outro, os quase dois mil membros do STR,
constituído não só por meeiros, parceiros e assalariados do campo, mas por
moradores de favelas de Governador Valadares, egressos das áreas rurais.
Em Governador Valadares, em 30 de março de 1964, fazendeiros e jagunços
tentaram invadir o STR, houve resistência, feridos e um morto (Paschoal
de Souza Lima, genro do delegado de polícia da cidade, Cel. Pedro Ferreira).
O Golpe Militar de 31 de março marcou o fim da luta dos posseiros e
consolidou uma estrutura fundiária assentada na grande propriedade.
Nesse mesmo dia, Carlos Olavo e Chicão foram levados em segurança para
Belo Horizonte, por ordem do Governador Magalhães Pinto, de onde foram
para o exílio. No dia seguinte, o clima entre fazendeiros era de mobilização e
vingança. Em 1º de abril, logo pela manhã, houve o atentado a Otávio Soares
Ferreira da Cunha e aos filhos Augusto e Wilson. Augusto morreu no dia
1º de abril, e o pai, três dias depois. Wilson, apesar de gravemente ferido,
sobreviveu.
O atentado foi praticado pelos fazendeiros Maurílio Avelino de Oliveira,
Lindolfo Rodrigues Coelho e Wander Campos. Conforme o processo nº
35.679, do Superior Tribunal Militar (STM), o tenente coronel delegado de
Polícia em Governador Valadares declarou que eles estavam investidos da
condição de polícia para “prestarem serviços localizando e interceptando
elementos comunistas e conduzindo-os à Delegacia, em virtude do ‘Estado
de Guerra’...” A “convocação” dos três fazendeiros para prestar serviços de
natureza policial pelo delegado teria ocorrido às 8h, uma hora antes da
ocorrência criminosa, cabendo deixar em aberto, portanto, a possibilidade
de essa convocação ter sido um expediente formal forjado a posteriori.
Segundo o testemunho, às 9h, Maurílio aproximou-se dos três ocupantes
de um Jeep Land Rover – Otávio e os filhos Augusto e Wilson – fazendo-se
passar por amigo. Após retirarem a chave do jipe, os fazendeiros atiraram.
Augusto teve morte imediata. O pai, Otávio, 70 anos, já alvejado, ainda
conseguiu sair do veículo, engatinhou tentando refugiar-se no interior da
casa, mas foi perseguido por Lindolfo, que o atingiu no rosto. Os assassinos
ainda foram ao hospital procurar o outro filho de Otávio, o médico Milton
Soares, que foi protegido por médicos e enfermeiros.
Otávio foi o segundo farmacêutico a se instalar em Governador Valadares,
na época em que era o distrito de Figueira, pertencente ao município de
Peçanha. Uma das lideranças mais destacadas e queridas da cidade, foi
um dos líderes do partido da emancipação do município, na década de
1930. Os fazendeiros não perdoavam o fato de seu filho Wilson ter levado
pessoalmente os empregados e agregados da sua fazenda para se filiarem
ao sindicato nem o apoio que davam à luta dos camponeses em defesa de
suas terras, principalmente que também eram fazendeiros. Em Governador
Valadares, havia sido oferecida denúncia contra os assassinos em 17 de maio
de 1965. Os réus obtiveram no STF habeas-corpus recolhendo os mandados
de prisão. Após várias tramitações judiciais, o STM, em 11 de janeiro 1967,
condenou os três criminosos a 17 anos e meio de reclusão, por unanimidade.
Entretanto, eles foram indultados. Em 1997, a Comissão Especial Sobre
Mortos e Desaparecidos votou pela motivação política dos crimes. O fato
é que duas pessoas foram mortas - com tiros pelas costas -, e uma ferida.
Todas desarmadas.
Haruf Espíndola*O “CHEIRO” DE PÓLVORA E CHUMBO EM GOVERNADOR VALADARES
31
32 A3 - Abril a Agosto/2014
ESPECIAL
No país da Copa, o futebol como ciênciaPesquisas desenvolvidas na UFJF contribuem para entender o perfil de jovens jogadores, treinar goleiros e compreender a identidade do futebol brasileiro
Raul MourãoRepórter
Goooool!
A regra é clara: na ciência, um gol não é
apenas um gol. Na tentativa de encontrar
explicações para quase tudo, pesquisadores
investigam desde o aproveitamento da bola
lançada pelo goleiro, o perfil do jovem jogador
à influência da profissionalização na conquista
de prêmios e as relações entre o trimestre de
nascimento do atleta e seu desempenho. Se
você é torcedor, também está sendo observado
por músicos e comunicadores sociais, ainda mais
quando entoa hinos ou adapta canções. Na área
de tecnologia, prepare-se para a Copa do chip na
bola, ou footbyte.
Na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
mais de 50 livros, artigos, monografias, disserta-
ções e teses já foram elaborados sobre futebol.
É uma amostra de que ciência e esporte querem
jogar no mesmo time, principalmente em ano
de Copa do Mundo, no Brasil, que pode oferecer
novas fontes de interesse para os estudos. Se a
pergunta “Quem vai ganhar o mundial?” perpas-
sa as 32 seleções do campeonato, várias outras
movem os pesquisadores. Conheça-as.
O PAI DO FUTEBOL?Os questionamentos começam pela própria
história do futebol no Brasil que pode ser
reescrita. Juiz de Fora (MG) pode ter sido o
berço desse esporte e de muitos outros no
país, considerando os registros de partidas
realizadas, na cidade, no Instituto Metodista
Granbery. A versão mais aceita atualmente é a
de que o futebol chegou ao solo tupiniquim em
1894 pelo brasileiro Charles Miller. Em abril de
1895, foi registrada a primeira partida oficial,
em São Paulo, entre funcionários da São Paulo
Gás Company e da São Paulo Railway.
No entanto, os registros do Arquivo Histórico
do colégio, em Juiz de Fora (ver foto na página
32 A3-Abril a Agosto/2014
34), mostram que a bola teria rolado primeiro no
campo mineiro em 1893 entre Gregos e Troianos.
Há duas anotações nesse ano no livro “Regis-
tro de Notas e Matrículas do Granbery – 1890
a 1897”. A primeira, de 10 de março, informa
simplesmente: “Inaugurou foot-ball and tennis”.
A segunda, de 24 de junho, traz relato de com-
petições, como salto em distância e em altura.
“Houve também Indian Club; Tennis, Patecca
e Foot-ball entre Gregos e Troianos. Muitos
33A3 - Abril a Agosto/2014
ESPECIAL
pelos professores da Faculdade de Educação
Física e Desportos (Faefid) da UFJF, Maurício
Bara, Marcelo Matta, José Augusto Pereira, José
Marques Novo Júnior e Renato Miranda.
No caso da paternidade do futebol no Brasil, o
meio de campo embola quando surgem mais
versões sobre a origem desse esporte no país.
Há quem reivindique a introdução na cidade do
Rio de Janeiro, no campo do Paissandu, entre
1875 e 1876, ou em Jundiaí, na região metropo-
litana de São Paulo, em 1882, por Mr. Hugh. De
fato, o futebol foi mais bem promovido fora
das escolas e clubes pelo empenho de Charles
Miller, conforme o pesquisador Ronaldo Helal,
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj). Nessa história, John Lander só não pode
ficar esquecido no banco de reserva. Enquanto
isso, a bola rola. Ou melhor, outras pesquisas são
elaboradas. Uma delas é sobre características de
jogadores brasileiros.
PERFIL DE JOVENS ATLETASImagine-se como o responsável por escalar um
time de garotos de 13 e 14 anos (categoria sub-
15) e outro de 15 e 16 anos (sub-17) para um clube
tradicional em busca de novos talentos. Entre
eles há dois tipos de perfis: aqueles com alto
desempenho físico, robustos, altos e outros com
performance física, estatura e massa corporal
medianas. Quais biotipos escolheria para compor
os times? Um detalhe: as habilidades para
conduzir a bola são similares. Lembre-se de que
grandes atletas começaram cedo até serem con-
vocados para times profissionais: Neymar, Ro-
naldo, Messi, Cristiano Ronaldo. A boa escolha é
importante. Questões como essa estimularam
o professor da Faefid da UFJF, Marcelo Matta, a
desenvolver pesquisa de doutorado, defendida
33A3-Abril a Agosto/2014
Alvo de pesquisa: jogadores do Bonsucesso Futebol Clube, no Bairro Industrial, Zona Norte de Juiz de Fora, em mais um dia de treino. O clube reúne cerca de 200 meninos, entre 5 e 17 anos, da cidade e também de Matias Barbosa (MG), há 19 anos
amigos assistiram, o Collegio Mineiro brilhantou
(sic) a ocasião. Teve foguetes, bandeiras etc.
Serviu-se lunch na varanda.”
A mescla de português com erros de grafia
e inglês nas anotações feitas à mão são do
americano John McPhearson Lander, o primeiro
reitor do Instituto. Ou podemos chamá-lo do pai
do futebol no Brasil em vez de Charles Miller? O
coordenador do Arquivo Histórico e do Museu do
Granbery, Ernesto Giudice Filho, prefere não en-
trar na polêmica, mas lista mais uma evidência
do pioneirismo juiz-forano. “Existe uma carta,
datada de 1892, escrita pela filha de Lander, que
diz que o pai havia retornado da Inglaterra nesse
ano com um livro de regras, um par de calçados
e uma bola. Suponho que os calçados tenham
sido parecidos com as chuteiras”, afirma o
documentalista. Apesar de ter o registro, poucas
publicações abordam os jogos em Juiz de Fora.
Uma delas é o Atlas do Esporte no Brasil on-line,
no capítulo sobre o esporte na cidade, escrito
34 A3 - Abril a Agosto/2014
ESPECIAL
em março de 2014, na Universidade do Porto
(Portugal). O estudo foca o efeito da maturação
biológica no desempenho do atleta. “Jovens que
nasceram no dia 1º de janeiro competem com
outros nascidos em 31 de dezembro do mesmo
ano. São 12 meses de diferença – em adulto isso
não apresenta problema, mas em crianças e
adolescentes sim. Torna-se mais preocupante se
considerarmos que uma faixa etária (sub-15, por
exemplo) é composta por futebolistas de dois
períodos de nascimento, de 13 e 14 anos. Esse
fenômeno, muito observado no futebol, mostra
que a maioria dos futebolistas das equipes de
formação nasceu no primeiro quartil do ano
(janeiro, fevereiro e março), fato explicado pela
influência da maturação.” São aqueles em que
a idade cronológica, marcada na carteira de
identidade, não condiz exatamente com o aporte
físico, parecem garotos mais velhos, desenvolvi-
dos fisicamente.
Nesse chamado efeito da idade relativa, ado-
lescentes com desenvolvimento biológico mais
avançado costumam ter melhor desempenho fí-
sico e serem escolhidos pelos clubes, mas pouco
se sabia a respeito da influência da maturação
nas habilidades técnicas e motoras de jovens
jogadores brasileiros, como o controle e a con-
dução da bola. Para auxiliar nessa descoberta, o
docente avaliou 245 garotos, de 13 a 16 anos, das
categorias infantil e juvenil (sub-15 e sub-17), em
Juiz de Fora (ver arte na página 35). É um estudo
inédito no Brasil – nenhuma pesquisa com
esses objetivos havia sido aceita em publicações
científicas internacionais qualificadas, segundo
Matta.
CRITÉRIOS EM XEQUEO professor analisou os índices obtidos nos tes-
tes de cada categoria separadamente (sub-15 e
sub-17), descrevendo suas características, e, em
seguida, comparou os dados entre as duas. Os
resultados da pesquisa apontam para possível
supervalorização dos efeitos da maturação
biológica dos futebolistas quando ela é utilizada
como um dos principais critérios para selecionar
jogadores. Isso porque, como já era esperado, os
jovens de 15 e 16 anos “são mais altos e pesados,
apresentaram desempenho físico superior nas
provas funcionais que avaliam a força explosiva,
resistência e potência”, afirma o professor. Mas,
em relação à habilidade com a pelota, como
Professor da UFJF, Marcelo Matta, defendeu pesquisa de doutorado na Universidade do Porto (Portugal), sobre o efeito da maturação biológica no desempenho do atleta
Documento do Arquivo Histórico do Granbery (A.F.T.): Juiz de Fora pode ter sido o berço do futebol no Brasil
Foto
: Nat
ália
Fer
reira
35A3 - Abril a Agosto/2014
ESPECIAL
domínio da bola e precisão do chute, os mais
velhos não mostraram desempenho significati-
vamente superior aos adolescentes mais novos,
da categoria sub-15.
A influência da maturação somente foi mais
evidente quando os adolescentes de 13 e 14 anos
são comparados entre si. Os garotos com sinais
biológicos avançados mostraram mais força e
potência. Novamente, no quesito habilidade
técnica, todos apresentaram índices semelhan-
tes, independentemente de terem nascidos
em janeiro ou em dezembro de um mesmo
ano. “Sendo assim, treinadores de futebol
devem estar atentos às possíveis influências
da maturação no desempenho de seus atletas
na categoria sub-15, pois os mais avançados
maturacionalmente podem evidenciar maiores
dimensões somáticas (altura e peso) e um supe-
rior desempenho funcional (velocidade, agilidade
e capacidade aeróbia) em relação aos seus pares
classificados como normomaturos”, explica
o docente. Considerando esses aspectos, em
princípio, garotos mais amadurecidos fisicamen-
te teriam vantagens em competições somente
dessa faixa etária.
Na comparação restrita aos jovens da categoria
sub-17 (de 15 e 16 anos), o desenvolvimento
biológico avançado não é significativo estatisti-
camente nem mesmo em relação à performance
física. Ou seja, o adolescente pode ter traços
maturacionais, como ser mais alto, forte e
robusto, mas que não garantem boa atividade
em campo. “Nesse caso, portanto, treinadores
precisam considerar estratégias para aqueles
garotos que desenvolvem suas habilidades no
‘tempo normal’, pois a pesquisa, assim como
outros estudos, mostra que pode haver exagero
em valorizar demais o desenvolvimento físico
do garoto. O desempenho esportivo resulta da
interação de diferentes variáveis”, alerta Matta.
O garoto robusto e peça-chave do time sub-15,
nascido geralmente nos primeiros meses do
ano da sua categoria, pode não ser a estrela em
ascensão amanhã, uma vez que os efeitos da
idade relativa podem ser minimizados ao longo
do tempo e as habilidades motoras melhoram
com a idade e a prática, conforme outras pesqui-
sas realizadas pelo professor. O sucesso, nesse
caso, é um processo de longo prazo, adequando
os níveis de exigência competitiva e treinos com
as características de crescimento, maturação
e desenvolvimento dos praticantes, conforme
Matta (ver arte do estudo sobre a influência da
profissionalização na obtenção de prêmios na
página 36) .
Logo, se no início desta seção você, leitor, esco-
lheu jovens com desenvolvimento físico mais
avançado para compor seu time de garotos de 13
e 14 anos, a princípio, acertou, pois poderá preci-
sar de adolescentes fortes e velozes. Mas errou
caso tenha apostado somente nesse biotipo
para formar o time de 15 e 16 anos, uma vez que
o desempenho físico e a habilidade técnica são
semelhantes entre os mais desenvolvidos e os
normomaturos. Em se tratando de grandes clu-
bes, a escolha inadequada do jogador de futebol
pode significar o investimento a mais de recur-
sos nas categorias de base, desgaste do jovem
jogador entre outras consequências. Há o risco
de deixar de fora novos Neymar ou Messi. Nesse
caso, a ciência trabalha para otimizar os critérios
de escolhas. “Nem sempre isso é possível, o ser
humano é uma ‘caixinha de surpresas’, não dá
para precisar com exatidão seu potencial.”
FUTEBOL PARA EXPORTAÇÃOEntre os adolescentes pesquisados pelo pro-
fessor, estão jogadores do Bonsucesso Futebol
Clube, no Bairro Industrial, na Zona Norte de Juiz
de Fora (MG), que reúne cerca de 200 meni-
nos entre 5 e 17 anos de bairros da cidade e de
36 A3 - Abril a Agosto/2014
ESPECIAL
Matias Barbosa (MG) há 19 anos. O artilheiro de
um campeonato local, em 2013, com seis gols,
Wendell Santos Oliveira, 16, está há mais de dois
anos no projeto e sinaliza desenvolvimento fun-
cional e técnico ao longo do tempo. “Melhorei o
condicionamento físico com a preparação daqui
e sou incentivado a fazer virada de jogo, treinar
com um toque só e fazer finalizações”, lista o
jovem atleta.
Além dos reflexos sociais, o projeto é pelo
terceiro ano consecutivo o que mais conquista
prêmios em Juiz de Fora e em campeonatos
regionais. “Atribuímos as vitórias à experiência
obtida ao longo do tempo. A maioria joga há
quatro ou cinco anos aqui. E somos a única esco-
la da cidade a aceitar garotos de 5 anos”, afirma
um dos treinadores do time, Bruno Garcia Motta
(Piuí), especialista em futebol. Esse aprendizado
desde cedo com a bola, as conquistas da seleção
brasileira, o “jogo bonito” ou mesmo o gingado
brasileiro em campo explicam o interesse de
clubes e escolas americanas em conhecer a
técnica brasileira. Pelo terceiro ano, Piuí irá aos
Estados Unidos com outros treinadores repassar
conhecimentos para técnicos de lá. “Ficarei dez
semanas, uma em cada cidade, trabalhando seis
horas por dia. É preciso elaborar e justificar aos
treinadores entre 120 a 200 exercícios técnicos
que passamos para os garotos de 14 a 17 anos.
É uma série diferente a cada 20 a 30 minutos”,
explica. Na bagagem de volta, ele também traz
informações sobre preparação física, área em
que os americanos possuem mais expertise.
A vivência do profissional é levada aos encontros
semanais do Grupo de Estudos em Futebol da
UFJF, coordenado pelo professor Marcelo Matta,
que conta com a presença de mais treinadores
locais e estudantes. O objetivo é estreitar a
relação entre a academia e os profissionais, ser
referência na pesquisa sobre futebol no país,
criar equipes de treinamento para jovens e de-
senvolver um currículo com o conteúdo teórico,
técnico e tático para ser ofertado na formação
de futebolistas no Brasil.
“Estamos vivendo um momento em que a tecnologia assume, em boa parte das vezes, instância majoritária para a compreensão e tomadas de decisões no jogo”
(Ricardo Bedendo, professor da Faculdade de Comunicação)
37A3 - Abril a Agosto/2014
ESPECIAL
TIME DO FUNILOs milhares de atletas adolescentes de Juiz de
Fora ou de qualquer cidade ou país com tradição
no futebol precisam lidar com uma situação
frustrante ou, às vezes, positiva: a temida penei-
ra para ingressar nos times profissionais. Não
há pesquisas que indicam qual é o percentual de
aproveitamento dos jovens em clubes tradicio-
nais e raros são aqueles que divulgam seus per-
centuais quando possuem. Saber qual é o índice
de aproveitamento dos jovens esportistas nas
equipes adultas é importante para, entre outros
motivos, “verificar se a metodologia implantada
no processo de formação de seus futebolistas
apresenta resultados significativos”, afirmam os
bacharéis em Educação Física pela UFJF Sebas-
tião Salgueiro Júnior e Leonardo Lima Dias.
Diante da realidade desse funil no futebol e da
falta de estudos e dados sobre o tema, os dois
estudantes conseguiram verificar que apenas
25,4% dos 1.304 jogadores de todas as 46
seleções da Copa do Mundo de 2006 e de 2010
também atuaram em algum dos mundiais das
categorias sub-17 e sub-20 ou somente em um
deles. A dupla vasculhou informações em sites
de confederações e cruzou dados dos mundiais
juvenis desde 1977. Após essa etapa árdua, foi
buscar possíveis razões para os percentuais de
cada continente e de algumas seleções (ver arte
acima)
O índice baixo de aproveitamento dos jovens
– somente um em cada quatro jogadores na mé-
dia mundial – pode indicar que poucos ascende-
ram à mais alta competição por métodos inade-
quados de treinamento, pressão para descobrir
novos talentos, concorrência com jogadores mais
velhos, lesões, interesses externos ao futebol,
entre outros fatores, explica Leonardo Dias.
BASE SÓLIDAAinda conforme o estudo, o resultado obtido
pelas seleções juvenis pode ter influenciado na
escolha da seleção adulta. Uma das campeãs
dos mundiais sub-17 e sub-20, a Argentina
aproveitou 55% das suas equipes iniciantes. Na
Austrália, o percentual chega a 69%, “tal-
vez pela pouca tradição do esporte no país e
concorrência”, supõem os autores. Na lanterna,
aparecem países como Dinamarca, Suécia,
Grécia, Eslovênia e Sérvia com nenhum jogador
aproveitado.
Entre os brasileiros, o índice foi acima da média:
13 jogadores, ou 34% dos 38 selecionados nos
mundiais da Alemanha e da África do Sul atu-
aram em alguma das disputas sub-17 e sub-20,
como os laterais-direito Daniel Alves e Maicon
e o atacante Ronaldinho Gaúcho. Para manter
esses jovens no país, é preciso oferecer melhor
estrutura. Parte deles “vai tentar sucesso na
Europa, mesmo com um processo de formação
ainda incompleto e, em alguns casos, jogam
em times inferiores e países fracos no futebol”,
explica Leonardo Dias.
O profissional chama atenção para o fato de a
Espanha, campeã da Copa de 2010 e coleciona-
dora de outros títulos recentes, ter aproveitado
mais da metade dos seus jovens e ressalva
o caso da Itália, campeã em 2006, mas com
apenas 5% de reingresso. “A Espanha, no final
da década de 1990, criou um plano de desenvol-
vimento de futebol que consistia na formação
de treinadores extremamente qualificados
para implantar metodologias de trabalho com
jogadores jovens desde os 5 anos de idade. E os
clubes alemães de primeira e segunda divisões
foram obrigados a criar academias de futebol
para a formação de jovens jogadores”, afirmam
Sebastião Júnior e Leornado Dias, que foram
orientados pelos professores Marcelo Matta, da
UFJF, e Francisco Zacaron Werneck, da Univer-
sidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Quando
comparadas as seleções de cinco continentes,
a Europa apresenta o percentual mais baixo
(16,4%) de reaproveitamento dos jogadores,
enquanto a Ásia o maior (39,9%).
SOCIEDADEFUTEBOL CLUBEO futebol também é o foco de estudos no Núcleo
de Pesquisa em Comunicação, Esporte e Cultura
da UFJF (Nupescec), coordenado pelo professor
Márcio Guerra, que possui investigações sobre
identidade do futebol brasileiro, narração e
jornalismo esportivos, entre outros temas.
38 A3 - Abril a Agosto/2014
ESPECIALGOLEIRO, OLHO NO LANCE!
Todos sabem que uma boa defesa para o goleiro é fundamental, mas a bola
lançada por ele também faz diferença em um campeonato. Na série A do Brasileirão de 2011, a influência foi negativa…O bacharel em Educação Física pela UFJF Fernando Corrêa encontrou, em pesquisa inédita, percentual alto de erros nos lançamentos realizados pelos goleiros em centenas de partidas de todas as 38 rodadas do campeonato e de todos os 20 times participantes. Do total de bolas lançadas pelo camisa 1, entre 48% e 75% não chegavam ao jogador-alvo ou ele não a dominava. Os acertos ficaram na faixa entre 25% e 52%. “Em se tratando de atletas profissionais que disputam o principal campeonato nacional,
este fato torna-se preocupante, pois apenas um dos goleiros analisados (Rogério Ceni, do São Paulo), de um total de 24, apresentou valores de acertos (52%) maiores em relação aos erros (48%)”, afirma Corrêa, que é treinador de goleiros. No estudo, entre todos os lances dos 11 jogadores até um terço foi executado pelo defensor do gol.A partir desses dados, a pesquisa utilizou métodos estatísticos para correlacionar a quantidade de acertos e erros do goleiro com a pontuação obtida pelos times. Os lances certeiros ou equivocados não são determinantes para a vitória, pois precisam vir acompanhados do desempenho dos outros dez jogadores. No entanto, a pesquisa mostra que “o lançamento correto tem uma influência negativa menor em
relação ao errado, o que faz refletir sobre a integração do goleiro no modelo de jogo da equipe”, diz Corrêa.“O resultado indica que o goleiro tem uma parcela de participação relevante na fase ofensiva. O tiro de meta assim como os outros meios de reposição de bola feitos pelo goleiro podem se tornar uma importante forma de começar um momento ofensivo quando explorados corretamente.” Ou seja, pode estar havendo algo errado em priorizar demais o trabalho de defesa, minimizando a prática de lançamentos. “A maioria do treinamento existente e aplicado aos goleiros não oferece esse treino de características ofensivas”, afirma o profissional, cuja pesquisa pode ser referência para treinos.
ESPECIAL
39A3 - Abril a Agosto/2014
ESPECIAL
O professor defende, ao lado de outros pesqui-
sadores e escritores, como Roberto DaMatta
e Nelson Rodrigues (1912-1980), que o futebol,
apesar de ter nascido na Inglaterra, ganhou
identidade brasileira e ainda se mantém como
expressão da cultura nacional. “Percebemos isso
claramente. O cotidiano e o comportamento
do brasileiro são como um jogo para driblar as
adversidades. E a imprevisibilidade do futebol,
em que o fraco pode vencer o forte, é o nosso
jeitinho brasileiro, de contornar aqui e ali. É da
nossa ginga no dia a dia ao gingado em campo”,
afirma. O esporte com sua mistura étnica,
cultural e de classes sociais, seria, conforme o
pesquisador, um retrato com o qual o brasileiro
consegue se identificar. E essas características
são reforçadas pelos meios de comunicação, que
também precisam manter o espetáculo vivo para
obter audiência.
Por isso, não é somente quando a seleção está
em fase ruim, perdendo jogos, que há afasta-
mento do público. O desconforto ainda vem a
partir dos momentos em que a equipe enfatiza
demais a técnica e os resultados, em jogos frios,
como na Copa de 2010, distante do perfil do
brasileiro médio. “O patrocínio de uma multi-
nacional para a seleção levou o time para jogar
no exterior, longe do torcedor, criando também
distanciamento”, acrescenta o professor.
Oportunidades de reaproximação aconteceram
com a Copa das Confederações, em 2013, e novas
devem surgir com o Mundial neste ano no Brasil,
de acordo com Márcio Guerra. O evento ainda
traz a chance de aferir a validade do “comple-
xo de vira-latas” do brasileiro, 64 anos após a
derrota na final da Copa de 1950. A expressão,
criada na época por Nelson Rodrigues, remete ao
hábito da população em se posicionar de modo
inferior diante dos outros povos.
E as mudanças ocorridas na sociedade, ao longo
da última década, foram sendo incorporadas ao
campo de futebol, que também exporta refe-
rências para o público, a exemplo da valorização
da estética e o culto ao corpo pelo brasileiro.
Esses aspectos podem ser detectados no
esporte por meio do fortalecimento do cuidado
com a imagem do atleta, como nos casos de
Kaká e Neymar, transformados em fenômenos
midiáticos. “Sobre Neymar recai mais do que
uma esperança no futebol; o povo brasileiro se
identifica com o seu jeito moleque, seu corte de
cabelo e ‘dancinhas’ para comemorar os gols”,
afirma Guerra. Outro indício do par sociedade-
futebol é o crescimento de 61% na quantidade
de evangélicos no Brasil, na última década,
representando 22,2% dos brasileiros. A mudança
pode ser percebida no gramado. “O futebol
continuou sendo um espaço de conquista de
diversas manifestações religiosas, especialmen-
te dos evangélicos, com jogadores misturando,
nos discursos e gestos, religião e esporte.” Um
dos traços marcantes do brasileiro, dentro e fora
do campo, é sua relação com a música, desde o
grito de torcida e hinos às produções no samba
e pop.
FOOTBYTEQue tal em um domingo ensolarado jogar
footbyte? Não é nova opção em video game ou
mudança no nome do esporte. É a expressão
usada pelo professor da Faculdade de Comuni-
cação, Ricardo Bedendo, para demarcar fortes
mudanças tecnológicas que vêm ocorrendo
dentro e fora dos estádios de football, em
inglês. “Estamos vivendo um momento em que
a tecnologia assume, em boa parte das vezes,
instância majoritária para a compreensão e
tomadas de decisões no jogo, seja por meio
de telões, lentes potentes, recursos gráficos e
mais recentemente a inserção de chip na bola,
ou byte na ball. Na Copa do Mundo, no Brasil, a
inclusão do chip terá seu teste maior”, ressalta
o professor. O novo recurso poderá indicar, por
exemplo, se a bola passou pela linha de gol em
lances duvidosos.
Bedendo discute as mudanças nas formas de
vivenciar o futebol, pautadas pelos avanços
tecnológicos e comunicacionais no que considera
novas “arquiteturas da experiência e do olhar”, a
exemplo de estádios que privilegiam um espetá-
culo para ser visto. Experimente acompanhar um
jogo de times desconhecidos somente pelo rádio
e a reprise da partida na internet ou na TV para
sentir as diferenças de percepção. Como ouvinte,
sua imaginação, capacidade de abstração e o
locutor ajudam. Apesar de, na TV, a narração ser
semelhante à radiofônica, a câmera pode colabo-
rar até quando recupera um lance e mostra de-
talhes do jogo. As tecnologias comunicacionais
e os bytes ampliam a visão do telespectador, em
um “hiper olhar” e “hiper viver” cada segundo de
informação, segundo Bedendo. “A partir desses
avanços, o torcedor tem mais possibilidades de
interferir nas decisões dos clubes, árbitros, jo-
gadores e da própria imprensa, pois tem acesso
a essas tecnologias, pode se manifestar pelas
redes sociais, ter mais subsídios para opinar.”
MAISMarcelo de Oliveira MattaDoutor em Ciências do Desporto pela Universidade do Porto (Portugal); professor da Faculdade de Educação Física da UFJF
bit.ly/marcelomatta
Márcio de Oliveira GuerraDoutor em Comunicação (UFRJ); professor da Faculdade de Comunicação da UFJF
bit.ly/marcioguerra
www.ufjf.br/marcio_guerra
Ricardo BedendoMestre em Ciências Sociais (UFJF); professor da Faculdade de Comunicação da UFJF
bit.ly/ricardobedendo
Núcleo de Pesquisa Comunicação, Esporte e Cultura da UFJFwww.ufjf.br/nupescec
Revista Brasileira de Futebolwww.rbfutebol.com.br
40 A3 - Abril a Agosto/2014
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
Parque Tecnológico coloca a Zona da Mata no mapa da inovaçãoEmpreendimento facilitará o desenvolvimento de negócios inovadores que dinamizem a economia regional e beneficiem a sociedade por meio da promoção de um ambiente de integração entre instituições de ensino e pesquisa, empresas e governo
Zilvan MartinsRepórter
Com a proposta de consolidar na Zona da
Mata Mineira a formação de uma forte e
competitiva indústria baseada no conhe-
cimento, o Parque Científico e Tecnológico da
Universidade Federal de Juiz de Fora se torna
realidade em 2014 com o início das suas obras de
infraestrutura. Depois que for erguido, sua mis-
são será facilitar o desenvolvimento de negócios
inovadores que dinamizem a economia regional
e beneficiem a sociedade por meio da promoção
de um ambiente de integração entre instituições
de ensino e pesquisa, empresas e governo. E a
meta, segundo o secretário de Desenvolvimento
Tecnológico da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF) e um dos responsáveis pelo projeto,
Paulo Garcia Nepomuceno, é ser reconhecido, até
2023, como o melhor ambiente nacional para o
desenvolvimento de negócios inovadores.
O primeiro parque tecnológico do mundo surgiu
nos Estados Unidos, há mais de seis décadas.
O modelo começou a se consolidar no Brasil nos
anos 90. O país abriga hoje, segundo o Minis-
tério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI),
94 parques, sendo 28 em operação, 28 em
implantação e 38 em fase de planejamento, a
maioria nas regiões Sul e Sudeste. A ideia de um
parque tecnológico em Juiz de Fora (MG) surgiu
na última década do século passado. Contudo, o
atual projeto começou em 2006 quando a UFJF
estabeleceu como meta intensificar o relacio-
namento da instituição com os mais diversos
setores da sociedade. A partir daí, começaram
os estudos para identificar mecanismos que
propiciassem à Universidade externalizar suas
competências e, ao mesmo tempo, enxergar as
demandas existentes na sociedade. As pesqui-
40 A3-Abril a Agosto/2014
41A3 - Abril a Agosto/2014
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
sas apontaram que o caminho era a criação de
um parque tecnológico. “Começamos a estudar
as experiências internacionais e brasileiras e
observamos a necessidade de uma série de
condições estabelecidas para que o parque
pudesse ser criado. Encomendamos, então, o
Estudo de Viabilidade Técnica Econômica (EVTE)
do empreendimento que constatou que, além de
viável, atuaria como um dos principais vetores
de desenvolvimento da Zona da Mata Mineira,
provendo a “inteligência”, a infraestrutura e os
serviços necessários ao crescimento e fortaleci-
mento das empresas intensivas em tecnologia”,
explica o secretário.
Além de analisar a dinâmica da economia de Juiz
de Fora e região, suas oportunidades, condições
fiscais oferecidas, logística e Arranjos Produti-
vos Locais (APLs) existentes, o EVTE apontou
um dado importante para a efetivação de um
parque tecnológico: uma fervilhante produção de
conhecimento – não só dentro da UFJF, mas nas
outras seis universidades federais da região –
recurso fundamental para a competitividade das
empresas na economia globalizada.
Para o professor do Departamento de Física
do Instituto de Ciências Exatas (ICE) da UFJF e
assessor do Parque, Paulo Barone, apenas recen-
temente as universidades se qualificaram. “Em
1994, tínhamos menos de 30 doutores na UFJF
e o processo de produção de conhecimento na
instituição era isolado. Hoje temos um terreno
completamente diferente, fértil, com professo-
res mais titulados. Demos um salto significativo
na pós-graduação, passando de três mestrados
para cerca de 50 cursos de pós-graduação. E
com os programas de incentivos à inovação,
41A3-Abril a Agosto/2014
Reprodução do projeto arquitetônico do Parque Científico e Tecnológico da UFJF
42 A3 - Abril a Agosto/2014
com a incubação de empresas, por meio do Critt
(Centro Regional de Inovação e Transferência
de Tecnologia), que foram capazes de trazer
ao terreno da economia alguns dos aportes de
aplicação do conhecimento gerados na UFJF, a
instituição se mostra capaz de catalisar ainda
mais este impulso inovador, por meio do Parque
Tecnológico, dinamizando a economia da região.”
PLANO DE NEGÓCIOS
Quando o Parque Tecnológico começar a operar –
previsto para o primeiro trimestre de 2015 –, terá
um diferencial qualitativo importante em rela-
ção às outras experiências do Brasil: um Plano
de Negócios bem estruturado. Este documento
norteador das ações estratégicas do empreen-
dimento, elaborado por uma equipe multidisci-
plinar, com supervisão da Fundação Dom Cabral,
foi concluído no segundo semestre de 2013 e já é
considerado um dos melhores do país, segundo
a Finep – empresa pública ligada ao MCTI. O
Plano de Negócios foi parte importante de um
projeto que recebeu R$ 4.257.593,01 em uma
chamada pública do Governo federal. Cerca de
40 parques no Brasil participaram da concorrên-
cia, nove foram selecionados, e o de Juiz de Fora
ficou atrás somente da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Unicamp.
O documento também recebeu R$ 900 mil do
Governo de Minas Gerais.
A presidente da Associação Nacional de Entida-
des Promotoras de Empreendimentos Inova-
dores (Anprotec), Francilene Procópio Garcia,
confirma o potencial do Plano de Negócios do
Parque da UFJF, afirmando que os projetos apre-
sentados na chamada pública foram considera-
dos pelo MCTI como altamente qualificados. “Há
um entendimento, por parte do Governo federal,
que os parques alavancam o desenvolvimento
regional e sustentável e, portanto, devem ser
mais do que apenas espaço para instalação de
empresas. Por isso, os projetos selecionados
para receber estes recursos deveriam apresentar
informações bem consolidadas, o que de fato
acabou ocorrendo.”
Durante a elaboração do Plano de Negócios,
várias ferramentas de interpretação foram
usadas. Dados brutos da economia da região
transformaram-se em um quadro analítico
compreensível que contribuirá para consolidar
uma economia baseada no conhecimento, capaz
de aumentar a produtividade, agregar valor e
dar competitividade ao setor industrial, agrícola,
têxtil, moveleiro e a outros serviços já estabele-
cidos na Zona da Mata Mineira.
Outro diferencial do Plano apontado pelo ex-
secretário de Estado de Ciência, Tecnologia e
Ensino Superior de Minas Gerais, Alberto Duque
Portugal, atual consultor do Parque, é o fato
de que a mesma equipe que elaborou o estudo
será responsável por implantá-lo. “Este grupo de
jovens talentos se debruçou sobre a realidade da
região e buscou conhecer as diferentes facetas
da nossa economia e, hoje, sabem onde e como
o Parque deve operar. O processo de elaboração
deste documento foi diferente. Não contrata-
mos um consultor externo, apenas a orientação
metodológica da Fundação Dom Cabral. O de-
senvolvemos com inteligência local, por isso ele
é tão consistente e adequado à nossa realidade.
Esta dinâmica adotada vai ao encontro dos
valores do Parque que tem como uma de suas
premissas a valorização das pessoas.”
ÁREAS DE ATUAÇÃO
Os serviços que serão oferecidos pelo Parque
foram distribuídos em três áreas de negócio
denominadas como Projetos, Imobiliário e
Processo de Incubação. A área de Projetos será
responsável por receber todas as demandas que
chegarem ao Parque, analisar a possibilidade
de realização e, em seguida, encaminhá-las
para o devido setor de negócio. As demandas
intensivas em conhecimento, que não forem
destinadas ao Processo de Incubação ou Imobi-
liário, serão executadas na forma de projeto por
esta área. O setor Imobiliário será destinado às
empresas de base tecnológica e centros de PD&I
que possuem interesse em se instalarem no
Parque e às fornecedoras de serviços e comércio,
alocados em zonas exclusivas, com o intuito de
fornecer suporte às atividades do local. Já a área
de Incubação de Empresas será dividida em três
processos: Pré-Incubação, Incubação e Associa-
ção de Empresas.
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
43A3 - Abril a Agosto/2014
A Incubação de Empresas – processo já realizado
pela UFJF desde 1995 por meio do Critt – é
uma grande oportunidade de novos negócios
entrarem no mercado, transfigurando ideias em
empreendimentos inovadores. Estas novas em-
presas são classificadas como Start-ups, compa-
nhias geradas a partir de ideias ou resultados de
pesquisas que derivam em protótipos, tecno-
logia e, finalmente, produtos. De acordo com o
secretário de Tecnologia da UFJF, a Incubadora
de Base Tecnológica do Critt passará a operar
no Parque assim que este estiver em funciona-
mento. “Do ponto de vista do desenvolvimento
regional, a incubação é um processo fundamen-
tal dentro da filosofia do Parque. Empresas que
nascem em uma determinada região são mais
comprometidas com a realidade local devido às
questões históricas. Contudo, queremos colocar
Juiz de Fora e região no mapa da tecnologia
mundial e, além de captar empresas âncoras,
com inserção internacional, vamos também
dar uma visão global para Start-ups e Spinoffs
acadêmicas locais” destaca Nepomuceno.
Uma destas empresas âncoras já confirmadas
é a portuguesa Nanium Participações Ltda.,
fabricante de semicondutores e fornecedo-
ra de serviços de desenvolvimento, testes e
engenharia. No dia 10 de fevereiro de 2014, em
reunião realizada na UFJF, executivos da Nanium
reafirmaram compromisso de se instalarem no
Parque já no início de 2015. O HidroEX – centro
de capacitação e pesquisa em águas, com sede
em Frutal (MG), que integra o programa hidroló-
gico internacional da Unesco,
também já assinou protocolo
de intenção para instalar um
dos seus núcleos no empre-
endimento, assim, como, o
Instituto de Engenharia de
Sistemas e Computadores
(Inesc), centro de pesquisas
da Universidade do Porto
(Portugal).
ESTRUTURA FÍSICAO Parque Científico e Tecno-
lógico da UFJF está sendo
construído em um terreno
adquirido pela Universidade
de 1.022.000 metros quadrados localizado à
margem direita da Rodovia BR-040, Km 790,
em frente ao Expominas. O investimento total é
de cerca de R$ 100 milhões e a maior parte dos
recursos é proveniente da União. O local contará
com áreas de serviços e comércio e de admi-
nistração. Terá, ainda, restaurante, bar, hotel,
academia de ginástica, agências bancárias e de
comércio exterior.
A área Administrativa e de Apoio abrigará
12 laboratórios, dois auditórios, dez salas de
reuniões, setor de incubação de empresas e
um centro de eventos. A área de Pesquisa e
Produção será o espaço destinado à instalação
de empresas. O Parque conta com certificação
ambiental, podendo construir qualquer tipo de
edificação, sejam centros de PD&I ou produção.
O projeto arquitetônico chama a atenção por ser
inovador, dentro da lógica da construção green
building, envolvendo uma série de questões
de sustentabilidade aplicadas às edificações
empresariais. No momento de planejamento
e execução do projeto urbanístico do Parque
levou-se em consideração o ativo ambiental
existente no terreno como, por exemplo, duas
nascentes localizadas no local.
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
Mapa da Logística
44 A3 - Abril a Agosto/2014
POLÍTICA DE COMUNICAÇÃO E PLANO DE MARKETINGComo o Parque tem o compromisso de alavancar
o desenvolvimento regional, um dos seus maio-
res desafios será a gestão da informação. Ele
terá por obrigação ir ao encontro de empresários
da região no sentido de sondar quais são as
oportunidades, os desafios de caráter de inova-
ção e/ou tecnológico e quais processos e pro-
dutos que poderá impulsionar. Terá o papel de
mostrar novas ideias e tecnologias que surgem e
com isso aguçar o interesse do empresário. Para
direcionar esta comunicação, a UFJF contratou o
jornalista e professor da Universidade Metodis-
ta de São Paulo, Wilson da Costa Bueno, para
elaborar a Política de Comunicação do Parque.
O documento foi concluído em janeiro de 2014
e é o primeiro do Brasil na área de parques
tecnológicos.
Enquanto o Plano de Negócios visa atender
ao conjunto de demandas e expectativas dos
públicos estratégicos do Parque com a oferta de
produtos e serviços adequados, a Política de Co-
municação concentra-se no esforço institucional
O consultor externo Alberto Portugal; o secretário de Ciência e Tecnologia da UFJF, Paulo Nepomuceno; e o professor de Física da UFJF e assessor Paulo Barone
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
para dar visibilidade à sua atuação, buscando,
a partir de canais adequados e competentes
de relacionamento, divulgar as atividades do
empreendimento, captar demandas e percep-
ções dos stakeholders e consolidar sua imagem
e reputação. Esta política orientará o desenvol-
vimento de ações e estratégias que favoreçam
não só a prospecção das demandas do mercado,
em particular das principais cadeias produtivas
que caracterizam a região, mas implementará
canais e estratégias para uma interação perma-
nente, criando laços de relacionamento sólidos e
duradouros que potencializam o crescimento do
Parque e o desenvolvimento regional.
Para Alberto Portugal, um empreendimento
inovador que pretende impactar a economia de
toda uma região precisa, necessariamente, de
uma Política de Comunicação bem definida. “O
ciclo de inovação possui três fases importantes:
saber, querer e poder. Primeiro é necessário
saber que existe uma oportunidade para depois
fazer a decisão política de querer utilizá-la e,
por último, ter capital e gente qualificada para
implementá-la. Mas se não acontecer o primeiro,
não acontece o resto. Neste ponto, a Política de
Comunicação é extremamente importante no
papel de informar o empresário e levar a ele o
que há de mais avançado na área que atua.”
Finalizada esta Política de Comunicação, os
gestores do Parque trabalham, agora, no Plano
de Marketing. No momento, cerca de 540
empresas das regiões da Zona da Mata e do
Sul Fluminense respondem a questionário para
detectar as demandas na área de tecnologia e
inovação. O resultado constará no plano de ação
do empreendimento.
COOPERAÇÃO E GERAÇÃO DE RIQUEZAO Produto Interno Bruto (PIB) da Zona da Mata
Mineira – composta por 142 municípios e uma
população de 2.173.374 – é o quarto de Minas
Gerais, representando apenas 7,29% do que o
Estado arrecada. A região possui 8.937 indús-
trias, sendo 2.384 em Juiz de Fora, com vocação
em confecção, têxtil, produtos alimentícios,
móveis, metalurgia, metal-mecânica, celulose
e papel e construção civil, entre outras. Em Ubá
está localizado o segundo maior polo moveleiro
do Brasil, com cerca de 510 indústrias. Temos,
ainda, Arranjos Produtivos Locais fortes no setor
de confecção, localizados nas cidades de São
João Nepomuceno e Muriaé, além de 189 laticí-
nios dos 960 existentes em Minas Gerais.
Para o presidente da Federação das Indústrias
do Estado de Minas Gerais (Fiemg) – Regional
Zona da Mata, Francisco Campolina, apesar de
nosso PIB ter crescido de 5% para 7,29% nos
últimos cinco anos, a região ainda tem partici-
pação pequena na economia mineira. Campolina
caracteriza este baixo desempenho à falta de
investimentos, principalmente em tecnologia e
inovação. “Não se produz riqueza se não for por
meio da inteligência competitiva. Precisamos
incentivar o espírito empreendedor dos nossos
empresários e o Parque terá papel fundamental
nesta missão. Para exemplificar, cito a produção
leiteira da região que chega a dois milhões de
litros dia. Cerca de 70% deste leite é soro e vai
para o lixo. Se o Parque Tecnológico consegue
realizar uma pesquisa que transforme este soro
em proteína pura para suplementos alimenta-
res, como acontece em outros países, teremos
um ganho importante na economia da Zona da
Mata.”
Outra oportunidade de negócios apontada pelo
presidente é o trabalho de pesquisa na área de
energia eólica realizado pela Energiza – segunda
maior companhia de energia de Minas Gerais. “A
empresa, que fica a cem quilômetros de Juiz de
Fora, montou nas suas dependências um núcleo
chamado Energiza Soluções para pesquisar e
desenvolver energia eólica. Este trabalho poderia
estar dentro do Parque, utilizando toda a estru-
tura oferecida, aliada à expertise de professores
das universidades da região. Esta interação
45A3 - Abril a Agosto/2014
Perspectiva Geral
entre empresas e setor acadêmico é essencial
para criar um ambiente necessário para melhorar
o resultado da nossa economia.”
Dentro desta lógica de transformar conhecimen-
to em produtos, o Parque Científico e Tecnológi-
co da UFJF colocará em prática a interação entre
universidades, empresas e governo, modelo
conhecido como Tríplice Hélice. As universidades
e os centros de pesquisa produzem o conhe-
cimento, as empresas transformam conheci-
mento em produto, ou seja, fazem a inovação,
e o governo motiva a interação entre estes dois
elementos, facilitando e induzindo o diálogo.
Para o reitor da UFJF, Henrique Duque, este é
um dos novos desafios postos às universidades
brasileiras. “A participação no progresso da so-
ciedade, por meio das aplicações tecnológicas do
conhecimento, tornou-se tão relevante quanto
às atividades clássicas associadas às universida-
des. Neste quadro, os desafios para a academia
envolvem a sua participação em atividades
distintas daquelas em que convencionalmente
atua, inserindo o país na economia globalizada
baseada no conhecimento.”
O assessor do Parque, Paulo Barone, afirma que
as universidades brasileiras ainda têm dificulda-
de de compreender a pesquisa de natureza apli-
cada associada a uma agenda de interesse do
país. Segundo Barone, ainda há um preconceito
ideológico em relação à possibilidade de que as
cooperações Universidade-empresa interfiram
nas lógicas internas do trabalho acadêmico e na
autonomia para definir a agenda de pesquisa
institucional. “Esta é uma questão relevante,
que requer a adoção de salvaguardas e deve ser
submetida a restrições de natureza ética. No en-
tanto, é também relevante analisar o que acon-
teceu nos países pioneiros neste processo, onde
a estratégia de indução à colaboração Universi-
dade-empresa não foi adotada em detrimento
das políticas de incentivo à pesquisa básica. E é
desta forma que precisamos começar a trabalhar
aqui. Os pesquisadores das sete universidades
da região não podem enxergar nas lojas do polo
moveleiro de Ubá, por exemplo, apenas possíveis
clientes para uma ideia que surja dentro destas
instituições e que eventualmente poderia ser
aplicada lá. Eles precisam ver as fábricas de
móveis como potenciais criadoras de problemas
que devem ser investigados para gerar aportes
de conhecimento úteis para o polo moveleiro. É
necessário estabelecer uma via de mão dupla. E
este também será um dos papeis do Parque.”
INCENTIVOS FISCAIS
A atuação dos governos também assume caráter
essencial na efetivação do Parque Tecnológico
por meio de mecanismos tributários, regulató-
rios e de proteção às empresas intensivas em
conhecimento. Além dos incentivos fiscais já
concedidos pelo Governo federal, como a Lei da
Inovação, empresas que se instalarem no Parque
da UFJF terão outros incentivos dos governos de
Minas Gerais e Juiz de Fora. O município sancio-
nou, em 2014, a Lei 12.838 que reduz o Imposto
Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN)
de 5% para 2% para as empresas do setor de
Tecnologia da Informação (TI) que se instalarem
na cidade. Segundo o prefeito Bruno Siqueira,
a legislação foi feita pensando principalmente
no Parque Tecnológico, “uma vez que trazendo
empresas de tecnologia para Juiz de Fora vamos
garantir empregos com uma remuneração me-
lhor e, consequentemente, desenvolver o muni-
cípio em uma área em que ainda temos muito
a explorar”. Bruno adianta que a Prefeitura já
está analisando outras legislações que possam
garantir a redução de impostos para empresas
intensivas em conhecimento que se instalarem
na cidade. Esta é a segunda Lei Municipal criada
para beneficiar diretamente ao Parque. A pri-
meira foi sancionada em julho de 2010 (12.099)
que dispõe sobre a inclusão da Área de Especial
Interesse Econômico – AIEIE Parque Tecnológico
– no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano
de Juiz de Fora.
Outra legislação que beneficia diretamente o
empreendimento é a aplicabilidade do Decreto
45.218/09, do Governo de Minas, legislação
utilizada para combater a guerra fiscal com o
Rio de Janeiro. O instrumento legal equipara a
2% o percentual de cobrança do Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Prestação de Ser-
viços (ICMS) a ser arrecadado das indústrias de
Minas ao praticado em cidades próximas à divisa
com o Estado do Rio de Janeiro – por meio da Lei
Estadual 4.533/05, conhecida como Lei Rosinha.
Para o presidente da Fiemg – Regional Zona da
Mata, Francisco Campolina, o decreto, apesar
de não ser abrangente, foi importante para
que mais indústrias não saíssem da cidade. “A
legislação conseguiu estancar as indústrias que
estavam indo embora, trouxe outras empresas,
mas precisamos avançar muito, com legislações
mais modernas”, afirmativa que Paulo Nepomu-
ceno compartilha: “O mundo da inovação e da
tecnologia é muito dinâmico. E para acompa-
nhá-lo precisamos ter uma legislação moderna.
Para isso, estamos estudando junto à Prefeitura
e aos demais parceiros o que existe de legislação
no Brasil com o objetivo de propor algo que seja
realmente inovador e moderno”, garante o secre-
tário de Desenvolvimento Tecnológico da UFJF.
MAIS
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
Plano de Negócios do Parque Científico e Tecnológico da UFJF:
http://www.ufjf.br/critt/parque-tecnologico/plano-de-negocios/
46 A3 - Abril a Agosto/2014
A memória humana em mídia: da arte em pedra ao chip
ENCONTROS POSSÍVEIS
Há alguns meses tenho ensaiado começar um diário. A sensação de deixar se perderem no vento as delícias de passagens cotidianas tem me
atormentado. Até mesmo para o simples registro de dados me pego vacilando, por exemplo, ao encontrar ex-alunos pela rua: “Oi, Fred!”. “E aí,
moça?!” - é o que devolvo, para não errar. Isso se agrava ao lembrar que quando criança construí no meio familiar uma razoável fama de garoto
com “boa memória”. Sabia de cabeça escalações de times de futebol, países e capitais, datas de aniversário de parentes não muito próximos, números de
telefone. Esse tipo de habilidade, porém, já não parece fazer tanto sentido (faz?). Tudo, uma vez armazenado, pode ser encontrado rapidamente numa
pesquisa na internet, em infinitos bancos de dados ou arquivos pessoais digitais. E o que fazer com a nossa memória?
Em passagem pelo Brasil, para vários eventos, a chefe do Departamento de Cultura, Mídia e Indústrias Criativas da King’s College de Londres, Anna Re-
ading, expôs conceitos e pesquisas que fundamentam a discussão acerca da memória na atualidade, em face do contexto digital. Em Juiz de Fora (MG),
no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), conversou com a revista “A3”, em entrevista conduzida por
mim e pela diretora do Mamm, Nícea Nogueira.
- Fred Belcavello: Como as tecnologias digitais
vêm impactando a noção de memória, as práti-
cas e formas de linguagem?
- Anna Reading: Penso que a memória digital
ou o que chamaria de memória “globital”, a
qual está relacionada com a digitalização, as
práticas digitais e a globalização, está alterando
radicalmente a memória humana de diversas
maneiras. Primeiro, em termos das práticas nas
quais estamos envolvidos, que largamente já se
tornaram inconscientes. Assim, por exemplo, se
você esquece o nome de alguém e precisa enviar
um e-mail, você pode acessar seus arquivos
digitais e localizar o nome e o e-mail por meio
de uma pesquisa. E isso não é muito diferente
do processo utilizado para armazenar aquela in-
formação anteriormente. Também significa, em
termos de processos educacionais, uma vez que
há tecnologias digitais e conectividades, não en-
sinar crianças nas escolas a memorizar grandes
calhamaços de poemas, literatura, ou datas e
acontecimentos históricos. Trata-se muito mais
de “o que fazer com aquela informação” do que
ensinar crianças a decorar, porque a informação
está em todo lugar, e o conhecimento está lá,
em algum lugar da “nuvem”, para ser acessado
por nós. Isso também significa que a linguagem
atual e as metáforas que usamos para descrever
nossas memórias mudaram. Assim, influencia-
dos pelos softwares que usamos, falamos em
“googar” coisas, por exemplo.
- Fred Belcavello: Você se preocupa com os prós
e os contras da memória digital?
- Há grandes benefícios que a memória digital
nos traz. Um deles é a capacidade de mudar as
relações de poder, no sentido de grupos privados
de direitos - minorias - capturarem memórias
que, por algum motivo, tinham se perdido.
Há uma pesquisa que faço, em websites, para
capturar memórias da comunidade romena,
da comunidade cigana na Europa. Trata-se da
maior etnia minoritária, somando 11 milhões de
pessoas, em 21 países europeus. Mas os ciganos
estão em todo lugar, porque foram forçados a
migrar. Assim, há ciganos na Austrália, na Amé-
rica Latina, na América do Norte. E é realmente
interessante perceber como eles podem capturar
em vídeo danças, poemas, elementos de cultura,
histórias... e há passagens horrendas, relaciona-
das com o holocausto. E essas histórias podem
se conectar de maneiras novas e contribuem
para mudar a autopercepção do povo romeno.
Isso muda sua identidade, de maneira muito
positiva.
- Fred Belcavello: E os contras?
- Acho que os contras estão relacionados a
quanto tempo nós gastamos olhando para telas.
E isso me preocupa. Muitas vezes me pego com
a TV ligada, iPhone em uma mão, iPad ao colo.
Com quantas telas podemos nos relacionar de
uma só vez?! E penso que isso se estende para
o fato de que devemos, também, lidar com tec-
nologia analógica. Outro fragmento de pesquisa
que realizo, por exemplo, observa um grupo de
protesto na Malásia que promove campanha
contra uma companhia de mineração. Os mani-
festantes acreditam que a empresa pode causar
poluição e radiação. Ao longo das negociações,
a companhia permitiu a entrada dos manifes-
tantes no local, mas proibiu que tirassem fotos
- digitais - do relatório que a empresa preparou,
detalhando o que faria com o lixo produzido. O
que os manifestantes fizeram? Usaram lápis e
papel! Era um grupo de 30 pessoas, que perma-
neceram no local por uma hora, escreveram o
máximo que puderam e, assim, conseguiram os
documentos que precisavam. Então, acho que
“O ato de performance de certas memórias, a performance de canções, a leitura de um livro ‘material’, o aprendizado de um poema, ainda penso serem cruciais como valores de humanidade”
Fred BelcavelloTradução e texto
47A3 - Abril a Agosto/2014
ENCONTROS POSSÍVEIS
tecnologias digitais podem atuar como fantásti-
cos facilitadores para memórias, particularmen-
te para culturas marginalizadas, mas o ato de
performance de certas memórias, a performance
de canções, a leitura de um livro “material”, o
aprendizado de um poema, ainda penso serem
cruciais como valores de humanidade.
- Nícea Nogueira: Por que a globalização é
fator primordial nas discussões sobre memória
digital?
- Acadêmicos trataram globalização e digitaliza-
ção como independentes, por um longo período.
E a maneira que considero em minhas pesqui-
sas, particularmente nas relativas a telefones
celulares, concluiu que ambas trabalham juntas.
Assim, tem-se digitalização e globalização como
dinâmicas sinergéticas que estão mudando a
memória humana. “Globital” é a palavra que criei
para descrever isso, juntando “global” e “bit”, a
menor sequência contígua de dados em compu-
tação. “Globital” sugere que o processo de aces-
so às tecnologias digitais, múltiplos telefones,
múltiplos tablets, não é o mesmo para todos no
planeta; “Globital” é para sugerir que se trata de
um processo desigual, experimentado diferen-
temente por diferentes populações nos estados
nacionais, em termos de classe. Classes sociais
significam acessos sociais, e, possivelmente,
isso vale também para gêneros e etnias.
- Fred Belcavello: Por que você diz que a me-
mória é fluida, polilógica e performativa?
- Por muito tempo, particularmente no que
tange às explanações sociológicas sobre
memórias coletivas, os estudos eram feitos,
frequentemente, dentro do contexto dos esta-
dos nacionais e do senso de memória nacional.
E esse senso de memória era amarrado e fixo e,
geralmente, direcionado a um objeto de análise
para o qual poder-se-ia “olhar para” - analisar
um museu particular, por exemplo, em termos
dos seus artefatos e exposições; ou a captura de
histórias de um povo específico. Mas, novamen-
te, esse tipo de pesquisa fixa os objetos. O meu
ponto de vista é o de que a memória não é algo
fixo; ela está sempre mudando. Esta entrevista
[gravada em vídeo], assim que for publicada na
internet, será - espero - “tuitada”, segmenta-
da, reutilizada. E isso, na minha visão, é bom.
Permite-nos escapar dentro da “rede”, de uma
maneira que, anteriormente, seria muito mais
lenta para mudar as “memórias em mídia”.
- Nícea Nogueira: Como você explicaria o con-
ceito de “memória em mídia”?
- Acho que “memória em mídia” é um conceito
muito importante. Trata-se de pensá-lo em
três diferentes formas: uma, em termos do que
“Muitas vezes me pego com a TV ligada, iPhone em uma mão, iPad no colo. Com quantas telas podemos nos relacionar de uma só vez?! E penso que isso se estende para o fato de que devemos, também, lidar com tecnologia analógica”
48 A3 - Abril a Agosto/2014
ENCONTROS POSSÍVEIS
chamaria de orgânico, é o corpo, o corpo humano
em várias formas. E, em seguida, temos o dado,
o dado digital que pode ser dividido em dois: há
o vegetal - papel, livros etc. - e há a memória mi-
neral. A memória mineral, é claro, está presente
nos computares, em forma de silício, ouro, nos
conectores e nas conexões. Esses três diferentes
tipos de memória têm longa história. Eu vivi por
quase dois anos na Austrália, e foi importante
para mim em termos de me encontrar com a
longevidade da “memória em mídia” aborígene.
Há exemplar de arte em pedra na Austrália de
50 mil anos e foi constantemente escoriado
por todo esse tempo. Aquilo é “memória em
mídia”, é o senso de primeira “memória em
mídia”. Existem seres humanos fazendo arte em
pedra, canções, danças. E, atualmente, temos
diferentes formas de “memória em mídia”, que
são imagens em iPads, websites, bem como na
grande mídia tradicional, como jornais, livros,
televisão etc. Eu incluiria, ainda, em termos
de elementos da “memória em mídia”, como
elementos materiais, espaços e edifícios. Uma
das coisas que me marcaram no meu curtís-
simo tempo aqui no Brasil é o significado da
arquitetura. Existem edifícios realmente belos,
alguns estupendos arquitetos brasileiros com
esse senso de um edifício como um espaço de
memória por um longo tempo que está por vir.
São os espaços pelos quais nos movemos que
realmente importam. Eles também são “memó-
ria em mídia”.
-
Fred Belcavello: O que é “memobilia” e quão
importantes são os telefones celulares para a
memória digital?
- Os celulares são realmente importantes para
a memória digital, para a memória humana,
atualmente. A grande diferença é que pode-
mos colocá-los no bolso, na bolsa, eles vivem
conosco. E, sejamos francos, quando não os
temos conosco nos sentimos ansiosos! Eu fiz
um estudo com alunos da London Southbank
University - instituto no qual trabalhava na
época - que disseram que quando não tinham
os celulares consigo sentiam-se nus, solitários,
ansiosos, e poucos deles, curiosamente, apon-
taram se sentirem livres. Portanto, esse é o tipo
de sentimento misto que temos com nossos
celulares. Entretanto, eles são uma “prótese de
memória vestível” e carregam memórias tão
mundanas quanto “lembre-se de trazer pão”,
que pedimos aos nossos companheiros no ca-
minho de casa por meio de mensagem de texto,
e isso permanece lá por muito tempo, assim
como “eu te amo” e muitas outras mensagens,
misturadas, todas juntas. E há as imagens que
temos nos celulares. É interessante perceber
como as pessoas compartilham imagens de
suas famílias nos locais de trabalho, porque as
imagens estão nos seus celulares. Não faríamos
isso há 20 anos. Não levaríamos nosso álbum de
família para o trabalho, mas, rapidamente, com-
partilhamos imagens nos nossos celulares. Essa
tecnologia provê um tipo de espaço protegido
que faz com que não haja problema em mostrar
“Onde estão aqueles espaços de memória autorreflexivas que acreditávamos serem privados? Onde poderemos externar os pensamentos privados que não diríamos a ninguém mais?”
Em passagem pelo Mamm, Anna Reading se encantou com a exposição “Um olhar livre”, do lituano Antanas Sutkus, um dos maiores fotógrafos da antiga União Soviética
49A3 - Abril a Agosto/2014
o celular. Portanto, ele é muito importante. E o
que também mudou é a conectividade. O fato de
que mais espaços, atualmente, sejam pontos de
conexão, cobertos por rede wi-fi, significa que,
rapidamente, podemos publicar em redes sociais
as imagens que capturamos, acessar arquivos
de informação etc. Assim o que se tem são as
“memobilias” - representadas, por exemplo, por
jovens fotografando “selfies” (imagens de si
mesmo), trocando-as ao longo do dia infinita-
mente, publicando-as, preocupando-se com
essas imagens. E há, ainda, o que eu chamaria
de “wemobilia”, aquelas memórias que podemos
ter em situações coletivas.
No Brasil, poderia ser o carnaval: você tira fotos
do carnaval e compartilha; poderia ser o futebol.
Mas temos, ainda, “wemobilia” no caso de
imagens que testemunham atrocidades. Quando
ocorreram os atentados a bomba em Londres
em 2005, a primeira coisa que muitas pessoas
fizeram foi pegar o celular e tirar fotos, porque
os jornalistas não estavam nos locais atingidos,
ainda. Vemos mais e mais na dinâmica das gran-
des empresas de notícias o uso de imagens de
telefones celulares que, por sua vez, tem prazo
de validade muito curto. A pesquisa que fiz
sobre esse evento mostra que as imagens dos
atentados a bomba em Londres desapareceram
cinco anos depois. Portanto, elas não permane-
cem, e o que se tem no lugar são memoriais físi-
cos para as atrocidades e mortes, túmulos, que
continuam importantes. Todavia, os celulares
são, ainda, os reis em termos de serem capazes
de, instantaneamente, capturar memórias de
eventos e compartilhá-las.
- Fred Belcavello: Nesse contexto, o que acon-
tece com os limites entre a memória pública e
a memória individual?
- Essa é uma área mais problemática em face da
conectividade. Acho interessante, por exemplo,
que muitos pais optem por colocar imagens de
seus filhos no Facebook. Eu tenho dois filhos e a
política na nossa família é de que não publica-
mos fotos deles, porque eles não podem consen-
tir. Quando eles completarem 18 anos, poderão
consentir. Fora isso é caso a caso.
Uma biografia on-line, sobre à qual crianças não
têm controle algum, é muito diferente de ter
um álbum de família, no qual há imagens das
nossas crianças compartilhadas por familiares.
Outra mudança interessante se dá pelos blogs
e o deslocamento de um diário privado para a
escrita para terceiros, o que significa sempre
estar em diálogo com outro. Isso pode ser bom,
e também mau. Onde estão aqueles espaços
de memória autorreflexivas que acreditávamos
serem privados? Onde poderemos externar
os pensamentos privados que não diríamos a
ninguém mais? Assim, penso que há grandes
deslocamentos em termos do privado e do públi-
co que ainda estão por chegar a uma definição.
Não sabemos ainda o impacto para nós, como
seres humanos.
- Fred Belcavello: Quais as implicações da
adoção do sistema de nuvem como o princi-
pal modelo de arquivamento de informação
digital?
- O sistema de nuvem é interessante, em certa
maneira, até mesmo a metáfora por si só: é va-
poroso! Sugere que não está em lugar nenhum,
que a memória não está alojada em lugar ne-
nhum, e que não precisamos nos preocupar com
isso. Entretanto, nós nos preocupamos, porque
não sabemos onde estão. E o fato que importa
é que a nuvem não é uma nuvem. A nuvem é
uma fábrica. A nuvem é feita de vastas fábricas,
habitualmente em zonas rurais, porque são ne-
cessárias grandes extensões de terra para arma-
zenar essa informação. Alguns sites, Google, por
exemplo, são tão grandes em termos de área,
que dão aos empregados bicicletas para que eles
possam circular. E a nuvem também consome
muita energia elétrica e outros recursos mate-
riais. Frequentemente, as empresas estão em
tensão com comunidades locais, já que muitas
se instalam em cidades pequenas, porque os
terrenos são mais baratos, e, então, isso muda o
ambiente. Dessa forma, há condições materiais
inerentes à nuvem para as quais o usuário do
sistema também precisa ser alertado.
- Nícea Nogueira: Qual seria seu conselho para
um museu como esse, o Mamm, para preservar
em mídia digital sua coleção de literatura e
arte?
- Durante meu curto período na Austrália,
fiquei impressionada com o que o Governo fez
em termos do desenvolvimento do sistema
chamado “Trove”. Ele digitaliza objetos de uma
maneira particular que permite acessá-los a
partir de diferentes arquivos locais, permite que
as plataformas estejam conectadas. O grande
problema para a informação digital é, primeiro,
a longevidade. Frequentemente, digitalizamos
materiais sem o senso de como vamos reali-
mentá-los no futuro, porque eles vão requerer
realimentação no futuro. O outro problema são
as conexões entre os recursos. Assim, a melhor
maneira é fazer parte de um sistema que não
tenha apenas as coleções do seu museu, mas de
todos os museus pelo Brasil afora.
“Há condições materiais inerentes à nuvem para as quais o usuário do sistema também precisa ser alertado”
Anna Readinghttp://www.kcl.ac.uk/artshums/depts/cmci/people/academic/reading/index.aspx
http://annareadingarchive.com/
Confira a entrevista na íntegra: www.youtube.com/tvufjf
Confira a exposição “Um olhar livre”, do fotógrafo lituano Antanas Sutkus: http://www.museudeartemurilomendes.com.br/exposicoes/antanas/antanas.html
MAIS
ENCONTROS POSSÍVEIS
“A linguagem atual e as metáforas que usamos para descrever nossas memórias mudaram. Assim, influenciados pelos softwares que usamos, falamos em ‘googar’ coisas, por exemplo”
50 A3 - Abril a Agosto/2014
Carolina NalonRepórter
DISSERTAÇÕES
As modificações no trajeto do Paraibunaao longo dos séculosLevantamento historiográfico feito pela mestre Camila Brasil relaciona o crescimento de Juiz de Fora às interferências no traçado do rio e abre debate sobre sua revitalização
Estabelecida ainda na antiguidade, a relação
entre rios e cidades vem sofrendo com
a urbanização um grande desgaste - de
essenciais para o desenvolvimento do tecido
urbano, os rios tornaram-se elementos de
ruptura, fontes de conflitos e deterioração
ambiental. Em Juiz de Fora (MG) não foi
diferente. O rio de águas escuras que corta a
cidade, o Paraibuna, mudou muito. Seus níveis
de poluição são preocupantes, não há mais
peixes e seu traçado foi alterado de forma
bastante significativa, tornando suas curvas
suaves e ajustadas ao concreto. O plano da
natureza, contudo, era outro e pode ser visto
na ilustração abaixo, elaborada com base em
estudo feito pela pesquisadora Camila Brasil.
Interessada no resgate desse patrimônio, a
mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Ambiente Construído da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF) realizou um levantamento
histórico sobre o traçado do rio por meio de
mapas antigos, planos diretores municipais,
jornais, revistas e livros. Como em um quebra-
cabeça, transformou cada parte no todo,
desenhando como seria o natural curso d’água
no século XIX e suas posteriores alterações pelo
homem. Na dissertação, também evidenciou as
implicações, tanto positivas quanto negativas,
dessas intervenções, chamando atenção para a
importância de um planejamento que minimize
os impactos no meio ambiente. Segundo a
autora, o trabalho é inédito. “Há obras que
tratam sobre as inundações em Juiz de Fora
e muitas outras sobre a poluição das águas,
mas nenhuma delas reúne as modificações do
traçado.”
50
51A3 - Abril a Agosto/2014
DISSERTAÇÕES
Para seu orientador, o professor da Faculdade
de Engenharia da UFJF, José Alberto Barroso
Castañon, a dissertação tem enorme valor no
que diz respeito à recuperação de informações
esquecidas ou perdidas da história de Juiz de
Fora e, principalmente, à grande influência do
rio Paraibuna no desenvolvimento da cidade. “O
trabalho de Camila foi extremamente minucioso,
retomando períodos e informações nebulosas,
clareadas por ela.”
As intervenções no Paraibuna foram sempre
pautadas pela tentativa de se evitar as
enchentes e, apesar de promoverem grandes
benefícios para a população, hoje iriam de
encontro aos modelos urbanos e paisagísticos
ideais para as cidades. A preservação da
paisagem natural, além de contribuir com a
qualidade de vida, constrói uma identidade
própria do lugar. “Sabemos que não é mais
aceitável pensar em retificar um rio, revestir seu
leito vivo com calhas de concreto, e substituir
suas margens vegetadas por vias asfaltadas,
como uma alternativa de projeto para sua
inserção na paisagem urbana”, explica a autora
no trabalho.
Ainda de acordo com Camila, Juiz de Fora
adaptou o rio às suas necessidades, crescendo
sem integrá-lo como elemento dinâmico da
paisagem. Ela acredita que estudos de memória,
como o dela, podem ser capazes de despertar
o olhar da população e do poder público para o
protagonismo do Paraibuna. “Grande parte das
pessoas que passa pelas margens não percebe
seu significado histórico, econômico e social para
a formação da cidade.”
O PASSADO NA CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM DE HOJEO texto da dissertação atravessa os três séculos
relacionando as transformações do Paraibuna
ao crescimento da cidade. Mapas de ocupação
da região, desde os primeiros assentamentos
após a abertura do Caminho Novo (1707) até
os dias atuais, foram elaborados por Camila
com o sentido de evidenciar como a mancha
urbana se estabeleceu ao longo do vale. Com as
construções da Estrada União Indústria (1861) e
da Estrada de Ferro D. Pedro II (1875), a mancha
passa a se adensar, caminhando em direção às
montanhas que cercam Juiz de Fora e também
em direção à Zona Norte, cuja população deu um
grande salto nas décadas de 1960 e 1970.
O estudo não poderia deixar de contextualizar
os momentos econômicos e sociais de cada
época para justificar as alterações do curso
d’água. As primeiras delas foram observadas
ainda em 1884, quando se inicia o período
de industrialização da cidade. Intervenções
corretivas foram promovidas com o intuito de
solucionar os problemas urbanos de saneamento
e os grandes pontos de alagamentos, já que
Juiz de Fora sempre foi uma região bastante
pantanosa. Aos poucos, essas áreas alagadiças
foram aterradas, dando lugar às novas fábricas e
às residências de trabalhadores recém-chegados
à “Manchester Mineira”. Um dos exemplos é
o local onde hoje se encontra a Praça Antônio
Carlos e a Praça do Canhão (1). Bem próxima
a um grande meandro do rio, a área sofria
regularmente com suas cheias, sendo aterrada
e vendida aos comerciantes da época por baixo
custo.
A primeira tentativa de um plano diretor do
município aconteceu em 1893, quando a Câmara
Municipal encomenda ao engenheiro francês
Gregório Howyan o Plano de Saneamento e
Expansão da Cidade de Juiz de Fora. Na época,
o transbordamento das águas dos rios, em
conjunto com as chuvas, causavam alagamentos
nas áreas centrais da cidade. Como era costume
jogar o esgoto nos cursos d’água, os dejetos
se misturavam com as águas transbordadas
gerando graves quadros de doenças. A proposta
não pôde ser colocada em prática de imediato
e os alagamentos continuaram frequentes até
que uma grande inundação em 1940 motivou a
elaboração de um novo plano - o de Defesa de
Juiz de Fora contra as Inundações do Paraibuna.
As medidas planejadas para modificar o
51
52 A3 - Abril a Agosto/2014
DISSERTAÇÕES
rio dentro do perímetro urbano incluíram
dragagem, desmonte de rochas, escavações,
aterros, proteção das margens, reconstrução
e alargamento de pontes, desvio da Rodovia
União Indústria e desapropriações. Também
em 1940 tem início o projeto de construção da
Avenida Brasil (2), localizada às margens do
rio e chamada na época de Avenida Paraibuna.
Para a retificação do rio e construção da via,
diversas propriedades foram desapropriadas,
fazendo com que as margens tivessem uma área
de respiro. As mudanças, segundo a pesquisa
de Camila, faziam parte do idealismo de um
novo centro urbano, com avenidas e praças
ajardinadas. Na década seguinte, em 1950, as
intervenções tiveram prosseguimento com a
conclusão da Variante Howyan (3), prevista
pelo engenheiro francês ainda no século XIX. O
amplo canal, que altera uma das curvas do rio,
é reforçado com paredes laterais calcadas de
pedra e percorre os bairros Costa Carvalho e Poço
Rico.
Já entre os anos de 1960 e 1970, as modificações
ficam mais restritas à Zona Norte, com o
estabelecimento de novas fábricas no local.
Diversos pontos foram desviados e aterrados,
principalmente ao longo dos bairros Jóquei Clube
(4) e Distrito Industrial (5). Neste último, as
correções atingem cerca de 30 quilômetros e
visavam regular a vazão de água da barragem
Chapéu D’Uvas. Até hoje acontecem inundações
do Paraibuna na Zona Norte.
A autora cita ainda inúmeras obras, do
passado e contemporâneas, que contribuíram
para a configuração urbana da atual Juiz de
Fora. Outros personagens também têm sua
Camila Brasil: “Há obras que tratam sobre as inundações em Juiz de Fora e muitas outras sobre a poluição das águas, mas nenhuma delas reúne as modificações do traçado do rio Paraibuna”
Em seu trabalho, a pesquisadora também evidenciou as implicações, tanto positivas quanto negativas, dessas intervenções, chamando atenção para a importância de um planejamento que minimize os impactos no meio ambiente
53A3 - Abril a Agosto/2014
DISSERTAÇÕES
Camila Campos Grossi BrasilMestre em Ambiente Construído pela UFJF; especialista em Gestão do Patrimônio Cultural pela Faculdade Metodista Granbery;
arquiteta e urbanista pela UFJF; atualmente é analista de projetos da Secretaria de Atividades Urbanas da Prefeitura de Juiz de Fora
Leia a dissertação em http://migre.me/hwqPR
http://lattes.cnpq.br/3583202035257735
millagrossi@gmail.com
MAIS
importância registrada, como os engenheiros
Francisco Saturnino Rodrigues de Britto e
Lourenço Baeta Neves, que propuseram em
1915 o Plano de Saneamento de Juiz de Fora;
Francisco de Paula Bicalho, responsável por
dar prosseguimento ao plano de Gregório
Howyan; e Itamar Franco, que promoveu a
canalização do córrego central, transformado-o
em via: a Avenida Independência, atual Avenida
Presidente Itamar Franco (6).
Para a pesquisadora não há dúvidas de que
Juiz de Fora e o Paraibuna seriam bastante
diferentes sem as intervenções. “O processo
de crescimento da cidade altera diretamente
a hidrologia, a morfologia e a qualidade da
água, afetando toda uma estrutura das
funções do rio. E, por outro lado, sem as
modificações, a distribuição dos efluentes ficaria
comprometida e a disposição dos logradouros,
da mancha urbana, teria outro formato. É a
proximidade com o curso d’água que direcionou
a configuração espacial da cidade ao longo da
história.”
PERSPECTIVASO estado do rio Paraibuna hoje é crítico,
justamente no trecho em que ele passa por Juiz
de Fora. Seu Índice de Qualidade da Água (IQA),
que leva em conta fatores como oxigenação,
temperatura, presença de coliformes e resíduos,
é considerado ruim e está na faixa entre 26
e 50. Para ser classificado como bom, o IQA
deveria ser superior a 70. A mesma realidade
atinge grande parte dos rios do país. O rio das
Velhas, que cruza Belo Horizonte, possui 800
quilômetros de área degradada, contando com
esgoto de 2,3 milhões de pessoas, lixões nas
suas margens, areais clandestinos e ocupação
irregular. Além do esgoto, o rio das Velhas possui
um alto índice de substâncias tóxicas, segundo o
Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam).
O Tietê, em São Paulo, apesar de ainda em
condição bastante ruim, começa a colher
resultados do plano de revitalização iniciado em
1992. Duas das quatro fases do projeto já foram
executadas, permitindo a redução de cerca de
160 quilômetros na mancha de poluição e o
reaparecimento de peixes em trechos afastados
do centro. A intenção é que o índice de coleta e
tratamento do esgoto chegue a 100% em 2024.
Exemplo mundial, a revitalização do
Cheonggyecheon, que corta a cidade de Seul
(Coreia do Sul), demorou bem menos que isso
para ser concluída. Em apenas quatro anos, foi
possível promover a despoluição do rio, retirar
uma autoestrada construída para cobrir seu
curso, criar parques e recuperar grande parte
da vegetação. As obras, além de devolverem
a região aos moradores, contribuíram para
modificar até mesmo a temperatura de Seul
que, na área revitalizada no canal, caiu em média
3,6°C em relação a outros locais da cidade. Para
o professor José Alberto Castañon, já existe uma
consciência global de que não há sobrevivência
das metrópolis sem a participação de seus rios.
Resguardadas as devidas proporções, Juiz de
Fora pode caminhar neste sentido, se houver
um esforço contínuo das gestões municipais,
tornando o Paraibuna uma prioridade da agenda
política. Criado em 2006 e com orçamento atual
de R$ 130 milhões, o Programa de Revitalização
Urbana e Recuperação Ambiental do rio
Paraibuna passou por várias interrupções, mas
pode este ano tomar corpo com a instalação de
redes interceptadoras e a construção de uma
nova Estação de Tratamento de Esgoto (ETE),
na região Sudeste. A previsão é de que, em dois
anos, seja possível aumentar de 10% para 65%
o índice de esgoto tratado na cidade e, em cinco
anos, chegar à totalidade do tratamento.
Em uma segunda etapa, ainda sem data
definida, o projeto prevê a revitalização
paisagística e o reflorestamento das margens
do rio em 20 quilômetros lineares - um grande
ganho em qualidade de vida para a população
que já adota as calçadas estreitas e irregulares
de suas margens para a prática de corrida e
caminhada. “É chegada a hora de começarmos
a ver o Paraibuna, não só como partícipe do
esgotamento dos efluentes, mas, também,
como um ‘ser vivo’ e componente da cidade, tão
importante que, sem ele, a cidade não existiria”,
avalia o professor Castañon.
É esta também a percepção da pesquisadora
Camila Brasil. Para ela, é importante que
a população esteja envolvida no projeto
de revitalização, entendendo seu papel na
preservação do meio ambiente. “A ação
integrada do poder público, de técnicos,
ambientalistas e da população faz-se não só
urgente, como imperativa. Sem a articulação
dos muitos atores que têm interesses e
preocupações diversas sobre o espaço urbano,
deixaremos que muitos rios urbanos percam sua
função primordial de alento à vida comunitária
para serem vistos como vilões numa história em
que são mais vítimas do que algozes.”
As intervenções no Paraibuna foram sempre pautadas pela tentativa de se evitar as enchentes e, apesar de promoverem grandes benefícios para a população, hoje iriam de encontro aos modelos urbanos e paisagísticos ideais para as cidades
54 A3 - Abril a Agosto/2014
Quando viveremosem ecocasas?
serviços durante toda a vida útil, e pelo valor agregado devido à iniciativa
sustentável. Infelizmente, ainda falta a percepção do governo, empresários
e consumidores quanto à recuperação do investimento em uma residência
desse tipo.
Na vanguarda das construções sustentáveis, países como Alemanha, Reino
Unido e Estados Unidos já perceberam esse retorno há anos. Segundo
dados do governo, até junho de 2013, o Reino Unido havia lançado cerca de
200 mil casas sustentáveis. O governo britânico é o principal investidor em
tecnologias ecológicas, buscando diminuir sua dependência em combustíveis
fósseis, além de garantir a disponibilidade futura de recursos naturais.
Nosso país começa hoje a ver as sementes de mudança. Podem-se citar
os novos Planos Diretores Sustentáveis das cidades de Curitiba (PR) e
Florianópolis (SC), a instalação de painéis solares em alguns conjuntos
habitacionais do programa Minha Casa Minha Vida, e a certificação
ecológica de edifícios nas grandes cidades desde 2004, como evidência que
engatinhamos na direção certa. Em Juiz de Fora (MG), foi lançado o Projeto
Vila, pela ONG Onda Solidária, que busca desenvolver um modelo de vila
ecológica focada no desenvolvimento ambiental e social da comunidade.
O Brasil possui enorme potencial sustentável, ainda dormente. Liderança e
subsídios por parte do governo brasileiro estão em falta, e são fundamentais
nessa etapa do desenvolvimento sustentável. É ainda, necessário que a
indústria da construção civil abrace a causa, deixando para trás sua atual
filosofia de lucro-máximo-a-qualquer-custo. Principalmente, é necessária
uma mudança na mentalidade do brasileiro: nossos recursos naturais são
finitos e insubstituíveis. Assim, com educação e incentivo certos, poderemos
construir nossa casa sustentável muito em breve.
As habitações sustentáveis ou ecocasas utilizam recursos naturais
mais responsáveis e eficientes, em comparação com as construções
convencionais. A incorporação de práticas sustentáveis é feita em
todas as fases: concepção, construção, operação e demolição. Em um alto
nível de aperfeiçoamento, a residência pode até mesmo ser construída
autossuficiente. Alguns benefícios da implantação de tecnologias
sustentáveis são: redução no consumo de energia elétrica, água e insumos;
diminuição do custo de operação da casa; e preservação dos recursos
naturais para as gerações futuras.
Por definição, as habitações sustentáveis se comprometem a consumir o
mínimo possível de recursos energéticos e hídricos; utilizar materiais de
construção de proveniência certificada; garantir reciclagem e descarte
adequados do lixo; não poluir o meio-ambiente; e zelar pela biodiversidade
local. O conforto e o bem-estar dos moradores, bem como a acessibilidade,
são aspectos fundamentais na concepção de uma residência sustentável.
Em conjunto, as habitações sustentáveis dão origem às vilas sustentáveis.
Além do benefício individual de cada unidade, as vilas compartilham serviços
prestados e rateiam custos como usinas de compostagem, drenagem
sustentável, aquecedores solares e centrais de água. Mas com todas essas
vantagens, por que não moramos todos em ecovilas hoje?
No Brasil, as iniciativas sustentáveis são individuais e esparsas.
Atualmente, a maior desvantagem do processo de construção de uma
residência ecologicamente responsável é o preço. As soluções sustentáveis
não estão disponíveis em larga escala no mercado doméstico: muitas são
patenteadas e/ou importadas e requerem mão de obra especializada. O
alto custo inicial é, entretanto, compensado com a redução nas contas de
Julia Castro Mendes*
* Estudante do 10º período de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFJF, venceu o concurso de redação do Grupo de Educação Tutorial (GET) do curso, realizado em 8 de
novembro de 2013
INICIAÇÃO CIENTÍFIC A
55A3 - Abril a Agosto/2014
Intermidialidade: invenção e descoberta de novos processos de linguagem
fenômenos representam “laboratórios de experimentação” de linguagem
envolvendo novos tratamentos de “velhos processos”, em novos meios. A
ideia de que tais fenômenos podem representar a invenção ou a descoberta
de novos processos deve estar relacionada à “desautomatização de hábitos”
de leitura e de padrões interpretativos. Mas tal ideia merece ainda uma
exploração mais cuidadosa, e temos trabalhado nisso.
Recentemente iniciamos, no Instituto de Artes e Design (IAD) da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em colaboração com o Programa
de Pós-graduação de Estudos Literários, por meio de Daniella Aguiar, um
núcleo de produção dedicado à intermidialidade e tradução intersemiótica
(http://www.ufjf.br/traducaointersemiotica/). Este grupo é constituído
por alunos de graduação, pós-graduação, professores da UFJF e de outras
instituições brasileiras e estrangeiras. Como informamos no website, o
“grupo dedica-se à exploração de teorias sobre tradução intersemiótica e
fenômenos de intermidialidade e à produção criativa de traduções, em
diversos domínios.” Trata-se de um grupo em fase inicial de produção, mas
já se encontram em fase intermediária de tradução, autores como Borges,
Chao Yuen Ren (Imagem 2), Edgar Poe, Gertrude Stein e outros.
Pintura, dança, música, literatura ... tais “formas artísticas”, que
reconhecemos como independentes, são estudadas por domínios
também mais ou menos independentes. Historicamente separados,
identificamos esses domínios como “departamentos” e seus objetos como
“expressões artísticas”. Não nos confundimos ao atribuir o termo “cinema”
a um filme de Tarantino, e “dança” a uma peça de balé clássico. Nem
hesitamos ao chamar de “música” um quarteto de Cage, de pintura uma
tela de Klee.
Mas muitos exemplos podem criar problemas. Como classificar uma
exposição-dança-instalação da coreógrafa Sasha Waltz? Ou um poema-
visual de Augusto de Campos (Imagem 1)? Casos típicos de objetos
inclassificáveis, no limite entre diversos processos de linguagem, eles
encontram-se entre a dança, a cenografia e as artes visuais, no primeiro
exemplo, e entre a poesia, as artes visuais e o design gráfico, no segundo.
Seus estudos também apresentam dificuldades interessantes, porque
são exigidos métodos combinados. Testemunhamos, nos últimos anos, o
surgimento de um fértil ambiente, recém-revigorado pelo aparecimento de
muitos centros de pesquisa, e nutrido pelo cruzamento de diversos domínios
artísticos. Eles são conhecidos como fenômenos de Intermidialidade.
Qual sua importância? Temos afirmado, em diversos trabalhos, que tais
João Queiroz*Daniella Aguiar**
* Professor da graduação e do Programa de Mestrado do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF
** Pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em Letras - Estudos Literários da UFJF.
ARTE
56 A3 - Abril a Agosto/2014
Boas dicas de leitura entre as novidades da Editora UFJF
L ANÇAMENTOS
Paulo Freire, no livro “A importância do ato de ler” diz que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não
possa prescindir da continuidade da leitura daquele”. E, para podermos mais uma vez abrir estradas rumo à compreensão deste mundo, por meio das
palavras, nada melhor do que dar uma olhada nos lançamentos da Editora UFJF. E as opções são boas, começando pela pesquisa que revela os caminhos
das universidades de Coimbra (a mais antiga de Portugal) e UFJF. Outra leitura interessante mostra retratos diversos - migrante, catador de papel, morador
de favela - revelados na profundidade de seus sentidos culturais. E, ainda, o resgate do trabalho deCharles Sanders Peirce, fundador do pragmatismo e um
lógico que contribui em várias áreas.
QUE UNIVERSIDADE? INTERROGAÇÕES SOBRE OS CAMINHOS DA UNIVERSIDADE EM PORTUGAL E NO BRASIL
(Luís Reis Torgal e Angelo Brigato Esther – R$ 46)
Duas experiências universitárias distintas e uma
interrogação pertinente sobre o papel de uma
das instituições mais duradouras conhecida
atualmente. Este é o enredo escolhido pelos
autores para lançar luz sobre as histórias
das universidades brasileira e lusitana. A
onipresente pergunta “Que Universidade?” abre
o debate sobre o sentido das universidades e dos
ensinos superiores em geral, levando a pensar
criticamente sua fundação, suas reformas e
suas realidades e perspectivas atuais. Esta
parceria entre a Universidade de Coimbra e a
UFJF presenteia os leitores, portanto, com ricos
aportes de reflexão sobre a universidade nos
dois países e sobre os desafios mais amplos da
educação superior.
A Editora UFJF está situada na Rua Benjamin Constant 790, no prédio do Museu de Arte
Murilo Mendes (Mamm) - Juiz de Fora/MG. Tel: (32) 3229-7646
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www.editoraufjf.com.br
MAIS
A LÓGICA DE DIAGRAMAS DE CHARLES SANDERS PEIRCE: IMPLICAÇÕES EM CIÊNCIA COGNITIVA, LÓGICA E SEMIÓTICA
(Lafayette de Moraes e João Queiroz – R$ 36)
Peirce foi o fundador do pragmatismo e
um lógico que contribuiu em diversas áreas
como meteorologia, psicologia experimental,
fotometria estelar, economia matemática,
filosofia, linguística, história, dentre outras.
Porém, por mais admirável que seja seu
trabalho, este permaneceu na obscuridade
por muito tempo, principalmente sua teoria
sobre os Grafos Existenciais (GE). E, por mais
difícil que possa ser a tarefa de analisar e
avaliar os impactos dos GEs, o livro conta com
vários pensadores e estudiosos na área que, de
diferentes formas e perspectivas, lançam luz em
diversos campos de estudos.
ESPAÇOS RESIDUAIS: ANÁLISE DOS DEJETOSCOMO ELEMENTOS CULTURAIS
(Raquel Rennó – R$ 29)
Resíduos: tudo aquilo que foi descartado ou
subjugado pela sociedade, mas para Raquel
Rennó são os elementos escolhidos para
trabalhar. Ela nos expõe os resíduos da cultura
como uma poética do intersticial e do excluído.
Numa rigorosa pesquisa acadêmica, a autora
confere voz e sentido ao que é usualmente
relegado ao lugar de excluído, sujo, sobra,
sucata. Cenas brasileiras e internacionais são
percorridas, onde espaços e práticas residuais
são recolhidos, recuperados e ressignificados.
Numa epistemologia em que o marginal ganha o
centro, retratos diversos, como os de migrantes,
catadores e moradores de favela, são revelados
na profundidade de seus sentidos culturais.
Fernando Lobo
57A3 - Abril a Agosto/2014
O Holocausto Brasileiro:60 mil mortes em Barbacena Glauco Moreira de Moura*
doses elevadas (muitas vezes incompatíveis
entre si), provocando reações adversas terríveis,
mas também quando são submetidos a
quantidades excessivas de eletrochoques em
casos que sabidamente são eles inúteis, mas
não deixam de expor o paciente aos riscos da
anestesia e ao estado de torpor pós-choque.
Isso, sem mencionar os demais aspectos
circunstanciais da tragédia vivida por essas
pessoas e, claro, os aspectos éticos bioéticos.
Nessa ordem de ideias, parece que a jornalista
Daniela Arbex chamou para si uma enorme
responsabilidade: continuar relatando o
holocausto brasileiro, para o que necessitaria
ainda, no mínimo, de uns 80 volumes
subsequentes, só para ficar no âmbito do
tratamento psiquiátrico. Assim, fica a sugestão
e a esperança de que esta obra não seja uma
última palavra, mas o início de uma conversa.
Mesmo bem antes de o Brasil
compreender o verdadeiro significado
do livro, a jornalista Daniela Arbex
sintetiza suas pesquisas em torno do
tratamento psiquiátrico no então hospital
Colônia, na cidade de Barbacena (MG) e publica,
em 2013, a obra “Holocausto Brasileiro”, pela
Editora Geração. Trata-se de tarefa árdua, pois
revela a verdade e, como entre nós soemos
acontecer, a afirmação da verdade quase
sempre coloca seu autor em situação bastante
melindrosa diante da sociedade; de seus pares.
O certo é que a obra relata fatos ocorridos
e comprovados no tempo e no espaço que
menciona, resultando na morte de um número
em torno de 60 mil pessoas e colocando em
xeque o tratamento psiquiátrico no Brasil...
realmente é preciso muita coragem!
De se observar que o título é bastante
contundente: “Holocausto brasileiro”.
O sacrifício, o sofrimento, a dor, a desesperança,
* Advogado e professor
a solidão, o vazio... o nada de pessoas que
sofrem de alguma enfermidade mental e
procuram ou são levadas a se tratarem.
Todavia, fora utilizado para rotular uma fração
muito pequena do sofrimento dos pacientes
psiquiátricos no Brasil, sem retirar a importância
dos eventos relatados em Barbacena. É que
o holocausto brasileiro, infelizmente, é muito
maior do que isso e, pois, não faz parte somente
do passado, mas está bem presente tanto em
hospitais, quanto em consultórios médicos,
tendo como protagonistas não só os pobres,
abandonados, incapacitados e miseráveis, mas
também os ricos, abastados e poderosos. É o
momento em que o princípio da igualdade se faz
presente de forma mais efetiva e convincente:
na barbárie e no empirismo do tratamento
psiquiátrico no Brasil. São inúmeros os casos
de pacientes alvos da ignorância médica,
não apenas quando são levados a ingerir
quantidades enormes de medicamentos e em
LITER ATUR A
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“Contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”
Alessandra Brum*
CINEMA
* Professora do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens e do Bacharelado em Cinema e Audiovisual do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF
A atriz Anna Karinne Ballalai e o cineasta, produtor e roteirista Roman Stulbach em uma das cenas mais hilárias e líricas do filme
“Contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”, essa é uma das
frases contidas no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, de Oswald
de Andrade, publicada no “Correio da Manhã”, em 18 de março de
1924. Essa frase poderia perfeitamente nos servir para definir “Nenhuma
fórmula para a contemporânea visão do mundo” (82min), primeiro longa-
metragem de ficção de Luís Rocha Melo, cineasta, pesquisador e professor
do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens e do curso
de Bacharelado em Cinema e Audiovisual do Instituto de Artes e Design
(IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A inspiração para o
título de seu filme veio justamente deste Manifesto de Oswald de Andrade.
O processo de produção, por si só, mereceria um olhar diferenciado para
o filme. Realizado de forma totalmente independente, no sentido pleno
da palavra, com poucos recursos financeiros, sem incentivo fiscal, com
equipamento digital não profissional, uma equipe pequena contando com
a participação de amigos, “Nenhuma fórmula…” se insere no conjunto
de filmes do cinema brasileiro atual que buscam quebrar as regras
estabelecidas por um mercado cinematográfico padronizado e opressor que
se fecha para a diversidade, a criatividade e a invenção.
“Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo” narra as
desventuras do processo criativo da jovem escritora Carola Brecker que em
crise após ter se separado do marido Mickey, se muda do Rio de Janeiro
para São Paulo a convite do gangster cultural Al Gazarra para escrever 42
peças de teatro sobre o deus Pan, que será encenada pelo diretor polonês
Tadeusz Karkovski. De forma cômica, a excentricidade do diretor polonês
levará Carola Brecker a um passo da loucura.
Destacamos a atuação de Anna Karinne Ballalai, também roteirista do
filme, no papel de Carola Brecker, e do cineasta, produtor e roteirista Roman
Stulbach, recentemente falecido, atuando pela primeira vez em filmes, no
papel do diretor polonês. Os dois protagonizam juntos uma das cenas mais
hilárias e líricas do filme. Luís Rocha Melo investe numa direção de atores
que privilegia uma atuação livre, e algumas vezes improvisada, em perfeita
harmonia com a cidade. Aliás, ponto alto é exatamente a forma como Luis
Rocha Melo nos introduz organicamente no ambiente urbano das cidades
de São Paulo e Rio de Janeiro, entre ruas e avenidas, restaurantes, e até
mesmo num grande passeio por uma exposição em homenagem ao cineasta
Rogério Sganzerla.
Sem nenhum medo de experimentar, Luís Rocha Melo e Anna Karinne
fazem uma grande homenagem ao próprio cinema, com referências a vários
gêneros do cinema clássico, como os filmes de gangster e os musicais,
passando pela chanchada, o cinema marginal e a Nouvelle Vague, tudo
em perfeito diálogo com sua própria concepção de criação, sem fórmulas
preconcebidas, e que não se acomoda esteticamente.
Luís Rocha Melo nos mostra que é possível realizar um cinema de qualidade
com pouco recurso financeiro, bastando para isso uma boa ideia, bons
amigos e uma enorme vontade de fazer cinema, encorajando aqueles que
querem se lançar na realização de filmes.
“Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo” é a expressão
criativa de quem tem o que dizer e sabe como contar uma história, deixando
para nós a lição de que o essencial está em ver e ouvir com olhos livres!
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ENSAIO FOTOGR ÁFICO
O fotógrafo vê a históriaO povo nas ruas de Juiz de Fora e sua luta por liberdade e democracia pelo olhar de Humberto Nicoline
Rodrigo Barbosa *
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Em frente ao Cine-Theatro Central (em 1984, antes da restauração) a luta pelas eleições diretas estava nas ruas (e na cara)
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O fotógrafo nunca está na rua impune-
mente. Há muito ele renunciou ao direito
de andar sem olhar, àquele flanar que
nós, demais mortais, praticamos usualmente.
Lá vamos nós – eu e você – pelas ruas, olhando
para os nossos pensamentos, para os problemas
que vamos enfrentar no nosso destino, para as
palavras que teremos que usar quando chegar-
mos, para as imagens que deixamos para trás
(ou que nos deixaram), para aquela notícia lida
no jornal, para aquela canção que tocou no rádio.
Caminhamos com nossas ideias, nossos planos,
nossas raivas, nossas pequenas e grandes emo-
ções. Às vezes, sorrimos e até falamos sozinhos.
O fotógrafo não.
O fotógrafo anda com seus olhos de ver a
cidade. De ver as coisas, de ver as pessoas, de
ver os prédios, de ver as árvores. De enxergar
o grande e o pequeno. A história se apresenta
por imagens, despudorada, ao olhar arregalado
do fotógrafo. E ele a vê. Torna-se prisioneiro
da história que desfila diante dele e dá o troco:
aprisiona, captura, faz da história refém eterna
de sua lente, extensão dos seus olhos.
A história está nas ruas porque a história está
nas pessoas – e as pessoas estão nas ruas. É
claro, as pessoas (e a história) também estão
nas alcovas, nos palácios, nos templos, nos
escritórios, nas casas (e o fotógrafo, aliás, tam-
bém está lá, com seu olho espião). Mas, desde
nossos tataravôs gregos, os fatos, os destinos,
as decisões estão explodindo nas ágoras, nas
praças, nas avenidas, nos boulevards, nos largos
e parques. São nestes espaços que a história se
faz mais viva ou, talvez, mais visível para o olhar
inquieto do fotógrafo.
ENSAIO FOTOGR ÁFICO
Na despedida de mais um ano, 1982, a tradicional chuva de papel picado salpicava de renovada esperança a face (e o coração) da juizforana
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ENSAIO FOTOGR ÁFICO
O fotógrafo nos convida: vem pra rua! Vem comigo ver a his-
tória! A palavra rua vem do latim ruga, que significa isto mes-
mo que você está lendo e pensando: ruga, sulco, dobra. Lá no
comecinho de Roma, as ruas eram marcadas pelas rodas das
carroças, que deixavam a terra com aquele aspecto de sulca-
da, “enrugada”. Assim como a roda da nossa história pessoal
deixa suas marcas no nosso rosto, no nosso corpo, enrugados.
A ruga/rua é a tatuagem da história; do homem e da cidade.
Nas ruas/rugas de Juiz de Fora, o povo fez história. E o fotó-
grafo foi atrás. Estas mesmas ruas que foram pisadas pelas
tropas que marcharam há 50 anos, em março de 1964, rumo
ao Rio de Janeiro e ao Golpe Militar, foram ocupadas nas dé-
cadas seguintes pelos sonhos e lutas do povo. Estivemos lá,
juiz-foranos, estudantes, professores, trabalhadores, artistas,
homens, mulheres de todas as idades e de todos os cantos da
cidade (e o fotógrafo, é claro!).
Do Campus da UFJF, nos anos 80, um rio de indignação e de luta nascia para depois inundar a cidade
ENSAIO FOTOGR ÁFICO
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O povo marcou as ruas de Juiz de Fora com os sulcos da
indignação, da esperança, da coragem que transforma.
Grudou no rosto e no corpo sua mensagem por liberdade e
democracia. Formou o imenso cordão de gente, que desceu
feito um rio do Campus da Universidade para o centro. Fez
vigília no Parque do fundador da cidade para vibrar feito
um gol por cada voto lá em Brasília em defesa do direito de
escolher o Presidente. Furou a barreira de coturnos (mistérios
da língua: será coincidência que esta palavra tanto se pareça
com “soturno”?). Espiou pela fresta da parede de soldados e
apanhou no chão o catavento-bandeira como quem colhe no
asfalto a rosa do povo de Drummond.
A ordem militar quebrada por gestos e olhares inocentes, em desfile na Avenida Getúlio Vargas, Centro de Juiz de Fora, em 1982
ENSAIO FOTOGR ÁFICO
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Desde cedo, aprendendo a protestar, em manifestação contra fechamento de uma escola no bairro São Pedro, em Juiz de Fora, em 1984
Os punks também registravam a sua vontade em manifestação em janeiro de 1984
O POVO AO PODER
Castro Alves
Quando nas praças s’eleva
Do Povo a sublime voz...
Um raio ilumina a treva
O Cristo assombra o algoz...
(...)
A Praça ! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor
ENSAIO FOTOGR ÁFICO
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No coração da cidade, esquina de Avenida Rio Branco e rua Halfeld, a representação política ganha as ruas e novos partidos, como o PT (novembro de 1982)
De olho no placar e ouvidos atentos aos alto-falantes, a “torcida” da Diretas se reuniu no Parque Halfeld, em abril de 1984
ENSAIO FOTOGR ÁFICO
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O olhar do fotógrafo nos convida a ver a história
na rua. O povo na praça. E “Quando nas praças
s’eleva / Do Povo a sublime voz... / Um raio
ilumina a treva / O Cristo assombra o algoz...”,
cantou o poeta. O raio que ilumina a treva cria a
imagem que fica. E a imagem que fica não é a
do General Mourão Filho e sua tropa saindo do
quartel no Mariano Procópio para inaugurar a
A fé superando o desconforto durante visita da imagem de Nossa Senhora de Aparecida, em Juiz de Fora, em 1986
Humberto Nicoline, jornalista e poeta da imagem, que vive nas ruas a
decifrar Juiz de Fora, com seu jeito doce, sua sensibilidade e seu suor,
com suas câmeras antes analógicas e hoje digitais e, principalmente,
com seu olhar de ver a história.
*Secretário-adjunto de Comunicação e professor da Faculdade de Comunicação da UFJF
ditadura. A imagem que não se apaga é a imagem
da praça: a praça! A praça que é do povo como o
céu é do condor. O povo na rua, neste “antro onde
a liberdade cria águias em seu calor!”, é o retrato da
Juiz de Fora que vale a pena.
A Juiz de Fora que o fotógrafo – antes de nós e mais
do que nós – vê.
ENSAIO FOTOGR ÁFICO
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Tamanhos rigores
médicos, num dos acampamentos encontrados pelo caminho. A despeito
dos esforços, não resistiu a uma pneumonia dupla, tendo sido sepultada
num cemitério clandestino qualquer, encravado no meio inóspito do
chapadão. Essa notícia veio agora, 40 dias depois. Do pequeno grupo inicial,
restara apenas ele. Seu melhor amigo não logrou atravessar um campo
minado, quase às margens da fronteira ocidental. Os outros foram caindo
pouco a pouco nas garras inimigas. Todas essas baixas eram enumeradas ali,
sem muitos floreios, colocando em primeiro plano o seu mérito. O solitário
mérito de estar vivo, que vibrava como festa para os demais companheiros.
A felicidade dos que o escoltavam reluzia a todo instante. Era-lhe difícil
imaginar, após tamanhos rigores, o vinho e a boa comida.
O rio permanece calmo. Somente o seu coração não se acostuma. Desviando
de leve os olhos do madeirame encardido, ele tira do bolso a foto que o
acompanha desde o princípio da jornada. Lá estavam, à beira de um domingo
sem nuvens, no velho papel amassado e úmido, seus pais e irmãos, sua
esposa e sua filha, além do velho cão de guarda. Todos mortos. O barco adeja
sem pressa. Rompe uma chuva miúda, de doer nos ossos. Duas aves cruzam
o céu de chumbo. Ele está vivo, eis o que importa. Sonda com as mãos o
próprio e castigado corpo. Ele está vivo, ele está vivo, segundo lhe disseram.
Conseguira. Poderia respirar sem sobressalto. A fronteira sumira no
horizonte e o rio estava calmo. Tão calmo naquele trecho, assim tão
detido e compassado, que o barco parecia flutuar, um palmo acima
da linha d’água. Há pouco recebera, dos companheiros destacados para
acompanhá-lo, as notícias dos últimos três meses em que estivera fugindo.
Na mais absoluta clandestinidade. Três meses de uma viagem alucinada,
sem esperança de sucesso. E só então, naquele momento, as terríveis
notícias. Seria outra prova, talvez ainda mais dura, talvez insuportável,
estar vivo para sabê-las. Um comboio de crimes contra seu corpo. Mas
ele conseguira. Esse misto de prêmio e de castigo era seu, custasse o que
custasse. Três longos meses sob fome e frio, vagando a esmo, sendo caçado
como um animal qualquer, desde que os inimigos tomaram sua cidade. Nela
deixara seus pais e irmãos, abatidos no auge dos combates, segundo lhe
disseram os companheiros de embarcação.
Por sorte fugira, com um pequeno grupo de amigos, levando consigo a esposa
e a filha de 5 anos. Fazia já um bom tempo que sua cabeça estava a prêmio.
Queriam-no vivo ou morto. Era imperativo alcançar a fronteira. Grávida de
3 meses, sua esposa caiu, entretanto, nas garras do inimigo, cerca de uma
semana após a conquista da cidade. Foi assassinada naquela mesma noite,
disseram-lhe agora. Sua filha adoeceu e teve de ser deixada, sob cuidados
LEIA-ME
Iacyr Anderson Freitas*
* Poeta, ensaísta e contista, com vários livros publicados. Sua obra é divulgada na Argentina, no Chile, na Colômbia, na Espanha, nos Estados Unidos, na França, na Itália, em
Malta, no Peru, na Suíça e em Portugal. Publicou, entre outros, os livros “Viavária” (2010) e “Ar de Arestas” (2013)
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67A3 - Abril a Agosto/2014
Fotomontagem digital de janela do Forum da Cultura, realizada pela fotógrafa, artista plástica e professora do Instituto de Artes e Design da UFJF, Valéria Faria
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