A conduta em face do outro

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Texto de Lavelle sobre moral

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Louis Lavelle A conduta em face do outro

PREFÁCIO

O problema das relações entre os homens consiste em saber passar dum estado de simpatia ou antipatia naturais que reina entre os caracteres, ao estado de mediação mútua que permite a cada um realizar, por intermédio do outro, do indiferente, do amigo ou inimigo, a própria vocação espiritual.

Para nós, o universo real se reduz a nós mesmos e aos seres com que estamos ligados por liames muito íntimos. Em toda a roda, reina um grande círculo escuro, povoado só de aparências ou de coisas.

A multiplicidade de consciências isoladas, que buscam debalde transpor o intervalo que as separam, não existe. O que há é a consciência única, da qual somos membros dispersos. Cada um necessita dos demais para conservá-la. O que está em outrem, está em mim - o que se descobre graças à mediação.

Quiséramos descrever a verdadeira face do homem, contrastando não somente o que é com o que deveria ser, mas também o que ele acredita ser e é mera opinião com aquilo que ele é no âmago de si mesmo e em sua verdadeira essência. Seu dever é justamente encontrar tal essência. Contudo, os estados de infelicidade que descrevemos são os em que os homens hodiernos se comprazem e consideram como se constituísse o homem em sua totalidade.

É possível que neste livro se encontre mais amargura que nos anteriores. Deve-se isso à existência de duas verdades: uma verdade espiritual, constituída de contentamento e luz, mas em que nem sempre vivemos – esta é aquela verdade que nos dedicamos a descrever até agora; ela dá grande satisfação àqueles cujo olhar se volta para o interior: a miúdo os censuramos de sonhar a vida em lugar de vivê-la. Há ainda uma verdade exterior e patente, que desmente a outra sem cessar: ela é a única que existe para aqueles cujo olhar se volta para o exterior e que justifica seus queixumes e sarcasmos, pois eles a comparam com uma outra cujo apelo nostálgico trazem ao seio. Eis aí, dir-se-á, o conflito entre a verdade e a realidade. Uns e outros se esforçam para que ambas coincidam. Mas uns acham que se deve abolir a realidade e transformá-la em verdade algum dia; outros, que a verdade nada é enquanto a realidade em que deve encarnar-se não se torne conforme a ela.

Far-se-ão duas observações: a primeira, é que a verdade espiritual só se desvenda ao homem na solidão, quando o eu está em contato direto com Deus. Existe uma verdade humana que contradiz a verdade espiritual, uma verdade em que o indivíduo se depara sempre com outros indivíduos semelhantes a si e com os quais entra numa espécie de conflito de todos os instantes. É como se fossem deuses rivais a lutar por preeminência; contudo, se chegassem a um acordo, o mesmo Deus tornar-se-ia presente entre eles. A segunda observação, é que são as relações com os outros homens que formam a substância de nossa própria vida. Eles manifestam em si o que os limita, os detém, os arrosta e o que lhes permite se superar e unir com os demais.

O único mal que existe é aquele que os homens fazem uns com os outros. São as relações que cultivamos com os outros homens que nos tornam felizes ou infelizes. Mas se soubéssemos

que os bens que possuímos produzem necessariamente a inveja e a raiva, aceitaríamos essa inveja e essa raiva sem que ambas enodoassem nossa felicidade...

Primeiro Capítulo

O LUGAR DO HOMEM NO MUNDO

I. REALEZA DO HOMEM

“Se contemplo as estrelas, diz o salmo, que é o homem? Contudo, ó Eterno, tu não o fizeste muito abaixo de Deus”, i. é, fizeste-o infinitamente superior às estrelas. Exprime-o Pascal de forma admirável ao dizer que o universo o contém e engolfa como a um ponto, mas o universo desconhece totalmente essa vantagem. A dignidade do homem consiste no pensamento por que compreende o universo e que faz dele um espírito como Deus.

Mas ainda não é o bastante, pois que Deus fez do homem o único ser do mundo que é livre como Ele, tem iniciativa própria, não está de contínuo submetido ao impulso da natureza ou ao sabor dos acontecimentos – é o único ser do mundo que está ao mesmo tempo no mundo e acima do mundo.

O homem é o deus deste mundo espiritual onde vive e que só existe nele e para ele. Não é exagero dizer que o poder que ele tem compara-se ao de um rei em seu reino: o rei exerce o poder tão-somente sobre as coisas, ao passo que a realeza do homem é interior - essa realeza interior o arvora em senhor de si e de seus pensamentos. O rei enquanto rei só dispõe do que pode ver, i. é, da aparência, mas enquanto homem dispõe do que ele é (o que ninguém vê), sendo o único reino onde cada homem é chamado a viver - até o rei. Enfim, ao passo que o rei tenta conformar a ordem das coisas à sua vontade própria, que é miserável e o torna escravo de si mesmo, o homem, se é sábio, conforma sua vontade a uma ordem de que é parte e que, já que o supera, liberta-o de seus limites.

II. O HOMEM, O FIEL DA CRIAÇÃO.

O homem é o mediador entre a carne e o espírito. Não se quer afirmar que a carne e o espírito existam separadamente antes do começo da ação do homem, ou ainda que seja a natureza humana um efeito dessa mistura. Ao contrário, há-de se afirmar que o homem faz de si mesmo carne ou espírito, através da escolha em liberdade. A partir do instante que a liberdade abandona-se a si ou se renuncia, o eu verga-se ao julgo da inércia: amesquinha-se em simples matéria. Essa matéria fá-lo um ser de carne que só conhece a sensação e a paixão. Mas quando a liberdade entra novamente no jogo, o eu está inteiro com ela, recusando tudo o que a limita e constrange, descobrindo a participação dela no absoluto: abre-se diante de si o infinito. Nisso e só nisso reside o valor do homem e a razão que tem ele de confiar e esperar sempre. A consciência de si se constitui ao mesmo tempo em veículo e testemunha da potência criadora.

O homem está a meias entre o animal e Deus; ele é incapaz de se tornar um ou outro. Contudo, oscila entre os dois extremos. Ele é o fiel da criação. O animal sofre a evolução, mas a conduz o homem, que é um animal que evolui em direitura a Deus.

O homem tem uma história que acumula em si os acontecimentos por que passou e as ações que realizou, sob a forma de capital espiritual. Entretanto o animal só dispõe duma natureza que o serviliza à sua espécie, i. é, ao instinto e à carne. É inerente à natureza humana desembaraçar-se da sujeição à lei da espécie considerada como atividade animal. Enquanto se submeta, será o animal a falar dentro do homem, e não o homem. No homem, existem tantas espécies quantos são os indivíduos. É vaidade querer se apegar à raça, que pertence à natureza, uma vez que o homem só surge juntamente com sua liberdade.

Dividem-se os animais em todas as modalidades da atividade; o homem as reúne em si e, optando entre elas, liberta-se das servidões da natureza. À utilização do órgão que lhe foi dado prefere o instrumento que inventou. É verdade que ele pode se tornar um escravo: parece que ele guia o instrumento, mas a miúdo é o instrumento que o guia a ele. Não obstante, o homem é capaz de se libertar, pois que é superior ao instrumento – ele nunca se conformaria em ser uma mera engrenagem neste imenso universo, o qual deseja abraçar em sua inteireza, i. é, não deseja se apossar dele apenas pelo pensamento, mas recriá-lo incessantemente, qual o próprio Deus, que não se deixa jamais aprisionar pela criação.

Ao animal é inerente permanecer fiel à sua natureza - leão ou cordeiro, abutre ou pombo. Mas ao homem, superá-la mais e mais. Se em si o homem encontra todas as possibilidades ao mesmo tempo, é a fim de lhe permitir adornar ou corromper a natureza. Pois conforme o uso que faça dela torna-se, diz Aristóteles, o melhor ou o pior dos animais.

Por vezes acredita-se que a única novidade do homem é o pôr sua inteligência ou sua vontade a serviço da necessidade e do instinto – eis aqui o ideal que quase todos consideram como o suficiente; mas o homem não é somente um animal mais atilado e hábil, capaz de perverter em si os fins da animalidade. Antes seria melhor dizer que sua vocação é a de pôr as potências da necessidade e do instinto a serviço do intelecto e da vontade. Portanto, em lugar de os aniquilar, o homem lhes dá uma significação que os transfigura.

III. O JOGO E A LIBERDADE DO ESPÍRITO

No animal o ócio engendra o jogo, que é, se é lícito afirmá-lo, a apreciação das possibilidades de seu corpo: os movimentos do jogo se realizam com numa sorte de desinteresse, apenas por prazer; no espaço encontram um como exercício puro. Ele é a figura da vida do espírito, que é um tipo de jogo superior, cujo campo é a consciência. Aí as possibilidades que estão no mundo pouco a pouco submetem-se à uma espécie de provação, a fim de que cada um de nós possa escolher a possibilidade da qual há-de se constituir o ser pessoal.

Se o homem contém em si todas as potências da natureza, é porque tem ele o poder de afirmá-las ou negá-las, de afastá-las ou exercê-las por um ato livre. Assim tem-se o direito de dizer, como outrora se afirmava, que a natureza foi criada em função do homem, mas só porque ela lhe fornece todos os materiais e recursos, dos quais o homem é o único despenseiro.

Se não existem limites ao progresso da humanidade, não se deve isso exatamente à infinidade de tempo diante dela, senão que a partir do momento em que a vontade se emancipa do instinto, todas as fronteiras interiores nas quais pretendia encerrá-lo a natureza encontram-se de repente franqueadas.

É preciso que o homem, na embriaguez da liberdade, proteja-se duma outra servidão, pior que a do instinto e que ele mesmo se impõe a si. A necessidade de produzir sempre uma nova

obra, de exercer sobre a matéria uma crescente dominação, são sujeições ainda piores que as do instinto. As cadeias forjadas pela liberdade são mais pesadas que aquelas com que nos sujeitou a natureza. Um ser que de todo se reduza à própria natureza não se sente diviso de si mesmo; mas quem traz em si toda a natureza deseja sempre provar para si que é livre. Daí a necessidade, a qual ocupa o espaço do exercício da liberdade, se torna tão opressora que ele sente uma como nostalgia em face da espontaneidade natural que perdera e que se torna para ele uma espécie de modelo da verdadeira liberdade. Contudo, o ideal da liberdade é fazer com que os movimentos do espírito assemelhem-se aos da natureza, prolongue-os em lugar de aboli-los, e transforme-os num seu jardim.

IV. O TEMPO E A VIDA DO ESPÍRITO

Às vezes se diz que o homem vive no tempo, enquanto o animal vive somente no instante. Isso não é verdade. O animal também se escora no que acabou de ser e se inclina sobre o que vai ser. Entretanto, ele sofre a lei do tempo, ao passo que o homem a produz. O homem é incapaz de romper com o instante que o finca no devir; mas no instante ele oscila incessantemente da idéia do ser possível à idéia do ser acabado. E a passagem de um para o outro é a mesma vida do espírito.

Antes do mais, o homem é um ser que direciona sua atenção. Ele não é necessariamente atraído pelas coisas que se apresentam, das quais pode retirar seu olhar, aplicando-o alhures. Ao contrário o animal está constantemente fascinado por elas. É lícito afirmar que o animal vive num estado de perpétua distração, pois só o homem é atento, ou pelo menos é capaz de sê-lo, se com ser atento quer-se dizer ser mestre de sua atenção, escolhendo sempre o objeto e seu uso.

O animal não possui foro interior: quando ele se volta para dentro de si, adormece ou mergulha num sonho que é a continuação da existência sensível, da qual jamais se despega. Move-se num mundo onde se contenta em pascer. Assim também o homem, enquanto animal. Mas enquanto homem move-se num mundo em cujo sentido deseja penetrar e ao qual deseja dar um significado. O primeiro é o mundo dos corpos, e o segundo o do espírito. Contrariamente ao que se acredita, aquele é próprio a cada um, e este comum a todos. O primeiro só existe pela sensação, e o outro só existe pelo pensamento.

V. A VIDA ANIMAL TRANSFIGURADA

Todavia a animalidade sempre está em ação no homem, que incessantemente a subjuga para conquistar a existência eterna. Assim importa não rebaixar demais o animal que está em nós. Existe até uma selvageria da vida a que não é de todo mal se abandonar às vezes. Ela é que dá à alma o seu poderio. Convém não abafá-la – onde encontraríamos outra força para lutar contra ela? – mas transfigurá-la para demudá-la em elã espiritual.

Ao que parece o homem de ação - o qual é impulsionado incessantemente pelo instinto de dominação e atraído pela possessão do mundo - não passa mais das vezes dum animal de caça que se pode classificar, caso se queira, no topo da escala animal; mas para o espírito a animalidade é sempre um meio e não ainda um fim. Esse homem só consegue enxergar o próximo como a presa que deve caçar. Acontece que, por incrível que pareça, existe maior união entre a caça e o caçador que entre a caça e seu protetor, que entre si são como estranhos e cujo encontro resulta em desprezo mútuo.

Na verdade se observa no interior da espécie humana todas as relações que as diferentes espécies animais mantêm entre si: seres que se repelem e outros que se atraem desde o primeiro contato, sem que a razão nem a escolha desempenhem nenhum papel. São já relações que se abrandam, fortificam, governam e por vezes são convertidas, mais nunca abolidas. Entre eles há os que são cães e gatos, pássaros e serpentes. Pode-se convencê-los a viver e até mesmo a brincar juntos numa espécie de sociedade doméstica. Contudo, as reações mais imediatas que com êxito haviam sido mascaradas e contidas, à primeira crise estouram. A maior dificuldade está no convertê-las, e não no aboli-las. É inerente ao espírito mudar o sentido dessas reações e não se deixar obstar pelas diferenças naturais; ao contrário, o espírito penetra até ao cerne da verdade e do erro, do bem e do mal, da beleza e da feiúra, dos quais as reações naturais são mais instrumentos do que características. De cada uma delas é possível fazer bom ou mau uso. Em todos os homens é o bom ou mau uso daquilo que ele é naturalmente que é preciso amar ou repelir.

VI. A POSIÇÃO ERETA, IMAGEM DO SER ESPIRITUAL

A posição ereta, dizem, é própria do homem. Mas ela é a imagem de seu ser espiritual. Essa posição só é possível graças a um ato de vontade constantemente renovado que o impede de vergar-se ao peso e de viver sob a lei do instinto. No mesmo sentido se dizia outrora do homem, valendo-se da etimologia da palavra grega que o designa, que ele é aquele que observa desde o alto e para longe, que abraça não apenas a terra que deseja, mas o céu que contempla e o horizonte que os une.

A posição ereta subsiste até mesmo na Cruz, que é também a imagem do homem, porém reduzida ao mais perfeito desnudamento: ela é o mesmo homem, desde que se lhe juntem os pés um ao outro e o deixem incapaz de se defender, obrigando-o a manter os braços bem estendidos. Sobre a Cruz ele está verdadeiramente exposto, pronto somente para padecer.

Se a grandeza do homem reside no poder que lhe foi dado para exercer um ato livre, independente da ordem quista por Deus, i. é, com a capacidade de pecar, necessariamente o homem estabelece uma ligação misteriosa entre o pecado e o sofrimento. Desejáramos sempre que o sofrimento fosse menos o salário que a redenção do pecado. Sentimos que o sofrimento é a mesma existência à medida que ela tem limites naturalmente impostos, ao passo que o pecado é também a existência, mas à medida que ela se impõe a si mesma tais limites; nossa razão sentir-se-ia quase que satisfeita se o sofrimento fosse sempre o efeito da existência.

Mas fazer do sofrimento um mérito é desvio de finalidade – basta dizer que ele é inseparável da condição do homem, o qual reside no entroncamento entre a natureza e a liberdade. No sofrimento a liberdade é vencida, ao passo que na alegria a condição do homem parece esquecida e superada; a natureza e a liberdade estão a tal ponto combinadas que não há distingui-las; a natureza desabrocha a liberdade e pára de violentá-la.

VII. O SIGNIFICADO INTERIOR DO MUNDO

O mundo em torno é um espelho onde se reflete nossa natureza. Na sua superfície ele delineia o interesse que temos pelas coisas. Mostra-nos os picos e os vales que figuram a imagem de nossos desejos, a grandeza e os limites das diferentes potências. Neste mundo a existência dos corpos é o efeito e a medida de nossa imperfeição – longe de pensar que a imperfeição seja um efeito da existência dos corpos. É sobre este mundo que os olhares de todos os homens se dirigem e cruzam. Contudo é ao mesmo tempo o lugar da comum provação.

Nada existe de mais extraordinário que a aparente descoberta dos modernos, que se mostra tão paradoxal e parece tão comum que é preciso que o eu, antes do mais, se situe novamente no mundo. Nunca houve alguém que o negasse. Nunca houve idealista cego ou fanático o bastante para se situar fora do mundo, ou trancar o mundo dentro do espírito. Atualmente desconhece-se a maior aquisição da reflexão humana, a de que o mundo tem um significado interior, e que tal significado ninguém o pode descobrir senão no espírito, por um ato do espírito.

É verdade que existem homens que mal poder-se-ia acreditar que pertençam a este mundo, que deixam aos demais o cuidado de viver sobre a terra, a fim de carregarem apenas em si a consciência da humanidade, da terra e da vida. Todas as ações que os outros realizam, neles permanecem em estado de idéias, i. é, de puras potências: é-lhes suficiente tomar posse delas e experimentá-las em jogo. Dir-se-á que eles se retiraram da existência? São justamente eles que lhe dão o significado e o valor; são eles que souberam captar a essência, tanto que se pode dizer que os outros homens emprestam deles essa luz espiritual – sem a qual a existência limitar-se-ia ao corpo – que os aproxima mais e mais de si mesmos e de Deus.

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