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A Igreja.
Os Apóstolos
Sobre o mistério da relação entre Cristo e a Igreja
15 de março de 2006
Queridos irmãos e irmãs
Depois das catequeses sobre os salmos e os cânticos das Laudes e Vésperas, quero dedicar os
próximos encontros de quarta-feira ao mistério da relação entre Cristo e a Igreja,
considerando-o a partir da experiência dos apóstolos, à luz da tarefa que lhes foi confiada. A
Igreja foi constituída sobre o alicerce dos apóstolos como comunidade de fé, de esperança e
de caridade. Através dos apóstolos, remontamos ao próprio Jesus. A Igreja começou a
constituir-se quando alguns pescadores da Galiléia encontrando Jesus, se deixaram conquistar
pelo seu olhar e pela sua voz, pelo seu convite cálido e forte: «Vinde comigo e farei de vós
pescadores de homens» (Marcos 1, 17; Mateus 4, 19).
O meu querido predecessor, João Paulo II, propôs à Igreja, no início do terceiro milênio, a
contemplação do rosto de Cristo (Cf. «Novo millennio ineunte», 16 seguintes). Seguindo nessa
direção, nas catequeses que hoje começo, quero mostrar precisamente que a luz desse Rosto
se reflete no rosto da Igreja (Cf. «Lumen gentium», 1), apesar dos limites e das sombras da
nossa humanidade frágil e pecadora. Depois de Maria, reflexo puro da luz de Cristo, os
apóstolos, com a sua palavra e testemunho, entregam-nos a verdade de Cristo. A sua missão
não é isolada, insere-se no mistério de comunhão que envolve todo o Povo de Deus e se
realiza por etapas, da antiga à nova Aliança.
Neste sentido, há que notar que se transforma totalmente a mensagem de Jesus se ela é
separada do contexto da fé e da esperança do povo eleito: como o Baptista, o seu imediato
precursor, Jesus dirige-se antes de tudo a Israel (Cf. Mateus 15, 24), para «reuni-lo» no tempo
escatológico que com Ele chegou. E, tal como a pregação de João, também a pregação de Jesus
é ao mesmo tempo um chamamento à graça e um sinal de contradição e de julgamento para
todo o povo de Deus. Portanto, desde o primeiro momento da sua actividade salvadora, Jesus
de Nazaré tende a reunir, a purificar o Povo de Deus. Ainda que a sua pregação seja sempre
um chamamento à conversão pessoal, na realidade tende continuamente a constituir o Povo
de Deus que Ele veio reunir e a salvar.
Por este motivo, é unilateral e carece de fundamento a interpretação individualista proposta
pela teologia liberal do anúncio do Reino feito por Cristo. Esta interpretação foi resumida, no
ano de 1900, pelo grande teólogo liberal Adolf von Harnack nas suas conferências sobre «O
que é o cristianismo?»: «O reino de Deus chega na medida em que chega a homens concretos,
encontra eco nas suas almas e estes O acolhem. O reino de Deus é o senhorio de Deus, ou seja,
o senhorio do Deus santo nos diferentes corações» (Terceira Conferência, 100s).
Este individualismo da teologia liberal é acentuado particularmente na modernidade. Na
perspectiva da tradição bíblica e no horizonte do judaísmo, no qual a obra de Jesus se situa
apesar de toda a sua novidade, fica claro que toda a missão do Filho feito carne tem uma
finalidade comunicativa: veio precisamente para unir a humanidade dispersa, veio
precisamente para reunir o Povo de Deus.
Um sinal evidente da intenção do Nazareno de reunir a comunidade da Aliança para
manifestar nela o cumprimento das promessas feitas aos Padres, que sempre falam de
convocação, de unificação, de unidade, é a “escolha” dos Doze. Escutemos o Evangelho da
“eleição” dos Doze. Volto a ler agora a passagem central: «Subiu ao monte e chamou os que
ele quis; e foram até ele. Escolheu doze, para que estivessem com ele, e para enviá-los a
pregar com poder de expulsar os demónios. Escolheu os Doze...» (Marcos 3, 13-16; Cf. Mateus
10, 1-4; Lucas 6, 12-16). No lugar da revelação, o «monte», Jesus, com uma iniciativa que
manifesta absoluta consciência e determinação, designa os Doze para que sejam com Ele
testemunhas e arautos da chegada do Reino de Deus. Sobre o caráter histórico desta chamada
não existem dúvidas, não só pela antiguidade e multiplicidade de testemunhos, mas também
pelo simples facto de que aparece o nome de Judas, o apóstolo traidor, apesar das dificuldades
que esta presença podia implicar para a comunidade nascente. O número Doze, que
evidentemente faz referência às doze tribos de Israel, revela o significado da acção profético-
simbólica implícita na nova iniciativa de voltar a fundar o povo santo. Após o ocaso do sistema
das doze tribos, Israel tinha esperança na sua reconstituição como sinal da chegada do tempo
escatológico (pode ler-se a conclusão do livro de Ezequiel: 37, 15-19; 39, 23-29; 40-48).
Elegendo os Doze, introduzindo-os numa comunhão de vida com Ele e fazendo-os partícipes da
sua própria missão de anúncio do Reino, com palavras e obras (Cf. Marcos 6, 7-13; Mateus 10,
5-8; Lucas 9, 1-6; Lucas 6, 13), Jesus quer dizer que chegou o tempo definitivo no qual
reconstituiu o povo de Deus, o povo das doze tribos, que se converte agora num povo
universal, a sua Igreja.
Com a sua própria existência, os Doze - vindos de origens diferentes - convertem-se no
chamamento de todo o Israel à conversão, a deixar-se reunir na nova Aliança, cumprimento
pleno e perfeito da antiga. Ao ter-lhes confiado a tarefa de celebrar o seu memorial na Ceia,
antes da Paixão, Jesus mostrou que queria transferir para toda a comunidade na pessoa dos
seus líderes o mandato de ser, na história, sinal e instrumento da reunião escatológica
começada por Ele. Em certo sentido, podemos dizer que precisamente a Última Ceia é o acto
de fundação da Igreja, pois Ele entrega-se a si mesmo e cria deste modo uma nova
comunidade, uma comunidade unida na comunhão com Ele mesmo. Nesta perspectiva,
compreende-se que o Ressuscitado lhes tenha conferido - com a efusão do Espírito - o poder
de perdoar os pecados (Cf. João 20, 23). Os doze apóstolos são, deste modo, o sinal mais
evidente da vontade de Jesus sobre a existência e a missão Igreja, a garantia de que entre
Cristo e a Igreja não há contradição: são inseparáveis, apesar dos pecados dos homens que
formam a Igreja. E, portanto, não pode conciliar-se com as intenções de Cristo um slogan que
há alguns anos estava na moda: «Jesus sim, Igreja não». O Jesus individualista é um Jesus
fantasia. Não podemos encontrar Jesus sem a realidade que Ele criou e na qual se comunica.
Entre o Filho de Deus feito carne e sua Igreja existe uma continuidade profunda, inseparável e
misteriosa, em virtude da qual Cristo se faz presente, hoje, no seu povo. Cristo é, sempre,
nosso contemporâneo; contemporâneo na Igreja constituída sobre o fundamento dos
apóstolos, Ele está vivo na sucessão dos apóstolos. E esta Sua presença na comunidade, na
qual Ele sempre se nos dá, é o motivo de nossa alegria. Sim, Cristo está conosco, o Reino de
Deus vem até nós.
Os apóstolos, testemunhas e enviados de Cristo
22 de março de 2006
Queridos irmãos e irmãs:
A Carta aos Efésios apresenta-nos a Igreja como uma construção edificada «sobre o alicerce
dos apóstolos e profetas, tendo como pedra angular o próprio Jesus Cristo» (2, 29). No
Apocalipse, o papel dos apóstolos, e mais especificamente dos Doze, esclarece-se na
perspectiva escatológica da Jerusalém celeste, apresentada como uma cidade cuja muralha
«assenta sobre doze pedras, que têm os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro» (21, 14). Os
Evangelhos coincidem na afirmação de que o chamamento dos apóstolos marcou os primeiros
passos do ministério de Jesus, após o baptismo recebido do Batista nas águas do Jordão.
Segundo a narração de Marcos (1, 16-20) e de Mateus (4, 18-22), o cenário da chamada dos
primeiros apóstolos é o lago da Galiléia. Jesus tinha apenas começado a pregação do Reino de
Deus, quando o seu olhar se dirigiu a dois pares de irmãos: Simão e André, Tiago e João. São
pescadores, empenhados no seu trabalho quotidiano. Lançam as redes, reparam-nas. Mas
uma outra pesca os espera. Jesus chama-os com decisão e eles seguem-no com prontidão: a
partir de agora serão «pescadores de homens» (Cf. Marcos 1, 17; Mateus 4, 19). Lucas, apesar
de seguir a mesma tradição, tem uma narração mais elaborada (5, 1-11). Mostra o caminho de
fé dos primeiros discípulos, precisando que o convite a segui-Lo lhes chega depois de terem
escutado a primeira pregação de Jesus, e depois de terem experimentado os primeiros sinais
prodigiosos realizados por Ele. Em particular, a pesca milagrosa constitui o contexto imediato e
oferece o símbolo da missão de pescadores de homens que lhes é confiado. O destino destes
«chamados», a partir de agora, ficará intimamente ligado ao de Jesus. O apóstolo é um
enviado, mas antes ainda é um «especialista» em Jesus.
Justamente este aspecto é posto em evidência pelo evangelista João depois do primeiro
encontro de Jesus com os futuros apóstolos. Aqui o cenário é diferente. O encontro acontece
nas margens do Jordão. A presença dos futuros discípulos, vindo também eles, como Jesus, da
Galiléia para viver a experiência do batismo ministrado por João, deixa entender o seu mundo
espiritual. Eram homens à espera do Reino de Deus, desejosos de conhecer o Messias, cuja
vinda era anunciada como eminente. Basta que João Batista assinale Jesus como o Cordeiro de
Deus (Cf. João 1, 36), para que surja neles o desejo de um encontro pessoal com o Mestre. O
diálogo de Jesus com os seus primeiros dois futuros apóstolos é muito expressivo. À pergunta:
«Que buscais?», eles respondem com outra pergunta: «Rabbi --que quer dizer “Mestre” --
onde moras?». A resposta de Jesus é um convite «Vinde e vede» (Cf. João 1, 38-39). Vinde para
poder ver. A aventura dos apóstolos começa assim, como um encontro de pessoas que se
abrem reciprocamente. Para os discípulos começa um conhecimento direto do Mestre. Vêem
onde vive e começam a conhecê-lo. Não terão de ser arautos de uma idéia, mas testemunhas
de uma pessoa. Antes de serem enviados a evangelizar, terão de «estar» com Jesus (Cf.
Marcos 3, 14), estabelecendo com ele uma relação pessoal. Com este fundamento, a
evangelização não é mais que um anúncio do que se experimentou e um convite a entrar no
mistério da comunhão com Cristo (Cf. 1 João 13).
A quem serão enviados os apóstolos? No Evangelho, Jesus parece restringir a Israel a sua
missão: «Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel» (Mateus 15, 24). Do
mesmo modo parece circunscrever a missão confiada aos Doze: «A estes doze enviou Jesus,
depois de lhes ter dado as instruções seguintes: «Não vades à terra dos gentios nem entreis
nas cidades dos samaritanos; Ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel» (Mateus 10, 5).
Uma certa crítica moderna de inspiração racionalista tinha visto nestas expressões a falta de
uma consciência universalista do Nazareno. Na realidade, isto compreende-se à luz da sua
relação especial com Israel, comunidade da Aliança, na continuidade da história da salvação.
Segundo a espera messiânica, as promessas divinas, feitas imediatamente a Israel, chegariam
ao seu cumprimento quando o próprio Deus, através de seu Eleito, tivesse reunido o seu povo
como faz um pastor com seu rebanho: «Eu salvarei as minhas ovelhas e não estarão mais
expostas ao perigo... Eu suscitarei para elas um pastor que as apascentará, David meu servo:
ele as apascentará e será seu pastor. Eu, o Senhor, serei o seu Deus, e meu o servo David será
príncipe no meio deles» (Ezequiel 34, 22-24). Jesus é o pastor escatológico que reúne as
ovelhas perdidas da casa de Israel e as procura, porque as conhece e ama (Cf. Lucas 15, 4-7 e
Mateus 18, 12-14; Cf. também a figura do bom pastor em João 10, 11 e seguintes). Através
desta «reunião» anuncia-se o Reino de Deus a todos os povos: «A minha glória manifestou-se
entre as nações, e todas as nações verão o juízo que vou executar e a mão que porei sobre
elas» (Ezequiel 39, 21).
E Jesus segue precisamente este perfil profético. O primeiro passo é a «reunião» do povo de
Israel, para que, assim, todos os povos chamados a reunir-se na comunhão com o Senhor
possam ver e crer. Deste modo, os doze, chamados a participar da própria missão de Jesus,
cooperam com o Pastor dos últimos tempos, dirigindo-se também eles, antes de tudo, às
ovelhas perdidas da casa de Israel, ou seja, ao povo da promessa, cuja reunião é o sinal de
salvação para todos os povos, o inicio da universalização da Aliança. Longe de contradizer a
abertura universalista da ação messiânica do Nazareno, o ter restringido, ao início, a sua
missão e a dos doze a Israel torna-se um sinal profético mais eficaz. Após a paixão e a
ressurreição de Cristo, este sinal será esclarecido: o caráter universal da missão dos apóstolos
ficará explícito. Cristo enviará os apóstolos «por todo o mundo» (Marcos 16, 15), a «todos os
povos» (Mateus 28, 19; Lucas 24, 47, «até os confins da terra» (Atos 1, 8). E esta missão
continua. Continua sempre o mandamento do Senhor de reunir os povos na unidade do seu
amor. Esta é a nossa esperança e este é também o nosso mandamento: contribuir para essa
universalidade, para essa verdadeira unidade na riqueza das culturas, em comunhão com o
nosso verdadeiro Senhor Jesus Cristo.
O dom da "Comunhão"
29 de março de 2006
Queridos irmãos e irmãs
Através do ministério apostólico, a Igreja, comunidade reunida pelo Filho de Deus vindo na
carne, viverá através dos tempos edificando e nutrindo a comunhão em Cristo e no Espírito, à
qual todos são chamados e na qual podem experimentar a salvação dada pelo Pai. Os Doze –
como disse o Papa Clemente, terceiro sucessor de Pedro, no final do século I – tiveram o
cuidado, de fato, de deixar sucessores (Cf. 1 Clemente 42, 4) para que a missão que lhes foi
confiada continuasse depois da sua morte. No decorrer dos séculos, a Igreja, organicamente
estruturada sob a direcção dos legítimos pastores, continuou, também, a viver no mundo
como mistério de comunhão, no qual se reflete em certo sentido a mesma comunhão
trinitária, o mistério do próprio Deus.
Já o apóstolo Paulo menciona este supremo manancial trinitário quando deseja ao seus
cristãos: «A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo
sejam com todos vós» (2 Coríntios 13, 13). Estas palavras, provável eco do culto da Igreja
nascente, evidenciam como o dom gratuito do amor do Pai em Jesus Cristo se realiza e se
expressa na comunhão que actua pelo Espírito Santo. Esta interpretação, baseada no estreito
paralelismo que o texto estabelece entre os três sujeitos («a graça do Senhor Jesus Cristo ... o
amor de Deus ... e a comunhão do Espírito Santo»), apresenta a «comunhão» como dom
específico do Espírito, fruto do amor entregue por Deus Pai e da graça oferecida pelo Senhor
Jesus.
Por outro lado, o contexto imediato, caracterizado pela insistência na comunhão fraterna,
leva-nos a ver na «koinonia» do Espírito Santo não só a «participação» na vida divina quase
individualmente, cada um por si, mas também logicamente a «comunhão» entre os crentes,
que o mesmo Espírito suscita como seu artífice e principal agente (Cf. Filipenses 2, 1). Poder-
se-ia afirmar que graça, amor e comunhão, referidos respectivamente a Cristo, ao Pai e ao
Espírito, são aspectos diversos da única acção divina para a nossa salvação, acção que cria a
Igreja e que faz da Igreja – como diz São Cipriano no século III – «um povo reunido pela
unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo» («De Orat. Dom.», 23: PL 4, 536, citado em
«Lumen gentium», 4).
A idéia da comunhão como participação na vida trinitária é iluminada com particular
intensidade no Evangelho de João, onde a comunhão de amor que une o Filho ao o Pai e aos
os homens é, ao mesmo tempo, o modelo e a fonte da comunhão fraterna, que deve unir os
discípulos entre si: «Amai-vos uns aos outros como eu vos amei» (cf João 15, 12; 13, 34). «Que
eles sejam um, como nós somos um» (João 17, 21. 22). Portanto, comunhão dos homens com
o Deus Trinitário e comunhão dos homens entre si. No tempo da peregrinação terrena, o
discípulo, através da comunhão com o Filho, pode participar já na Sua vida divina e na do Pai:
«nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo» (1 João 1,3). Esta vida de
comunhão com Deus e entre nós é a finalidade própria do anúncio do Evangelho, a finalidade
da conversão ao cristianismo: «o que vimos e ouvimos, nós vos anunciamos também, para que
também vós estejais em comunhão conosco» (1 João 1, 3). Portanto, esta dupla comunhão
com Deus e entre nós é inseparável. Onde se destrói a comunhão com Deus, que é comunhão
com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo, destrói-se também a raiz e a fonte da comunhão
entre nós. E onde não se vive a comunhão entre nós, também não é viva e verdadeira a
comunhão com o Deus Trinitário, como escutamos.
Demos agora o passo seguinte. A comunhão – fruto do Espírito Santo –alimenta-se do Pão
eucarístico (Cf. 1 Corintios 10, 16 -17) e exprime-se nas relações fraternas, numa espécie de
antecipação no mundo futuro. Na Eucaristia Jesus alimenta-nos, une-nos com Ele, com o Pai e
com o Espírito Santo e entre nós, e esta rede de unidade que abraça o mundo é uma
antecipação do mundo futuro no nosso tempo. Deste modo, sendo antecipação do mundo
futuro, a comunhão é um dom que tem, também, consequências muito reais, faz-nos sair da
nossa solidão, do fechamento em nós mesmos, e torna-nos participantes do amor que nos une
a Deus e entre nós. É fácil compreender como é grande este dom, bastando para tal,
pensarmos nas divisões e conflitos que afligem as relações entre os indivíduos, os grupos e
povos inteiros. E se não existir o dom da unidade no Espírito Santo, a divisão da humanidade é
inevitável. A «comunhão» é verdadeiramente a boa nova, o remédio que nos deu o Senhor
contra a solidão que hoje ameaça todos, o dom precioso que nos faz sentir acolhidos e amados
em Deus, na unidade do seu Povo reunido em nome da Trindade; é a luz que faz resplandecer
a Igreja como sinal erguido entre os povos: «Se dizemos que estamos em comunhão com ele, e
caminhamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Mas se caminhamos na luz,
como ele mesmo está na luz, estamos em comunhão uns com os outros» (1 João 1, 6-7). A
Igreja revela-se assim, apesar de todas as fragilidades humanas que pertencem a sua
fisionomia histórica, uma maravilhosa criação de amor, feita para tornar Cristo próximo de
cada homem e cada mulher que queira verdadeiramente encontrá-lo, até o final dos tempos. E
na Igreja o Senhor permanece sempre contemporâneo. A Escritura não é uma coisa do
passado. O Senhor não fala no passado, mas fala no presente, fala hoje connosco, dá-nos a luz,
mostra-nos o caminho da vida, dá-nos a comunhão e assim nos prepara e nos abre à paz.
O serviço à comunhão
05 de abril de 2006
Queridos irmãos e irmãs
Na nova série de catequeses, começada há algumas semanas, queremos considerar as origens
da Igreja para compreender o desígnio originário de Jesus, e deste modo compreender o
essencial da Igreja, que permanece com o passar do tempo. Queremos compreender também
o porquê do nosso estar na Igreja e como temos de nos comprometer a vivê-lo no início de um
novo milênio cristão.
Ao refletir sobre a Igreja nascente, podemos descobrir dois aspectos: um primeiro aspecto é
fortemente sublinhado por Santo Irineu de Lyon, mártir e grande teólogo do final do século II,
o primeiro que nos deixou uma teologia em certo sentido sistemática. Santo Irineu escreve:
«Onde está a Igreja, aí está também o Espírito de Deus; e onde está o Espírito de Deus, aí está
a Igreja e toda graça; pois o Espírito é verdade» («Adversus haereses», III, 24, 1: PG 7, 966).
Portanto, existe uma relação íntima entre o Espírito Santo e a Igreja. O Espírito Santo edifica a
Igreja e dá-lhe a verdade, infunde --como diz São Paulo-- nos corações dos crentes o amor (Cf.
Romanos 5,5).
Mas há também um segundo aspecto. Esta íntima relação com o Espírito não anula nossa
humanidade com toda a sua fraqueza e, deste modo, a comunidade dos discípulos
experimenta desde o início não só a alegria do Espírito Santo, a graça da verdade e do amor,
mas também a provação, sobretudo pelo contraste entre as verdades de fé e as consequentes
lacerações da comunhão. Assim como a comunhão do amor existe desde o início e existirá até
ao fim (Cf. 1 João 1, 1ss), do mesmo modo, por infelicidade, desde o início irrompe também a
divisão. Não temos de nos surpreender pelo facto de que hoje também assim seja: «Saíram
dentre nós --diz a Primeira Carta de João--; mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos
nossos, permaneceriam connosco. Mas sucedeu assim para se ver que nem todos são dos
nossos» (2, 19). Portanto, sempre existe o perigo, nas vicissitudes do mundo e também nas
debilidades da Igreja, de perder a fé, e assim, perder também o amor e a fraternidade.
Portanto, é um dever preciso de quem crê na Igreja do amor e quer viver nela, reconhecer
também este perigo e aceitar que não é possível a comunhão com quem se afastou da
doutrina da salvação (Cf. 2 João 9-11).
Que a Igreja nascente estava claramente consciente das tensões possíveis na experiência da
comunhão mostra-o bem a Primeira Carta de João: não existe outra voz no Novo Testemunho
que se levante com tanta força para sublinhar a realidade do dever do amor fraterno entre os
cristãos; mas essa mesma voz dirige-se com drástica severidade aos adversários, que foram
membros da comunidade e que já não são. A Igreja do amor é também a Igreja da verdade,
entendida antes de tudo como fidelidade ao Evangelho confiado pelo Senhor Jesus aos seus. A
fraternidade cristã nasce pelo facto de todos serem filhos do mesmo Pai pelo Espírito de
verdade: «Com efeito, todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus»
(Romanos 8, 14). Mas a família dos filhos de Deus, para viver na unidade e na paz, necessita de
alguém que a instrua na verdade e a guie com sábio e autorizado discernimento: isto é o que o
ministério dos Apóstolos é chamado a realizar. E aqui chegamos a um ponto importante. A
Igreja é totalmente do Espírito, mas tem uma estrutura, a sucessão apostólica, que tem a
responsabilidade de garantir a permanência da Igreja na verdade doada por Cristo, da qual
também procede a capacidade do amor.
A introdução dos Actos dos Apóstolos expressa com grande eficácia a convergência destes
valores na vida da Igreja nascente: «Eram assíduos à escuta dos ensinamentos dos apóstolos,
ao exercício da comunhão fraterna (koinonia), à fração do pão e às orações» (Atos 2, 42). A
comunhão nasce da fé suscitada pela pregação apostólica, alimenta-se da fracção do pão e da
oração, e exprime-se na caridade fraterna e no serviço. Encontramo-nos ante a descrição da
comunhão da Igreja nascente na riqueza do seu dinamismo interno e da sua expressão visível:
o dom da comunhão é preservado e é promovido em particular pelo ministério apostólico, que
por sua vez é dom para toda a comunidade.
Os apóstolos e seus sucessores são, portanto, os guardiões e as testemunhas autorizadas do
depósito da verdade entregue à Igreja, e são também os ministros da caridade: dois aspectos
que estão ligados. Têm de pensar sempre no caráter inseparável deste duplo serviço, que na
realidade é um só: verdade e caridade, reveladas e doadas pelo Senhor Jesus. Neste sentido,
realizam antes de tudo um serviço de amor: a caridade que têm de viver e promover não pode
separar-se da verdade que preservam e transmitem. A verdade e o amor são duas faces do
mesmo dom: que procede de Deus e que graças ao ministério apostólico é guardado na Igreja
e nos chega até ao presente! Também, através do serviço dos apóstolos e seus sucessores, o
amor de Deus Trindade chega até nós para nos comunicar a verdade que nos faz livres (Cf.
João 8, 32) ! Tudo isto que vemos na Igreja nascente nos leva a rezar pelos Sucessores dos
Apóstolos, por todos os Bispos e pelos Sucessores de Pedro, para que sejam realmente
guardiões da verdade e da caridade; para que sejam, neste sentido, realmente apóstolos de
Cristo, para que a sua luz, a luz da verdade e da caridade não se apague nunca na Igreja e no
mundo.
A comunhão no tempo: a Tradição
26 de abril de 2006
Queridos irmãos e irmãs:
Obrigado pelo vosso afecto! Na nova série de catequeses iniciada há pouco tempo,
procuramos compreender o desígnio originário da Igreja querida pelo Senhor para, assim,
compreender melhor a nossa participação, a nossa vida cristã na grande comunhão da Igreja.
Até agora, compreendemos que a comunhão eclesial é suscitada e sustentada pelo Espírito
Santo, mantida e promovida pelo ministério apostólico. E esta comunhão, à qual chamamos
Igreja, não se estende, somente, a todos os crentes de um certo momento histórico, mas
abraça também todos os tempos e todas as gerações. Portanto, encontramo-nos perante uma
dupla universalidade: a universalidade sincrónica - estamos unidos aos crentes em todas as
partes do mundo - e também uma universalidade dita diacrónica, ou seja, todos os tempos nos
pertencem, também os crentes do passado e os crentes do futuro formam conosco uma única
e grande comunhão.
O Espírito apresenta-se como a garantia da presença activa do mistério na história, Aquele que
assegura a sua realização através dos séculos. Graças ao Paráclito, a experiência do
Ressuscitado feita pela comunidade apostólica na origem da Igreja, poderá sempre ser vivida
pelas gerações seguintes, na medida em que é transmitida e actualizada na fé, no culto e na
comunhão do Povo de Deus, peregrino no tempo. Assim, nós agora, no tempo pascal, vivemos
o encontro com o Ressuscitado não só como algo do passado, mas na comunhão presente da
fé, da liturgia, da vida da Igreja. Nesta transmissão dos bens da salvação, que faz da
comunidade cristã a actualização permanente, com a força do Espírito, da comunhão
originária, consiste a Tradição apostólica da Igreja. É assim chamada, porque nasceu do
testemunho dos apóstolos e da comunidade dos discípulos nos primeiros tempos, foi
transmitida sob a guia do Espírito Santo nos escritos do Novo Testamento e na vida
sacramental, na vida da fé, e a ela - a esta Tradição, que é a realidade sempre actual do dom
de Jesus - a Igreja continuamente se refere como seu fundamento e sua norma através da
sucessão ininterrupta do ministério apostólico.
Jesus, na sua vida histórica, limitava a sua missão à casa de Israel, mas já dava a entender que
o dom era destinado não só ao povo de Israel, mas a todo o mundo e a todos os tempos. O
ressuscitado confia depois explicitamente aos apóstolos (Cf. Lucas 6, 13) a tarefa de fazer
discípulas todas as nações, garantindo a sua presença e sua ajuda até o final dos tempos (Cf.
Mateus 28, 19 seguintes). A universidade da salvação requer, por outro lado, que o memorial
da Páscoa seja celebrado sem interrupção na história até ao regresso glorioso de Cristo (Cf. 1
Coríntios 11, 26). Quem actualizará a presença salvífica do Senhor Jesus, mediante o ministério
dos apóstolos -chefes do Israel escatológico (Cf. Mateus 19, 28) - e por toda a vida do povo da
nova aliança? A resposta é clara: o Espírito Santo. Os Actos dos Apóstolos - na continuidade do
desígnio do Evangelho de Lucas - apresentam ao vivo a união entre o Espírito, os enviados de
Cristo e a comunidade por eles reunida. Graças à acção do Paráclito, os apóstolos e os seus
sucessores podem realizar no tempo a missão recebida do Ressuscitado: «Vós sois
testemunhas disto. E Eu vos enviarei o que o meu Pai prometeu...» (Lucas 24, 48 seguintes).
«Recebereis a força do Espírito Santo, que virá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em
Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins da terra» (Actos 1, 8). E esta
promessa, ao início incredível, realizou-se já no tempo dos apóstolos: «Nós somos
testemunhas destas coisas, assim como o Espírito Santo, dado por Deus aos que lhe
obedecem» (Actos 5, 32).
É, portanto, o próprio Espírito que, mediante a imposição das mãos e a oração dos apóstolos,
consagra e envia os novos missionários do Evangelho (por exemplo, nos Actos 13, 3 seguintes
e 1 Timóteo 4, 14). É interessante observar que, enquanto que em algumas passagens se diz
que Paulo estabelece os presbíteros nas Igrejas (Cf. Actos 14, 23), noutras se afirma que é o
Espírito quem constitui os pastores do rebanho (Cf. Actos 20, 28). A acção do Espírito e a de
Paulo estão deste modo profundamente unidas. Na hora das decisões solenes para a vida da
Igreja, o Espírito está presente para guiá-la. Esta presença-guia do Espírito Santo sente-se
particularmente no Concílio de Jerusalém, em cujas palavras conclusivas ressoa a afirmação:
«decidimos o Espírito Santo e nós...» (Actos 15, 28); a Igreja cresce e caminha «no temor do
Senhor e estava cheia da consolação do Espírito Santo» (Actos 9, 31). Esta permanente
actualização da presença do Senhor Jesus no seu povo, realizada pelo Espírito Santo e expressa
na Igreja pelo ministério apostólico e pela comunhão fraterna, é o que em sentido teológico se
entende pelo termo Tradição: não é a mera transmissão material do que foi entregue ao início
aos apóstolos, mas a presença eficaz do Senhor Jesus, crucificado e ressuscitado, que
acompanha e guia no Espírito a comunidade por Ele reunida.
A Tradição é a comunhão dos fiéis em união com os legítimos pastores no curso da história,
uma comunhão que o Espírito Santo alimenta assegurando o nexo entre a experiência da fé
apostólica, vivida na comunidade originária dos discípulos, e a experiência actual de Cristo na
sua Igreja. Por outras palavras, a Tradição é a continuidade orgânica da Igreja, Templo santo de
Deus Pai, edificado sobre o fundamento dos apóstolos, unidos pela pedra angular, Cristo,
mediante a acção vivificante do Espírito: «Assim, pois, já não sois estranhos nem forasteiros,
mas concidadãos dos santos e familiares de Deus, edificados sobre o fundamento dos
apóstolos e profetas, sendo a pedra angular o próprio Cristo, em quem toda a edificação bem
ordenada se eleva até formar um templo santo no Senhor; N’ Ele também vós estais sendo
conjuntamente edificados, para vos tornardes morada de Deus pelo Espírito» (Efésios 2, 19-
22). Graças à Tradição, garantida pelo ministério dos apóstolos e seus sucessores, a água da
vida derramada do lado de Cristo e seu sangue salvador chegam às mulheres e aos homens de
todos os tempos. Deste modo, a Tradição é a presença permanente do Salvador que vem até
nós, redimir-nos e santificar-nos no Espírito por meio do ministério de sua Igreja para glória do
Pai.
Concluindo e resumindo, podemos, portanto, dizer que a Tradição não é a transmissão de
coisas ou palavras, uma coleção de coisas mortas. A Tradição é o rio vivo que nos une às
origens, o rio vivo no qual as origens estão sempre presentes. O grande rio que nos conduz ao
porto da eternidade. E, sendo assim, neste rio vivo realiza-se sempre de novo a palavra do
Senhor, que escutamos, ao início,
dos lábios do leitor: «Eis aqui que eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo»
(Mateus 28, 20).
A Tradição Apostólica
03 de Maio de 2006
Queridos irmãos e irmãs
Nestas Catequeses desejamos compreender o que é a Igreja. A última vez meditámos sobre o
tema da Tradição apostólica. Vimos que ela não é uma colecção de objectos, de palavras como
uma caixa que contém coisas mortas; a Tradição é o rio da vida nova que vem das origens, de
Cristo até nós, e envolve-nos na história de Deus com a humanidade. Este tema da Tradição é
tão importante que também hoje desejo deter-me sobre ele: de facto, é de grande
importância para a vida da Igreja.
O Concílio Vaticano II realçou, a este propósito, que a Tradição é apostólica antes de tudo nas
suas origens: "Dispôs Deus, em toda a sua benignidade, que tudo quanto revelara para a
salvação de todos os povos permanecesse íntegro para sempre e fosse transmitido a todas as
gerações. Por isso, Cristo Senhor, em quem se consuma toda a revelação de Deus Sumo (cf. 2
Cor 1, 30; 3, 16; 4, 6), mandou aos Apóstolos que pregassem a todos os homens o Evangelho...
como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, comunicando-lhes os
dons divinos" (Const. dogm. Dei Verbum, 7).
O Concílio prossegue, anotando como tal empenho foi fielmente seguido "pelos Apóstolos
que, pela sua pregação oral, exemplos e instituições, comunicaram aquilo que tinham recebido
pela palavra, convivência e obras de Cristo, ou aprendido por inspiração do Espírito Santo"
(ibid.). Com os Apóstolos, acrescenta o Concílio, colaboraram também "varões apostólicos que,
sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a Mensagem da salvação" (ibid.).
Como chefes do Israel escatológico, também eles doze como doze eram as tribos do povo
eleito, os Apóstolos continuam a "recolha" iniciada pelo Senhor, e fazem-no antes de tudo
transmitindo fielmente o dom recebido, a boa nova do Reino que veio até aos homens em
Jesus Cristo. O seu número expressa não só a continuidade com a santa raiz, o Israel das doze
tribos, mas também o destino universal do seu ministério, que leva a salvação até aos
extremos confins da terra. Pode-se captar isto do valor simbólico que têm os números no
mundo semítico: doze resulta da multiplicação de três, número perfeito, e quatro, número que
remete para os quatro pontos cardeais, e portanto para todo o mundo.
A comunidade, que surgiu do anúncio evangélico, reconhece-se convocada pela palavra
daqueles que foram os primeiros a fazer a experiência do Senhor e por Ele foram enviados. Ela
sabe que pode contar com a orientação dos Doze, como também com a de quantos a eles se
associam pouco a pouco como sucessores no ministério da Palavra e no serviço à comunhão.
Por conseguinte, a comunidade sente-se comprometida a transmitir aos outros a "feliz notícia"
da presença actual do Senhor e do seu mistério pascal, que age no Espírito.
Isto é bem evidenciado nalguns trechos do epistolário paulino: "Transmiti-vos... o que eu
próprio recebi" (1 Cor 15, 3). E isto é importante. São Paulo, como se sabe, originariamente
chamado por Cristo com uma vocação pessoal, é um verdadeiro Apóstolo e, contudo, também
para ele conta sobretudo a fidelidade a quanto recebeu. Ele não queria "inventar" um novo
cristianismo, por assim dizer "paulino". Por isso insiste: "Transmiti-vos... o que eu próprio
recebi". Transmitiu o dom inicial que vem do Senhor e é a verdade que salva. Depois, no fim da
vida, escreve a Timóteo: "Guarda, pelo Espírito Santo que habita em nós, o precioso bem que
te foi confiado" (2 Tm 1, 14).
Mostra isto com eficiência também este antigo testemunho da fé cristã, escrita por Tertuliano
por volta do ano 200: "(Os Apóstolos) no princípio afirmaram a fé em Jesus Cristo e
estabeleceram Igrejas para a Judeia e logo a seguir, espalhados pelo mundo, anunciaram a
mesma doutrina e uma mesma fé às nações e, por conseguinte, fundaram Igrejas em cada
cidade. Depois, delas, as outras Igrejas mutuaram a ramificação da sua fé e as sementes da
doutrina, e continuamente a mutuam para serem precisamente Igrejas. Desta forma também
elas são consideradas apostólicas como descendência das Igrejas dos apóstolos" (De
praescriptione haereticorum, 20: PL 2, 32).
O Concílio Vaticano II comenta: "Aquilo que os Apóstolos transmitiram compreende todas
aquelas coisas que são necessárias para que o Povo de Deus viva santamente e para que
aumente a sua fé, e deste modo a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a
todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que ela acredita" (Const. Dei Verbum, 8). A Igreja
transmite tudo o que ela é e crê, transmite-o no culto, na vida, na doutrina. A Tradição é,
portanto, o Evangelho vivo, anunciado pelos Apóstolos na sua integridade, com base na
plenitude da sua experiência única e irrepetível: pela sua acção a fé é comunicada aos outros,
até nós, até ao fim do mundo.
Por conseguinte, a Tradição é a história do Espírito que age na história da Igreja através da
mediação dos Apóstolos e dos seus sucessores, em fiel continuidade com a experiência das
origens. É quanto esclarece o Papa São Clemente Romano nos finais do século I: "Os Apóstolos
escreve ele anunciaram-nos o Evangelho enviados pelo Senhor Jesus Cristo, Jesus Cristo foi
enviado por Deus. Cristo vem portanto de Deus, os Apóstolos de Cristo: ambos procedem
ordinariamente da vontade de Deus... Os nossos Apóstolos chegaram ao conhecimento por
meio de Nosso Senhor Jesus Cristo que teriam surgido contendas acerca da função episcopal.
Por isso, prevendo perfeitamente o futuro, estabeleceram os eleitos e deram-lhe por
conseguinte a ordem, para que, quando morressem, outros homens provados assumissem o
seu serviço" (Ad Corinthios, 42.44: PG 1, 292.296).
Esta corrente do serviço continua até hoje, continuará até ao fim do mundo. De facto, o
mandato conferido por Jesus aos Apóstolos foi por eles transmitido aos seus sucessores. Além
da experiência do contacto pessoal com Cristo, experiência única e irrepetível, os Apóstolos
transmitiram aos Sucessores o envio solene ao mundo recebido do Mestre.
Apóstolo deriva precisamente da palavra grega "apostéllein", que significa enviar. O envio
apostólico como mostra o texto de Mt 28, 19s. exige um serviço pastoral ("fazei discípulos de
todas as nações..."), litúrgico ("baptizai-as...") e profético ("ensinando-lhes a cumprir tudo
quanto vos tenho mandado"), garantido pela proximidade do Senhor até à consumação do
tempo ("eis que Eu estarei convosco todos os dias até ao fim do mundo").
Assim, de uma forma diferente da dos Apóstolos, temos nós também uma experiência
verdadeira e pessoal da presença do Senhor ressuscitado. Através do ministério apostólico é o
próprio Cristo que alcança quem está chamado à fé. A distância dos séculos é superada e o
Ressuscitado oferece-se vivo e operante por nós, no hoje da Igreja e do mundo. Esta é a nossa
grande alegria. No rio vivo da Tradição Cristo não está distante dois mil anos, mas está
realmente presente entre nós e doa-nos a Verdade, e doa-nos a luz que nos faz viver e
encontrar o caminho para o futuro.
A sucessão apostólica
10 de Maio de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Nas últimas duas audiências meditámos sobre o que é a Tradição na Igreja e vimos que ela é a
presença permanente da palavra e da vida de Jesus no seu povo. Mas a palavra, para estar
presente, tem necessidade de uma pessoa, de uma testemunha. E assim nasce esta
reciprocidade: por um lado, a palavra tem necessidade da pessoa, mas, por outro, a pessoa, a
testemunha, está ligada à palavra que lhe foi confiada e que ele não inventou. Esta
reciprocidade entre conteúdo palavra de Deus, vida do Senhor e pessoa que lhe dá
continuidade é característica da estrutura da Igreja, e hoje queremos meditar este aspecto
pessoal da Igreja.
O Senhor tinha-o iniciado convocando, como vimos, os Doze, nos quais estava representado o
futuro Povo de Deus. Na fidelidade ao mandamento recebido do Senhor, primeiro os Doze,
depois da sua Ascensão, integram o seu número com a eleição de Matias no lugar de Judas (cf.
Act 1, 15-26), e depois associam progressivamente outros nas funções que lhe foram
confiadas, para que continuem o seu ministério. O próprio ressuscitado chama Paulo (cf. Gl 1,
1), mas Paulo, mesmo sendo chamado pelo Senhor, confronta o seu Evangelho com o
Evangelho dos Doze (cf. ibid. 1, 18), preocupa-se em transmitir o que recebeu (cf. 1 Cor 11, 23;
15, 3-4) e na distribuição das tarefas é associado aos Apóstolos, juntamente com outros, por
exemplo com Barnabé (cf. Gl 2, 9). Assim como no início da condição de apóstolo há uma
chamada e um envio do Ressuscitado, também a sucessiva chamada e envio de outros
acontecerá, na força do Espírito, por obra de quem já foi constituído no ministério apostólico.
Este é o caminho pelo qual continuará o ministério, que depois, a partir da segunda geração se
chamará ministério episcopal, "episcopé".
Talvez seja útil explicar brevemente o que significa bispo. Vescovo (bispo) è a forma italiana da
palavra grega "epíscopos". Esta palavra indica alguém que tem uma visão do alto, alguém que
olha com o coração. Assim o próprio São Pedro, na sua primeira Carta, chama ao Senhor Jesus
"pastor e bispo, guarda das vossas almas" (2, 25). E segundo este modelo do Senhor, que é o
primeiro bispo, guarda e pastor das almas, os sucessores dos Apóstolos chamaram-se
sucessivamente bispos, "epíscopoi". A eles é confiada a função do "epoiscopé". Esta função
clara do Bispo evolver-se-á progressivamente, em relação ao início, até assumir a forma já
claramente confirmada em Inácio de Antioquia no início do século II (cf. Ad Magnesios, 6, 1: PG
5, 668) do tríplice múnus de bispo, presbítero e diácono. É um desenvolvimento guiado pelo
Espírito de Deus, que assiste a Igreja no discernimento das formas autênticas da sucessão
apostólica, sempre melhor definidas entre uma pluralidade de experiências e de formas
carismáticas e ministeriais, presentes nas comunidades das origens.
Desta forma, a sucessão na função episcopal apresenta-se como continuidade do ministério
apostólico, garantia da perseverança na Tradição apostólica, palavra e vida, que o Senhor nos
confiou. O vínculo entre o Colégio dos Bispos e a comunidade originária dos Apóstolos deve
ser compreendido antes de tudo na linha da continuidade histórica. Como vimos, aos Doze são
depois associados Matias, Paulo, Barnabé, e em seguida outros, até à formação na segunda e
na terceira geração, do ministério do bispo. Por conseguinte, a continuidade exprime-se nesta
sucessão histórica. E na continuidade da sucessão encontra-se a garantia do perseverar, na
continuidade eclesial, do Colégio apostólico reunido por Cristo. Mas esta continuidade, que
vemos primeiro na continuidade histórica dos ministros, deve ser vista também em sentido
espiritual, porque a sucessão apostólica no ministério é considerada como lugar privilegiado da
acção e da transmissão do Espírito Santo. Temos um reflexo claro destas convicções, por
exemplo, no seguinte texto de Ireneu de Lião (segunda metade do século II): "A tradição dos
Apóstolos, manifestada em todo o mundo, mostra-se em cada Igreja a todos os que desejam
ver a verdade e nós podemos enumerar os bispos estabelecidos pelos Apóstolos nas Igrejas e
os seus sucessores até nós... (Os Apóstolos) de facto quiseram que aqueles que deixavam
como sucessores fossem absolutamente perfeitos e irrepreensíveis em tudo, transmitindo-lhes
a própria missão de ensinamento. Se eles tivessem compreendido correctamente, dele teriam
tirado grande proveito; se, ao contrário, falhassem, teriam obtido um dano gravíssimo"
(Adversus haereses, III 3, 1: PG 7, 848).
Depois, Ireneu indicando aqui esta rede da sucessão apostólica como garantia do perseverar
na palavra do Senhor, concentra-se naquela Igreja "suma e antiquíssima e por todos
conhecida" que foi "fundada e constituída em Roma pelos gloriosíssimos Apóstolos Pedro e
Paulo", dando relevo à Tradição da fé, que nela chega até nós pelos Apóstolos mediante a
sucessão dos bispos. Desta forma, para Ireneu e para a Igreja universal, a sucessão episcopal
da Igreja de Roma torna-se o sinal, o critério e a garantia da transmissão ininterrupta da fé
apostólica: "A esta Igreja, pela sua peculiar principalidade (propter potiorem principalitatem),
é necessário que convirjam todas as Igrejas, isto é, os fiéis de todas as partes, porque nela a
tradição dos Apóstolos sempre foi preservada..." (Adversus haereses, III 3, 2: PG 7, 484). A
sucessão apostólica verificada com base na comunhão com a da Igreja de Roma é portanto o
critério da permanência de cada uma das Igrejas na Tradição da comum fé apostólica, que
através deste canal pôde chegar até nós desde as origens: "Com esta ordem e com esta
sucessão chegaram até nós a tradição que existe na Igreja a partir dos Apóstolos e a pregação
da verdade. Esta é a prova mais completa que una e única é a fé vivificante dos Apóstolos, que
foi conservada e transmitida na verdade" (ibid., III, 3, 3; PG 7, 851).
Segundo estes testemunhos da Igreja antiga, a apostolicidade da comunhão eclesial consiste
na fidelidade ao ensinamento e à prática dos Apóstolos, através dos quais é garantido o
vínculo histórico e espiritual da Igreja com Cristo. A sucessão apostólica do ministério
episcopal é o caminho que garante a fiel transmissão do testemunho apostólico. O que os
Apóstolos representam no relacionamento entre o Senhor Jesus e a Igreja das origens,
representa-o analogamente a sucessão ministerial no relacionamento entre a Igreja das
origens e a Igreja actual. Não é uma simples concatenação material; é o instrumento histórico
do qual se serve o Espírito para tornar presente o Senhor Jesus, Chefe do seu povo, através de
quantos são ordenados para o ministério através da imposição das mãos e da oração dos
bispos. Mediante a sucessão apostólica é Cristo que nos alcança: na palavra dos Apóstolos e
dos seus sucessores é Ele quem nos fala; mediante as suas mãos é Ele quem age nos
sacramentos; no olhar deles é o seu olhar que nos envolve e nos faz sentir amados, acolhidos
no coração de Deus. E também hoje, como no início, o próprio Cristo é o verdadeiro pastor e
guarda das nossas almas, que nós seguimos com grande confiança, gratidão e alegria.
Pedro, o pescador
17 de Maio de 2006
Amados Irmãos e Irmãs,
Na nova série de catequeses começámos antes de tudo a compreender melhor o que é a
Igreja, qual é a ideia do Senhor sobre esta sua nova família. Depois dissemos que a Igreja existe
nas pessoas. E vimos que o Senhor confiou esta nova realidade, a Igreja, aos doze Apóstolos.
Agora queremos vê-los um por um, para compreender nas pessoas o que significa viver a
Igreja, o que significa seguir Jesus. Começamos com São Pedro.
Depois de Jesus, Pedro é a personagem mais conhecida e citada nos escritos
neotestamentários: é mencionado 154 vezes com o cognome de Pétros, "pedra", "rocha", que
é a tradução grega do nome aramaico que lhe foi dado directamente por Jesus Kefa, afirmado
nove vezes sobretudo nas cartas de Paulo; depois, deve-se acrescentar o nome frequente
Simòn (75 vezes), que é a forma helenizada do seu original nome hebraico Simeon (2 vezes:
Act 15, 14; 2 Pd 1, 1). Filho de João (cf. Jo 1, 42) ou, na forma aramaica, bar-Jona, filho de Jonas
(cf. Mt 16, 17), Simão era de Betsaida (cf. Jo 1, 44), uma cidadezinha a oriente do mar da
Galileia, da qual provinha também Filipe e naturalmente André, irmão de Simão. O seu modo
de falar traía o sotaque galileu. Também ele, como o irmão, era pescador: com a família de
Zebedeu, pai de Tiago e de João, dirigia uma pequena empresa de pesca no lago de Genesaré
(cf. Lc 5, 10). Por isso devia gozar de um certo bem-estar económico e era animado por um
sincero interesse religioso, por um desejo de Deus ele queria que Deus interviesse no mundo
um desejo que o estimulou a ir com o irmão até à Judeia para seguir a pregação de João
Baptista (cf. Jo 1, 35-42).
Era um judeu crente e praticante, confiante na presença activa de Deus na história do seu
povo, e sofria por não ver a sua acção poderosa nas vicissitudes das quais ele era, naquele
momento, testemunha. Era casado e a sogra, curada um dia por Jesus, vivia na cidade de
Cafarnaum, na casa na qual também Simão vivia quando estava naquela cidade (cf. Mt 8, 14 s;
Mc 1, 29 s; Lc 4, 38 s).
Recentes escavações arqueológicas permitiram trazer à luz, sob a pavimentação em mosaicos
octagonais de uma pequena igreja bizantina, os vestígios de uma igreja mais antiga existente
naquela casa, como afirmam os grafites com invocações a Pedro. Os Evangelhos informam-nos
que Pedro é um dos primeiros quatro discípulos do Nazareno (cf. Lc 5, 1-11), aos quais se junta
um quinto, segundo o costume de cada Rabino de ter cinco discípulos (cf. Lc 5, 27: chamada de
Levi).
Quando Jesus passa de cinco para doze discípulos (cf. Lc 9, 1-6), será clara a novidade da sua
missão: Ele já não é um entre tantos rabinos, mas veio para reunir o Israel escatológico,
simbolizado pelo número doze, como doze eram as tribos de Israel.
Simão aparece nos Evangelhos com um carácter decidido e impulsivo; ele está disposto a fazer
valer as próprias razões também com a força (pense-se no uso da espada no Horto das
Oliveiras: cf. Jo 18, 10 s). Ao mesmo tempo, por vezes é também ingénuo e medroso, e
contudo honesto, até ao arrependimento mais sincero (cf. Mt 26, 75). Os Evangelhos
permitem seguir passo a passo o seu itinerário espiritual. O ponto de partida é a chamada da
parte de Jesus. Acontece num dia qualquer, enquanto Pedro está empenhado no seu trabalho
de pescador. Jesus encontra-se junto do lago de Genesaré e a multidão reúne-se à sua volta
para o ouvir. O número dos ouvintes gera uma certa confusão. O Mestre vê duas barcas
ancoradas à margem; os pescadores desceram e lavam as redes. Então Ele pede para entrar na
barca, na de Simão, e pede-lhe que se faça ao largo. Sentado naquela cátedra improvisada, da
barca, começa a ensinar à multidão (cf. Lc 5, 1-3). E assim a barca de Pedro torna-se a cátedra
de Jesus. Quando terminou de falar, diz a Simão: "Faz-te ao largo e lança as redes para a
pesca". Simão responde: "Mestre, trabalhámos durante toda a noite e nada apanhámos; mas,
porque tu o dizes, lançarei as redes" (Lc 5, 4-5). Jesus, que era um carpinteiro, não era perito
em pesca: mas Simão, o pescador, confia neste Rabino, que não lhe dá respostas mas o chama
a ter confiança. A sua reacção diante da pesca milagrosa é de admiração e de trepidação:
"Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador" (Lc 5, 8). Jesus responde
convidando-o a ter confiança e a abrir-se a um projecto que ultrapassa qualquer sua
perspectiva: "Não tenhas receio; de futuro, serás pescador de homens" (Lc 5, 10). Pedro ainda
não podia imaginar que um dia teria chegado a Roma e seria nessa cidade "pescador de
homens" para o Senhor. Ele aceita esta chamada surpreendente, de se deixar envolver nesta
grande aventura: é generoso, reconhece os seus limites, mas crê n'Aquele que o chama e
segue o sonho do seu coração. Diz sim um sim corajoso e generoso e torna-se discípulo de
Jesus.
Pedro vive outro momento significativo no seu caminho espiritual nas proximidades de
Cesareia de Filipe, quando Jesus faz aos discípulos uma pergunta concreta: "Quem dizem os
homens que Eu sou?" (Mc 8, 27). Mas para Jesus não era suficiente a resposta do ter ouvido
dizer. Daqueles que aceitaram comprometer-se pessoalmente com Ele pretende uma tomada
de posição pessoal. Por isso insiste: "E vós, quem dizeis que Eu sou?" (Mc 8, 29). Responde
Pedro também em nome dos outros: "Tu és o Messias" (ibid.), isto é, Cristo. Esta resposta de
Pedro, que não veio "da carne e do sangue" dele, mas foi-lhe concedida pelo Pai que está no
céu (cf. Mt 16, 17), tem em si como que em gérmen a futura confissão de fé da Igreja.
Contudo, Pedro ainda não tinha compreendido o conteúdo profundo da missão messiânica de
Jesus, o novo sentido desta palavra: Messias.
Demonstra-o pouco depois, deixando compreender que o Messias que persegue nos seus
sonhos é muito diferente do verdadeiro projecto de Deus. Perante o anúncio da paixão
escandaliza-se e protesta, suscitando uma reacção enérgica de Jesus (cf. Mc 8, 32-33). Pedro
quer um Messias "homem divino", que cumpra as expectativas do povo impondo a todos o seu
poder: é também nosso desejo que o Senhor imponha o seu poder e transforme
imediatamente o mundo; Jesus apresenta-se como o "Deus humano", o servo de Deus, que
altera as expectativas da multidão encaminhando-se por uma via de humildade e de
sofrimento. É a grande alternativa, que também nós devemos aprender sempre de novo:
privilegiar as próprias expectativas recusando Jesus ou acolher Jesus na verdade da sua missão
e abandonando as expectativas demasiado humanas.
Pedro impulsivo como é não hesita em repreender Jesus separadamente. A resposta de Jesus
abala todas as suas falsas expectativas, quando o chama à conversão e ao seguimento: "Vai-te
da minha frente, Satanás, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos
homens" (Mc 8, 33). Não me indiques tu o caminho, eu sigo o meu percurso e tu põe-te atrás
de mim.
Pedro aprende desta forma o que significa verdadeiramente seguir Jesus. É a sua segunda
chamada, análoga à de Abraão em Gn 22, depois de Gn 12: "Se alguém quiser vir após mim,
negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Na verdade, quem quiser salvar a sua vida,
há-de perdê-la, mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há-de salvá-la"
(Mc 8, 34-35). É a lei exigente do seguimento: é preciso saber renunciar, se for necessário, ao
mundo inteiro para salvar os verdadeiros valores, para salvar a alma, para salvar a presença de
Deus no mundo (cf. Mc 8, 36-37). Mesmo com dificuldade, Pedro aceita o convite e prossegue
o seu caminho seguindo os passos do Mestre.
Parece-me que estas diversas conversões de São Pedro e toda a sua figura são de grande
conforto e um forte ensinamento para nós. Também nós sentimos o desejo de Deus, também
nós queremos ser generosos, mas também nós esperamos que Deus seja forte no mundo e
transforme imediatamente o mundo segundo as nossas ideias, segundo as necessidades que
vemos. Deus escolhe outro caminho. Deus escolhe o caminho da transformação dos corações
no sofrimento e na humildade. E nós, como Pedro, devemos converter-nos sempre de novo.
Devemos seguir Jesus em vez de o preceder: é Ele quem nos indica o caminho. Assim Pedro
diz-nos: Tu pensas que tens a receita e que deves transformar o cristianismo, mas é o Senhor
quem conhece o caminho. É o Senhor que diz a mim, diz a ti: segue-me! E devemos ter
coragem e humildade para seguir Jesus, porque Ele é o caminho, a Verdade e a Vida.
Pedro, o apóstolo
24 de Maio de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Nestas catequeses estamos a meditar sobre a Igreja. Dissemos que a Igreja vive nas pessoas e,
por isso, na última catequese, começámos a meditar sobre as figuras de cada um dos
Apóstolos, começando por São Pedro. Vimos duas etapas decisivas da sua vida: a chamada
junto do Lago da Galileia e, depois, a profissão de fé: "Tu és Cristo, o Messias". Uma confissão,
dissemos, ainda insuficiente, inicial e contudo aberta. São Pedro coloca-se num caminho de
seguimento. E assim, esta confissão inicial tem em si, como em gérmen, já a futura fé da Igreja.
Hoje queremos considerar outros dois acontecimentos importantes na vida de Pedro: a
multiplicação dos pães ouvimos no trecho agora lido a pergunta do Senhor e a resposta de
Pedro e depois o Senhor que chama Pedro para ser pastor da Igreja universal.
Comecemos com a vicissitude da multiplicação dos pães. Vós sabeis que o povo tinha ouvido o
Senhor durante horas. No fim, Jesus diz: estão cansados, têm fome, devemos dar de comer a
este povo. Os Apóstolos perguntam: Mas como? E André, irmão de Pedro, chama a atenção de
Jesus para um jovem que levava consigo cinco pães e dois peixes. Mas o que são para tantas
pessoas, interrogam-se os Apóstolos. Mas o Senhor faz sentar as pessoas e distribuir estes
cinco pães e os dois peixes e todos se saciam. Aliás, o Senhor encarrega os Apóstolos, e entre
eles Pedro, que recolham o que sobrou em abundância: doze cestas de pão (cf. Jo 6, 12-13).
Sucessivamente o povo, vendo este milagre que parece ser a renovação, tão esperada de um
novo "maná", do dom do pão do céu deseja fazer dele o seu rei. Mas Jesus não aceita e retira-
se para o monte para rezar sozinho. No dia seguinte, Jesus na outra margem do lago, na
Sinagoga de Cafarnaum, interpretou o milagre não no sentido de uma realeza sobre Israel com
um poder deste mundo no modo esperado pela multidão, mas no sentido da doação de si: "o
pão que Eu hei-de dar é a minha carne, pela vida do mundo" (Jo 6, 51). Jesus anuncia a cruz, e
com a cruz a verdadeira multiplicação dos pães, o pão eucarístico o seu modo absolutamente
novo de ser rei, um modo totalmente contrário às expectativas do povo.
Nós podemos compreender como estas palavras do Mestre que não deseja cumprir todos os
dias uma multiplicação dos pães, que não quer oferecer a Israel um poder deste mundo
pareciam verdadeiramente difíceis, aliás, inaceitáveis para a multidão. "Da sua carne": O que
significa? E também para os discípulos é inaceitável o que Jesus diz neste momento. Era e é
para o nosso coração, para a nossa mentalidade, um sermão "duro", que provava a fé (cf. Jo 6,
60). Muitos dos discípulos se afastaram. Queriam alguém que renovasse realmente o Estado
de Israel, do seu povo, e não um que dizia: "Eu dou a minha carne". Podemos imaginar como
as palavras de Jesus eram difíceis também para Pedro, que em Cesareia de Filipe se tinha
oposto à profecia da cruz. E contudo quando Jesus perguntou aos doze: "Quereis retirar-vos
vós também?", Pedro reagiu com o impulso do seu coração generoso, guiado pelo Espírito
Santo. Em nome de todos respondeu com palavras imortais, que são também nossas: "Senhor,
a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna; nós cremos e conhecemos que tu és o Santo
de Deus" (cf. Jo 6, 66-69).
Aqui, como em Cesareia, com as suas palavras Pedro começa a profissão da fé cristológica da
Igreja e torna-se também o intérprete dos outros Apóstolos e também de nós, crentes de
todos os tempos. Isto não significa que já tivesse compreendido o mistério de Cristo em toda a
sua profundidade. A sua fé ainda estava no início, uma fé a caminho; teria chegado à
verdadeira plenitude apenas mediante a experiência dos acontecimentos pascais. Mas
contudo já era fé, aberta à realidade maior aberta sobretudo porque não era fé em algo, era fé
em Alguém: n'Ele, Cristo. Assim, também a nossa fé é sempre uma fé inicial, e devemos
percorrer ainda um longo caminho. Mas é fundamental que seja uma fé aberta e que nos
deixemos guiar por Jesus, porque Ele não só conhece o Caminho, mas é o Caminho.
Mas a generosidade impetuosa de Pedro não o salvaguarda dos riscos relacionados com a
debilidade humana. De resto, é o que também nós podemos reconhecer com base na nossa
vida. Pedro seguiu Jesus com ímpeto, superou a prova da fé, abandonando-se a Ele. Contudo
chega o momento no qual também ele cede aos receios e cai: trai o Mestre (cf. Mc 14, 66-72).
A escola da fé não é uma marcha triunfal, mas um caminho repleto de sofrimentos e de amor,
de provas e de fidelidade a ser renovada todos os dias. Pedro, que já tinha prometido
fidelidade absoluta, conhece a amargura e a humilhação da renegação: o atrevido aprende à
sua custa a humildade. Também Pedro deve aprender a ser frágil e carente de perdão. Quando
finalmente perde a máscara e compreende a verdade do seu coração frágil de pecador crente,
cai num libertador choro de arrependimento. Depois deste choro ele já está pronto para a sua
missão.
Numa manhã de Primavera esta missão ser-lhe-á confiada por Jesus ressuscitado. O encontro
será na margem do lago de Tiberíades. O evangelista João narra-nos o diálogo que naquela
circunstância se realiza entre Jesus e Pedro. Nele revela-se um jogo de verbos muito
significativo. Em grego o verbo "filéo" expressa o amor de amizade, terno mas não totalizante
enquanto o verbo "agapáo" significa o amor sem reservas, total e incondicionado. Jesus
pergunta a Pedro pela primeira vez: "Simão... tu amas-Me (agapâs-me)" com este amor total e
incondicionado ( cf. Jo 21, 15)? Antes da experiência da traição o Apóstolo teria certamente
respondido: "Amo-Te (agapô-se) incondicionalmente". Agora, que conheceu a amarga tristeza
da infidelidade, o drama da própria debilidade, diz apenas: "Senhor... tu sabes que sou deveras
teu amigo (filô-se), isto é, "amo-te com o meu pobre amor humano". Cristo insiste: "Simão, tu
amas-Me com este amor total que Eu quero?". E Pedro repete a resposta do seu humilde amor
humano: "Kyrie, filô-se", "Senhor, tu sabes que eu sou deveras teu amigo". Pela terceira vez
Jesus pergunta a Simão: "Fileîs-me?", "tu amas-Me?". Simão compreende que para Jesus é
suficiente o seu pobre amor, o ùnico de que é capaz, e contudo sente-se entristecido porque o
Senhor teve que lhe falar daquele modo. Por isso, responde: "Senhor, Tu sabes tudo; Tu bem
sabes que eu sou deveras teu amigo! (filô-se)". Seria para dizer que Jesus se adaptou a Pedro,
e não Pedro a Jesus! É precisamente esta adaptação divina que dá esperança ao discípulo, que
conheceu o sofrimento da infidelidade. Surge daqui a confiança que o torna capaz do
seguimento até ao fim: "E disse isto para indicar o género de morte com que ele havia de dar
glória a Deus. Depois destas palavras acrescentou: "Segue-Me"!" (Jo 21, 19).
A partir daquele dia Pedro "seguiu" o Mestre com a clara consciência da própria fragilidade;
mas esta consciência não o desencorajou. De facto, ele sabia que podia contar com a presença
do Ressuscitado. Dos ingénuos entusiasmos da adesão inicial, passando pela experiência
dolorosa da negação e pelo choro da conversão, Pedro alcançou a confiança naquele Jesus que
se adaptou à sua pobre capacidade de amor. E mostra assim também a nós o caminho, apesar
da nossa debilidade. Sabemos que Jesus se adapta a esta nossa debilidade.
Nós seguimo-lo com a nossa capacidade de amor e sabemos que Jesus é bom e nos aceita.
Para Pedro foi um longo caminho que fez dele uma testemunha de confiança, "pedra" da
Igreja, porque constantemente aberto à acção do Espírito de Jesus. O próprio Pedro qualificar-
se-á como "testemunha dos padecimentos de Cristo e também participante da glória que se
há-de manifestar" (1 Pd 5, 1). Quando escreveu estas palavras já era idoso, encaminhado para
a conclusão da sua vida que selou com o martírio.
Então, foi capaz de descrever a alegria verdadeira e de indicar de onde ela pode ser obtida: a
fonte é Cristo acreditado e amado com a nossa fé frágil mas sincera, apesar da nossa
fragilidade. Por isso escreveu aos cristãos da sua comunidade, e di-lo também a nós: "Sem o
terdes visto, vós o amais; sem o ver ainda, credes nele e vos alegrais com uma alegria
indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a salvação das almas" (1 Pd 1,
8-9).
Pedro, a rocha sobre a qual Cristo fundou a Igreja
7 de Junho de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Retomamos as catequeses semanais que iniciámos nesta primavera. Na última, de há quinze
dias, falei de Pedro como o primeiro dos Apóstolos; hoje, queremos voltar mais uma vez sobre
esta grande e importante figura da Igreja. O evangelista João, narrando o primeiro encontro de
Jesus com Simão, irmão de André, registra um acontecimento singular: Jesus, "fixando nele o
olhar... disse: "Tu és Simão, o filho de João. Hás-de chamar-te Cefas que significa Pedra"" (Jo 1,
42). Jesus não costumava mudar o nome aos seus discípulos. Se excluirmos o apelativo de
"filhos do trovão", dirigido numa circunstância precisa aos filhos de Zebedeu (cf. Mc 3, 17) que
não voltou a usar sucessivamente, Ele nunca atribuiu um novo nome a um discípulo seu. Mas
fê-lo com Simão, chamado-o Cefas, nome que depois foi traduzido em grego Petros, em latim
Petrus. E foi traduzido precisamente porque não era só um nome; era um "mandato" que
Pedro recebia daquele modo do Senhor. O novo nome Petrus voltará várias vezes nos
Evangelhos e terminará por substituir o nome originário, Simão.
O facto adquire relevo particular se se considera que, no Antigo Testamento, a mudança do
nome anunciava em geral a designação de uma missão (cf. Gn 17, 5; 32, 28ss, etc.). De facto, a
vontade de Cristo de atribuir a Pedro um papel especial no âmbito do Colégio apostólico
resulta de numerosos indícios: em Cafarnaum o Mestre é hospedado em casa de Pedro (Mc 1,
29); quando a multidão se comprime nas margens do lago de Genesaré, entre as duas barcas
ali ancoradas, Jesus escolhe a de Simão (Lc 5, 3); quando em circunstâncias particulares Jesus
se faz acompanhar só por três discípulos, Pedro é sempre recordado como primeiro do grupo:
assim na ressurreição da filha de Jairo (cf. Mc 9, 2; Mt 17, 1; Lc 9, 28), e por fim durante a
agonia no Horto do Getsémani (cf. Mc 14, 33; Mt 16, 37). E ainda: dirigem-se a Pedro os
cobradores do imposto para o Templo e o Mestre paga para si e somente para ele (cf. Mt 17,
24-27); a quem lava primeiro os pés é a Pedro (cf. Jo 13, 6) e reza unicamente por ele para que
não lhe venha a faltar a fé e possa depois confirmar nela os outros discípulos (cf. Lc 22, 30-31).
De resto, o próprio Pedro tem consciência desta sua posição particular: com frequência é ele
que, em nome também dos outros, toma a palavra para pedir a explicação de uma parábola
difícil (Mt 15, 15), ou o sentido exacto de um preceito (Mt 18, 21) ou a promessa formal de
uma recompensa (Mt 19, 27). Em particular, é ele quem resolve o embaraço de determinadas
situações intervindo em nome de todos. E também quando Jesus, desanimado pela
incompreensão da multidão depois do discurso sobre o "pão de vida", pergunta: "Também vós
quereis ir embora?", a resposta de Pedro é peremptória: "Senhor, a quem iremos? Tu tens
palavras de vida eterna" (cf. Jo 6, 67-69). Igualmente decidida é a profissão de fé que, ainda
em nome dos Doze, ele faz perto de Cesareia de Filipe. A Jesus que pergunta: "Vós quem dizeis
que Eu sou?", Pedro responde: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16, 15-16). Em
resposta Jesus pronuncia então a declaração solene que define, de uma vez para sempre, o
papel de Pedro na Igreja: "Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a
minha Igreja... Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no
Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu" (Mt 16. 18-19). As três metáforas
às quais Jesus recorre são em si muito claras: Pedro será o fundamento rochoso sobre o qual
apoiará o edifício da Igreja; ele terá as chaves do Reino dos céus para abrir ou fechar a quem
melhor julgar; por fim, ele poderá ligar ou desligar no sentido que poderá estabelecer ou
proibir o que considerar necessário para a vida da Igreja, que é e permanece Cristo. É sempre
Igreja de Cristo e não de Pedro. Deste modo, é descrito com imagens de plástica evidência o
que a reflexão sucessiva qualificará com a palavra de "primazia de jurisdição".
Esta posição de preeminência que Jesus decidiu conferir a Pedro verifica-se também depois da
ressurreição: Jesus encarrega as mulheres de ir anunciar a Pedro, distintamente dos outros
Apóstolos (cf. Mc 16, 7); Madalena vai ter com ele e com João para os informar que a pedra
tinha sido afastada da entrada do sepulcro (cf. Jo 20, 2) e João dá-lhe a precedência quando
chegam diante do túmulo vazio (cf. Jo 20, 4-6); será depois Pedro, entre os Apóstolos, a
primeira testemunha de uma aparição do Ressuscitado (cf. Lc 24, 34; 1 Cor 15, 5). Este seu
papel, realçado com decisão (cf. Jo 20, 3-10), marca a continuidade entre a preeminência
obtida no grupo apostólico e a preeminência que continuará a ter na comunidade que nasceu
depois dos acontecimentos pascais, como afirma o Livro dos Actos (cf. 1, 15-26; 2, 14-40; 3, 12-
26; 4, 8-12; 5, 1-11.29; 8, 14-17; 10; etc.). O seu comportamento é considerado tão decisivo,
que está no centro de observações e também de críticas (cf. Act 11, 1-18; Gl 2, 11-14). Ao
chamado Concílio de Jerusalém Pedro desempenha uma função directiva (cf. Act 15 3; Gl 2, 1-
10), e precisamente por este seu ser como testemunha da fé autêntica o próprio Paulo
reconhecerá nele uma certa qualidade de "primeiro" (cf. 1 Cor 15, 5; Gl 1, 18; 2, 7s.; etc.).
Depois, o facto de que vários textos-chave relativos a Pedro possam ser relacionados com o
contexto da Última Ceia, na qual Cristo confere a Pedro o ministério de confirmar os irmãos
(cf. Lc 22, 31s.), mostra como a Igreja que nasce do memorial pascal celebrado na Eucaristia
tenha no ministério confiado a Pedro um dos seus elementos constitutivos.
Esta contextualização da Primazia de Pedro na Última Ceia, no momento institutivo da
Eucaristia, Páscoa do Senhor, indica também o sentido último desta Primazia: Pedro deve ser,
para todos os tempos, o guardião da comunhão com Cristo; deve guiar à comunhão com
Cristo; deve preocupar-se por que a rede não se rompa e assim possa perdurar a comunhão
universal. Só juntos podemos estar com Cristo, que é o Senhor de todos. A responsabilidade de
Pedro é garantir assim a comunhão com Cristo com a caridade de Cristo, conduzindo à
realização desta caridade na vida de todos os dias. Rezemos para que a Primazia de Pedro,
confiada a pobres pessoas humanas, possa ser sempre exercida neste sentido originário
querido pelo Senhor e, assim, possa ser cada vez mais reconhecida no seu verdadeiro
significado pelos irmãos que ainda não estão em plena comunhão connosco.
André, o Protóklitos
14 de Junho de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Nas últimas duas catequeses falámos da figura de São Pedro. Agora queremos, na medida em
que as fontes o permitem, conhecer mais de perto também os outros onze Apóstolos.
Portanto, falamos hoje do irmão de Simão Pedro, Santo André, também ele um dos Doze. A
primeira característica que em André chama a atenção é o nome: não é hebraico, como
teríamos pensado, mas grego, sinal de que não deve ser minimizada uma certa abertura
cultural da sua família. Estamos na Galileia, onde a língua e a cultura gregas estão bastante
presentes. Nas listas dos Doze, André ocupa o segundo lugar, como em Mateus (10, 1-4) e em
Lucas (6, 13-16), ou o quarto lugar como em Marcos (3, 13-18) e nos Actos (1, 13-14). Contudo,
ele gozava certamente de grande prestígio nas primeiras comunidades cristãs.
O laço de sangue entre Pedro e André, assim como a comum chamada que Jesus lhes faz,
sobressaem explicitamente nos Evangelhos. Neles lê-se: "Caminhando ao longo do mar da
Galileia, Jesus viu os dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam as
redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes: "Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de
homens"" (Mt 4, 18-19; Mc 1, 16-17). Do Quarto Evangelho tiramos outro pormenor: num
primeiro momento, André era discípulo de João Baptista; e isto mostra-nos que era um
homem que procurava, que partilhava a esperança de Israel, que queria conhecer mais de
perto a palavra do Senhor, a realidade do Senhor presente. Era verdadeiramente um homem
de fé e de esperança; e certa vez, de João Baptista ouviu proclamar Jesus como "o cordeiro de
Deus" (Jo 1, 36); então ele voltou-se e, juntamente com outro discípulo que não é nomeado,
seguiu Jesus, Aquele que era chamado por João o "Cordeiro de Deus". O evangelista narra: eles
"viram onde morava e ficaram com Ele nesse dia" (Jo 1, 37-39). Portanto, André viveu
momentos preciosos de familiaridade com Jesus.
A narração continua com uma anotação significativa: "André, o irmão de Simão Pedro, era um
dos dois que ouviram João e seguiram Jesus. Encontrou primeiro o seu irmão Simão, e disse-
lhe: "Encontramos o Messias" que quer dizer Cristo. E levou-o até Jesus" (Jo 1, 40-43),
demonstrando imediatamente um espírito apostólico não comum. Portanto, André foi o
primeiro dos Apóstolos a ser chamado para seguir Jesus. Precisamente sobre esta base a
liturgia da Igreja Bizantina o honra com o apelativo de Protóklitos, que significa exactamente
"primeiro chamado". E não há dúvida de que devido ao relacionamento fraterno entre Pedro e
André a Igreja de Roma e a Igreja de Constantinopla se sentem irmãs entre si de modo
especial. Para realçar este relacionamento, o meu Predecessor, o Papa Paulo VI, em 1964,
restituiu as insignes relíquias de Santo André, até então conservadas na Basílica Vaticana, ao
Bispo metropolita Ortodoxo da cidade de Patrasso na Grécia, onde segundo a tradição o
Apóstolo foi crucificado.
As tradições evangélicas recordam particularmente o nome de André noutras três ocasiões,
que nos fazem conhecer um pouco mais este homem. A primeira é a da multiplicação dos pães
na Galileia. Naquele momento foi André quem assinalou a Jesus a presença de um jovem que
tinha cinco pães de cevada e dois peixes: era muito pouco observou ele para todas as pessoas
reunidas naquele lugar (cf. Jo 6, 8-9). Merece ser realçado, neste caso, o realismo de André:
ele viu o jovem portanto já se tinha perguntado: "mas o que é isto para tantas pessoas?" (ibid.)
mas apercebeu-se da insuficiência dos seus poucos recursos. Contudo, Jesus soube fazê-los
bastar para a multidão de pessoas que vieram ouvi-lo. A segunda ocasião foi em Jerusalém.
Saindo da cidade, um discípulo fez notar a Jesus o espectáculo dos muros sólidos sobre os
quais o Templo se apoiava. A resposta do Mestre foi surpreendente: disse que não teria ficado
em pé nem sequer uma pedra daqueles muros. Então André, juntamente com Pedro, Tiago e
João, interrogou-o: "Diz-nos quando tudo isto acontecerá e qual o sinal de que tudo está para
acabar" (Mc 13, 1-4).
Para responder a esta pergunta Jesus pronunciou um importante discurso sobre a destruição
de Jerusalém e sobre o fim do mundo, convidando os seus discípulos a ler com atenção os
sinais do tempo e a permanecer sempre vigilantes. Podemos deduzir deste episódio que não
devemos ter receio de fazer perguntas a Jesus, mas ao mesmo tempo devemos estar prontos
para receber os ensinamentos, até surpreendentes e difíceis, que Ele nos oferece.
Por fim, nos Evangelhos está registrada uma terceira iniciativa de André. O Cenário ainda é
Jerusalém, pouco antes da Paixão. Para a festa da Páscoa narra João tinham vindo à cidade
santa alguns Gregos, provavelmente prosélitos ou tementes a Deus, que vinham para adorar o
Deus de Israel na festa da Páscoa. André e Filipe, os dois apóstolos com nomes gregos, servem
como intérpretes e mediadores deste pequeno grupo de Gregos junto de Jesus. A resposta do
Senhor à sua pergunta parece como muitas vezes no Evangelho de João enigmática, mas
precisamente por isso revela-se rica de significado. Jesus diz aos dois discípulos e, através
deles, ao mundo grego: "Chegou a hora de se revelar a glória do Filho do Homem. Em verdade,
em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se
morrer, dá muito fruto" (12, 23-24).
O que significam estas palavras neste contexto? Jesus quer dizer: sim, o encontro entre mim e
os Gregos terá lugar, mas não como simples e breve diálogo entre mim e algumas pessoas,
estimuladas sobretudo pela curiosidade. Com a minha morte, comparável à queda na terra de
um grão de trigo, chagará a hora da minha glorificação. A minha morte na cruz originará
grande fecundidade: o "grão de trigo morto" símbolo de mim crucificado tornar-se-á na
ressurreição pão de vida para o mundo; será luz para os povos e para as culturas. Sim, o
encontro com a alma grega, com o mundo grego, realizar-se-á naquela profundidade à qual faz
alusão a vicissitude do grão de trigo que atrai para si as forças da terra e do céu e se torna pão.
Por outras palavras, Jesus profetiza a Igreja dos gregos, a Igreja dos pagãos, a Igreja do mundo
como fruto da sua Páscoa.
Tradições muito antigas vêem em André, o qual transmitiu aos gregos esta palavra, não só o
intérprete de alguns Gregos no encontro com Jesus agora recordado, mas consideram-no
como apóstolo dos Gregos nos anos que sucederam ao Pentecostes; fazem-nos saber que no
restante da sua vida ele foi anunciador e intérprete de Jesus para o mundo grego. Pedro, seu
irmão, de Jerusalém, passando por Antioquia, chegou a Roma para aí exercer a sua missão
universal; André, ao contrário, foi o apóstolo do mundo grego: assim, eles são vistos, na vida e
na morte, como verdadeiros irmãos uma irmandade que se exprime simbolicamente no
relacionamento especial das Sedes de Roma e de Constantinopla, Igrejas verdadeiramente
irmãs.
Uma tradição sucessiva, como foi mencionado, narra a morte de André em Patrasso, onde
também ele sofreu o suplício da crucifixão. Mas, naquele momento supremo, de modo
análogo ao do irmão Pedro, ele pediu para ser posto numa cruz diferente da de Jesus. No seu
caso tratou-se de uma cruz decussada, isto é, cruzada transversalmente inclinada, que por isso
foi chamada "cruz de Santo André". Eis o que o Apóstolo dissera naquela ocasião, segundo
uma antiga narração (início do século VI) intitulada Paixão de André: "Salve, ó Cruz, inaugurada
por meio do corpo de Cristo e que se tornou adorno dos seus membros, como se fossem
pérolas preciosas. Antes que o Senhor fosse elevado sobre ti, tu incutias um temor terreno.
Agora, ao contrário, dotada de um amor celeste, és recebida como um dom. Os crentes
sabem, a teu respeito, quanta alegria possuis, quantos dons tens preparados. Portanto, certo e
cheio de alegria venho a ti, para que também tu me recebas exultante como discípulo daquele
que em ti foi suspenso... Ó Cruz bem-aventurada, que recebestes a majestade e a beleza dos
membros do Senhor!... Toma-me e leva-me para longe dos homens e entrega-me ao meu
Mestre, para que por teu intermédio me receba quem por ti me redimiu. Salve, ó Cruz; sim,
salve verdadeiramente!".
Como se vê, há aqui uma profundíssima espiritualidade cristã, que vê na Cruz não tanto um
instrumento de tortura como, ao contrário, o meio incomparável de uma plena assimilação ao
Redentor, ao grão de trigo que caiu na terra. Nós devemos aprender disto uma lição muito
importante: as nossas cruzes adquirem valor se forem consideradas e aceites como parte da
cruz de Cristo, se forem alcançadas pelo reflexo da sua luz. Só daquela Cruz também os nossos
sofrimentos são nobilitados e adquirem o seu verdadeiro sentido.
Portanto, o apóstolo André ensina-nos a seguir Jesus com prontidão (cf. Mt 4, 20; Mc 1, 18), a
falar com entusiasmo d'Ele a quantos encontramos, e sobretudo a cultivar com Ele um
relacionamento de verdadeira familiaridade, bem conscientes de que só n'Ele podemos
encontrar o sentido último da nossa vida e da nossa morte.
Tiago, o Maior
21 de Junho de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Prosseguimos a série de retratos dos Apóstolos escolhidos directamente por Jesus durante a
sua vida terrena. Falámos de São Pedro e de seu irmão, André. Encontramos hoje a figura de
Tiago. Os elencos bíblicos dos Doze mencionam duas pessoas com este nome: Tiago, filho de
Zebedeu, e Tiago, filho de Alfeu (cf. Mc 3, 17.18; Mt 10, 2-3), que são comummente
distinguidos com os nomes de Tiago, o Maior e Tiago, o Menor. Sem dúvida, estas designações
não querem medir a sua santidade, mas apenas distinguir o realce que eles recebem nos
escritos do Novo Testamento e, em particular, no quadro da vida terrena de Jesus. Hoje
dedicamos a nossa atenção à primeira destas duas personagens homónimas.
O nome Tiago é a tradução de Iákobos, forma helenizada do nome do célebre patriarca Tiago.
O apóstolo assim chamado é irmão de João, e nos elencos acima mencionados ocupa o
segundo lugar logo depois de Pedro, como em Marcos (3, 17), ou o terceiro lugar depois de
Pedro e André no Evangelho de Mateus (10, 2) e de Lucas (6, 14), enquanto que nos Actos vem
depois de Pedro e de João (1, 13). Este Tiago pertence, juntamente com Pedro e João, ao
grupo dos três discípulos privilegiados que foram admitidos por Jesus em momentos
importantes da sua vida.
Dado que faz muito calor, gostaria de abreviar e mencionar aqui só duas destas ocasiões. Ele
pôde participar, juntamente com Pedro e Tiago, no momento da agonia de Jesus no horto do
Getsémani e no acontecimento da Transfiguração de Jesus. Trata-se portanto de situações
muito diversas uma da outra: num caso, Tiago com os outros dois Apóstolos experimenta a
glória do Senhor, vê-o no diálogo com Moisés e Elias, vê transparecer o esplendor divino de
Jesus; no outro encontra-se diante do sofrimento e da humilhação, vê com os próprios olhos
como o Filho de Deus se humilha tornando-se obediente até à morte. Certamente a segunda
experiência constitui para ele a ocasião de uma maturação na fé, para corrigir a interpretação
unilateral, triunfalista da primeira: ele teve que entrever que o Messias, esperado pelo povo
judaico como um triunfador, na realidade não era só circundado de honra e de glória, mas
também de sofrimentos e fraqueza. A glória de Cristo realiza-se precisamente na Cruz, na
participação dos nossos sofrimentos.
Esta maturação da fé foi realizada pelo Espírito Santo no Pentecostes, de forma que Tiago,
quando chegou o momento do testemunho supremo, não se retirou. No início dos anos 40 do
século I o rei Herodes Agripa, neto de Herodes o Grande, como nos informa Lucas, "maltratou
alguns membros da Igreja. Mandou matar à espada Tiago, irmão de João" (Act 12, 1-2).
A notícia tão limitada, privada de qualquer pormenor narrativo, revela, por um lado, quanto
era normal para os cristãos testemunhar o Senhor com a própria vida e, por outro, como Tiago
ocupava uma posição de relevo na Igreja de Jerusalém, também devido ao papel
desempenhado durante a existência terrena de Jesus. Uma tradição sucessiva, que remonta
pelo menos a Isidoro de Sevilha, narra de uma sua permanência na Espanha para evangelizar
aquela importante região do Império Romano.
Segundo outra tradição, ao contrário, o seu corpo teria sido transportado para a Espanha, para
a cidade de Santiago de Compostela. Como todos sabemos, aquele lugar tornou-se objecto de
grande veneração e ainda hoje é meta de numerosas peregrinações, não só da Europa mas de
todo o mundo. É assim que se explica a representação iconográfica de São Tiago que tem na
mão o cajado do peregrino e o rolo do Evangelho, típicos do apóstolo itinerante e dedicado ao
anúncio da "boa nova", características da peregrinação da vida cristã.
Portanto, de São Tiago podemos aprender muitas coisas: a abertura para aceitar a chamada do
Senhor também quando nos pede que deixemos a "barca" das nossas seguranças humanas, o
entusiasmo em segui-lo pelos caminhos que Ele nos indica além de qualquer presunção
ilusória, a disponibilidade a testemunhá-lo com coragem, se for necessário, até ao sacrifício
supremo da vida. Assim, Tiago o Maior, apresenta-se diante de nós como exemplo eloquente
de adesão generosa a Cristo. Ele, que inicialmente tinha pedido, através de sua mãe, para se
sentar com o irmão ao lado do Mestre no seu Reino, foi precisamente o primeiro a beber o
cálice da paixão, a partilhar com os Apóstolos o martírio.
E no final, resumindo tudo, podemos dizer que o caminho não só exterior mas sobretudo
interior, do monte da Transfiguração ao monte da agonia, simboliza toda a peregrinação da
vida cristã, entre as perseguições do mundo e os confortos de Deus, como diz o Concílio
Vaticano II. Seguindo Jesus como São Tiago, sabemos, também nas dificuldades, que seguimos
o caminho justo.
Tiago, o Menor
28 de Junho de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Ao lado da figura de Tiago "o Maior", filho de Zebedeu, do qual falámos na quarta-feira
passada, nos Evangelhos aparece outro Tiago, que é chamado "o Menor". Também ele faz
parte das listas dos doze Apóstolos escolhidos pessoalmente por Jesus, e é sempre
especificado como "filho de Alfeu" (cf. Mt 10, 3; Mc 3, 18; Lc 5; Act 1, 13). Com frequência ele
foi identificado com outro Tiago, chamado "o Menor" (cf. Mc 15, 40), filho de uma Maria (cf.
ibid.) que poderia ser a "Maria de Cleofas" presente, segundo o Quarto Evangelho, aos pés da
Cruz juntamente com a Mãe de Jesus (cf. Jo 19, 25). Também ele era originário de Nazaré e
provavelmente parente de Jesus (cf. Mt 13, 55; Mc 6, 3), do qual à maneira semítica é
considerado "irmão" (cf. Mc 6, 3; Gl 1, 19).
Deste último Tiago, o livro dos Actos ressalta o papel preeminente desempenhado na Igreja de
Jerusalém. No Concílio apostólico ali celebrado depois da morte de Tiago, o Maior, afirmou
juntamente com os outros que os pagãos podiam ser acolhidos na Igreja sem antes terem que
se submeter à circuncisão (cf. Act 15, 13). São Paulo, que lhe atribui uma aparição específica
do Ressuscitado (cf. 1 Cor 15, 7), na ocasião da sua ida a Jerusalém nomeia-o inclusivamente
antes de Cefas-Pedro, qualificando-o "coluna" daquela Igreja como ele (cf. Gl 2, 9). Em seguida,
os judeus-cristãos consideram-no o seu principal ponto de referência. A ele é também
atribuída a Carta que tem o nome de Tiago e que está incluída no cânone neotestamentário.
Ele não se apresenta nela como "irmão do Senhor", mas como "servo de Deus e do Senhor
Jesus Cristo" (Tg 1, 1).
Entre os estudiosos debate-se a questão da identificação destas duas personagens com o
mesmo nome, Tiago filho de Alfeu e Tiago "irmão do Senhor". As tradições evangélicas não nos
conservaram narração alguma sobre um nem sobre outro em referência ao período da vida
terrena de Jesus. Os Actos dos Apóstolos, ao contrário, mostram-nos que um "Tiago"
desempenhou um papel importante, como já mencionámos, depois da ressurreição de Jesus,
na Igreja primitiva (cf. Act 12, 17; 15, 13-21; 21, 18).
O acto mais relevante por ele realizado foi a intervenção na questão do relacionamento difícil
entre os cristãos de origem judaica e os de origem pagã: nisto ele contribuiu juntamente com
Pedro para superar, ou melhor, para integrar a dimensão originária judaica do cristianismo
com a exigência de não impor aos pagãos convertidos a obrigação de se submeterem a todas
as normas da lei de Moisés. O livro dos Actos preservou-nos a solução de compromisso,
proposta precisamente por Tiago e aceite por todos os Apóstolos presentes, segundo o qual
aos pagãos que acreditassem em Jesus Cristo se devia pedir apenas que se abstivessem do uso
idolátrico de comer carne dos animais oferecidos em sacrifício aos deuses, e da "impudicícia",
palavra que provavelmente se referia às uniões matrimoniais não consentidas. Na prática,
tratava-se de aderir só a poucas proibições, consideradas bastante importantes, da legislação
mosaica.
Deste modo, obtiveram-se dois resultados significativos e complementares, ambos ainda hoje
válidos: por um lado, reconheceu-se a relação inseparável que une o cristianismo à religião
hebraica como a sua marca perenemente viva e válida; por outro, foi concedido que os
cristãos de origem pagã conservassem a própria identidade sociológica, que teriam perdido se
tivessem sido obrigados a observar os chamados "preceitos cerimoniais" mosaicos: eles já não
deviam ser considerados obrigatórios para os pagãos convertidos. Em suma, era iniciada uma
prática de estima e respeito recíprocos que, não obstante lamentáveis incompreensões
posteriores, tinha por sua natureza a salvaguarda de tudo o que caracterizava cada uma das
duas partes.
A informação mais antiga sobre a morte deste Tiago é-nos oferecida pelo historiador judeu
Flávio José. Nas suas Antiguidades Judaicas (20, 201s), redigidas em Roma por volta do século
I, ele narra que o fim de Tiago foi decidido por uma iniciativa ilegítima do Sumo Sacerdote
Anano, filho de Annas afirmado nos Evangelhos, o qual aproveitou do intervalo entre a
deposição de um Procurador romano (Festo) e a chegada do sucessor (Albino) para decretar a
sua lapidação no ano 62.
Em nome deste Tiago, além do apócrifo Protoevangelho de Tiago, que exalta a santidade e a
virgindade de Maria, Mãe de Jesus, está particularmente relacionada com a Carta que tem o
seu nome. No cânone do Novo Testamento ela ocupa o primeiro lugar entre as chamadas
"Cartas católicas", isto é, destinadas não a uma só Igreja particular como Roma, Éfeso, etc. mas
a muitas Igrejas. Trata-se de um escrito bastante importante, que insiste muito sobre a
necessidade de não reduzir a própria fé a uma mera declaração verbal ou abstracta, mas de
expressá-la concretamente em obras de bem. Entre outras coisas, ele convida-nos à constância
nas provas alegremente aceites e à oração confiante para obter de Deus o dom da sabedoria,
graças à qual chegamos à compreensão de que os verdadeiros valores da vida não consistem
nas riquezas transitórias, mas antes em saber compartilhar as próprias substâncias com os
pobres e com os necessitados (cf. Tg 1, 27).
Assim a carta de São Tiago mostra-nos um cristianismo muito concreto e prático. A fé deve
realizar-se na vida, sobretudo no amor ao próximo e particularmente no compromisso pelos
pobres. É com esta base que deve ser lida também a famosa frase: "Assim como o corpo sem
alma está morto, assim também a fé sem obras está morta" (Tg 2, 26). Por vezes esta
declaração de Tiago foi contraposta às afirmações de Paulo, segundo o qual nós somos
tornados por Deus justos não em virtude das nossas obras, mas graças à nossa fé (cf. Gl 2, 16;
Rm 3, 28). Contudo, as duas frases, aparentemente contraditórias com as suas perspectivas
diversas, na realidade, se forem bem interpretadas, completam-se. São Paulo opõe-se ao
orgulho do homem que pensa que não precisa do amor de Deus que nos antecipa, opõe-se ao
orgulho da autojustificação sem a graça simplesmente doada e não merecida. Ao contrário,
São Tiago fala das obras como fruto normal da fé: "a árvore boa dá bons frutos", diz o Senhor
(Mt 7, 17). E São Tiago repete e transmite-nos este conceito.
Por fim, a carta de Tiago exorta-nos a abandonarmo-nos nas mãos de Deus em tudo o que
fazemos, pronunciando sempre as palavras: "Se o Senhor quiser" (Tg 4, 15). Assim, ele ensina-
nos a não presumir que planificamos a nossa vida de modo autónomo e interessado, mas a dar
espaço à vontade imperscrutável de Deus, que conhece o verdadeiro bem para nós. Desta
forma São Tiago permanece um mestre de vida sempre actual para cada um de nós.
João, filho de Zebedeu
05 de Julho de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Dedicamos o encontro de hoje à recordação de outro membro muito importante do colégio
apostólico: João, filho de Zebedeu e irmão de Tiago. O seu nome, tipicamente judaico, significa
"o Senhor fez a graça". Estava a consertar as redes na margem do lago de Tiberíades, quando
Jesus o chamou juntamente com o irmão (cf. Mt 4, 21; Mc 1, 19). João pertence também ao
grupo restrito, que Jesus chama em determinadas ocasiões.
Está com Pedro e com Tiago quando Jesus, em Cafarnaum, entra em casa de Pedro para curar
a sua sogra (cf. Mc 1, 29); com os outros dois segue o Mestre na casa de Jairo, chefe da
sinagoga, cuja filha será chamada à vida (cf. Mc 5, 37); segue-o quando ele sobe ao monte para
ser transfigurado (cf. Mc 9, 2); está ao lado dele no Monte das Oliveiras quando, face à
imponência do Templo de Jerusalém, pronuncia o sermão sobre o fim da cidade e do mundo
(cf. Mc 13, 3); e, finalmente, está ao seu lado quando, no Horto do Getsémani, se retira para
rezar ao Pai antes da Paixão (cf. Mc 14, 33). Pouco antes da Páscoa, quando Jesus escolhe dois
discípulos para os enviar a preparar a sala para a Ceia, confia a ele e a Pedro esta tarefa (cf. Lc
22, 8).
Esta sua posição de relevo no grupo dos Doze torna de certa forma compreensível a iniciativa
tomada um dia pela mãe: ela aproximou-se de Jesus para lhe pedir que os dois filhos,
precisamente João e Tiago, pudessem sentar-se um à sua direita e outro à sua esquerda no
Reino (cf. Mt 20, 20-21). Como sabemos, Jesus respondeu fazendo por sua vez uma pergunta:
pediu que eles estivessem dispostos a beber do cálice que ele mesmo estava para beber (cf.
Mt 20, 22).
A intenção que estava por detrás daquelas palavras era a de despertar os dois discípulos,
introduzi-los no conhecimento do mistério da sua pessoa e de os fazer reflectir sobre a futura
chamada a ser suas testemunhas até à prova suprema do sangue.
De facto, pouco depois Jesus esclareceu que não veio para ser servido mas para servir e dar a
própria vida em resgate pela multidão (cf. Mt 20, 28). Nos dias seguintes à ressurreição,
encontramos "os filhos de Zebedeu" empenhados com Pedro e outros discípulos numa noite
infrutuosa, à qual se segue, pela intervenção do Ressuscitado, a pesca milagrosa: será "o
discípulo que Jesus amava" quem reconhece primeiro "o Senhor" e quem o indica a Pedro (cf.
Jo 21, 1-13).
Na Igreja de Jerusalém, João ocupou um lugar de realce na orientação do primeiro
agrupamento de cristãos. De facto, Paulo estava incluído entre os que Ele chama as "colunas"
daquela comunidade (cf. Gl 2, 9). Na realidade, nos Actos, Lucas apresenta-o juntamente com
Pedro quando vão rezar no Templo (cf. Act 3, 1-4.11) ou estão diante do Sinédrio para
testemunhar a própria fé em Jesus Cristo (cf. Act 4, 13.19). Juntamente com Pedro é enviado
pela Igreja de Jerusalém para confirmar aqueles que na Samaria aceitaram o Evangelho,
pregando por eles a fim de que recebam o Espírito Santo (cf. Act 8, 14-15).
Em particular, deve recordar-se o que afirma, juntamente com Pedro, diante do Sinédrio que
os está a processar: "Quanto a nós, não podemos deixar de afirmar o que vimos e ouvimos"
(Act 4, 20). Precisamente esta franqueza ao confessar a própria fé permanece um exemplo e
uma admoestação para todos nós a estarmos sempre prontos para declarar com determinação
a nossa inabalável adesão a Cristo, antepondo a fé a qualquer cálculo ou interesse humano.
Segundo a tradição, João é "o discípulo predilecto", que no Quarto Evangelho apoia a cabeça
no peito do Mestre durante a Última Ceia (cf. Jo 13, 21), encontra-se aos pés da Cruz
juntamente com a Mãe de Jesus (cf. Jo 19, 25) e, por fim, é testemunha quer do túmulo vazio
quer da própria presença do Ressuscitado (cf. Jo 20, 2; 21, 7).
Sabemos que esta identificação hoje é debatida pelos estudiosos, alguns dos quais vêem nele
simplesmente o protótipo do discípulo de Jesus. Deixando aos exegetas a tarefa de resolver a
questão, contentamo-nos com receber uma lição importante para a nossa vida: o Senhor
deseja fazer de cada um de nós um discípulo que vive uma amizade pessoal com Ele. Para
realizar isto não é suficiente segui-lo e ouvi-lo exteriormente; é preciso também viver com e
como Ele.
Isto é possível apenas no contexto de uma relação de grande familiaridade, repleto do calor de
uma total confiança; por isso um dia Jesus disse: "Ninguém tem mais amor do que quem dá a
vida pelos seus amigos... Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do
que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que
ouvi de meu Pai" (Jo 15, 13.15).
Nos apócrifos Actos de João o Apóstolo é apresentado não como fundador de Igrejas nem
sequer como guia de comunidades já constituídas, mas em contínua itinerância como
comunicador da fé no encontro com "almas capazes de ter esperança e de ser salvas" (18, 10;
10, 8). Tudo é movido pela intenção paradoxal de mostrar o invisível. De facto, ele é chamado
pela Igreja oriental simplesmente "o Teólogo", isto é, aquele que é capaz de falar das coisas
divinas em termos acessíveis, revelandoumarcano acesso a Deus mediante a adesão a Jesus.
O culto de João apóstolo afirmou-se a partir da cidade de Éfeso, onde, segundo uma antiga
tradição, trabalhou por muito tempo, falecendo ali com uma idade extraordinariamente
avançada, sob o Imperador Trajano. Em Éfeso o imperador Justiniano, no século VI, mandou
construir em sua honraumagrande basílica, da qual permanecem ainda imponentes ruínas.
Precisamente no Oriente ele gozou e goza ainda de grande veneração. Na iconografiabizantina
é representado com frequência muito idoso segundo a tradição morreu sob o imperador
Trajano e em intensa contemplação, quase na atitude de quem convida ao silêncio.
De facto, sem adequado recolhimento não é possível aproximar-se do mistério supremo de
Deus e da sua revelação. Isto explica porque, há anos, o Patriarca Ecuménico de
Constantinopla, Atenágoras, aquele que o Papa Paulo VI abraçou num memorável encontro,
afirmou: "João está na origem da nossa mais alta espiritualidade. Como ele, os "silenciosos"
conhecem aquele misterioso intercâmbio dos corações, invocando a presença de João e o seu
coração inflama-se" (O. Clément, Diálogos com Atenágoras, Turim 1972, p. 159). O Senhor nos
ajude a pormo-nos na escola de João para aprender a grande lição do amor, de modo que nos
sintamos amados por Cristo "até ao fim" (Jo 13, 1) e empreguemos a nossa vida por Ele.
João, o teólogo
09 de Agosto de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Antes das férias eu tinha começado a fazer pequenos retratos dos doze Apóstolos. Os
Apóstolos eram companheiros de vida de Jesus, amigos de Jesus e este caminho deles com
Jesus não era só um caminho exterior, da Galileia a Jerusalém, mas um caminho interior no
qual aprenderam a fé em Jesus Cristo, não sem dificuldades porque eram homens como nós.
Mas precisamente por isto, porque eram companheiros de vida de Jesus, amigos de Jesus que
num caminho não fácil aprenderam a fé, são também guias para nós, que nos ajudam a
conhecer Jesus Cristo, a amá-lo e a ter fé n'Ele. Eu já tinha falado sobre quatro dos doze
Apóstolos: de Simão Pedro, do seu irmão André, de Tiago, o irmão de São João, e do outro
Tiago, chamado "o Menor", que escreveu uma Carta que encontramos no Novo Testamento. E
eu tinha começado a falar de João, o evangelista, mencionando na última audiência antes das
férias os dados essenciais que traçam a fisionomia deste Apóstolo. Agora gostaria de
concentrar a atenção sobre o conteúdo do seu ensinamento. Por conseguinte, os escritos dos
quais hoje desejamos ocupar-nos são o Evangelho e as Cartas que têm o seu nome.
Se existe um assunto característico que mais sobressai nos escritos de João, é o amor. Não foi
por acaso que quis iniciar a minha primeira Carta encíclica com as palavras deste Apóstolo:
"Deus é amor (Deus caritas est); quem está no amor habita em Deus e Deus habita nele" (1 Jo
4, 16). É muito difícil encontrar textos do género noutras religiões. Portanto, tais expressões
põem-nos diante de um dado verdadeiramente peculiar do cristianismo. Certamente João não
é o único autor das origens cristãs que fala do amor. Sendo este um elemento essencial do
cristianismo, todos os escritores do Novo Testamento falam dele, mesmo se com acentuações
diferentes. Se agora nos detemos a reflectir sobre este tema em João, é porque ele nos traçou
com insistência e de modo incisivo as suas linhas principais. Portanto, confiemo-nos às suas
palavras. Uma coisa é certa: ele não reflecte de modo abstracto, filosófico, ou até teológico,
sobre o que é o amor. Não, ele não é um teórico. De facto, o verdadeiro amor, por sua
natureza, nunca é meramente especulativo, mas faz referência directa, concreta e verificável a
pessoas reais. Pois bem, João, como apóstolo e amigo de Jesus mostra-nos quais são os
componentes ou melhor as fases do amor cristão, um movimento caracterizado por três
momentos.
O primeiro refere-se à própria Fonte do amor, que o Apóstolo coloca em Deus, chegando,
como ouvimos, a afirmar que "Deus é amor" (1 Jo 4, 8.16). João é o único autor do Novo
Testamento que nos dá uma espécie de definição de Deus. Ele diz, por exemplo, que "Deus é
Espírito" (Jo 4, 24) ou que "Deus é luz" (1 Jo 1, 5). Aqui proclama com intuição resplandecente
que "Deus é amor". Observe-se bem: não é simplesmente afirmado que "Deus ama", nem
sequer que "o amor é Deus"! Por outras palavras: João não se limita a descrever o agir divino,
mas procede até às suas raízes. Além disso, não pretende atribuir uma qualidade a um amor
genérico e talvez impessoal; não se eleva do amor a Deus, mas dirige-se directamente a Deus
para definir a sua natureza com a dimensão infinita do amor. Com isto João deseja dizer que o
constitutivo essencial de Deus é o amor e, portanto, toda a actividade de Deus nasce do amor
e está orientada para o amor: tudo o que Deus faz é por amor, mesmo se nem sempre
podemos compreender imediatamente que Ele é amor, o verdadeiro amor.
Mas, a este ponto é indispensável dar um passo em frente e esclarecer que Deus demonstrou
concretamente o seu amor entrando na história humana mediante a pessoa de Jesus Cristo,
que encarnou, morreu e ressuscitou por nós. Este é o segundo momento constitutivo do amor
de Deus. Ele não se limitou às declarações verbais, mas, podemos dizer, empenhou-se
verdadeiramente e "pagou" em primeira pessoa. Como escreve precisamente João, "Tanto
amou Deus o mundo (isto é: todos nós) que lhe entregou o seu Filho Unigénito" (Jo 3, 16).
Agora, o amor de Deus pelos homens concretiza-se e manifesta-se no amor do próprio Jesus.
João escreve ainda: Jesus "que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por
eles até ao extremo" (Jo 13, 1). Em virtude deste amor oblativo e total nós somos radicalmente
resgatados do pecado, como escreve ainda São João: "Filhinhos meus... se alguém pecar,
temos junto do Pai um advogado, Jesus Cristo, o Justo, pois Ele é a vítima que expia os nossos
pecados, e não somente os nossos, mas também os de todo o mundo" (1 Jo 2, 1-2; cf. 1 Jo 1,
7). Eis até onde chegou o amor de Jesus por nós: até à efusão do próprio sangue para a nossa
salvação! O cristão, detendo-se em contemplação diante deste "excesso" de amor, não pode
deixar de reflectir sobre qual é a resposta obrigatória. E penso que sempre e de novo cada um
de nós deve interrogar-se sobre isto.
Esta pergunta introduz-nos no terceiro momento da dinâmica do amor: de destinatários
receptivos de um amor que nos precede e nos domina, somos chamados ao compromisso de
uma resposta activa, que para ser adequada só pode ser uma resposta de amor. João fala de
um "mandamento". De facto, ele refere estas palavras de Jesus: "Dou-vos um novo
mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos
amei" (Jo 13, 34). Onde está a novidade à qual Jesus se refere? Ela consiste no facto de que
não se contenta de repetir o que já era exigido no Antigo Testamento e que lemos nos outros
Evangelhos: "Ama o próximo como a ti mesmo" (Lv 19, 18; cf. Mt 22, 37-39; Mc 12, 29-31; Lc
10, 27). No antigo preceito o critério normativo era presumido a partir do homem ("como a ti
mesmo"), enquanto que no preceito mencionado por João, Jesus apresenta como motivo e
norma do nosso amor a sua própria pessoa: "Como Eu vos amei". É assim que o amor se torna
verdadeiramente cristão, levando em si a novidade do cristianismo: quer no sentido de que
ele deve destinar-se a todos sem distinções, quer porque deve sobretudo chegar até às últimas
consequências, tendo unicamente como medida chegar ao extremo. Aquelas palavras de
Jesus, "como Eu vos amei", convidam-nos e ao mesmo tempo preocupam-nos; são uma meta
cristológica que pode parecer inalcançável, mas são, ao mesmo tempo, um estímulo que não
nos permite acomodar-nos no que podemos realizar. Não permite que nos contentemos do
que somos, mas estimula-nos a permanecer a caminho rumo a esta meta.
Aquele texto áureo de espiritualidade que é o pequeno livro do final da Idade Média intitulado
Imitação de Cristo escreve a este propósito: "O nobre amor de Jesus estimula-nos a realizar
coisas grandes e a desejar coisas sempre mais perfeitas. O amor quer estar no alto e não ser
aprisionado por baixeza alguma. O amor quer ser livre e separado de qualquer afecto
mundano... de facto, o amor nasceu de Deus, e só pode repousar em Deus acima de todas as
coisas criadas. Quem ama voa, corre e rejubila, é livre, e nada o retém. Dá tudo a todos e tem
tudo em todas as coisas, porque encontra repouso no Único grande que está acima de todas
as coisas, do qual brota e provém qualquer bem" (livro III, cap. 5). Qual melhor comentário do
que o "mandamento novo", enunciado por João? Pedimos ao Pai que o possamos viver,
mesmo se sempre de modo imperfeito, tão intensamente que contagiemos a todos os que
encontrarmos no nosso caminho.
João, o vidente de Patmos
23 de Agosto de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Na última catequese tínhamos chegado à meditação sobre a figura do Apóstolo João. Primeiro,
tínhamos procurado ver quanto se pode saber da sua vida. Depois, numa segunda catequese,
tínhamos meditado acerca do conteúdo central do seu Evangelho, das suas Cartas: a caridade,
o amor. E hoje estamos ainda empenhados com a figura de João, desta vez para meditar sobre
o Vidente do Apocalipse. E fazemos imediatamente uma observação: enquanto nem o Quarto
Evangelho nem as Cartas atribuídas ao Apóstolo trazem o seu nome, o Apocalipse faz
referência ao nome de João por quatro vezes (cf. 1, 1.4.9; 22, 8). É evidente que o Autor, por
um lado, não tinha motivo algum para não mencionar o próprio nome e, por outro, sabia que
os seus primeiros leitores o podiam identificar com clareza. Sabemos também que, já no
século III, os estudiosos discutiam sobre a verdadeira identidade anagráfica do João do
Apocalipse. Contudo, poderíamos também chamá-lo "o Vidente de Patmos", porque a sua
figura está ligada com o nome desta ilha do Mar Egeu, onde, segundo o seu próprio
testemunho autobiográfico, ele se encontrava como deportado "por causa da palavra de Deus
e do testemunho d Jesus" (Ap 1, 9). Precisamente em Patmos, "no dia do Senhor, o espírito
arrebatou-me" (Ap 1, 10), João teve visões grandiosas e ouviu mensagens extraordinárias, que
influenciarão bastante a história da Igreja e toda a cultura cristã. Por exemplo, do título do seu
livro Apocalipse, Revelação foram introduzidas na nossa linguagem as palavras "apocalipse,
apocalíptico", que recordam, embora de modo impróprio, a ideia de uma catástrofe iminente.
O livro deve ser compreendido no quadro da dramática experiência das sete Igrejas da Ásia
(Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia, Laodicéia), que nos finais do século I
tiveram que enfrentar grandes dificuldades perseguições e tensões também internas no seu
testemunho a Cristo. João dirige-se a elas mostrando profunda sensibilidade pastoral em
relação aos cristãos perseguidos, que ele exorta a permanecer firmes na fé e a não se
identificarem com o mundo pagão, tão forte. O seu objecto é constituído em definitiva pela
revelação, a partir da morte e ressurreição de Cristo, do sentido da história humana. De facto,
a primeira e fundamental visão de João refere-se à figura do Cordeiro, que é imolado mas que
está de pé (cf. Ap 5, 6), colocado no meio do trono onde já está sentado o próprio Deus. Com
isto, João quer dizer-nos antes de tudo duas coisas: a primeira é que Jesus, mesmo tendo sido
morto com um acto de violência, em vez de cair no chão paradoxalmente está bem firme
sobre os seus pés, porque com a ressurreição venceu definitivamente a morte; a outra é que o
próprio Jesus, precisamente porque morto e ressuscitado, já é plenamente partícipe do poder
real e salvífico do Pai. Esta é a visão fundamental. Jesus, o Filho de Deus, nesta terra é um
Cordeiro indefeso, ferido, morto. E contudo está erguido, de pé, está diante do trono de Deus
e é partícipe do poder divino. Ele tem nas suas mãos a história do mundo. E assim o Vidente
quer dizer-nos: tende confiança em Jesus, não tenhais medo dos poderes contrastantes, da
perseguição! O Cordeiro ferido e morto vence! Segui o Cordeiro Jesus, confiai-vos a Jesus,
caminhai pelo seu caminho! Mesmo se neste mundo é só um Cordeiro que parece frágil, é Ele
o vencedor!
Uma das principais visões do Apocalipse tem por objecto este Cordeiro no acto de abrir um
livro, primeiro fechado com sete selos que ninguém tinha sido capaz de abrir. João é
inclusivamente apresentado no gesto de abrir o livro e de o ler (cf. Ap 5, 4). A história
permanece indecifrável, incompreensível. Ninguém a pode ler. Talvez este pranto de João
diante do mistério da história tão obscuro expresse a perturbação das Igrejas asiáticas pelo
silêncio de Deus diante das perseguições a que estavam expostas naquele momento. É uma
perturbação na qual se pode reflectir bem o nosso horror face às graves dificuldades,
incompreensões e hostilidades que também hoje a Igreja sofre em várias partes do mundo.
São sofrimentos que a Igreja sem dúvida não merece, assim como o próprio Jesus não
mereceu o seu suplício. Contudo eles revelam quer a maldade do homem, quando se
abandona às sugestões do mal, quer a orientação superior dos acontecimentos por parte de
Deus. Pois bem, só o Cordeiro imolado é capaz de abrir o livro selado e de revelar o seu
conteúdo, de dar sentido a esta história aparentemente com tanta frequência absurda. Só Ele
pode tirar indicações e ensinamentos para a vida dos cristãos, aos quais a sua vitória sobre a
morte traz o anúncio e a garantia da vitória que também eles sem dúvida obterão. Toda a
linguagem intensamente imaginária da qual João se serve oferece este conforto.
No centro das visões que o Apocalipse expõe estão também aquelas muito significativas da
Mulher que dá à luz um Filho varão, e a complementar do Dragão precipitado do céu, mas
ainda é muito poderoso. Esta Mulher representa Maria, a Mãe do Redentor, mas representa
ao mesmo tempo toda a Igreja, o Povo de Deus de todos os tempos, a Igreja que em todos os
tempos, com grande sofrimento, dá à luz Cristo sempre de novo. E está sempre ameaçada pelo
poder do Dragão. Parece indefesa, frágil. Mas enquanto está ameaçada, perseguida pelo
Dragão está também protegida pela consolação de Deus. E esta Mulher no final vence. O
Dragão não vence. Eis a grande profecia deste livro, que nos dá confiança! A Mulher que sofre
na história, a Igreja que é perseguida no final torna-se a Esposa maravilhosa, figura da nova
Jerusalém onde não há mais lágrimas nem pranto, imagem do mundo transformado, do novo
mundo cuja luz é o próprio Deus, cuja lâmpada é o Cordeiro.
Por este motivo o Apocalipse de João, mesmo estando cheio de referências contínuas a
sofrimentos, tribulações e pranto a face obscura da história está de igual modo repleto de
frequentes cantos de louvor, que representam quase a face luminosa da história. Assim, por
exemplo, lê-se nele que uma grande multidão, que canta quase gritando: "Aleluia! O Senhor
nosso Deus, o Todo-Poderoso, começou o seu reinado! Alegremo-nos, rejubilemos, dêmos-lhe
glória, porque chegou o momento das núpcias do Cordeiro, a sua esposa já está pronta" (Ap
19, 6-7). Estamos diante do típico paradoxo cristão, segundo o qual o sofrimento nunca
precipita como última palavra, mas é visto como ponto de passagem para a felicidade. Aliás,
ele mesmo já está misteriosamente cheio da alegria que brota da esperança. Precisamente por
isto João, o Vidente de Patmos, pode encerrar o seu livro com uma última aspiração,
palpitante de expectativa trepidante. Ela invoca a vinda do Senhor: "Vinde, Senhor Jesus!" (Ap
22, 20). É uma das orações centrais da cristandade nascente, traduzida também por São Paulo
na forma aramaica: "Marana tha". E esta oração "Vinde, Senhor Jesus!" (1 Cor 16, 22) tem
diversas dimensões. Naturalmente é antes de tudo expectativa da vitória definitiva do Senhor,
da nova Jerusalém, do Senhor que vem e transforma o mundo. Mas, ao mesmo tempo, é
também oração eucarística: "Vinde Jesus, agora!". E Jesus vem, antecipa esta sua chegada
definitiva. Assim com alegria dizemos ao mesmo tempo: "Vinde agora e de modo definitivo!".
Esta oração tem também um terceiro significado: "Já viestes, Senhor! Temos a certeza da
vossa presença entre nós. É uma experiência jubilosa. "Mas vinde de modo definitivo!". E
assim, com São Paulo, com o Vidente de Patmos, com a cristandade nascente, também nós
rezamos: "Vinde, Jesus! Vinde e transformai o mundo! Vinde já hoje e vença a paz!" Amém.
Mateus
30 de Agosto de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Prosseguindo a série de retratos dos doze Apóstolos, que começámos há algumas semanas,
hoje detemo-nos em Mateus. Na verdade, apresentar completamente a sua figura é quase
impossível, porque as notícias que lhe dizem respeito são poucas e fragmentadas. Mas o que
podemos fazer, não é tanto um esboço da sua biografia, mas ao contrário o perfil que o
Evangelho transmite.
Entretanto, ele está sempre presente nos elencos dos Doze escolhidos por Jesus (cf. Mt 10, 3;
Mc 3, 18; Lc 6, 15; Act 1, 13). O seu nome hebraico significa "dom de Deus". O primeiro
Evangelho canónico, que tem o seu nome, apresenta-no-lo no elenco dos Doze com uma
qualificação bem clara: "o publicano" (Mt 10, 3). Desta forma ele é identificado com o homem
sentado no banco dos impostos, que Jesus chama ao seu seguimento: "Partindo dali, Jesus viu
um homem chamado Mateus, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: "Segue-me!". Ele
levantou-se e seguiu-o". (Mt 9, 9). Também Marcos (cf. 2, 13-17) e Lucas (cf. 5, 27-30) narram
a chamada do homem sentado no posto de cobrança, mas chamam-no "Levi". Para imaginar o
cenário descrito em Mt 9, 9 é suficiente recordar a magnífica tela de Caravaggio, conservada
aqui em Roma na Igreja de São Luís dos Franceses. Dos Evangelhos sobressai um ulterior
pormenor biográfico: no trecho que precede imediatamente a narração da chamada é
referido um milagre realizado por Jesus em Cafarnaum (cf. Mt 9, 1-8; Mc 2, 1-12) e é
mencionada a proximidade do Mar da Galileia, isto é do Lago de Tiberíades (cf. Mc 2, 13-14).
Disto pode deduzir-se que Mateus desempenhasse a função de cobrador em Cafarnaúm,
situada precisamente "à beira-mar" (Mt 4, 13), onde Jesus era hóspede fixo na casa de Pedro.
Com base nestas simples constatações que resultam do Evangelho podemos fazer algumas
reflexões. A primeira é que Jesus acolhe no grupo dos seus íntimos um homem que, segundo
as concepções em vigor na Israel daquele tempo, era considerado um público pecador. De
facto, Mateus não só administrava dinheiro considerado impuro devido à sua proveniência de
pessoas estranhas ao povo de Deus, mas colaborava também com uma autoridade estrangeira
odiosamente ávida, cujos tributos podiam ser determinados também de modo arbitrário. Por
estes motivos, mais de uma vez os Evangelhos falam unitariamente de "publicanos e
pecadores" (Mt 9, 10; Lc 15, 1), de "publicanos e prostitutas" (Mt 21, 31). Além disso eles vêem
nos publicanos um exemplo de mesquinhez (cf. Mt 5, 46: amam os que os amam) e
mencionam um deles, Zaqueu, como "chefe dos publicanos e rico" (Lc 19, 2), enquanto a
opinião popular os associava a "ladrões, injustos, adúlteros" (Lc 18, 11). É ressaltado um
primeiro dado com base nestes elementos: Jesus não exclui ninguém da própria amizade. Ao
contrário, precisamente porque se encontra à mesa em casa de Mateus-Levi, em resposta a
quem falava de escândalo pelo facto de ele frequentar companhias pouco recomendáveis,
pronuncia a importante declaração: "Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas
sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores" (Mc 2, 17).
O bom anúncio do Evangelho consiste precisamente nisto: na oferenda da graça de Deus ao
pecador! Noutro texto, com a célebre parábola do fariseu e do publicano que foram ao Templo
para rezar, Jesus indica inclusivamente um anónimo publicano como exemplo apreciável de
confiança humilde na misericórdia divina: enquanto o fariseu se vangloria da própria perfeição
moral, "o cobrador de impostos... nem sequer ousava levantar os olhos para o céu, mas batia
no peito, dizendo: "Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador"". E Jesus comenta: "Digo-
vos: Este voltou justificado para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será
humilhado, e quem se humilha será exaltado" (Lc 18, 13-14). Na figura de Mateus, portanto, os
Evangelhos propõem-nos um verdadeiro e próprio paradoxo: quem aparentemente está
afastado da santidade pode até tornar-se um modelo de acolhimento da misericórdia de Deus
e deixar entrever os seus maravilhosos efeitos na própria existência. Em relação a isto, São
João Crisóstomo faz uma significativa anotação: ele observa que só na narração de algumas
chamadas se menciona o trabalho que as pessoas em questão desempenhavam. Pedro, André,
Tiago e João são chamados quando estão a pescar, Mateus precisamnete quando cobra os
impostos. Trata-se de trabalhos de pouca importância comenta Crisóstomo "porque não há
nada mais detestável do que um cobrador de impostos e nada de mais comum do que a
pesca" (In Matth. Hom.: PL 57, 363). A chamada de Jesus chega portanto também a pessoas de
baixo nível social, enquanto desempenham o trabalho quotidiano.
Outra reflexão, que provém da narração evangélica, é que à chamada de Jesus, Mateus
responde imediatamente: "ele levantou-se e seguiu-o". A condensação da frase ressalta
claramente a prontidão de Mateus ao responder à chamada. Isto significava para ele o
abandono de todas as coisas, sobretudo do que lhe garantia uma fonte de lucro seguro,
mesmo se muitas vezes injusto e desonesto. Evidentemente Mateus compreendeu que a
familiaridade com Jesus não lhe permitia perseverar em actividades desaprovadas por Deus.
Intuiu-se facilmente a aplicação ao presente: também hoje não é admissível o apego a coisas
incompatíveis com o seguimento de Jesus, como é o caso das riquezas desonestas. Certa vez
Ele disse sem meios-termos: "Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos
pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me" (Mt 19, 21). Foi precisamente isto
que Mateus fez: levantou-se e seguiu-o! Neste "levantar-se" é legítimo ver o abandono de uma
situação de pecado e ao mesmo tempo a adesão consciente a uma existência nova, recta, na
comunhão com Jesus.
Por fim, recordamos que a tradição da Igreja antiga concorda na atribuição a Mateus da
paternidade do primeiro Evangelho. Isto acontece já a partir de Papias, Bispo de Hierápoles na
Frígia por volta do ano 130. Ele escreve: "Mateus reuniu as palavras (do Senhor) em língua
hebraica, e cada um as interpretou como podia" (em Eusébio de Cesareia, Hist. eccl. III, 39, 16).
O historiador Eusébio acrescenta esta notícia: "Mateus, que primeiro tinha pregado aos
hebreus, quando decidiu ir também a outros povos escreveu na sua língua materna o
Evangelho por ele anunciado; assim, procurou substituir com a escrita, junto daqueles dos
quais se separava, aquilo que eles perdiam com a sua partida" (ibid., III, 24, 6). Já não temos o
Evangelho escrito por Mateus em hebraico ou em aramaico, mas no Evangelho grego que
ainda continuamos a ouvir, de certa forma, a voz persuasiva do publicano Mateus que, tendo-
se tornado Apóstolo, continua a anunciar-nos a misericórdia salvadora de Deus e ouvimos esta
mensagem de São Mateus, meditámo-la sempre de novo para aprender também nós a
levantar-nos e a seguir Jesus com determinação.
Filipe
06 de Setembro de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Prosseguindo no delineamento das fisionomias dos vários Apóstolos, como fazemos há
algumas semanas, hoje encontramos Filipe. Nas listas dos Doze, ele é sempre colocado no
quinto lugar (assim em Mt 10, 3; Mc 3, 18; Lc 6, 14; Act 1, 13), portanto substancialmente
entre os primeiros.
Apesar de Filipe ter origens hebraicas, o seu nome é grego, como o de André, e isto é um
pequeno sinal de abertura cultural que não se deve subestimar. As notícias que temos sobre
ele são-nos fornecidas pelo Evangelho de João. Ele provinha do mesmo lugar de origem de
Pedro e de André, isto é, de Batsaida (cf. Jo 1, 44), uma pequena cidade pertencente à
tetrarquia de um dos filhos de Herodes, o Grande, também ele chamado Filipe (cf.Lc3,1).
O Quarto Evangelho narra que, depois de ter sido chamado por Jesus, Filipe encontra Natanael
e diz-lhe: "Encontrámos aquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas: Jesus,
filho de José de Nazaré" (Jo 1, 45). Natanael dá uma resposta bastante céptica ("De Nazaré
pode vir alguma coisa boa?"), perante a qual Filipe não se desencoraja e responde com
determinação: "Vem e verás!" (Jo 1, 46). Nesta resposta, breve mas clara, Filipe manifesta as
características da verdadeira testemunha: não se contenta em propor o anúncio, como uma
teoria, mas interpela directamente o interlocutor sugerindo-lhe que faça ele mesmo uma
experiência pessoal do que foi anunciado. Os mesmos dois verbos são usados pelo próprio
Jesus quando dois discípulos de João Baptista se aproximam dele para lhe perguntar onde
mora. Jesus responde: "Vinde ver" (cf. Jo 1, 38-39).
Podemos pensar que Filipe se dirija também a nós com aqueles dois verbos que exigem um
envolvimento pessoal. Também a nós diz o que dissera a Natanael: "Vem e verás". O Apóstolo
convida-nos a conhecer Jesus de perto. De facto, a amizade, o verdadeiro conhecer o outro,
precisa da proximidade, aliás, de certa forma vive dela. De resto, não se deve esquecer que,
segundo o que escreve Marcos, Jesus escolheu os Doze com a finalidade primária que
"andassem com Ele" (Mc 3, 14), ou seja, que partilhassem a sua vida e aprendessem
directamente dele não só o estilo do seu comportamento, mas sobretudo quem era Ele
realmente. Com efeito, só assim, participando na sua vida, o podiam conhecer e depois
anunciar. Mais tarde, na Carta de Paulo aos Efésios, ler-se-á que o importante é "aprender de
Cristo" (4, 20), portanto, não só e não tanto ouvir os seus ensinamentos, as suas palavras, mas
ainda mais conhecê-lo pessoalmente, a sua humanidade e divindade, o seu mistério, a sua
beleza. De facto, Ele não é só um Mestre, mas um Amigo, ou melhor, um Irmão. Como
poderíamos conhecê-lo profundamente permanecendo distantes? A intimidade, a
familiariedade, o habitual fazem-nos descobrir a verdadeira identidade de Jesus Cristo.
Portanto: é precisamente isto que nos recorda o apóstolo Filipe. E convida-nos a "vir", a "ver",
isto é, a entrar num contacto de escuta, de resposta e de comunhão de vida com Jesus dia
após dia.
Depois, por ocasião da multiplicação dos pães, ele recebeu de Jesus um pedido específico e
surpreendente: onde era possível comprar o pão para saciar a fome de todo o povo que o
seguia (cf. Jo 6, 5). Então Filipe respondeu com muito realismo: "Duzentos denários de pão não
chegam para cada um comer um bocadinho" (Jo 6, 7). Vêem-se aqui a praticidade e o realismo
do Apóstolo, que sabe julgar as reais consequências de uma situação. Depois, como correram
as coisas nós sabemo-lo. Sabemos que Jesus tomou os pães e, depois de ter rezado, distribuiu-
os.
Assim realizou-se a multiplicação dos pães. Mas é interessante que Jesus se tenha dirigido
precisamente a Filipe para obter uma primeira indicação sobre o modo de resolver o
problema: sinal evidente de que ele fazia parte do grupo limitado que o circundava. Noutro
momento, muito importante para a história futura, antes da Paixão, alguns Gregos que se
encontravam em Jerusalém para a Páscoa "foram ter com Filipe... e pediram-lhe: "Senhor, nós
queremos ver Jesus!". Filipe foi dizer isto a André; André e Filipe foram dizê-lo a Jesus" (Jo 12,
20-22). Mais uma vez, temos a indicação de um seu prestígio especial no âmbito do colégio
apostólico. Sobretudo, neste caso, ele serve de intermediário entre o pedido de alguns Gregos
provavelmente falava o grego e pôde disponibilizar-se como intérprete e Jesus; Mesmo se ele
se une a André, o outro Apóstolo com um nome grego, é contudo a ele que aquelas pessoas
desconhecidas se dirigem. Isto ensina-nos a estar também nós sempre prontos, tanto a ouvir
pedidos e invocações, de onde quer que venham, como a orientá-los para o Senhor, o único
que os pode satisfazer plenamente. Com efeito, é importante saber que nós não somos os
destinatários últimos das orações de quem nos aproxima, mas é o Senhor: para ele devemos
orientar todo aquele que se encontre em necessidade. Então: cada um de nós deve ser um
caminho aberto para ele!
Há depois outra ocasião completamente particular, na qual Filipe entra em cena. Durante a
Última Ceia, tendo Jesus afirmado que conhecê-lo significa também conhecer o Pai (cf. Jo 14,
7), Filipe pede quase ingenuamente: "Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta!" (Jo 14, 8).
Jesus responde-lhe com um tom de indulgente reprovação: "Há tanto tempo que estou
convosco, e não me ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes,
então, "mostra-nos o Pai"? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em Mim?... Crede-me: Eu
estou no Pai e o Pai está em Mim" (Jo 14, 9-11). Estas palavras são as mais nobres do
Evangelho de João. Elas contêm uma profunda revelação. No final do Prólogo do seu
Evangelho, João afirma: "A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigénito, que é Deus e está no
seio do Pai, foi Ele quem o deu a conhecer" (Jo 1, 18). Pois bem, aquela afirmação, que é do
evangelista, é retomada e confirmada pelo próprio Jesus. Mas com uma nova característica. De
facto, enquanto o Prólogo de João fala de uma intervenção esclarecedora de Jesus mediante
as palavras do seu ensinamento, na resposta a Filipe Jesus faz referência à própria pessoa
como tal, dando a entender que é possível compreendê-lo não só mediante o que diz, mas
ainda mais mediante o que ele simplesmente é.
Para nos expressarmos segundo o paradoxo da Encarnação, podemos dizer que Deus se
conferiu um rosto humano, o de Jesus, e por conseguinte de agora em diante, se
verdadeiramente queremos conhecer o rosto de Deus, devemos contemplar o rosto de Jesus!
No seu semblante vemos realmente quem é e como é Deus!
O evangelista não nos diz se Filipe compreendeu plenamente a frase de Jesus. Sem dúvida, ele
dedicou-lhe totalmente a própria vida. Segundo algumas narrações posteriores (Actos de Filipe
e outros), o nosso Apóstolo teria evangelizado primeiro na Grécia e depois na Frígia onde
enfrentou a morte, em Herápoles, com um suplício descrito diversamente como crucifixão ou
lapidação.
Desejamos concluir a nossa reflexão recordando a finalidade para a qual deve tender a nossa
vida: encontrar Jesus como o encontrou Filipe, procurando ver nele o próprio Deus, o Pai
celeste. Se este compromisso viesse a faltar, seríamos remetidos sempre e só para nós como
num espelho, e estaríamos cada vez mais sós! Ao contrário, Filipe ensina-nos a deixar-nos
conquistar por Jesus, a estar com Ele e a convidar também outros a partilhar esta companhia
indispensável. E vendo-o, encontrando Deus, encontrar a verdadeira vida.
Tomé
17 de Setembro de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Prosseguindo os nossos encontros com os doze Apóstolos escolhidos directamente por Jesus,
hoje dedicamos a nossa atenção a Tomé. Sempre presente nas quatro listas contempladas
pelo Novo Testamento, ele, nos primeiros três Evangelhos, é colocado ao lado de Mateus (cf.
Mt 10, 3; Mc 3, 18; Lc 6, 15), enquanto nos Actos está próximo de Filipe (cf. Act 1, 13). O seu
nome deriva de uma raiz hebraica, ta'am, que significa "junto", "gémeo". De facto, o
Evangelho chama-o várias vezes com o sobrenome de "Dídimo" (cf. Jo 11, 16; 20, 24; 21, 2),
que em grego significa precisamente "gémeo". Não é claro o porquê deste apelativo.
Sobretudo o Quarto Evangelho oferece-nos informações que reproduzem alguns traços
significativos da sua personalidade. O primeiro refere-se à exortação, que ele fez aos outros
Apóstolos, quando Jesus, num momento crítico da sua vida, decidiu ir a Betânia para
ressuscitar Lázaro, aproximando-se assim perigosamente de Jerusalém (cf. Mc 10, 32). Naquela
ocasião Tomé disse aos seus condiscípulos: "Vamos nós também, para morrermos com Ele" (Jo
11, 16).
Esta sua determinação em seguir o Mestre é deveras exemplar e oferece-nos um precioso
ensinamento: revela a disponibilidade total a aderir a Jesus, até identificar o próprio destino
com o d'Ele e querer partilhar com Ele a prova suprema da morte. De facto, o mais importante
é nunca separar-se de Jesus. Por outro lado, quando os Evangelhos usam o verbo "seguir" é
para significar que para onde Ele se dirige, para lá deve ir também o seu discípulo. Deste
modo, a vida cristã define-se como uma vida com Jesus Cristo, uma vida a ser transcorrida
juntamente com Ele. São Paulo escreve algo semelhante, quando tranquiliza os cristãos de
Corinto com estas palavras: "estais no nosso coração para a vida e para a morte" (2 Cor 7, 3). O
que se verifica entre o Apóstolo e os seus cristãos deve, obviamente, valer antes de tudo para
a relação entre os cristãos e o próprio Jesus: morrer juntos, viver juntos, estar no seu coração
como Ele está no nosso.
Uma segunda intervenção de Tomé está registada na Última Ceia. Naquela ocasião Jesus,
predizendo a sua partida iminente, anuncia que vai preparar um lugar para os discípulos para
que também eles estejam onde Ele estiver; e esclarece: "E, para onde Eu vou, vós sabeis o
caminho" (Jo 14, 4). É então que Tomé intervém e diz: "Senhor, não sabemos para onde vais,
como podemos nós saber o caminho?" (Jo 14, 5). Na realidade, com esta expressão ele coloca-
se a um nível de compreensão bastante baixo; mas estas suas palavras fornecem a Jesus a
ocasião para pronunciar a célebre definição: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jo 14, 6).
Portanto, Tomé é o primeiro a quem é feita esta revelação, mas ela é válida também para
todos nós e para sempre. Todas as vezes que ouvimos ou lemos estas palavras, podemos
colocar-nos com o pensamento ao lado de Tomé e imaginar que o Senhor fala também
connosco como falou com ele.
Ao mesmo tempo, a sua pergunta confere também a nós o direito, por assim dizer, de pedir
explicações a Jesus. Com frequência nós não o compreendemos. Temos a coragem para dizer:
não te compreendo, Senhor, ouve-me, ajuda-me a compreender. Desta forma, com esta
franqueza que é o verdadeiro modo de rezar, de falar com Jesus, exprimimos a insuficiência da
nossa capacidade de compreender, ao mesmo tempo colocamo-nos na atitude confiante de
quem espera luz e força de quem é capaz de as doar.
Depois, muito conhecida e até proverbial é a cena de Tomé incrédulo, que aconteceu oito dias
depois da Páscoa. Num primeiro momento, ele não tinha acreditado em Jesus que apareceu na
sua ausência, e dissera: "Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu
dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acredito" (Jo 20, 25). No fundo,
destas palavras sobressai a convicção de que Jesus já é reconhecível não tanto pelo rosto
quanto pelas chagas. Tomé considera que os sinais qualificadores da identidade de Jesus são
agora sobretudo as chagas, nas quais se revela até que ponto Ele nos amou. Nisto o Apóstolo
não se engana. Como sabemos, oito dias depois Jesus aparece no meio dos seus discípulos, e
desta vez Tomé está presente. E Jesus interpela-o: "Põe teu dedo aqui e vê minhas mãos!
Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê!" (Jo 20, 27). Tomé
reage com a profissão de fé mais maravilhosa de todo o Novo Testamento: "Meu Senhor e
meu Deus!" (Jo 20, 28). A este propósito, Santo Agostinho comenta: Tomé via e tocava o
homem, mas confessava a sua fé em Deus, que não via nem tocava. Mas o que via e tocava
levava-o a crer naquilo de que até àquele momento tinha duvidado" (In Iohann. 121, 5). O
evangelista prossegue com uma última palavra de Jesus a Tomé: "Porque me viste, acreditaste.
Felizes os que, sem terem visto, crerão" (cf. Jo 20, 29). Esta frase também se pode conjugar no
presente; "Bem-aventurados os que crêem sem terem visto".
Contudo, aqui Jesus enuncia um princípio fundamental para os cristãos que virão depois de
Tomé, portanto para todos nós. É interessante observar como o grande teólogo medieval
Tomás de Aquino, compara com esta fórmula de bem-aventurança aquela aparentemente
oposta citada por Lucas: "Felizes os olhos que vêem o que estais a ver" (Lc 10, 23). Mas o
Aquinate comenta: "Merece muito mais quem crê sem ver do que quem crê porque vê" (In
Johann. XX lectio VI 2566). De facto, a Carta aos Hebreus, recordando toda a série dos antigos
Patriarcas bíblicos, que acreditaram em Deus sem ver o cumprimento das suas promessas,
define a fé como "fundamento das coisas que se esperam e comprovação das que não se
vêem" (11, 1). O caso do Apóstolo Tomé é importante para nós pelo menos por três motivos:
primeiro, porque nos conforta nas nossas inseguranças; segundo porque nos demonstra que
qualquer dúvida pode levar a um êxito luminoso além de qualquer incerteza; e por fim, porque
as palavras dirigidas a ele por Jesus nos recordam o verdadeiro sentido da fé madura e nos
encorajam a prosseguir, apesar das dificuldades, pelo nosso caminho de adesão a Ele.
Uma última anotação sobre Tomé é-nos conservada no Quarto Evangelho, que o apresenta
como testemunha do Ressuscitado no momento seguinte à pesca milagrosa no Lago de
Tiberíades (cf. Jo 21, 2). Naquela ocasião ele é mencionado inclusivamente logo depois de
Simão Pedro: sinal evidente da grande importância de que gozava no âmbito das primeiras
comunidades cristãs. Com efeito, em seu nome foram escritos depois os Actos e o Evangelho
de Tomé, ambos apócrifos mas contudo importantes para o estudo das origens cristãs. Por fim
recordamos que segundo uma antiga tradição, Tomé evangelizou primeiro a Síria e a Pérsia
(assim refere já Orígenes, citado por Eusébio de Cesareia, Hist. eccl. 3, 1) e depois foi até à
Índia ocidental (cf. Actos de Tomé 1-2 e 17ss.), de onde mais tarde o cristianismo alcançou
também a Índia meridional. Nesta perspectiva missionária terminamos a nossa reflexão,
expressando votos de que o exemplo de Tomé corrobore cada vez mais a nossa fé em Jesus
Cristo, nosso Senhor e nosso Deus.
Bartolomeu
4 de Outubro de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Na série dos Apóstolos chamados por Jesus durante a sua vida terrena, hoje quem atrai a
nossa atenção é o apóstolo Bartolomeu. Nos antigos elencos dos Doze ele é sempre colocado
antes de Mateus, enquanto varia o nome daquele que o precede e que pode ser Filipe (cf. Mt
10, 3; Mc 3, 18; Lc 6, 14) ou Tomé (cf. Act 1, 13). O seu nome é claramente um patronímico,
porque é formulado com uma referência explícita ao nome do pai. De facto, trata-se de um
nome provavelmente com uma marca aramaica, Bar Talmay, que significa precisamente "filho
de Talmay".
Não temos notícias de relevo acerca de Bartolomeu; com efeito, o seu nome recorre sempre e
apenas no âmbito dos elencos dos Doze acima citados e, por conseguinte, nunca está no
centro de narração alguma. Mas, tradicionalmente ele é identificado com Natanael: um nome
que significa "Deus deu". Este Natanael provinha de Caná (cf. Jo 21, 2), e portanto é possível
que tenha sido testemunha do grande "sinal" realizado por Jesus naquele lugar (cf. Jo 2, 1-11).
A identificação das duas personagens provavelmente é motivada pelo facto que este Natanael,
no episódio de vocação narrada pelo Evangelho de João, é colocado ao lado de Filipe, isto é, no
lugar que Bartolomeu ocupa nos elencos dos Apóstolos narrados pelos outros Evangelhos.
Filipe tinha comunicado a este Natanael que encontrara "aquele sobre quem escreveram
Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, filho de José de Nazaré" (Jo 1, 45). Como sabemos,
Natanael atribuiu-lhe um preconceito bastante pesado: "De Nazaré pode vir alguma coisa
boa?" (Jo 1, 46a). Esta espécie de contestação é, à sua maneira, importante para nós. De facto,
ela mostra-nos que segundo as expectativas judaicas, o Messias não podia provir de uma
aldeia tanto obscura como era precisamente Nazaré (veja também Jo 7, 42). Mas, ao mesmo
tempo realça a liberdade de Deus, que surpreende as nossas expectativas fazendo-se
encontrar precisamente onde não o esperávamos. Por outro lado, sabemos que Jesus na
realidade não era exclusivamente "de Nazaré", pois tinha nascido em Belém (cf. Mt 2, 1; Lc 2,
4) e que por fim provinha do céu, do Pai que está no céu.
Outra reflexão sugere-nos a vicissitude de Natanael: na nossa relação com Jesus não devemos
contentar-nos unicamente com as palavras. Filipe, na sua resposta, faz um convite
significativo: "Vem e verás!" (Jo 1, 46b). O nosso conhecimento de Jesus precisa sobretudo de
uma experiência viva: o testemunho de outrem é certamente importante, porque
normalmente toda a nossa vida cristã começa com o anúncio que chega até nós por obra de
uma ou de várias testemunhas. Mas depois devemos ser nós próprios a deixar-nos envolver
pessoalmente numa relação íntima e profunda com Jesus; de maneira análoga os Samaritanos,
depois de terem ouvido o testemunho da sua concidadã que Jesus tinha encontrado ao lado
do poço de Jacob, quiseram falar directamente com Ele e, depois deste colóquio, disseram à
mulher: "Já não é pelas tuas palavras que acreditamos, nós próprios ouvimos e sabemos que
Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo" (Jo 4, 42).
Voltando ao cenário de vocação, o evangelista refere-nos que, quando Jesus vê Natanael
aproximar-se exclama: "Aqui está um verdadeiro Israelita, em quem não há fingimento" (Jo 1,
47). Trata-se de um elogio que recorda o texto de um Salmo: "Feliz o homem a quem Iahweh
não atribui iniquidade" (Sl 32, 2), mas que suscita a curiosidade de Natanael, o qual responde
com admiração: "Como me conheces?" (Jo 1, 48a). A resposta de Jesus não é imediatamente
compreensível. Ele diz: "Antes que Filipe te chamasse, eu te vi quando estavas sob a figueira"
(Jo 1, 48b). Não sabemos o que aconteceu sob esta figueira. É evidente que se trata de um
momento decisivo na vida de Natanael. Ele sente-se comovido com estas palavras de Jesus,
sente-se compreendido e compreende: este homem sabe tudo de mim, Ele sabe e conhece o
caminho da vida, a este homem posso realmente confiar-me. E assim responde com uma
confissão de fé límpida e bela, dizendo: "Rabi, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel" (Jo 1,
49). Nela é dado um primeiro e importante passo no percurso de adesão a Jesus. As palavras
de Natanael ressaltam um aspecto duplo e complementar da identidade de Jesus: Ele é
reconhecido quer na sua relação especial com Deus Pai, do qual é Filho unigénito, quer na
relação com o povo de Israel, do qual é proclamado rei, qualificação própria do Messias
esperado. Nunca devemos perder de vista nenhuma destas duas componentes, porque se
proclamamos apenas a dimensão celeste de Jesus, corremos o risco de o transformar num
ser sublime e evanescente, e se ao contrário reconhecemos apenas a sua colocação concreta
na história, acabamos por descuidar a dimensão divina que propriamente o qualifica.
Da sucessiva actividade apostólica de Bartolomeu-Natanael não temos notícias claras. Segundo
uma informação referida pelo historiador Eusébio do século IV, um certo Panteno teria
encontrado até na Índia os sinais de uma presença de Bartolomeu (cf. Hist. eccl., V 10, 3). Na
tradição posterior, a partir da Idade Média, impôs-se a narração da sua morte por
esfolamento, que se tornou muito popular. Pense-se na conhecidíssima cena do Juízo
Universal na Capela Sistina, na qual Michelangelo pintou São Bartolomeu que segura com a
mão esquerda a sua pele, sobre a qual o artista deixou o seu auto-retrato. As suas relíquias são
veneradas aqui em Roma na Igreja a ele dedicada na Ilha Tiberina, aonde teriam sido levadas
pelo Imperador alemão Otão III no ano de 983. Para concluir, podemos dizer que a figura de
São Bartolomeu, mesmo sendo escassas as informações acerca dele, permanece contudo
diante de nós para nos dizer que a adesão a Jesus pode ser vivida e testemunhada também
sem cumprir obras sensacionais. Extraordinário é e permanece o próprio Jesus, ao qual cada
um de nós está chamado a consagrar a própria vida e a própria morte.
Simão o Cananeu e Judas Tadeu
11 de Outubro de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Hoje tomamos em consideração dois dos doze Apóstolos: Simão o Cananeu e Judas Tadeu
(que não se deve confundir com Judas Iscariotes). Consideramo-los juntos, não só porque nas
listas dos Doze são sempre mencionados um ao lado do outro (cf. Mt 10, 4; Mc 3, 18; Lc 6, 15;
Act 1, 13), mas também porque as notícias que a eles se referem não são muitas, excepto o
facto que o Cânon neotestamentário conserva uma carta atribuída a Judas Tadeu.
Simão recebe um epíteto que varia nas quatro listas: Mateus qualifica-o como "cananeu",
Lucas define-o "zelote". Na realidade, as duas qualificações equivalem-se, porque significam a
mesma coisa: na língua hebraica, de facto, o verbo qanà' significa "ser zeloso", "dedicado" e
pode referir-se quer a Deus, porque é zeloso do povo por ele escolhido (cf. Êx 20, 5), quer a
homens que são zelosos no serviço a Deus único com dedicação total, como Elias (cf. 1 Rs 19,
10). Portanto, é possível que este Simão, se não pertencia exactamente ao movimento
nacionalista dos Zelotes, tivesse pelo menos como característica um fervoroso zelo pela
identidade judaica, por conseguinte, por Deus, pelo seu povo e pela Lei divina. Sendo assim,
Simão coloca-se no antípoda de Mateus, que ao contrário, sendo publicano, provinha de uma
actividade considerada totalmente impura.
Sinal evidente que Jesus chama os seus discípulos e colaboradores das camadas sociais e
religiosas mais diversas, sem exclusão alguma. Ele interessa-se pelas pessoas, não pelas
categorias sociais ou pelas actividades! E o mais belo é que no grupo dos seus seguidores,
todos, mesmo se diversos, coexistiam, superando as inimagináveis dificuldades: de facto, era
o próprio Jesus o motivo de coesão, no qual todos se reencontravam unidos. Isto constitui
claramente uma lição para nós, com frequência propensos a realçar as diferenças e talvez as
contraposições, esquecendo que em Jesus Cristo nos é dada a força para superar os nossos
conflitos. Tenhamos também presente que o grupo dos Doze é a prefiguração da Igreja, na
qual devem ter espaço todos os carismas, os povos, as raças, todas as qualidades humanas,
que encontram a sua composição e a sua unidade na comunhão com Jesus.
No que se refere depois a Judas Tadeu, ele é chamado assim pela tradição, unindo ao mesmo
tempo dois nomes diferentes: de facto, enquanto Mateus e Marcos o chamam simplesmente
"Tadeu" (Mt 10, 3; Mc 3, 18), Lucas chama-o "Judas de Tiago" (Lc 6, 16; Act 1, 13). O
sobrenome Tadeu tem uma derivação incerta e é explicado ou como proveniente do aramaico
taddà', que significa "peito" e, por conseguinte, significaria "magnânimo", ou como abreviação
de um nome grego como "Teodoro, Teódoto". Dele são transmitidas poucas coisas. Só João
assinala um seu pedido feito a Jesus durante a Última Ceia. Diz Tadeu ao Senhor: "Senhor,
como aconteceu que te deves manifestar a nós e não ao mundo?". É uma pergunta de grande
actualidade, que também nós fazemos ao Senhor: porque o Ressuscitado não se manifestou
em toda a sua glória aos seus adversários para mostrar que o vencedor é Deus? Por que se
manifestou só aos Discípulos? A resposta de Jesus é misteriosa e profunda. O Senhor diz: "Se
alguém me tem amor, há-de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e Nós viremos a
ele e nele faremos morada" (Jo 14, 22-23). Isto significa que o Ressuscitado deve ser visto,
sentido também com o coração, de modo que Deus possa habitar em nós. O Senhor não se
mostra como uma coisa. Ele quer entrar na nossa vida e por isso a sua manifestação é uma
manifestação que exige e pressupõe o coração aberto. Só assim vemos o Ressuscitado.
Foi atribuída a Judas Tadeu a paternidade de uma das Cartas do Novo Testamento, que são
chamadas "católicas" porque não se destinam a uma determinada Igreja local, mas a um
círculo muito amplo de destinatários. De facto, ele dirige-se "aos eleitos amados por Deus Pai e
guardados para Jesus Cristo" (v. 1). A preocupação central deste escrito é advertir os cristãos
de todos os que, com o pretexto da graça de Deus, desculpam a própria devassidão e para
desviar outros irmãos com ensinamentos inaceitáveis, introduzindo divisões dentro da Igreja
"deixando-se levar pelo seu delírio" (v. 8), assim define Judas estas suas doutrinas e ideias
especiais. Ele compara-os inclusivamente aos anjos caídos, e com palavras fortes diz que
"seguiram pelo caminho de Caim" (v. 11). Além disso classifica-os sem reticências como
"nuvens sem água que os ventos levam; árvores de outono sem fruto, duas vezes mortas,
desarraigadas; ondas furiosas do mar que repelem a espuma da sua torpeza; estrelas errantes
condenadas à negrura das trevas eternas" (vv. 12-13).
Talvez hoje nós já não estejamos habituados a usar uma linguagem tão polémica, que contudo
nos diz uma coisa importante. No meio de todas as tentações que existem, com todas as
correntes da vida moderna, devemos conservar a identidade da nossa fé. Certamente, o
caminho da indulgência e do diálogo, que o Concílio Vaticano II felizmente empreendeu, deve
ser sem dúvida prosseguida com uma constância firme. Mas este caminho do diálogo, tão
necessário, não deve fazer esquecer o dever de reconsiderar e de evidenciar sempre com igual
força as linhas-mestras e irrenunciáveis da nossa identidade cristã. Por outro lado, é necessário
ter bem presente que esta nossa identidade exige força, clareza e coragem face às
contradições do mundo em que vivemos. Por isso o texto epistolar prossegue assim: "Mas vós,
caríssimos, fala a todos nós mantende-vos no amor de Deus, esperando que a misericórdia de
Nosso Senhor Jesus Cristo vos conceda a vida eterna. Tratai com misericórdia aqueles que
vacilam..." (vv. 20-22). A Carta conclui-se com estas bonitas palavras: "Àquele que é poderoso
para vos livrar das quedas e vos apresentar diante da sua glória, imaculados e cheios de
alegria, ao Deus único, nosso Salvador, por meio de Jesus Cristo, Senhor nosso, seja dada
glória, a majestade, a soberania e o poder, antes de todos os tempos, agora e por todos os
séculos, Amém" (vv. 24-25).
Vê-se bem que o autor destas frases vive plenamente a própria fé, à qual pertencem
realidades grandes como a integridade moral e a alegria, a confiança e por fim o louvor, sendo
motivado em tudo apenas pela bondade do nosso único Deus e pela misericórdia de nosso
Senhor Jesus Cristo. Por isso, tanto Simão o Cananeu, como Judas Tadeu nos ajudam a
redescobrir sempre de novo e a viver incansavelmente a beleza da fé cristã, sabendo dar um
testemunho dela forte e ao mesmo tempo sereno.
Judas Iscariotes e Matias
18 de Outubro de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Terminando hoje de percorrer a galeria de retratos dos Apóstolos chamados directamente por
Jesus durante a sua vida terrena, não podemos omitir de mencionar aquele que é sempre
nomeado por último nas listas dos Doze: Judas Iscariotes. A ele queremos associar a pessoa
que depois é eleita para o substituir, Matias.
Já o simples nome de Judas suscita entre os cristãos uma reacção instintiva de reprovação e de
condenação. O significado do apelativo "Iscariotes" é controverso: a explicação mais seguida
compreende esta palavra como "homem de Queriot" referindo-se à sua aldeia de origem,
situada nas vizinhanças de Hebron e mencionada duas vezes na Sagrada Escritura (cf. Js 15, 25;
Am 2, 2).
Outros interpretam-no como variação da palavra "sicário", como se aludisse a um guerrilheiro
armado com um punhal que em latim se chama sica. Por fim, há quem veja no sobrenome a
simples transcrição de uma raiz hebraico-aramaica que significa: "aquele que estava para o
entregar". Esta designação encontra-se duas vezes no IV Evangelho, ou seja, depois de uma
confissão de fé de Pedro (cf. Jo 6, 71) e depois durante a unção de Betânia (cf. Jo 12, 4). Outras
passagens mostram que a traição estava a ser realizada, dizendo: "aquele que o traía"; assim,
durante a Última Ceia, depois do anúncio da traição (cf. Mt 26, 25) e depois no momento do
aprisionamento de Jesus (cf. Mt 26, 46.48; Jo 18, 2.5). Ao contrário, as listas dos Doze
recordam a traição como uma coisa já efectuada: "Judas Iscariotes, o que o traiu", assim diz
Marcos (3, 19); Mateus (10, 4) e Lucas (6, 16) usam fórmulas equivalentes. A traição como tal
aconteceu em dois momentos: antes de tudo no planeamento, quando Judas se põe de acordo
com os inimigos de Jesus por trinta moedas de prata (cf. Mt 26, 14-16), e depois na execução
com o beijo dado ao Mestre no Getsémani (cf. Mt 26, 46-50). Contudo, os evangelistas
insistem sobre a qualidade de apóstolo, que competia a Judas para todos os efeitos: ele é
repetidamente chamado "um dos Doze" (Mt 26, 14.47; Mc 14, 10.20; Jo 6, 71) ou "do número
dos Doze" (Lc 22, 3). Aliás, por duas vezes Jesus, dirigindo-se aos Apóstolos e falando
precisamente dele, indica-o como "um de vós" (Mt 26, 21; Mc 14, 18; Jo 6, 70; 13, 21). E Pedro
dirá de Judas que "era do nosso número e tinha recebido o nosso mesmo ministério" (Act 1,
17).
Trata-se portanto de uma figura pertencente ao grupo dos que Jesus tinha escolhido como
companheiros e colaboradores íntimos. Isto suscita duas perguntas na tentativa de dar uma
explicação aos acontecimentos que se verificaram. A primeira consiste em perguntar como
aconteceu que Jesus tenha escolhido este homem e nele tenha confiado. Apesar de Judas ser
de facto o ecónomo do grupo (cf. Jo 12, 6b; 13, 29a), na realidade é qualificado também como
"ladrão" (Jo 12, 6a). Permanece o mistério da escolha, também porque Jesus pronuncia um
juízo muito severo sobre ele: "ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue" (Mt
26, 24).
Torna-se ainda mais denso o mistério acerca do seu destino eterno, sabendo que Judas "se
arrependeu e restituiu as trinta moedas de prata aos sumos sacerdotes e aos idosos, dizendo:
"Pequei, entregando sangue inocente"" (Mt 27, 3-4). Mesmo se em seguida ele se afastou para
se ir enforcar (cf. Mt 27, 5), não compete a nós julgar o seu gesto, substituindo-nos a Deus
infinitamente misericordioso e justo.
Uma segunda pergunta refere-se ao motivo do comportamento de Judas: porque traíu Jesus?
A questão é objecto de várias hipóteses. Alguns recorrem ao factor da sua avidez de dinheiro;
outros dão uma explicação de ordem messiânica: Judas teria ficado desiludido ao ver que Jesus
não inseria no seu programa a libertação político-militar do seu próprio País. Na realidade os
textos evangélicos insistem sobre outro aspecto: João diz expressamente que "tendo já o
diabo metido no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que O entregasse" (Jo 13, 2);
analogamente escreve Lucas: "Entrou satanás em Judas, chamado Iscariotes que era do
número dos Doze" (Lc 22, 3).
Desta forma, vai-se além das motivações históricas e explica-se a vicissitude com base na
responsabilidade pessoal de Judas, o qual cedeu miseravelmente a uma tentação do maligno.
A traição de Judas permanece, contudo, um mistério. Jesus tratou-o como um amigo (cf. Mt
26, 50), mas, nos seus convites a segui-lo pelo caminho das bem-aventuranças, não forçava as
vontades nem as preservava das tentações de satanás, respeitando a liberdade humana.
De facto, as possibilidades de perversão do coração humano são verdadeiramente muitas. O
único modo de as evitar consiste em não cultivar uma visão das coisas apenas individualista,
autónoma, mas ao contrário em colocar-se sempre de novo da parte de Jesus, assumindo o
seu ponto de vista. Devemos procurar, dia após dia, estar em plena comunhão com Ele.
Recordemo-nos de que também Pedro se queria opor a ele e ao que o esperava em Jerusalém,
mas recebeu uma forte reprovação: "Tu não aprecias as coisas de Deus, mas só as dos
homens" (Mc 8, 32-33)!
Pedro, depois da sua queda, arrependeu-se e encontrou perdão e graça. Também Judas se
arrependeu, mas o seu arrependimento degenerou em desespero e assim tornou-se
autodestruição. Para nós isto é um convite a ter sempre presente quanto diz São Bento no
final do fundamental capítulo V da sua "Regra": "Nunca desesperar da misericórdia divina".
Na realidade Deus "é maior que o nosso coração", como diz São João (1 Jo 3, 20). Por
conseguinte, tenhamos presente duas coisas. A primeira: Jesus respeita a nossa liberdade. A
segunda: Jesus espera a nossa disponibilidade para o arrependimento e para a conversão; é
rico de misericórdia e de perdão. Afinal, quando pensamos no papel negativo desempenhado
por Judas devemos inseri-lo na condução superior dos acontecimentos por parte de Deus. A
sua traição levou à morte de Jesus, o qual transformou este tremendo suplício em espaço de
amor salvífico e em entrega de si ao Pai (cf. Gl 2, 20; Ef 5, 2.25).
O Verbo "trair" deriva de uma palavra grega que significa "entregar". Por vezes o seu sujeito é
inclusivamente Deus em pessoa: foi ele que por amor "entregou" Jesus por todos nós (cf. Rm
8, 32). No seu misterioso projecto salvífico, Deus assume o gesto imperdoável de Judas como
ocasião da doação total do Filho para a redenção do mundo.
Em conclusão, queremos recordar também aquele que depois da Páscoa foi eleito no lugar do
traidor. Na Igreja de Jerusalém a comunidade propôs dois para serem sorteados: "José, de
apelido Barsabas, chamado justo, e Matias" (Act 1, 23). Foi precisamente este o pré-escolhido,
de modo que "foi associado aos onze Apóstolos" (Act 1, 26). Dele nada mais sabemos, a não
ser que também tinha sido testemunha de toda a vicissitude terrena de Jesus (cf. Act 1, 21-22),
permanecendo-lhe fiel até ao fim. À grandeza desta sua fidelidade acrescenta-se depois a
chamada divina a ocupar o lugar de Judas, como para compensar a sua traição. Tiramos disto
mais uma lição: mesmo se na Igreja não faltam cristãos indignos e traidores, compete a cada
um de nós equilibrar o mal que eles praticam com o nosso testemunho transparente a Jesus
Cristo, nosso Senhor e Salvador.
© Copyright 2006 - Libreria Editrice Vaticana
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