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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 2072
A ESCOLA DE APRENDIZES MARINHEIROS DO PIAUÍ COMO ESPAÇO DE CIVILIDADE E FUTURO DE MENORES:
O ENVIO DE CRIANÇAS PELAS FAMÍLIAS NO FINAL DO SÉCULO XIX
Rozenilda Maria de Castro Silva1
Antônio de Pádua Carvalho Lopes2
O objetivo deste texto é discutir a percepção da Companhia de Aprendizes Marinheiros
para a família e responsáveis dos menores por ela atendidos, tendo como recorte temporal as
décadas de 70 e 80 do Século XIX. A investigação se situa no campo da história da educação,
mais especificamente da história da educação militar e utiliza as seguintes fontes
documentais: legislação; correspondências dos familiares/responsáveis dos menores, da
Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piauí, juiz de órfãos, da Presidência da Província
do Piauí e relatórios provinciais. As análises se fundamentam em Elias (1993; 1994; 2011) e
Chartier (1990).
Da necessidade marítima ao futuro dos menores órfãos e desvalidos
A Escola de Aprendizes Marinheiros do Piauí era uma instituição educativa formadora
de marinheiros para os diversos serviços da Marinha de Guerra Brasileira. Fez parte de uma
rede de dezoito escolas no Império e vinte na República, distribuída ao longo do território
brasileiro. A gênese desses estabelecimentos de ensino está associada ao movimento de
independência do País quando houve a necessidade da criação de uma Marinha nacional, de
forma que “[...] o Grito do Ipiranga representa a certidão de nascimento não só do Brasil,
como entidade autônoma no concêrto das nações, mas também, da sua marinha de guerra
[...]” (MAIA, 1965, p.53).
No momento inicial de formação da Marinha de Guerra Brasileira, segundo Vale
(2002), embora a sua base estrutural tenha sido a da Marinha de Guerra Portuguesa, pela
permanência de pessoal por adesão à nova nacionalidade, Portugal foi o primeiro adversário
do Brasil a começar pelas lutas internas da Independência, motivo que causava desconfiança
1 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Piauí. Coordenadora Estadual do Projeto Sesc Ler PI. E-Mail: <rozenildacastro@ig.com.br>.
2 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Professor Associado do Departamento de Fundamentos da Educação, da Universidade Federal do Piauí, Campus Ministro Petrônio Portella. E-Mail: <apadualopes@ig.com.br>.
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quanto à lealdade dos portugueses num combate com os compatriotas. Essa preocupação fez
com que o Estado Nacional recrutasse menores, adultos, indígenas e escravos, além do
engajamento de estrangeiros: ingleses, alemães e norte-americanos para a formação do
núcleo da Marinha Brasileira.
Segundo Caminha (2002), as dificuldades de comunicação entre os diferentes
estrangeiros e a falta de habilidades para o serviço naval eram situações comuns entre os
tripulantes de uma mesma embarcação. Ainda segundo Caminha (2002), os naturais de
Portugal, com exceção dos oficiais de caráter conhecido, precisavam ser vigiados pela
desconfiança da lealdade e os ingleses embriagavam-se com frequência. Diante desse quadro,
de acordo com Maia (1965), a solução era o Estado formar marinheiros para atender às suas
próprias necessidades de proteção e de defesa do território.
Dessa forma, conforme Castro (2013), foram criadas as Companhias de Aprendizes
Marinheiros do Brasil. A primeira, em 1840, na Corte, seguida das Companhias do Pará e da
Bahia, em 1855; Mato Grosso, Pernambuco e Santa Catarina em 1857; Maranhão e Rio
Grande do Sul em 1861; Espírito Santo 1862; Paraná e Ceará em 1864; Sergipe e São Paulo
1868; Parahyba do Norte e Amazonas 1871; Rio Grande do Norte em 1872; Piauhy 1873;
Alagoas 1875 e Rio de Janeiro3 1907.
A companhia de Aprendizes Marinheiros de Minas Geraes, sediada em Pirapora foi
“[...] inaugurada em 21 de abril de 1913 [...]” (MARINHA, 1913, p. 306), mas até o momento
não foi localizado na documentação pesquisada o seu decreto de sua criação. Da mesma
forma, foi autorizada a criação de uma Escola de Aprendizes Marinheiros pelo Decreto nº
2.747, de 08 de janeiro de 1913 “[...] no rio Araguaya, no Estado de Goyaz, [...]”, (BRASIL,
1916, p. 171), mas não foi encontrado o seu decreto de criação e, até 1916, os relatórios
ministeriais não registraram o seu funcionamento, o que indicia que essa escola não chegou a
ser criada, apenas autorizada a sua criação.
Sediada na cidade de Parnaíba, a Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piauí foi
instituída pelo Decreto nº 5309, de 18 de junho de 1873 (BRASIL, 1874), iniciou suas
atividades no dia 1º de junho de 1874 e foi extinta no dia 1º de maio de 1915 (MARINHA,
1917). Funcionou durante trinta e um anos e ficou fechada de 1898 a 1907. O seu fechamento
ocorreu juntamente com as Companhias de Aprendizes Marinheiros do Amazonas, Pará, Rio
Grande do Norte, Sergipe e Paraná (MARINHA, 1898), por dificuldades de atender às metas
anuais de aprendizes, de acordo com a Lei de Fixação da Força Naval Brasileira, sem
3 Na cidade de Campos (MARINHA, 1913).
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compensação financeira para as despesas realizadas pela Marinha. A reabertura da Escola de
Aprendizes Marinheiros do Piauí ocorreu em 1907 com as Escolas dos Estados do Amazonas,
Pará, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, São Paulo, Paraná e a criação da Escola do Rio de
Janeiro (BRASIL, 1908). Desde 1885 que as Companhias foram denominadas de Escola de
Aprendizes Marinheiros (BRASIL, 1886), nome que permanece até hoje nas quatro unidades
em funcionamento no País, nos Estados do Ceará, Espírito Santo, Pernambuco e Santa
Catarina.
Estruturada em regime de internato essa instituição era destinada aos meninos órfãos,
desvalidos ou ingênuos e asilados, com idade de 10 a 17 anos4, uma parcela da população que
era acolhida pelo Estado Nacional. Além dessas condições era necessário ser brasileiro e
apresentar uma constituição física robusta que assegurasse um futuro no mar. A entrada de
menores ocorria a qualquer tempo e se dava das seguintes formas: voluntária, contratada a
prêmio e remetida pelas autoridades competentes. Os contratados a prêmio eram
apresentados pelos pais, tutores, mães quando filhos ilegítimos e recebiam o valor de cem mil
réis, conforme Art. 19º, do Decreto nº 1.591 de 14 de abril de 1855 (BRASIL, 1856). Os juízes
de órfãos e os policiais eram as autoridades competentes designadas pelo Presidente da
Província para remeter menores órfãos e desvalidos para a instituição. Os menores asilados
eram enviados pelos mordomos e diretores dos asilos. A legislação de 1885 acrescentou um
prêmio de cento e cinquenta mil reis aos responsáveis que apresentassem menores sabendo
“[...] ler e escrever e além disso as quatro operações fundamentaes da arithmetica, [...].”
(BRASIL, 1886, p. 203).
Embora a Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piauí tenha surgido, como as
demais do País, para atender às necessidades formativas de marinheiros para a segurança
nacional, essa instituição se constituiu num espaço de civilidade dos menores pobres,
considerando que na Província do Piauí, o acesso à escola, mesmo nas famílias abastadas, era
difícil, realidade que se espalhava por todo o país. Segundo Xavier et al, (1994), a instrução
elementar para as camadas mais privilegiadas da população brasileira, de modo geral,
durante o Período Imperial (1822-1889), ficou a cargo da própria família. “[...] Estas [escolas
familiares] eram instaladas nas fazendas das pessoas mais ricas e em comunidades rurais,
que, [...] contratavam mestres ambulantes.” ( COSTA FILHO, 2000, p. 93).
4 O Regulamento da Companhia de Aprendizes Marinheiros de 1855 definia que os menores deveriam ter de 10 a 17 anos; idade alterada no Regulamento de 1885 para 13 a 16 anos; em 1907, 12 a 16 anos e, em 1912, 13 a 16 anos. (BRASIL, 1856; 1886; 1907; 1912).
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A Companhia de Aprendizes Marinheiros acolhia menores de toda a Província, formava
e dava acesso à profissão de marinheiro para a camada pobre da população piauiense,
intencionando evitar a ociosidade e contribuir para a preservação da ordem social. Oferecia
ensino elementar e profissional: militar e náutico, alimentação, fardamento, material escolar,
soldo mensal, assistência médica e religiosa, num momento em que a população marginal era
preocupação nacional. Considerando que “Já no final do Período Imperial, verificava-se um
processo migratório no interior das províncias, das zonas rurais para as supostamente
promissoras zonas urbanas. [...]”. (XAVIER, et al, 1994, p. 88). Com esse movimento os
espaços urbanos “[...] abrigavam uma população de desocupados [...] que causou
preocupação às [...] elites nacionais [...] Isso nos permite entender por que o ensino técnico,
em nosso país, teve a sua origem nas chamadas escolas para desvalidos5.” (Id., et al,
1994, p. 88).
No cenário piauiense o recolhimento e o futuro dos menores desfavorecidos era
preocupação dos administradores públicos. Zacarias de Goes e Vasconcellos, Presidente da
Província se posiciona sobre o assunto, em 1847, da seguinte forma:
Nada mais ordinario, Srs., que ver pelas ruas d’esta Cidade [Oeiras] meninos filhos de paes desvalidos, ou que não tem quem cure de sua educação e futuro: o mesmo, e mais ainda deve acontecer fora daqui, no resto da província. Ora, esses indivíduos, assim desfavorecidos na quadra, em que mais necessitão de proteção, e de apoio, são geralmente os que depois se lançam desenfreados na carreira dos crimes e se tornam o flagello da sociedade. He logo huma medida não só de humanidade, se não de bem entendida polícia preventiva, não despresar a sorte d’esses pobres meninos, e tractar de sua educação. Com este pressuposto lembro á Assemblea a criação de hum pequeno estabelecimento, conforme ás circumstancias da Província, e a que taes meninos se recolhão em número determinado, para o fim de instruir-se nas primeiras letras e aprender diversos ofícios.[...]. (PIAUÍ, 1847, p. 27-28).
Idealizado por esse Presidente foi criado na Província do Piauí o Estabelecimento dos
Educandos Artífices em 1847 e inaugurado no dia 1º de dezembro de 1849, com 15 menores,
(FREITAS, 1988). A historiografia do período informa que “No imaginário da sociedade
teresinense, a dignidade do trabalho era uma questão fundamental. Daí criar-se, [nesse
colégio] oficinas de trabalho, onde os meninos órfãos aprendiam uma profissão [...].”
(ARAÚJO , 1995, p. 88). Essa foi a “[...] primeira instituição de ensino profissionalizante da
Província.” (COSTA FILHO, 2000, p. 123). No ano de 1873, foram criados o Estabelecimento
5 Grifo da autora.
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Rural São Pedro de Alcântara, o Internato Artístico e a Companhia de Aprendizes
Marinheiros do Piauí.
Segundo Cunha (1979 apud Madeira 1999), a ideia de utilizar o menor como “mão-de-
obra” no país, veio dos estabelecimentos militares . O ideal era a profissionalização através da
educação para a formação do hábito do trabalho. Essa medida preventiva evitaria prejuízos
futuros à sociedade, como a ociosidade e o vício, segundo a opinião dos mais influentes
criminólogos do final do século XIX:
Como todos sabem, o trabalho é um hábito adquirido [...] há conseqüências gravíssimas sobre individuos a quem aquelle habbito não esteja bem fixado. Há uma predisposição mais ou menos latente no indivíduo que se manifesta logo que encontre meio favorável... depois opera-se uma verdadeira transformação nesses indivíduos que passam a ser ociosos voluntariamente. (GOMES, 1992 apud RIZZINI, 1997, p. 81).
De acordo com o Censo de 1872 (FALCI, 1991), a população geral da Província do Piauí
girava em torno de 237.951 habitantes, sendo 85% de pessoas adultas e 15% de crianças na
faixa etária de 06 a 15 anos. Com relação à escolaridade, do universo de 202.242 adultos,
somente 27.796 pessoas eram letradas6, ou seja 13.7%. Esse percentual ficava bem menor
quando se referia ao universo infantil. Das 35.729 crianças na faixa etária de 06 a 15 anos,
somente 2.801 tinham o privilégio de frequentar a escola, apenas um percentual de 7.83%,
fechando uma estatística de 92.17%, ou seja, 32.928 crianças fora do ambiente escolar. Os
adultos não alfabetizados compunha uma parcela da população formada por 72.645 homens
livres, 11.939 homens escravos, 78.012 mulheres livres e 11.850 mulheres escravas.
Nesse contexto, a Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piauí representava para a
infância pobre além do acesso à escola a continuidade nos estudos e um futuro profissional
garantido. Segundo o Art. 23 do Decreto nº 1.517, de 4 de Janeiro de 1855 “Os Aprendizes
Marinheiros que tiverem completado dezeseis annos de idade, e contarem tres pelo menos de
instrucção no Quartel da Provincia, [...] serão remettidos para o Quartel Geral do Corpo na
Capital do Imperio, onde concluirão sua educação militar e nautica.” (BRASIL, 1856, p. 13).
Em seguida “[...] será submettido a exame geral dos diversos estudos feitos nas Escolas e logo
depois terá praça na classe que lhe pertencer, [...]. (BRASIL, 1886, p. 204). Nessa carreira de
formação e de trabalho, a relação menor/Estado se constituía da seguinte forma:
O Governo os sustentava e os ‘educava’, e ao atingir a idade ‘conveniente’ na Companhia, eram obrigados a servirem durante o tempo determinado na forma da lei. O tempo de serviço variava de acordo com a legislação em vigor.
6 Dos quais 17.697 homens livres e 10.093 mulheres livres e 06 escravos.
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Em 1871, foi reduzido o tempo de trabalho de vinte para doze anos. Em 1880, o prazo do serviço era de dez anos. (CASTRO, 2013, p. 43).
A relação formação trabalho era definida também na forma como a instituição se
relacionava com os menores desde a sua entrada na Companhia. Mensalmente os aprendizes
recebiam três mil réis, segundo o Art. 65, do Regulamento do Decreto nº 411-A, de 5 de
Junho de 1845, (BRASIL, 1846). Um terço desse valor era destinado à “[...] formação de um
peculio, [...] [essa quantia era] depositada a juros nas Caixas Economicas e na falta destas nas
Thesourarias de Fazenda. [...]”, Art. 43, do Decreto nº . 9371, de 14 de Fevereiro de 1885
(BRASIL, 1886, p. 207). A outra parte desse vencimento se destinava às despesas pessoais e
internas dos aprendizes com o seu uniforme e tratamento de saúde, o valor do depósito seria
duplicado quando possível. A dimensão da gratuidade não dava cobertura ao fardamento
nem às despesas com medicamentos.
A rotina diária no interior da Escola, a dinâmica do tempo dividido entre estudo e
trabalho, a obediência à hierarquia e às normas institucionais eram situações que modelavam
o comportamento dos menores rumo a uma disciplina desejada, considerando que “A criança
não é apenas maleável ou adaptável em grau muito maior do que os adultos. Ela precisa ser
adaptada pelo outro, precisa da sociedade para se tornar fisicamente adulta. [...] a criança
desamparada precisa da modelagem social”. (ELIAS, 1994, p. 30-31).
Investir na criança modelando o seu comportamento garantia uma diferenciação na
imagem do adulto esperada, voltada às atitudes e ao ritmo do serviço naval e atenderia a uma
tripla função: o acolhimento a uma camada da população que precisava dos cuidados do
Estado garantindo um futuro profissional, a tranquilidade social com a retirada dos menores
da rua e a garantia de profissionais qualificados para a Marinha de Guerra Nacional. Essas
intenções estavam explicitas, em 1838, no discurso do Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios da Marinha, Joaquim José Rodrigues Torres, referindo-se ao recolhimento da
infância pobre: “[...] se lhes dermos huma educação e instrucção acommodada á profissão, a
que se destinão; poderemos conseguir o duplo e importante fim de crear operarios
intelligentes, e desviar da ociosidade centenas de homens que se tornarão uteis a si e ao Paiz.
(MARINHA, 1843, p. 12).
O envio de crianças pelas famílias à Companhia de Aprendizes Marinheiros
A definição temporal desse texto se deu pelo fato da documentação analisada revelar,
nas décadas de 70 e 80 do Século XIX, o frequente oferecimento pelas famílias e tutores, de
seus menores, para a Companhia/Escola de Aprendizes Marinheiros, ao ponto de, em 1878, o
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Presidente da Província dispensar o recebimento de criança por lotação excedente na referida
instituição. Com exceção desse período em análise, o que se observou durante toda a
trajetória da Companhia/Escola, segundo a documentação encontrada, foi a dificuldade de
atender a meta anual prevista de menores, no seu interior, motivo inclusive de seu
fechamento em 1898, situação que se estendia às demais escolas do País e, a sua extinção
definitiva em 1915.
Dentre os motivos da pouca presença de menores na instituição, o discurso dos
relatórios ministeriais e das correspondências oficiais indiciam a aversão das famílias em
encaminharem os seus filhos ao destino do mar. Essa aversão pode ser entendida pelos
reflexos causados pela Guerra do Paraguai7, pois no período de 1840 a 1864, fase antecedente
à criação da Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piauí, “[...] as companhias de
aprendizes viveram anos de notável expansão e de prestígio. A partir do início da Guerra do
Paraguai essa situação sofre uma brusca inversão, instalando-se um clima de desconfiança
por parte das camadas populares [...]” (VENANCIO, 1999, p. 202). Para o mesmo autor, “[...]
pelo menos seiscentas crianças, da mesma faixa etária, frequentaram os campos, ou melhor
os rios e mares onde foram travadas as batalhas contra o Paraguai.” (Id., 1999, p. 207).
Porque então, nas décadas de 70 e 80 do Século XIX houve um frequente oferecimento
de menores para a Companhia pelas suas famílias e tutores? Porque no triênio 1877/1879 a
Escola apresentou os maiores números de menores efetivos durante toda a sua trajetória,
com 20 excedentes em 1878? O que motivou esse encaminhamento nesse período se em
momentos anteriores as famílias tinham aversão à vida no mar pelo reflexo causado pela
Guerra do Paraguai e o efetivo de menores na Escola estava sempre a desejar?
A documentação e a historiografia do período revelam um cenário piauiense marcado
pelos flagelos da seca em algumas comarcas e pela migração da seca do Ceará. O Presidente
da Província, Dr. Graciliano de Paula Baptista, nos dá uma ideia da situação desse período,
no seu relatório de 15 de agosto de 1877:
E’ contristador o estado a que se achão reduzidas muitas das províncias do norte do império, [...] do flagello da sêcca.
7 Entre 1864 e 1870 esse conflito, denominado Guerra da Tríplice Aliança, vitimou milhares de paraguaios, brasileiros, argentinos e uruguaios, sendo por isso considerado o conflito sul-americano mais sanguinolento – e também o de mais longa duração – ocorrido durante o século XIX. Prevista, incialmente, para durar seis meses, perdurou por seis anos e exigiu a rápida reconstituição de forças armadas regulares. O governo imperial teve de improvisar um Exército, recorrendo à convocação de prisioneiros, escravos, libertos, índios e até mulheres e crianças. A norma de recrutamento era uma determinação feita para abolir qualquer forma de lei. A situação que então se inaugura é a do recrutamento forçado a todo custo: prisões eram esvaziadas, assim como crianças e vadios eram caçados pelas ruas das principais cidades brasileiras. (DEL PRIORE, 2010, p. 187-194).
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Infelizmente o mal estendeu-se a esta província nas comarcas de Principe-Imperial [hoje Crateús, Ceará], Jaicós, Oeiras e Piracuruca, que têm soffrido consideravelmente, achando-se outras ameaçadas pelo flagelo, de que me ocupo. A emigração para esta provincia tem sido incomprehensivel, e causa dôr o vêr-se o estado de nudez e completa penuria, em que chegão os emigrantes. Em quasi todo o interior da província encontra-se um numero extraordinário desses infelizes, que vencendo dificuldades enormes na viagem, buscão recursos em uma província pobre, como esta. (PIAUÍ, 1877, p. 16-17).
Em 1878 o Presidente da Província, Dr. Sancho de Barros Pimentel, lamenta no seu
Relatório de 1º de junho, as condições do Piauí provocadas não só pela seca dessa Província,
mas pelas consequências da seca do Ceará que trouxe um número considerável de migrantes,
agravando as condições de sua administração:
O flagello que tem quasi despovoado a visinha província do Ceará, si tem aqui feito sentir-se com menos intensidade, tem trazido após si um cortejo de miserias e aggravado ainda mais a situação diffícil da província. A falta de chuva durante dois annos e consequentemente a falta de colheitas, augmentando o valor dos generos, privariam por si sós dos meios de subsistencia a grande numero de filhos da provincia, quando mesmo a grande immigração de cearenses não viesse accelerar a marcha ascendente dos valores e rapidamente esgotar os poucos viveres que ainda havia na provincia. [...] O mal é tão grande e de natureza tal que a unica esperança que se pode ter é de attenuar-lhe os effeitos, na convicção previa de que, como já vos disse, por maiores que sejam os esforços, os resultados não lhes corresponderão. [...]. (PIAUÍ, 1878, p. 10).
No mesmo Relatório, Dr. Sancho de Barros Pimentel, informa sobre as medidas
tomadas pelos seus dois últimos antecessores, na administração da Província, para atender
ao excessivo número de pessoas que chegaram do Ceará, evitar aglomeração nas ruas de
Teresina, prevenir problemas de saúde e dar condições de trabalho às pessoas: “[...] crearam
nas proximidades da capital nucleos de immigrantes que hoje existem em numero de 7, com
perto de 7.000 individuos. [...] [com] trabalhos de plantação, únicos para que são aptos. [...].
(PIAUÍ, 1878, p. 11). O mesmo Presidente relata o modo como os imigrantes chegavam a
Teresina: “Grande numero tem chegado á esta capital, mas, tão doentes, entre outras causas,
por effeito das alimentações venenosas a que recorreram durante a viagem do Ceará para esta
província, que não podem seguir viagem.” (PIAUÍ, 1878, p. 12).
O lugar visado pelos migrantes, era a Amazônia. Por motivo da seca de 1877-1879, “[...]
famílias inteiras fugiam de suas províncias, na busca de melhores condições de sobrevivência,
para a Amazônia, na época região da borracha. Todavia, esses migrantes por aqui ficavam em
virtude da falta de condições físicas de prosseguir viagem [...].”(ARAÚJO, 1995, p. 13).
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Fazendo referencia a esse grupo de migrantes, a mesma autora, informa que era formado por
“[...] homens, mulheres, jovens, velhos e crianças, [...] A esta população se juntavam os
pobres da cidade, que moravam no subúrbio, [...] ou mesmo debaixo de árvores à margem do
rio Parnaíba ou pelas ruas e praças, onde mendigavam a caridade pública.” (Id., 1995, p. 13).
Antes mesmo do período definido da seca, possivelmente de indícios dela, o estado de
pobreza das famílias e dos responsáveis pelos menores fazia com que pai, mãe, tutor e avó
encaminhassem os seus menores à Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piauí visando
investir na educação e no futuro dos mesmos. Dessa forma em maio de 1876, José Francisco
Lavor entregou ao Presidente da Província os seus três filhos: Isidoro, Sancho e José. No dia
26 do citado mês foi dado entrada na Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piauí
somente dos menores Isidoro e Sancho. (CAPITANIA, 1876a). José foi devolvido
imediatamente à sua família, por apresentar problemas de saúde, conforme resultado da
inspeção realizada pelo Médico Dr. Joaquim Eduardo da Costa Sampaio: “Participo a VSa.
que o menor José, filho de José Francisco Lavôr, [...] acha-se impossibilitado de assentar
praça nesta Companhia, por soffrer de Boubas8, molestia que necessita de um tratamento
demorado, e he contagiosa e pode trazer outras consequencias”. (CAPITANIA, 1876b).
Um dos critérios de seleção dos menores para a instituição era ter saúde, mesmo que a
legislação só fizesse referencia às condições físicas. Embora fizesse parte de sua arquitetura
farmácia, enfermaria e da sua equipe de pessoal, médico e enfermeiro, essa estrutura física e
profissional se destinavam à inspeção na entrada dos menores e ao tratamento dos internos
pela aquisição das constantes doenças comuns na época, como varíola, beribéri, tuberculose,
dentre outras.
Em alguns casos de doenças de cura rápida, o menor ficava em tratamento na
Companhia e após a sua recuperação ocorria o seu assentamento. Em outros, atendiam à
condição de inspeção médica, eram assentados na Escola e depois tinham baixa, como no
exemplo do menor Benedicto Pereira dos Santos que após fraturar um braço dentro da
Companhia foi julgado incapaz e devolvido ao seu tutor Joaquim Antonio de Amorim Filho,
no dia 09 de setembro de 1885, conforme correspondência de 23 de janeiro de 1886.
(PARBNAÍBA, 1886).
Passar na inspeção médica era preocupação da mãe Maria Eugenia Vianna. Na
correspondência de oferecimento de seu filho ao Presidente da Província, já informa que o
mesmo tem saúde: “[...] offerece a VExa. seu filho menor de nome José, sadio e bem
8 Bouba doença infecciosa e que determina alterações semelhantes à da sífilis. (SILVA, [19--?]).
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conformado, para que V.Exa se digne de mandal-o admittir na Companhia de Apprendizes
Marinheiros. (TERESINA, 1876a).
A mãe Dorothéa Maria de Jesus também pela a sua condição de pobreza encaminhou
ao Presidente da Província com destino à Companhia de Aprendizes Marinheiros de
Parnaíba, o seu filho de doze anos, Sergio Mendes de Oliveira com o seguinte argumento:
“[...] visto como pobre como é, não podia com a devida decencia dar-lhe a educação
necessária.” (TERESINA, 1886).
O prêmio de cem mil réis dado pela Marinha aos pais e responsáveis, por cada menor
recebido, se constituía num estímulo pela condição de pobreza da população. No dia 19 de
junho de 1876 a viúva Maria Leal Castello Branco, ofereceu ao Presidente da Província, a
serviço da Marinha, para admissão na Escola de Aprendizes Marinheiros de Parnaíba seus
filhos “[...] Miguel Pereira de Araujo e José Pereira de Araujo, o 1º com 12 o segundo com 11
annos de idade; servindo-se VExa. manda-los inspecionar e embarca-los, [...]”. (TERESINA,
1876b). Na mesma correspondência a mãe solicita que seja pago ao seu procurador a
gratificação pela entrega dos seus menores e duas passagens para que os seus filhos maiores:
uma menina de 15 anos e um menino de 16 acompanhassem os futuros aprendizes até a sede
da Escola, demonstrando o seu cuidado maternal com os mesmos. No mesmo documento só
foi autorizado a gratificação pela entrega dos menores.
Outro exemplo é o caso da avó Thomazia Joaquina do Espírito Santo, que ofereceu à
Marinha, o seu neto, ao completar 10 anos de idade, pelo recebimento dessa gratificação,
conforme correspondência de 25 de outubro de 1878 enviada ao Presidente da Província:
Thomazia Joaquina do Espírito Santo creando um neto seu de nome Antonio José de Carvalho que já conta dez anos de idade, orphão filho de sua filha Maria Angelica do Espirito Santo, mulher solteira, que faleceu de variolas, querendo entregar o mesmo seu neto á Marinha, a fim de receber os cem mil reis de gratificação que oferece o Governo, vem pedir a VExa. que se digne acceital-o marcando dia e hora para a apresentação d’aquele menor e expedindo á Thesouraria de fazenda, a preciza ordem para ser entregue a suppe. a merecida quantia. (TERESINA, 1878).
No dia seguinte o Palácio do Governo do Piauí informou que estava completo o número
de aprendizes marinheiros da Companhia, registrando pela primeira vez, segundo a
documentação pesquisada e analisada a dispensa de menor para essa Escola. A situação
citada é uma demonstração de que o prêmio em dinheiro oferecido pelo governo na troca dos
menores se constituía num incentivo pela condição de indigência dessa população e um
possível desejo de formação e trabalho.
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Várias correspondências de familiares foram enviadas ao Presidente da Província do
Piauí solicitando o pagamento do prêmio de cem mil réis pela entrega de seus filhos, à
Companhia de Aprendizes Marinheiros. Do pai Romão Lucas de Alcântara pela envio dos
seus filhos Tibutino Lucas de Alcantara e Felippe Nery Santiago no dia 29 de dezembro de
1879 (TERESINA, 1880a); da Luzia Pereira de Matos pelo filho Hermenegildo de Sousa Lima
no dia 19 de março de 1881 (TERESINA, 1881); da Romana Maria da Silva pelo filho Pedro
José da Silva, em 23 de abril de 1884 (TERESINA, 1884b).
A própria família procurava o juiz de órfãos para encaminhar seus filhos à Escola, como
revela a correspondência de 1º de novembro de 1882, de Pacífico da Silva Castelo Branco, ao
Presidente da Província do Piauí, Miguel Joaquim d’Almeida e Castro: “Tenho a honra de
fazer chegar a presença de V.Exa. o menor de nome José, de oito annos de idade, filho
legítimo de Manoel Ferreira de Andrade e Anna Maria de Jesus, natural do Ceará, afim de
verificar praça na Companhia de Aprendizes Marinheiros da cidade de Parnahyba.”
(PARNAÍBA, 1882). Com oito anos, José não tinha completado ainda a idade oficial de ser
aprendiz marinheiro, considerando que o Regulamento dessas Escolas em vigência no
período era o do Decreto nº 1.517, de 4 de janeiro de 1855 que definia o acesso para crianças
de 10 a 17 anos. O mesmo Regulamento valorizava a constituição física como um elemento
que se equiparava à condição da idade no acesso à Escola: “Art. 9º. Também poderão ser
admittidos os que tendo menos de 10 annos de idade se acharem com sufficiente
desenvolvimento physico para começar o aprendizado.” (BRASIL, 1856, p. 11-12). Há indício
de que José atendia a esse critério proposto pelo Artigo 9º citado, já que não tinha a idade
necessária para o acesso à instituição, ou será que não, considerando que se tratava de uma
época posterior a uma seca em que a alimentação era precária?
Vicente é um exemplo de que a condição de pobreza ou possível conhecimento/fascínio
fazia com que os próprios menores se entregassem, voluntariamente, à Companhia de
Aprendizes Marinheiros do Piauí. Saiu de casa, em Teresina, sem o consentimento da família
e se apresentou à instituição, em Parnaíba, (TERESINA, 1880c). Foram encontradas duas
correspondências de seu pai, o viúvo Valdevino José da Rocha solicitando ao Presidente da
Província a gratificação pela a sua entrada na Marinha. Em resposta à primeira
correspondência enviada no dia 22 de abril de 1880 (TERESINA, 1880b) o pedido foi
indeferido com base na informação prestada ao Presidente da Província pelo Capitão do
Porto, José Antonio Correia:
Cumprindo o despacho de V.Excia. exarado na petição de Valdevino José da Rocha, tenho a informar a V.Excia. que tendo-se aprezentado
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voluntariamente na Companhia de Aprendizes Marinheiros desta Cidade, o menor de nome Vicente, filho do peticionario, mandei-o assentar praça no dia 12 do vigente mez [maio de 1880] depois de ter sido julgado apto para o respectivo serviço. (CAPITANIA, 1880).
Não satisfeito com o argumento de seu filho ter se apresentado como voluntário e, por
isso, não ter direito à gratificação de cem mil réis, Valdevino José da Rocha envia ao
Presidente da Província, a sua segunda correspondência, no dia 14 de junho de 1880,
argumentando que:
[...] Entretanto [...] pela circunstancia da menoridade não podia seu dito filho9 dispor de si, sem o prévio consentimento paterno, vem com o mais profundo respeito replicar o respeitavel despacho a V.Exa., no sentido de chamar a sua esclarecida atenção para a circunstancia allegada [...] senão por direito liquido ao menos por equidade, attendendo ainda a demasiada pobresa do suplicante onerado de numerosa família. (TERESINA, 1880c).
A resposta do Presidente da Província continuou a mesma: “Não tem lugar o que requer
o supllicante, visto que seu filho assentou praça, apresentando-se voluntariamente ao Capitão
do Porto.” (TERESINA, 1880c).
O fato da Companhia de Aprendizes Marinheiros ser vista também como espaço de
civilidade fazia com que os tutores encaminhassem os seus menores para serem corrigidos.
Beltrand José Gomes de Carvalho, no dia 16 de dezembro de 1884 entregou ao Presidente da
Província com destino à Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piauí o “[...] menor
Theotonio José de Carvalho, filho natural da fallecida Raimunda Maria da Conceição [...]
dando como razão o procedimento vadio e peralta [...] sem que por meio algum queira
corrigir-se [...]” (TERESINA, 1884c). Theotonio estava sob a responsabilidade do seu tutor
desde os dois anos de idade e no momento de entrar para a Escola contava com dez anos e
dez meses.
A Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piauí e as demais do País, constituíam-se
em ambientes civilizadores, pois recebiam menores da rua e outros considerados
indisciplinados pelos seus tutores que compunha a sua configuração institucional, ou seja,
uma estrutura de pessoas “[...] dependentes entre si [...] através da aprendizagem social, da
educação, socialização e necessidades recíprocas socialmente geradas [...].” (ELIAS, 2011, p.
240). Esse novo ambiente de convívio social era normatizado. Possuía suas regras e condutas
a serem inculcadas na mudança de sentimentos e comportamentos dos futuros marinheiros
rumo a uma direção muito específica, a defesa do próprio País.
9 A correspondência foi escrita por uma outra pessoa. Existia essa função no período. Ovidio do Rego Monteiro era escrivão interino de órfãos, ausentes, capelas e resíduos do termo da cidade de Teresina Capital do Piauí por nomeação legal, conforme documento de 19 de dezembro de 1884. (PIAUÍ, 1884b).
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O controle do comportamento individual, além das regras e dos castigos10 pela falta de
subordinação e disciplina, era a presença constante dos outros, pelo estado de vigília
permanente no interior da Companhia, contudo “[...] ao controle do comportamento pelos
outros vem juntar-se um crescente autocontrole em todas as esferas da vida.” (ELIAS, 1994,
p. 108) Além dos castigos, a admoestação era uma forma de exposição do aprendiz
marinheiro, frente à indisciplina cometida despertando um sentimento de vergonha na
modelação da sua conduta. “A vergonha tira sua coloração específica do fato de que a pessoa
que a sente fez ou está prestes a fazer alguma coisa que a faz entrar em choque com pessoas
[...] e consigo mesma, com o setor de sua consciência mediante o qual controla a si mesma.”
(ELIAS, 1993, p. 242).
A documentação pesquisada revela situação de tentativa de receber duplamente a
gratificação pela entrega de menor, frente à condição de pobreza, como foi o caso do pai
Francisco Pires da Silva, conforme transcrição a seguir: “[...] tendo sua mulher Claudina
Maria da Silva offerecido em sua ausencia, como correio publico, seu filho legitimo Vicente
Pires da Silva para aprendiz de Marinha, requer a V.Exa. se digne mandar-lhe satisfazer a
gratificação a que tem direito [...]” (TERESINA, 1884a). Por solicitação do Presidente da
província, a Contadoria da Fazenda emitiu o seguinte parecer:
Não tem direito ao premio de cem mil reis [...] o suplicante Francisco Pires da Silva, [...] esse menor, que verificou praça na companhia de aprendizes marinheiros á 6 [de março de 1884], foi apresentado não pela mulher do suplicante, na sua ausência, como allega ele, mas pelo delegado de policia deste termo. (PIAUÍ, 1884a).
Na conclusão do processo registrada na correspondência do próprio solicitante, é
informado pelo Palácio do Governo do Piauhy que segundo o delegado de polícia, o menor
Vicente foi entregue pessoalmente na Delegacia pelo seu próprio pai e recebeu a gratificação.
Há, também, uma relação do envio de menores para a Companhia de Aprendizes
Marinheiros com a ocorrência da seca principalmente do Ceará. Fazendo referência à
periodicidade da seca no Brasil, Sampaio (1963, p. 87), informa que:
As sêcas mais severas já experimentadas nos Estados do Norte [do Brasil] ocorreram nos anos seguintes: 1710-1711, 1723-1727, 1736-1737, 1744-1745, 1777-1778, 1784,1790-1793, 1808-1809, 1816-1817, 1824-1825, 1827, 1830, 1833, 1837,1844-1845, 1877-1879,1888-1889, 1898,1900-1903.
10 O Regulamento do Decreto 1.517, de 4 de janeiro de 1855, traz no seu Art. 38, os castigos pelas faltas de subordinação e disciplina: “A prisão simples, a solitaria, a privação temporária de parte da ração, e guardas ou sentinellas dobradas [...].” (BRASIL, 1856, p. 15).
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As secas do triênio 1877-1879 e do biênio 1888-1889 coincidem com o período de
funcionamento da Companhia/Escola de Aprendizes Marinheiros do Piauí e com uma maior
presença de menores nessa instituição, em relação a outros momentos da própria Escola.
Castro (2013, p. 93) fez um levantamento do movimento quantitativo dos menores nessa
instituição na sua primeira trajetória de 1874 a 1897 e observou que:
[...] no período de 1874 a 1876 o número de vagas [no interior da escola] foi superior ao número de menores internos11, chegando a um percentual de até 87% em 187512. No triênio 1877/ 1879 a situação foi inversa, houve um aumento progressivo a partir de 1877, apresentando 126 menores nos meses de setembro e outubro deste ano. Este foi o maior número de alistados encontrado durante toda a trajetória da instituição. Durante o período, [do triênio] o percentual de alistados continuou mais ou menos estável, chegando a excedentes em 1878, [20 menores] [...]. De 1880 a 1889, o número de menores alistados continuou superior ao número de vagas, [...] Nos anos de 1892 a 1897 a situação voltou aos dados iniciais do quadro. [pouco menores de 31 a 60 crianças].
Os dados apresentados indiciam que as secas ocorridas no Norte do Brasil,
principalmente no Ceará, nas décadas de 70 e de 80 do século XIX contribuíram para
aumentar o número de menores na Companhia/ Escola de Aprendizes Marinheiros do Piauí.
Pela proximidade geográfica a Companhia do Rio Grande do Norte, segundo o Relatório do
Ministro de Estado dos Negócios da Marinha, de 1878, pelo mesmo motivo, apresentou um
excedente de dezoito menores, nesse período, sendo a sua lotação máxima de cem
aprendizes. “Foram recebidos nas companhias do Rio Grande do Norte e Piauhy menores
retirantes do Ceará, o que explica o excesso no quadro dessas companhias”. (MARINHA,
1878).
Em 1889, no mapa geral das Companhias do Império, a única que apresentava um
número de menores excedentes era a Companhia da Província do Piauí, (MARINHA, 1889),
sendo necessário aumentar o orçamento previsto para a gratificação dos pais e tutores que
entregasse os seus menores para a instituição, conforme ofício nº 62, de 09 de abril de 1889,
do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros do Piauí ao Presidente da Província,
solicitando o aumento dessa verba:
Existindo apenas a quantia de 200:000 da de 500:000 destinado na verba-engajamentos, e tornando-se cada vez maior o numero dos pais que desejam assentar praça em seus filhos, mediante o premio da lei, peço a VExa. se
11 O número de menores internos variava de 04 a 90 crianças. 12 A meta de atendimento anual dessa instituição era de acordo com a Lei de Fixação da Força Naval para cada
exercício. De 1874 a 1877 a previsão de atendimento anual era de 200 menores; nos anos de 1878, 1880, 1892 e 1893 100 crianças; em 1882 o número ficou em 60; de 1883 a 1885 a meta passou para 90; de 1887 a 1889 reduziu novamente para 50 e de 1895 a 1897 aumentou para 150 menores. (CASTRO, 1913, p. 92).
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digne providenciar no sentido de ser augmentada a referida verba com mais 500:000, afim de poder serem aceitos os referidos menores. (CAPITANIA, 1889).
A historiografia piauiense tem revelado até o momento, o atendimento aos meninos
pobres, órfãos e desvalidos com a criação de escolas para esse fim específico. Entretanto, a
seca do Ceará foi motivo para a criação de uma escola na Província do Piauí, destinada ao
abrigo das meninas órfãs desvalidas, conforme Relatório de 04 de março de 1880, do Vice
Presidente da Província Manoel Ildefonso de Souza Martins:
Sob esta denominação [Collegio Orphanologico], fora destinado por meu antecessor um proprio provincial, n’esta ciadade [Teresina], ao recolhimento de diversas orphãs desvalidas, que as circunstancias calamitosas da sêcca, com que lutou o Ceará, d’onde são filhas, impelliram até nós. Ellas eram soccorridas pela verba ‘socorros publicos’. Attendendo, porém, ao assumir a administração, que não existia n’esta província casa de caridade destinada á recepção de orphãs desvalidas, e tendo em vista a resolução do Conselho de Estado de 11 de dezembro de 1844, a Ord. Liv. 1º Tit. 88, §§ 13 e seguintes, assim como os avisos de 19 de dezembro do mesmo anno e de 16 de agosto de 1860, resolvi pôl-as á disposição do respectivo juiz de orphãos, afim de dál as á soldada, na forma da lei. Esta providencia, se não trouxe de prompto a extincção de tal estabelecimento, facilitou-a vantajosamente; por quanto d’entre 44 orphãs que existiam, ao assumir a administração, 22 foram distribuidas por familias capazes, 22 fiz seguir, de acordo com o juiz de orphãos, para sua província, acompanhadas da então directora d’aquelle collegio. Esta ultima medida foi determinada pela circumstancia de não ter sido possível dar ao resto das orphãs o destino que tiveram as primeiras, visto que rara é a família n’esta cidade, que não tenha em sua casa uma ou mais d’essas desvalidas. Recebidas na capital do Ceará pelo Exmo. Sr. Presidente da província, Dr. José Julio d’Albuquerque Barros, foram aquellas orphãs convenientemente acomodadas. (PIAUÍ, 1880, p. 9-10).
Por essa informação do Colégio Orfanológico ter sido um achado recente, a pesquisa
encontra-se em fase de busca da legislação apresentada na fala do Vice Presidente da
Província para compreender como era o tratamento dado às meninas órfãs e como era
regulado o seu destino na Província do Piauí. Há indícios, pelos dados acima, de que o Juiz de
órfãos, legalmente, fazia a sua distribuição em residências familiares, aptas para o seu
recebimento, para trabalhos remunerados. Situação que parecia comum na época,
considerando que só 50% das menores foram abrigadas em solo piauiense, por falta de casas
familiares para o seu recolhimento, por já dispor de menores desvalidas.
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Considerações Finais
Segundo o estudo feito, um conjunto de fatores mediavam a relação das famílias com a
Companhia/ Escola de Aprendizes Marinheiros do Piauí favorecendo o envio de crianças para
essa instituição no final do século XIX, especificamente nas décadas de 70 e 80, dentre os
quais destacam-se: o estado de pobreza das famílias e dos responsáveis que fazia com que
pai, mãe, tutor e avó encaminhassem os seus menores a essa Escola visando investir na
educação e no futuro dos mesmos; o fato dessa Escola ser vista como um espaço de civilidade
e por fim, a gratificação de cem mil réis dada pela Marinha aos familiares e responsáveis por
cada menor recebido, que se constituía num estímulo, pela condição de pobreza dessa
população, num cenário vitimado por duas grandes secas do Ceará: a do triênio 1877-1879 e a
do biênio 1888-1889, aumentando o estado de mendicância do Piauí.
“As percepções do mundo social [...] são sempre determinadas pelos interesses de
grupo que as forjam.[...]” (CHARTIER, 1990, p. 17), nesse contexto, embora a Companhia de
Aprendizes Marinheiros do Piauí, juntamente com as demais do Brasil, tenham sido criadas
para atender às necessidades formativas de mão obra para a Marinha de Guerra Nacional
proteger o País, essa instituição era um local de acolhimento dos pobres, órfãos e desvalidos e
representava para a família e os responsáveis dos menores, por ela atendidos, um lugar de
civilidade, renda e trabalho. Destaca-se, nesse movimento, o papel do Presidente da
Província como intermediário entre a família, os responsáveis dos menores e a Escola de
Aprendizes Marinheiros do Piauí, considerando que toda a tramitação entre essas partes
passava pelo seu crivo.
Referências
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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 2090
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