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DDAASS PPLL AATTÉÉII AASS:: A “APOLOGIA DE SÓCRATES”, POR
PLATÃO, À LUZ DA RETÓRICA CONTEMPORÂNEA.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras - UFMG
2006
RRooggéérr iioo MM aassccaarr eennhhaass PPaaiixxããoo
AA MM AAGGII AA DDAASS PPAALL AAVVRRAASS EE OO EENNCCAANNTTAAMM EENNTTOO
DDAASS PPLL AATTÉÉII AASS:: A “APOLOGIA DE SÓCRATES”, POR
PLATÃO, À LUZ DA RETÓRICA CONTEMPORÂNEA.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da
Faculdade de Letras da UFMG, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Lingüística.
Área de Concentração: Lingüística
Linha de Pesquisa: Análise do Discurso
Orientadora: Profa. Dra. Júnia Diniz Focas
Belo Horizonte
Faculdade de Letras - UFMG
2006
Paixão, Rogério Mascarenhas. P149m A magia das palavras e o encantamento das platéias [manuscrito] : a apologia de Sócrates, por Platão, à luz da retórica / Rogério Mascarenhas Paixão. – 2006. 144 f., enc. : il.
Orientadora: Profa. Dra. Júnia Diniz Focas.
Área de concentração: Lingüística.
Linha de Pesquisa: Análise do discurso.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 103-107.
Anexos: f. 108-144.
1. Sócrates – Teses. 2. Platão. Apologia de Sócrates – Teses. 3. Análise do
discurso – Teses. 2. Retórica – Teses. 3. Dialética – Teses. I. Focas, Júnia Diniz. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Título. CDD : 418
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos
Dissertação intitulada “A magia das palavras e o encantamento das platéias:
a “Apologia de Sócrates”, por Platão, à luz da Retórica Contemporânea”, de autoria
do mestrando Rogério Mascarenhas Paixão. Dissertação aprovada pela banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
_________________________________________________
Prof.ª Drª Júnia Diniz Focas - UFMG (Orientadora)
__________________________________________________
Prof. Dr Renato de Mello - UFMG
__________________________________________________
Prof. Dr William Augusto Menezes - UFOP
________________________________________________________________
Prof. Dr. Fábio Alves Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras
Belo Horizonte, setembro de 2006.
Av. Antônio Carlos, 6627 – Belo Horizonte – MG – 31270-901 – TEL.: (31) 3499.5492
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“A palavra é a única vantagem que a natureza
nos deu sobre os animais, tornando-nos assim
superiores em todo o resto. Tudo o que somos
devemos à linguagem”.
Isócrates (436 - 338) a.C.
RR EE SS UU MM OO
O enigmático Sócrates foi colocado à prova no século IV a.C. quando teve
que comparecer ao Tribunal ateniense para se defender. O filósofo, durante a sua defesa,
refutou as acusações que lhe foram impostas, tais como “não crer em Deuses e somente
em demônios, além de ensinar coisas demoníacas”, entre outras. Apesar de apresentar
uma argumentação lógica e racional, o filósofo foi condenado à morte. O que teria
acontecido? Teria ele preferido assim e não se empenhado o bastante em sua defesa?
Não queria se defender? Ao que parece, existia muito mais do que essas simples
indicações, tão superficiais; e a essa problemática é que se prestará a presente pesquisa.
Como embasamento teórico serão consideradas, de maneira especial, as obras sobre
Argumentação e Retórica de Chaïm Perelman, estudioso que dedicou toda uma vida
tentando resgatar a imagem da retórica, tal qual Aristóteles a concebeu.
RR ÉÉ SS UU MM ÉÉ
L’énigmatique Socrate a été mis sur la preuve au IV· e siècle avant JC quand
il devait se présenter au Tribunal athénien pour se déffendre. Le philosophe, durant sa
défense, a refusé les accusations qui lui ont été imposées, telles que “ne pas croire aux
Dieux et seulement aux démonts, en dehors d’enseigner les choses démoniaque” entre
autres. Malgré d’avoir présenter une argumentation logique et rationnelle? Aurait-il
préféré ainsi et non se dédiqué assez à sa défense? Ne voudrait-il pas se défendre? Ce
qui parait, qu’il existait beaucoup de ces simples indications, autant superficielles; et
c’est sur ce problématique que se réalisera la présente recherche. Comme fondement
théorique seront considérées, de manière spéciale, les oeuvres sur l’argumentation et la
réthorique de Chaïm Perelman, studieux qui a dédiqué toute une vie en tentant
requipérer l’image de la rèthorique tel que Aristote l’a conçue.
AA BB SS TT RR AA CC TT
The enigmatic Socrates was hardly tested in the fourth century BC when he
had to attend the Athenian Court to defend himself. The philosopher, during his defense,
refuted the indictments that were imposed to him, such as "not having faith in God and
only in demons, besides teaching demoniac things", among others. In spite of presenting
a logical and rational argument, the philosopher was sentenced to death. What would
have happened? Would have he preferred this and made not effort enough on his
defense? Didn't he want to defend himself? Apparently, there were much more than
those simple and so superficial indications; and this problem is what this research is
about. Here the theoretical basis that will be considered, in a special way, are the works
on Argumentation and Rhetoric of Chaïm Perelman, studious that dedicated an entire
life trying to rescue the image of the rhetoric, just like Aristotle conceived it.
SS UU MM ÁÁ RR II OO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 14
CAPÍTULO I - AS ORIGENS DA RETÓRICA ......................................................... 24
1.1 - O surgimento da Retórica na Grécia Antiga ............................................................ 25
1.2 - Os sofistas ................................................................................................................. 29
1.2.1 - Origem do termo sofista ........................................................................................ 29
1.2.2 - Alguns dos mais ilustres e renomados sofistas ..................................................... 31
1.3 - Sócrates e Platão ....................................................................................................... 34
1.4 - Aristóteles ................................................................................................................. 40
1.4.1 - O silogismo e os modos de argumentação ............................................................ 44
1.4.2 - Apodíctica, Dialética, Retórica e Sofística ............................................................ 46
1.5 - A Retórica contemporânea ....................................................................................... 52
CAPÍTULO II - A ARGUMENTAÇÃO NA APOLOGIA DE SÓCRATES ........... . 56
2.1 - Platão e a Apologia ................................................................................................... 57
2.2 - O julgamento de Sócrates ......................................................................................... 59
2.2.1 - A acusação e seus protagonistas ............................................................................ 60
2.2.2 - A defesa de Sócrates .............................................................................................. 61
2.3 - Refutando as acusações ............................................................................................ 64
2.4 - Argumentação: o convencimento e a persuasão ....................................................... 74
2.4.1 - Os tipos de argumento ........................................................................................... 76
2.4.2 - Adequação do orador ao auditório ........................................................................ 81
CAPÍTULO III - ASPECTOS IDEOLÓGICOS NA APOLOGIA DE SÓCRATES 84
3.1 - Combatendo com sombras ....................................................................................... 85
3.2 - Formações ideológicas e formações discursivas ...................................................... 89
CONCLUSÃO ................................................................................................................. 94
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 103
ANEXO: Apologia de Sócrates ....................................................................................... 108
14
INTRODUÇÃO
15
Ao longo dos séculos, a problemática sobre a questão da linguagem humana
permeou o cenário científico. Lingüistas, antropólogos, arqueólogos, biólogos e
filósofos, entre outros, debruçaram-se sobre o tema e muito se discutiu sobre a
linguagem humana.
A faculdade humana da linguagem não se limita à nomeação de coisas e ao
simples enfileirar linear aleatório de palavras. Ela exige mecanismos bem mais
complexos do que a mera associação entre coisas e palavras, que teriam tido sua origem
na imitação dos sons da natureza, como foi proposto muitas vezes.
Várias teses foram colocadas, como a da teoria onomatopaica, que aponta
para um surgimento das palavras relacionado à tentativa do homem em imitar os sons
produzidos pelos animais e os sons da natureza circundante, como o barulho das folhas,
o correr das águas, o barulho do vento e da chuva. Outros vislumbraram a possibilidade
da origem da linguagem estar relacionada às interjeições, assim sendo, os primeiros
sons teriam sido produzidos por exclamações de dor, alegria, desespero, espanto,
surpresa, etc. Chegou-se ainda a acreditar que a alternância dos movimentos de segurar
e soltar a respiração, fazendo as cordas vocais vibrarem, produziu a voz, daí que os
primeiros sons teriam sido os que acompanham o acasalamento, o comer, as lutas, etc.
Uma outra teoria a respeito da origem da linguagem aponta para uma
evolução da linguagem humana a partir do momento em que o homem se torna um
bípede. As mãos, que somente eram usadas para ajudar na locomoção, ficaram livres e
passam a ser usadas no manuseio de utensílios e armas rústicas de caça, bem como na
gesticulação para auxiliar na comunicação.
16
Da primitiva linguagem de gestos e grunhidos, evoluiu-se para a complexa e
fantástica comunicação humana dos nossos dias, o que nos tornou a espécie mais
evoluída e dominante do reino animal.
Até mesmo na Bíblia tem-se uma passagem sobre a origem da grande
diversidade de línguas do mundo. Tamanha diversidade seria um castigo de Deus. Pelo
texto bíblico, no princípio dos tempos, só se falava uma língua. Quando os homens
resolveram construir uma torre que pudesse alcançar o céu, para ficarem mais próximos
de Deus, foram castigados por seu criador e destinados a falar diferentes idiomas. Não
havendo mais entendimento entre eles, tiveram que parar a construção da Torre de
Babel. A diversidade lingüística humana nunca deixou de ser alvo de perguntas,
investigações, acrescida das explicações do mito da Torre de Babel à pesquisa
científica.
O quadro de possibilidades torna-se cada vez mais diversificado e a
curiosidade parecia não ter limites, ao ponto de, no ano de 1866, a Société de
Linguistique de Paris aprovar uma moção proibindo toda e qualquer menção à origem
da linguagem nos estudos científicos. Após várias décadas de ostracismo, o controverso
tema ganha força e retorna ao debate acadêmico, reavivando, principalmente, o retorno
à Antiguidade Clássica.
Muitos são os temas e assuntos em que o retorno à Grécia antiga é
praticamente inevitável. Certa vez, Engels se manifestou:
Somos obrigados, em qualquer domínio, a regressar a cada passo às produções deste pequeno povo, cuja capacidade e atividade universais conquistaram, na história da evolução da humanidade, um lugar de tal magnitude que nenhum outro povo lho poderá jamais disputar.1
1 Apud BERGUER (s/d.: 187).
17
Naquela época, os sábios e estudiosos já demonstravam uma disposição para
reflexões a respeito da linguagem humana e de suas potencialidades. O filósofo
Sócrates2 condenava uma forma de uso da linguagem, conhecida por retórica, dizendo
ser esta uma prática sofística, dando a entender que a retórica, àquela época, era usada
pelos sofistas com o intuito de enganar por meio de um discurso empolado, enfeitado e
sem nenhuma consistência, reservando à retórica um conceito quase que de
charlatanismo.
Veremos que é com Aristóteles3 que a retórica ganha um status mais sério,
tendo este dedicado profundas reflexões e estudos a respeito do tema. No entanto, o
conceito da retórica aristotélica foi corrompido ao longo do tempo, tendo chegado aos
séculos XIX e XX como algo pejorativo. Até hoje, com certa freqüência, presenciamos
expressões como “isso é mera retórica” ou “sem retóricas”, com o intuito de se referir a
um discurso vazio, sem consistência.
Da retórica à nossa moderna concepção de discurso, os hiatos, no percurso
histórico dessa temática, são contemporaneamente recuperados e reanalisados à luz da
Análise do Discurso.
Alguns consideram o marco inicial da Análise do Discurso, o ano de 1969,
quando Pêcheux publica a obra intitulada Análise Automática do Discurso (AAD), bem
como o lançamento da revista Langages, organizada por Jean Dubois. As questões
relacionadas ao ‘sujeito’ – materialmente constituído pela linguagem e interpelado pela
ideologia – vão permear as discussões na área.
Na época, o estruturalismo vivia seu apogeu, ainda que já desse mostras de
certas fissuras internas; o movimento de maio de 68 e as novas interrogações que 2 Sócrates nasceu em Atenas, no final de 470 ou no início de 469 a.C. e morreu, condenado pelo Tribunal
Ateniense a tomar cicuta (veneno), em 399 a.C., com a idade de 70 anos. CHAUÍ (2002: 177). 3 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética.
18
surgiram no âmbito das ciências humanas foram decisivos para subverter o paradigma
então reinante.
A Análise do Discurso recorta, portanto, seu objeto teórico – o discurso –
distinguindo-se da Lingüística imanente, que se centra na língua. As condições de
produção do discurso e de apreensão de significados terão relevância nas análises e é aí
que se encontra esta dissertação. É precisamente para essas abordagens que lançaremos
um olhar atento e crítico, colocando-nos num lugar privilegiado de observação: o do
discurso.
Com o advento e o avanço das pesquisas em Análise do Discurso4, surgem
novas e interessantes considerações que esta pesquisa estará empenhada em discutir. É
justamente a capacidade de engendrar e produzir discursos, de afetar o outro pela
palavra, de fazer com que nosso interlocutor mude de atitude influenciado pelo nosso
“raciocinar com palavras” que constitui o discurso dialético, que, distinto do retórico,
produz uma discursividade que visa ao debate entre pensamentos contrários. Essa
questão sempre constituiu as investigações filosóficas, em alguns aspectos, também
centradas nas ideologias. Então, como a ideologia afeta e participa da elaboração da
nossa discursividade, e conseqüentemente, fornece-nos a possibilidade de afetar o nosso
interlocutor? Uma resposta a essa inquietante indagação encontra-se no eixo
Dialética/Retórica que, embora semelhantes, apresentam, quanto aos aspectos
discursivos, distintas formações estruturais quanto à argumentação. Na Arte Retórica,
Aristóteles (s/d.: 34) tem-se que: “A retórica é o rebento da dialética”.
Nas últimas décadas, mais precisamente nos anos 60, a retórica, e,
conseqüentemente, a argumentação torna a ter lugar de destaque, sobretudo pela 4 Segundo Ida Lucia Machado, a Análise do Discurso (AD) serviria, a grosso modo, para analisar os
diferentes discursos sociais e suas variantes, de uma cultura para outra. Seria uma AD da linguagem, enquanto veículo social de comunicação. MACHADO (2001: 46).
19
divulgação dos trabalhos de Perelman5, a exemplo do Tratado sobre argumentação,
reconhecido como “a nova retórica”, que é de 1958. Em tal obra a nova concepção de
retórica, mais valorizada e bem próxima do lugar de destaque em que Aristóteles a
colocou, faz com que os estudos da linguagem tenham um novo horizonte no que diz
respeito aos aspectos relacionados ao discurso.
O discurso agora terá o seu lugar de destaque e constituir-se-á como rico e
vasto objeto de pesquisa. É nesse contexto que se situa a Análise do Discurso (AD) e o
tema dessa dissertação, o discurso de defesa proferido por Sócrates e relatado por
Platão, após a condenação e morte de Sócrates.
A “Apologia de Sócrates”6 remonta à autodefesa do filósofo Sócrates, feita
perante seus acusadores (Meleto, Ânito e Lícon) em um tribunal composto por 500
juízes, no século IV a.C., que, ao final do julgamento, acabaram por condenar Sócrates à
morte. A utilização da Apologia como corpus objetiva trazer à tona uma antiga e
saudável polêmica acerca do discurso de defesa de Sócrates, escrito por Platão7 há
aproximadamente vinte e quatro séculos. No corpus a ser analisado, temos algumas
considerações a fazer a respeito dos principais personagens envolvidos na questão:
Sócrates é considerado um dos maiores oradores da história da humanidade,
tinha uma arma poderosíssima, que era a capacidade de vencer quaisquer debates,
contra quem fosse, usando para tanto uma argumentação que era incontestável. Esse
5 PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
6 PLATÃO. Apologia de Sócrates. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2003.
7 Não apenas Platão fez uma Apologia a Sócrates, Xenofonte também escreveu uma“Apologia de Sócrates“, inserida nos Memoráveis, escrita, segundo o autor, para provar que Sócrates foi um cidadão altamente patriota, piedoso, justo, que fazia sacrifício aos Deuses e era leal aos amigos. CHAUÍ (2002: 183).
20
método socrático - maiêutica8 - consistia em indagar e, ao mesmo tempo, sugerir os
caminhos ao interlocutor, até que este chegasse à definição procurada. Era o “parto de
idéias”; no caso, nascimento de um conhecimento verdadeiro.
Como poderia Sócrates sucumbir aos questionamentos dos acusadores,
embora possuísse argumentos fortes e eficazes para persuadir e convencer os juízes de
sua inocência?
Sócrates discursava em praça pública – Ágora9 – encantando e maravilhando
a todos que o ouviam, e a respeito disso, o Prof. Zeferino Rocha (2001:113) nos diz que
“da mesma forma que Platão ensinou na Academia e Aristóteles no Liceu, Sócrates
ensinou na Ágora”, sem contar os embates que travava com os sábios espalhados por
toda a Grécia antiga, a respeito de assuntos controversos, tais como amor, sabedoria,
felicidade, entre outros.
Será que a platéia10 de Sócrates, presente no julgamento, tinha alguma
receptividade para ouvir seus argumentos? Será que estavam propensos a ouvir os
argumentos daquele homem ou já possuíam um pré-julgamento a respeito da questão?
Até que ponto a opinião já estabelecida se torna uma “muralha” intransponível ao ato
de persuadir e argumentar?
8 Maieutiké: arte de realizar um parto. A palavra maieuía significa parto; maieútria, parteira; o verbo
maieúo significa realizar o parto auxiliando a parturiente. O maieutikós ó o parteiro que conhece a arte ou técnica do parto. Platão criou a palavra maieutiké para referir-se ao “parto das idéias” ou “parto das almas” realizado pelo método socrático. A mãe de Sócrates era parteira.
9 O direito de reunir-se era sempre indispensável. Para essa reunião, chamada agorá, impõem-se a existência de uma praça pública, que tem o mesmo nome. Ela é, antes de tudo, o lugar do mercado. Mas a praça não era apenas o lugar das transações comerciais; aos comerciantes e sua clientela misturam-se curiosos e desocupados. Em qualquer hora do dia, é o lugar de encontro onde se passeia ao ar livre, onde se fica sabendo das novidades, onde se discute política, onde se formam as opiniões. A ágora, portanto, preenche todos os requisitos para servir às assembléias plenárias. GLOTZ (1980: 17).
10 A Justiça era administrada pelos tribunais populares. Anualmente, eram escolhidos cinco mil juízes (quinhentos por tribo). Foi num desses tribunais populares, o de Atenas, que Sócrates foi condenado. ROCHA (2001: 66).
21
Sócrates, segundo Platão11, ao fazer sua defesa, não obteve o sucesso
desejado (ser considerado inocente), tendo sido condenado à morte. Alguns estudiosos
chegaram a acreditar que a tarefa de provar a inocência perante o tribunal de Atenas,
constituir-se-ia em missão de facílima conclusão para Sócrates, tendo em vista sua
grande capacidade e sabedoria, chegando a aventar a hipótese de que só não o teria feito
por vontade própria, uma vez que já estava muito velho e que, de uma forma ou de
outra, a morte já estando próxima, ele preferiu a morte por ingestão de veneno à fácil
empreitada de provar sua inocência. Mas será que podemos aceitar essa afirmação como
solução para a problemática?
A obra Apologia de Sócrates, escrita por Platão, coloca-se entre as mais
belas páginas de eloqüência que nos foram legadas pela Antiguidade. De grande valor
como documento histórico e humano, nela poderão ser encontradas pistas para a
tentativa de desvendar alguns ‘mistérios’ que giram em torno do episódio da morte de
Sócrates.
Norteando a pesquisa nas teorias da AD, os estudos poderão trazer alguma
contribuição para a comunidade acadêmica. O analista de discurso, enquanto
pesquisador, estaria em condições trazer à tona os engendramentos discursivos
imbricados nas realizações argumentativas presentes na linguagem humana.
Reporto-me às palavras da Professora Ida Lucia Machado (2001:44):
O sujeito que se presta a realizar uma pesquisa deve, por definição, ter um espírito crítico, ou seja, manter um olhar não-conformista sobre o mundo, não se deixando levar por idéias feitas; deve nele reinar algo de subversão, de ironia, face aos fatos e ditos do mundo, e é esse ‘algo’ que levará tal pesquisador a examinar diferentes grupos de textos movido por um desejo de ‘desvendar’ o que até então não havia sido desvendado, de confrontar diferentes opiniões oriundas de
11 Pertencente a uma das mais prestigiosas linhagens da Aristocracia ateniense, Platão nasceu em 427
a.C. e morreu em 347 a.C.. Por parte de mãe, descendia de Sólon; por parte de pai, do Rei Codro, fundador de Atenas. CHAUÍ (2002: 212).
22
diferentes culturas. Logo, assim agindo, o sujeito-pesquisador estará refletindo ou colocando em dúvida idéias por demais aceitas ou por demais implantadas ao ponto de se transformarem em dogmas, no nosso universo social. (grifos meus)
Devido ao fato de poder se atribuir à Análise do Discurso, as definições mais
variadas e amplas, parece-nos importante fornecer a concepção que achamos mais
condizente com o que pretendemos realizar em nossa pesquisa. Das inúmeras definições
encontradas no Dicionário de Análise do Discurso de Charaudeau e Maingueneau
(2004) e no Termos-chave da Análise do Discurso de Maingueneau (2000),
apreenderemos as seguintes: Análise do Discurso é “a análise do uso da língua”; “o
estudo do uso da língua, pelos locutores reais em situações reais” e os autores seguem
dizendo que preferem associar a Análise do Discurso, sobretudo, à relação entre texto e
contexto; e concluem que “não se fala, então, de análise do discurso em relação a
trabalhos como os de Ducrot, que incidem sobre enunciados descontextualizados”.
Faz-se necessário também uma breve menção a respeito da nossa visão sobre
o termo “discurso” e como estaremos adotando-o em nossa pesquisa. Por se tratar de um
termo tão polissêmico e usado nas mais variadas linhas de estudo, indicamos algumas
concepções presentes no já citado Dicionário. Este nos fornece mais de uma dúzia de
diferentes usos e modos de conceber o termo “discurso”, mas preferimos adotar, em
nossa pesquisa, a definição encontrada e citada no Dicionário como sendo: “o discurso
é a utilização, entre os homens, de signos sonoros articulados, para comunicar seus
desejos e opiniões sobre as coisas”. Já na obra intitulada: Termos-chave da Análise do
Discurso, também já mencionada, encontramos outras tantas acepções, mas preferimos
aquela que diz ser o discurso relacionado com o contextual; “discurso é a atividade de
sujeitos inscritos em contextos determinados” e ainda uma citação de Foucault, presente
23
na mesma obra, que diz: “chamaremos discurso um conjunto de enunciados que
dependem da mesma formação discursiva”.
Com relação aos aspectos retóricos e possíveis interfaces entre Análise do
Discurso e Retórica, não entendemos aqui a Retórica como algo separado da Análise do
Discurso; entendemos que os tipos de argumentação – objeto da retórica – são uma
possibilidade dentro desse imenso campo, para onde convergem diversas correntes.
Logo, interpretamos a retórica como algo que hoje é englobado pela Análise do
Discurso e não ao contrário. A retórica, de acordo com nosso ponto de vista, constitui-se
como uma das muitas possibilidades de estudo que está inserida nessa grande ‘Escola’ a
que se convencionou chamar Análise do Discurso.
Se falamos de Retórica, devemos associá-la à ideologia, pois um mesmo
corpus pode ser descrito do ponto de vista de como foram socialmente engendrados no
que se refere às argumentações (aspectos retóricos), bem como no que tange aos
aspectos ideológicos imbricados no cenário argumentativo. É aí que se encontra a
Análise do Discurso, englobando essas várias formas de manifestação da linguagem
humana. Em Orlandi (2003:15) temos:
A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando.
Essas indicações, por ora, nos parecem suficientes para apontar os rumos de
nossa dissertação e é esse “discurso filosófico”, proferido por personagens bem
definidos e em situações históricas também definidas, que consideraremos em nossa
pesquisa.
24
CAPÍTULO I – AS ORIGENS DA RETÓRICA
25
1.1 O SURGIMENTO DA RETÓRICA NA GRÉCIA ANTIGA
Estudiosos apontam o século V a. C., por volta do ano de 480, como o marco
do nascimento da retórica. Naquele ano, os gregos sagraram-se vencedores contra os
persas em um embate que ficou conhecido como Batalha de Salamina. Esse
acontecimento histórico é considerado o fato que impulsionou e deu origem ao período
da Grécia Clássica, denominado como século de Péricles, em referência ao grande
governante que Atenas teve no século V a. C. Péricles foi um líder que, entre outras
realizações, instituiu a remuneração para os ocupantes de cargos públicos, foi o
responsável por muitas obras, estimulou o desenvolvimento intelectual e artístico, além
de escrever tragédias e comédias nas quais a preocupação era retratar a vida humana,
buscando compreender tudo o que cercava o homem em seu cotidiano. Ele achava que
toda a cidade deveria ter um local onde todos pudessem se reunir para tratar de assuntos
comuns, como construção de templos, declarações de guerra, etc. Entre os seus amigos,
havia sábios, poetas como Sófocles, artistas, o filósofo Anaxágoras, Sócrates, Heródoto
– o pai da história –, o escultor Fídias e muitos outros personagens ilustres. Péricles
entendia que todos os assuntos deveriam ser debatidos e votados pelos cidadãos. A
palavra e a argumentação passam a ter papel importantíssimo para a Pólis. Em Glotz
tem-se que:
Na época de Péricles, a vida política de Atenas testemunhou um equilíbrio perfeito entre os direitos do indivíduo e o poder público. (...) A teoria constitucional da democracia ateniense é bem simples; resume-se numa expressão: o povo é soberano. Quer funcione na Assembléia ou nos Tribunais, tem a soberania absoluta de tudo o que se refere à cidade. 12
Na Sicília, a tirania era derrotada com a queda do tirano de Siracusa, com a
democracia instalada, os exilados começaram a retornar às suas terras, e pessoas, que
12 GLOTZ (1980: 107 - 111).
26
tiveram bens confiscados pelo regime tirano, começaram a reclamar suas antigas posses
e quaisquer bens que julgavam ter algum direito.
Com todo esse cenário, surge um problema – como aqueles que
reivindicavam o direito de propriedade poderiam reclamar suas posses se não havia um
sistema eficiente de controle e registro dos bens? Não existia a figura do cartório como
nos dias atuais. A solução foi resolver todas as contendas e disputas através de uma
espécie de debate jurídico. Os envolvidos teriam a oportunidade de expor seus reclames
e objetar da forma que melhor lhe conviesse, mas que pudesse, ao final de sua
exposição, persuadir aos juízes que aquilo que reclamavam era, de fato, algo de sua
propriedade e de seu direito.
Podemos facilmente perceber que aqueles que estivessem em melhores
condições de argumentar publicamente, persuadindo e defendendo aquilo que julgassem
como sendo seu de direito, sairiam à frente e poderiam ser beneficiados, ao contrário, os
que não possuíssem o dom da oratória, perderiam as disputas por não saberem expor e
argumentar a fim de defender sua causa.
Surgem, então, profissionais que se oferecem para falar em nome de outras
pessoas; para defender suas causas, preparar os discursos previamente (logógrafos e
retores). Os desprovidos do ‘dom da palavra’ agora poderiam recorrer aos préstimos
daqueles que dominavam as técnicas do bem dizer; obviamente mediante pagamento,
pois essa defesa não era realizada de forma gratuita.
A retórica nasce assim, com a derrubada da tirania e, conseqüentemente,
com as pessoas podendo tomar a palavra nos debates públicos, nas conversas da Àgora
e passando a ter o direito de expressar e defender suas opiniões. A retórica é própria da
democracia, pois podemos percebê-la como liberdade para se expressar, ela é por
27
excelência a arte da democracia. Na tirania, o discurso e a palavra são sufocados e a
retórica não se apresenta. Se a essência da retórica consiste na persuasão através da
argumentação, não há como pensá-la sem democracia e liberdade, ideais que
começavam a fazer parte da Pólis na Grécia antiga. A retórica ensina, desde o início,
que o que importa é a verossimilhança, no sentido de que esse semelhante ao verdadeiro
seria, como diz Plebe & Emanuele (1992: 23), “segundo a razão”, “segundo a
racionalidade”. Ele ainda aponta a importância do verossímil dizendo que “o
verdadeiro sem o verossímil é, com freqüência, impotente”, e conclui que: “A realidade
fica obscura se não se torna aparência, mas a aparência é inconsistente se não for
pertinente à realidade”. Os homens serão persuadidos pelo discurso da aparência,
sustentado por uma oralidade lógica e racional.
Das disputas e debates jurídicos – oriundos de um estado democrático – a
retórica se desenvolve, fixando-se como doutrina de vida. As pessoas queriam aprender
essa técnica; os pais queriam ver seus filhos educados e receber uma educação
completa, e entre as várias disciplinas e conteúdos a que os jovens eram iniciados,
estava a arte oratória. Professores de retórica – conhecidos como retores – começavam a
ganhar dinheiro e cobrava-se muito pelos ensinamentos, a retórica chegava ao seu
apogeu.
28
Retor e seus discípulos. Ilustração da Antiguidade.
29
1.2 OS SOFISTAS
1.2.1 ORIGEM DO TERMO SOFISTA
Na Grécia antiga, as palavras sophos e Sophia eram habitualmente
empregadas para designar sábio e sabedoria. A própria palavra filosofia tem na sua
constituição a presença desse radical sophos que, em conjunto com fhilo, originou: amor
ao saber, amante do saber ou amigo do saber.
Inicialmente, esse sophos era utilizado para indicar ou realçar uma
determinada capacidade, perícia e/ou ainda uma posse de intelectualidade. Por exemplo,
um construtor de navios teria o sophos da construção de navios; um cocheiro teria o
sophos do trato com cavalos; um escultor, o sophos em sua arte; uns teriam o sophos da
geometria; outros da medicina e assim cada um em sua área. A idéia de sophos, então, é
atribuída a alguém que desempenha uma determinada tarefa ou ocupação com um rigor
e perfeição em nível de excelência. Assim sendo, o termo ‘sofista’ tinha, no início, um
significado bom, nobre, e antes de ter adquirido o sentido pejorativo com o qual é
vinculado, sofista era sinônimo de sábio. Em Guthrie, temos o lamento de Isócrates13, a
respeito da degradação que o termo sofre.
Ofende-me ver a cavilação mais altamente considerada que filosofia, como o promotor que põe a filosofia no banco dos réus. Quem dos velhos tempos teria esperado isso, entre vós e todos os povos que se orgulham de sua sabedoria (sophia)? Não foi assim nos tempos de nossos antepassados. Eles admiravam os que eram chamados sofistas e invejavam seus amigos. A melhor prova é que escolheram Sólon, o primeiro cidadão ateniense a portar tal título, para governar o Estado.14
13 Contemporâneo de Sócrates e Platão. Apesar de ensinar a arte da oratória, não era tão desprezado por
Sócrates e Platão como eram os sofistas. Em REBOUL (2004: 12) tem-se: Isócrates vai propor uma retórica mais plausível e mais moral que a dos sofistas (...), devemos agradecer a Isócrates por ter libertado a retórica do domínio sofístico.
14 GUTHRIE (1995: 32 - 33).
30
A maneira como estava organizada a Pólis grega, a assembléia, os tribunais
populares, os debates na Àgora, fazia com que se passasse a dominar um pouco de cada
assunto, uma espécie de cultura geral, de conhecimento lato. Daí que muitos já não
possuíam todo o sophos (conhecimento) a respeito de um dado assunto, ou ciência, ou
arte, mas pequenos sophos a respeito das mais variadas temáticas. Assim sendo, surgem
os sophistes (sofistas), que não possuem – necessariamente – conhecimento profundo de
quaisquer ciências ou técnicas, mas saberes superficiais de quase tudo.
A falta de um profundo e verdadeiro saber deveria ser preenchida de alguma
forma, senão como esses sophistes poderiam angariar credibilidade e receber aceitação
por parte de alguém? Tudo indica ser aí o ponto crucial para tudo que a palavra ‘sofista’
passa a significar. Sofista passa a relacionar-se com perícia em discurso e
argumentação. Guthrie (1995: 34) diz que “um sofhistes escreve e ensina porque tem
especial perícia ou conhecimento para comunicar”. A falta de um verdadeiro e notório
saber será amenizada, preenchida e/ou camuflada com as técnicas oratórias e discursivas
ou com a arte da persuasão.
Os sofistas passam a ser procurados por aqueles que se interessam pelo
aprendizado e aprimoramento da arte oratória; daí se tornam mestres para ensinar a
discursar e a persuadir. É aí que a história dos sofistas se mistura com a da retórica.
Sofística e Retórica passam a significar a mesma coisa ou ainda, a retórica será o objeto
de ensino, a ‘ciência’ dos sofistas. No diálogo Górgias, Platão dirá que:
Ao contrário do que imagina o sofista, a retórica não é uma arte (ou técnica) e muito menos uma ciência, mas uma habilidade, uma perícia ligada ao prazer, fazendo parte de um conjunto de habilidades desse tipo que, no diálogo, são chamadas de perícias de adulação. (...) A retórica é a arte do logro e do engano.15
15 Apud CHAUÍ (2002: 233 - 234).
31
Desde então, torna-se praticamente impossível referir-se a um termo sem que
o outro seja, também, lembrado e mencionado. Os sofistas mostram-se dispostos a
discutir quaisquer assuntos. As palavras serão tomadas em sentidos diversos e serão
manipuladas como instrumento de persuasão para o alcance dos mais variados
objetivos.
1.2.2 ALGUNS DOS MAIS ILUSTRES E RENOMADOS SOFISTAS
A tirania havia sido deposta na Sicília e, coincidentemente, dois sicilianos,
Córax e Tísias, criavam um método com as regras do bom discurso. Córax era mestre de
Tísias e os dois elaboraram uma coletânea de preceitos e exemplos – tekhné rhetoriké –
com os quais as pessoas deveriam se apropriar quando procurassem os tribunais para
reclamarem quaisquer direitos. Em Reboul (2004:02) temos: “Córax dá a primeira
definição de retórica – ela é criadora de persuasão. Como Atenas mantinha estreitos
lações com a Sicília, e até processos, imediatamente adotou a retórica” .
A democracia ateniense influenciou o desenvolvimento da educação, pois a
maneira como a cidade estava estruturada exigia uma preparação intelectual mais
completa. Os sofistas encontraram o seu filão e passaram a dar aulas em várias cidades
da Grécia.
Nesse contexto, tem-se Górgias, Protágoras, Hípias, Pródico, Antífon,
Crítias, Lícofon, Trasímaco, Isócrates e muitos outros contemporâneos destes, que da
mesma forma, estavam empenhados no ensino da arte retórica, como aprimoramento da
eloqüência pública, com o objetivo de iniciar e/ou habilitar os seus aprendizes na arte da
persuasão.
32
Górgias da cidade de Leontini, viveu aproximadamente 109 anos (485 – 376)
e era apontado por Platão como a própria personificação da retórica e a maior expressão
prática da sofística. Ele viajava de cidade em cidade, ensinando e cobrando pelos
ensinamentos retóricos, estando sempre acompanhado por muitos discípulos. Platão
chegou a escrever um diálogo, o Górgias, em referência a seu nome. Górgias foi um dos
mais renomados professores de retórica de sua época e defendia a inexistência de
qualquer critério absoluto para o conhecimento e a comunicação, com base em três
princípios fundamentais: 1) nada existe; 2) o que existe é inconcebível, pois se alguma
coisa existisse não a poderíamos conhecer; 3) o conhecimento é incomunicável, se
acaso o conhecêssemos não poderíamos manifestá-lo aos outros.
Platão dizia que a arte de Górgias produzia a persuasão. Ele tinha um estilo
tão peculiar de se dirigir ao público em seus discursos que os gregos criaram o termo
“gorgianizar”, para designar o falar à maneira de Górgias. Ele é freqüentemente
relacionado à poesia, uma vez que considerava ser a poética, a palavra ritmada, a
verdadeira e mais profunda natureza da persuasão. As concepções de Górgias e o seu
talento oratório exerceram uma grande influência em seus sucessores.
Outro grande nome no rol dos famosos sofistas, que consideramos
importante discorrer um pouco a seu respeito é Protágoras (486 – 410) da cidade de
Abdera. Protágoras levou a subjetividade e o relativismo ao extremo e é dele o célebre
pensamento “o homem é a medida de todas as coisas”. Esta máxima significava que
para uma determinada realidade, depende cada homem individualmente a tarefa de sua
interpretação e forma de conceber as coisas. Note-se a importância disso para a retórica
e a sofística, que precisavam, em cada caso, fornecer uma interpretação visando a
provocar a persuasão e o assentimento do interlocutor a respeito do tema em pauta.
33
Conhecimentos pré-elaborados e já consolidados, dependendo do objetivo, deveriam ser
desmontados, pois em matéria de retórica tudo tem que ser possível. O pensamento de
Protágoras identifica o real como algo de contraditório (antilogia) e afirma a imanência
recíproca dos contrários.
Protágoras nega qualquer verdade absoluta, o universal não é dado, há que
ser buscado pelo homem. A exemplo do que aconteceu com Górgias, Platão também lhe
dedicou um de seus diálogos que traz o seu nome, o Protágoras. Protágoras também
alcançou a prosperidade, cobrando por seus ensinamentos sobre retórica. Platão
enfatizou a riqueza dos sofistas dizendo que “Protágoras ganhou mais de sua sophia do
que Fídias e outros dez escultores ajuntaram; e Górgias e Pródico mais do que
praticantes de qualquer outra arte”16.
O homem como medida de tudo acaba por justificar toda a retórica sofística,
pois a verdade das coisas estariam mais no próprio homem do que nas coisas, como o
homem é múltiplo, diverso e cheio de facetas, as verdades também o serão e é dessa
justificativa que as proposições e os argumentos poderão tomar os mais variados
sentidos de acordo com a necessidade do momento.
16 GUTHRIE (1995: 39).
34
1.3 SÓCRATES E PLATÃO
Sócrates (469 – 399 a.C.) nasceu num vilarejo próximo de Atenas. Seu pai
era escultor e a mãe parteira. Morreu em 399 a.C., condenado pelo tribunal ateniense a
tomar cicuta, quando estava com 70 anos de idade. Ainda jovem, começou a apreender
a arte da escultura com o pai, mas logo foi enviado para estudar com o filósofo
Anaxágoras17. Já com a idade adulta, Sócrates se tornou um amante do saber, um
filósofo, e tornou-se uma das figuras mais expoentes de nossa história. Sócrates dizia
que seu método – a maiêutica – era uma mistura da arte do pai e da mãe, seu pai
escultor transformava a matéria bruta, dando-lhe forma e nobreza e sua mãe parteira
participava do processo de dar à luz. Então, ele poderia ser um escultor de pessoas
fazendo-as melhores e levando-as a dar à luz a um novo saber, o “parto de idéias”.
Sócrates não nos deixou nada escrito e tudo o que temos dele são de fontes
indiretas. Certa vez, ele justificou o porquê de sua recusa à escrita:
Antigamente, havia um deus egípcio chamado Theuth. Certo dia, Theuth foi se encontrar com o rei do Alto Egito e começou a mostrar-lhe tudo o que tinha inventado. Quando Theuth chegou ao alfabeto, explicou: ‘esta é uma invenção que irá ampliar imensamente a sabedoria e a memória de seu povo’. O rei, no entanto, replicou: ‘Ó, inventivo Theuth, seu alfabeto produzirá o efeito exatamente oposto ao que se espera. Assim que os egípcios passarem a confiar na sabedoria escrita deixarão de usar a memória, abandonando seus recursos interiores para adotar esses sinais externos.18
Ele ainda dizia que o uso da escrita teria um inconveniente que se assemelha
à pintura, pois as figuras pintadas também têm atitude de pessoas vivas, mas se alguém
as interrogar, elas permaneceriam caladas e com os livros e discursos escritos acontece
da mesma forma. Se interrogarmos um livro, ele permanecerá mudo e não nos trará as
respostas exatamente como buscamos, e aí ele seguia justificando a sua recusa pela
17 Anaxágoras (500 - 428 a.C.), além do mestre de Sócrates, foi também mestre e amigo de Péricles. 18 PLATÃO. Fedro (2003: 118 - 119).
35
escrita. Sócrates acreditava que os indivíduos deviam buscar o aprimoramento
intelectual, atingir o puro e verdadeiro entendimento sobre as coisas; não aceitava que
uma pessoa pudesse viver no plano da superficialidade a respeito do mundo.
Aprofundar-se o máximo possível em tudo era a sua doutrina de vida e essa busca
incessante pelo saber é que tornaria o homem melhor e mais justo, daí a sua célebre
frase: “conhece-te a ti mesmo”. Essa constante busca pela sabedoria fazia com que os
filósofos ficassem a debater por horas, dias, a respeito de um determinado tema, com o
objetivo de estabelecer um saber universal.
A análise rigorosa dos mais variados assuntos mostra a importância do uso
da razão. Essa racionalidade discursiva e esse método de argumentação foi chamado
dialética, que pode, perfeitamente, ser considerada a precursora da lógica. Em Strathern
(1998: 54) tem-se que:
Esta era a grande inovação da dialética: uma ferramenta que podia ser aplicada a tudo. Depois de consolidada a definição do assunto, Sócrates passava então a descobrir falhas nele e no decorrer do processo chegava a uma melhor definição. (grifo nosso)
A filosofia socrática influenciou vários discípulos que passaram a ser
destinatários de seus ensinamentos, dentre os quais destacamos Platão. O surgimento da
dialética e da racionalidade discursiva, como meio de se alcançar o saber e o verdadeiro
entendimento das coisas, coincide com o período em que a retórica florescia e era
amplamente difundida em Atenas pelos sofistas.
Sócrates e Platão tornar-se-ão os grandes desafetos dos sofistas e os acusarão
de espalhar essa falsa ‘ciência’ – a arte retórica – que degrada o ser humano, uma vez
que não visa o verdadeiro, o saber elaborado, a racionalidade das coisas, e tão somente
um pífio saber superficial, um falso saber, que visa tão somente o engodo e o logro no
momento da persuasão.
36
Em quase todas as obras de Platão, encontramos, ainda que subliminarmente,
referências à retórica e aos sofistas, mas a concepção negativa que ele e seu mestre
Sócrates tinham a respeito dela fica mais evidente em três obras: no Sofista, onde
condena-se a retórica sofística, dando-nos mostras que poder-se-ia falar de uma possível
retórica boa; e as obras Fedro e Górgias, onde o tema é novamente o sofista e sua arte
retórica, vista como mentira, adulação e veneno. No Fedro, Sócrates chega a dizer que
“a retórica é a arte de dirigir as almas por meio de palavras” e no Górgias ele chega a
se interrogar: “me pergunto há muito que poder é esse da retórica, ela parece algo de
grandeza quase divina”.
Podemos perceber claramente que a visão negativa da retórica, que
atravessou os séculos e chegou até nós, é um legado socrático-platônico. O sofista era
um professor de técnicas, de como os políticos deveriam dominar a eloqüência para
alcançar seus objetivos. O sofista era um cético que ensinava que o sim e o não
dependeriam apenas dos argumentos para persuadir alguém a manter ou a mudar de
opinião. A verdade das coisas não era sua preocupação. A filosofia socrática, ao
contrário, buscava um discernimento a respeito do mundo das opiniões (contingente,
acidental) e o da verdade (necessário); o profundo e o superficial; as aparências e a
realidade. O mundo de opiniões que os sofistas tentaram estabelecer na Grécia antiga
faz levantar a voz de Sócrates de tal forma que ainda hoje somos capazes de ouvir seus
ecos.
37
Busto de Sócrates. Museu de Roma.
Platão, detalhe da ‘Escola de Atenas’ de Rafael (1510), Museu do Vaticano.
38
No livro VII da República, Platão narra o Mito da Caverna onde homens
vivem acorrentados dentro de uma caverna de costas para uma pequena fenda, que fica
no alto da caverna e por onde passa alguma luminosidade. Os homens passam toda a
vida observando apenas as sombras que são projetadas no fundo da caverna, oriundas da
luminosidade que passa pela fenda quando seres passam do lado de fora próximo da
caverna, tais como homens, mulheres, crianças, animais etc. Um dia, um deles resolve
se libertar das correntes e escalar a parede da caverna, em uma árdua e difícil jornada
ele chega à fenda que conduz à saída, quando consegue chegar do lado de fora fica cego
de tanta luz, mas aos poucos vai se acostumando e percebendo as maravilhas que existe
do lado de fora, fica perplexo ao ver toda a beleza do mundo que o cerca e que na
verdade aquelas sombras, tidas como toda a realidade existente não eram nada, além de
meras sombras. Ele faz a viagem de volta à caverna e procura libertar os demais para a
luz, mostrando-lhes a beleza e o conhecimento.
Essa alegoria da caverna permite várias interpretações, mas de acordo com
as concepções de Sócrates e Platão, adotaremos o que diz Chauí (2002: 261):
As sombras são as coisas sensíveis, que tomamos pelas verdadeiras. Os grilhões (correntes) são nossos preconceitos, nossa confiança em nossos sentidos, nossas paixões e opiniões. O instrumento que quebra os grilhões e permite a escalada do muro é a dialética. O prisioneiro curioso que escapa é o filósofo. O retorno à caverna para convidar os outros a sair dela é o diálogo filosófico.
O Mito da Caverna nos ajuda a perceber a essência da filosofia socrático-
platônica, mostrando que na ignorância não há verdade. Com isso, Platão discorre sobre
a importância da educação e, óbvio, da filosofia. Só através dela o homem pode
enxergar a luz, metáfora que associa o conhecimento à liberdade e à verdade; e a
ignorância (trevas) ao aprisionamento e alienação.
39
Em Rocha (2001:126) tem-se que:
A paixão de Sócrates era a missão do educador. Jamais foi seu desejo apoderar-se do poder político. Seu objetivo era o bem da cidade. Mas isso só lhe parecia possível se a cidade fosse estruturada numa ordem ética.
A filosofia e a educação seriam a dura jornada que o homem fez ao escalar
as paredes da caverna, conduzindo-o à luz e ao verdadeiro conhecimento, em si
dialético. O conhecimento através da filosofia descortina a luz que nos cega
momentaneamente, mas nos ilumina perenemente. Quem não conhece o mundo pelo
conhecimento, pela educação, está condenado às trevas, à caverna de onde se vislumbra
a realidade por uma fenda.
40
1.4 ARISTÓTELES
Aristóteles (384 – 322) nasceu na cidade grega de Estagira, daí o porquê de
ser freqüentemente referenciado como o “estagirita”. Seu pai – Nicômaco – era médico
e Aristóteles chegou a receber certa educação em Medicina. Aos dezoito anos, transfere-
se para Atenas, onde passará a freqüentar a Academia de Platão. Aristóteles ouviu, por
aproximadamente 20 anos, as lições de Platão na Academia.
Certo dia, quando Platão verificou que Aristóteles não se encontrava na
Academia, proferiu as seguintes palavras: “a inteligência está ausente”.
Contemporâneos dos dois filósofos declararam que Platão costumava chamar seu maior
discípulo de “o Espírito” , “o Ledor” , “o Entendimento”, dando-nos mostras de sua
capacidade e genialidade pelo fato de ser tão admirado pelo próprio mestre.
Com a morte de Platão (em 347 a.C.), Aristóteles deixa a Academia. Mais
tarde, quando estava com aproximadamente 50 anos, funda sua própria escola, o Liceu,
que chegou a ser uma verdadeira universidade e há quem afirme que era tão bem
organizada e laboriosa quanto as universidades de nossos dias. Aristóteles tinha um
espírito enciclopédico e versou praticamente sobre todas as matérias que eram objeto de
estudo dos pensadores de seu tempo.
Uma das obras de Aristóteles, o Órganon, possui um tratado intitulado
Tópicos. Nos Tópicos estão presentes os preceitos a respeito da teoria da argumentação
de Aristóteles e foi apoiado neste tratado, onde ainda discorre sobre a dialética, que
Aristóteles escreveu sua Arte Retórica.
41
O Professor Goffredo Telles Júnior, autor do estudo introdutório sobre
Aristóteles, presente na Arte Retórica19, disse a seu respeito:
Sua maior glória foi, segundo nos parece, a de haver descoberto todas as leis ideais da argumentação. Com isto, criou uma nova ciência – a ciência diretiva da operação de raciocinar – que, posteriormente passou a se chamar lógica. Este é o caso único de uma ciência criada integralmente, de sua primeira à última proposição, por uma só pessoa. Vinte séculos mais tarde, Kant haveria de escrever que desde Aristóteles, a lógica não teria ganhado muito quanto ao fundo, e, mesmo, não poderia ganhar muito a esse respeito. (grifo nosso)
Com os estudos acerca da argumentação dialética e de sua Arte Retórica,
Aristóteles recupera a imagem da retórica, tão desprezada e maculada por Sócrates e
Platão.
Aristóteles parece ter se orientado pelas indicações que seus antecessores,
nas poucas vezes em que se referiram à retórica sem uma carga pejorativa, apontando
para a existência de uma possível “retórica boa”. No conjunto da obra platônica, são
raras as passagens em que pode ser encontrada alguma referência à retórica que não
contenha uma visão negativa. Observemos uma dessas passagens do diálogo Fedro,
onde Sócrates refere-se ao tema.
Não se deve blasfemar, mas perdoar, se alguns que não sabem pensar não souberem definir o que é retórica; esses homens, pela sua falta de discernimento, só adquiriram o saber introdutório indispensável a essa arte, e acreditam ter aprendido a própria retórica; ensinam esse saber a outros e julgam poder formar oradores perfeitos, achando que os seus pupilos devem tentar falar sobre qualquer coisa.20 (grifo nosso)
Aristóteles prefere basear-se nessa possibilidade, raramente sugerida por seu
mestre Platão, da possibilidade da nobreza e da importância da retórica e desenvolve
suas obras a respeito do assunto e da argumentação de modo geral.
19 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, (s.d). 20 PLATÃO. Fedro (2003: 111).
42
É essa a tônica do trabalho de Aristóteles, uma visão não depreciativa da
retórica, uma retórica mais próxima da dialética, e a prova disso é que baseou a sua
retórica em uma obra anterior, também de sua autoria, conhecida por Tópicos, que é um
tratado sobre a dialética.
Aristóteles desmorona a ambiciosa pretensão dos sofistas que desejavam
elevar a retórica ao nível de uma arte que tudo pode, e refuta, de certa forma, o seu
mestre Platão, que juntamente com Sócrates, a colocou no plano do desprezível,
afirmando que dela não deveriam se ocupar os homens sérios. Aristóteles dirá,
simplesmente, que ela é arte, tal como a poética, visto que formula as regras da criação.
A esse ponto, necessário se faz fornecer o significado de dois conceitos para
entendermos melhor a concepção de arte e como Aristóteles teria concebido sua Arte
Retórica. Existem dois tipos de conhecimentos, dois modos de apreensão do mundo em
que vivemos, seria o campo do Contingente e do Necessário. O contingente é
entendido como o verossímil, aquilo que não pode ser visto como a verdade última e
segura a respeito das coisas, é o campo da opinião (doxa) e do acidente. Já o necessário
é relacionado ao conhecimento seguro, ao saber nobre e universal (episteme), uma
verdade segura a respeito de todo o estado de coisas (verdade necessária); é o campo da
essência e da segurança.
Podemos afirmar que a retórica aristotélica não seria tão contingente como
queriam Sócrates e Platão e nem suprema e toda poderosa como desejavam os sofistas.
A arte é algo que fica entre esses dois pólos, transita entre o contigente e o necessário;
a retórica como arte, estaria exatamente aí, entre esses dois extremos. Uma teoria bem
ao modo de Aristóteles, sempre buscando o “justo meio” e tentando fugir dos extremos.
43
Aristóteles, por Rembrandt.
44
O esquema abaixo nos fornece uma idéia de como isso ocorre:
CONTINGENTE
Doxa
NECESSÁRIO
episteme
acidental, verdades momentâneas
universal, conhecimento seguro, ciência
imaginação, fantasia A R T E
Em meio à verdade contingente e à verdade necessária é que se situa o
mundo da imaginação, o terreno da arte. A retórica é a arte de persuadir através de
discursos, guiando a alma com magia e encantamento por meio das palavras. Ao
concebê-la como arte, Aristóteles constrói e fornece uma imagem boa para a retórica.
1.4.1 O SILOGISMO E OS MODOS DE ARGUMENTAÇÃO
A teoria do silogismo21 está explicitada nos Analíticos22, duas obras que
também fazem parte do compêndio Órganon. Nos Analíticos Anteriores, é exposta uma
teoria geral de todos os silogismos, tanto os científicos quantos os não científicos. Já
nos Analíticos Posteriores, a preocupação será exclusivamente em relação aos
silogismos científicos. Com o estabelecimento da teoria do silogismo, Aristóteles
fundou a lógica. A lógica considera a forma que deve ter qualquer tipo de discurso que
pretenda demonstrar algo, e, em geral, queira ser probatório.
21 O silogismo é um discurso no qual, estando postas algumas coisas, resulta necessariamente numa outra
coisa diferente. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU (2004: 448). 22 ARISTÓTELES. Analíticos anteriores e Analíticos posteriores (2005: 111 - 345).
45
O silogismo é o raciocínio dedutivo que nos mostra o movimento que o
pensamento realiza para alcançar uma verdade necessária, ou ao menos que se aproxime
dela, sendo assim um percurso mental e verbal para que se chegue a uma conclusão
lógica e racional, composta por uma seqüência de três proposições, onde das duas
primeiras premissas decorre necessariamente uma terceira (a conclusão). As premissas
se dividem em dois tipos: universais e particulares. Universais são as que se referem a
toda uma espécie de seres; particulares são as que se referem a um ser em particular. No
famoso problema a respeito da imortalidade socrática, tem-se que – Todo homem é
mortal, Sócrates é homem, logo (conclusão), Sócrates é mortal – a primeira premissa é
universal (todo homem) e a segunda particular. Nos Analíticos Anteriores, Aristóteles
dá a seguinte definição:
O silogismo é uma locução em que, uma vez certas suposições sejam feitas, alguma coisa distinta delas se segue necessariamente devido à mera presença das suposições como tais. Chamo de silogismo perfeito o que nada requer além do que nele está compreendido para evidenciar a necessária conclusão; de imperfeito aquele que requer uma ou mais proposições as quais, ainda que resultem necessariamente dos termos formulados, não estão compreendidas nas premissas. 23
A lógica pretende mostrar como o pensamento procede quando trabalha,
qual é a estrutura do raciocínio e como são feitas as demonstrações. Nos Analíticos
posteriores, Aristóteles diz que: “a verdadeira demonstração é feita pelo silogismo”,
portanto, no silogismo, o entendimento do que está sendo colocado necessita de todo
esse curso demonstrativo, premissas e conclusão, para que a dedução ocorra.
23 ARISTÓTELES. Analíticos Anteriores (2005: 112 - 113).
46
1.4.2 APODÍCTICA, DIALÉTICA, RETÓRICA E SOFÍSTICA
No conjunto das obras de Aristóteles, depreendemos os quatro modos de
raciocinar, pensar e de engendrar discursos, dentre os quais podemos citar: apodíctico,
dialético, retórico e sofístico. Sendo o silogismo a maneira como o pensamento se
estrutura para raciocinar e produzir as verdades em relação a todo o estado de coisas,
podemos ainda apontar esses quatro modos discursivos como tipos diferentes de
silogismo.
Uma verdade apodíctica é uma proposição irrefutável, um conhecimento
admitido como certo, universal e duradouro. Com a apodíctica, temos o necessário, ao
invés do contingente, e chegamos a uma verdade apodíctica pela demonstração, por isso
ela é dedutiva e não indutiva. Aqui o silogismo é perfeito e devido a sua lógica e
racionalidade absoluta, não cabem questionamentos e o debate não se materializa. O
exemplo clássico de uma verdade apodíctica é o que se refere sobre o problema da
imortalidade socrática: Todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo, Sócrates é
mortal. Essa demonstração necessária parte de premissas admitidas como absolutamente
verídicas e a dedução é lógica e certa. Em Berti (2002: 03) tem-se que:
A forma de racionalidade da qual Aristóteles é tradicionalmente considerado o primeiro teórico, aliás aquela que muitos consideram a única, ou a única verdadeira, forma de racionalidade por ele teorizada, é indubitavelmente a ciência apodíctica.
A ciência apodíctica é o conhecimento pronto e acabado que será exposto a
outros que o ignoram. Nesse sentido, demonstrar é um discurso, um monólogo
científico no qual o cientista mostrará a verdade irrefutável aos que não a possuem. As
conclusões serão admitidas como indiscutivelmente certas, devido à veracidade das
premissas colocadas.
47
No discurso dialético, não temos uma verdade última e irrefutável. O
silogismo dialético permite o debate e a discussão acerca do que está estabelecido. Ele
toma por base as premissas ou proposições nas quais a credibilidade baseia-se no campo
da probabilidade, mas ainda assim, calcada nas exigências da racionalidade e da lógica;
é o campo do coerente e não do irrefutável.
A dialética verifica a razoabilidade das proposições por meio de um debate
sério, no qual o interesse não é a disputa em si, a vitória pela vitória, como faz a
erística24, mas a construção de um conhecimento seguro assentado no raciocínio
provável, coerente e lógico, e que permita, a qualquer momento, o retorno ao debate.
Para Sócrates e Platão, a dialética era a forma de raciocínio que as pessoas deveriam
fazer uso para alcançar a verdade a respeito das coisas, ela era a ferramenta primordial
da filosofia. Em Aristóteles, a dialética passa a fazer parte da lógica – o silogismo
dialético – diferenciando-a da certeza científica, como é a apodíctica.
As premissas dialéticas não são tão primeiras e verdadeiras como as da
apodíctica e sim premissas “geralmente aceitas por todos, ou pela maioria, ou pelos
mais sábios”. É uma outra forma de racionalidade, diferente da apodícitica e que está
assentada na argumentação, refere-se à razoabilidade e à lógica no discurso (debate,
argumentação) com a finalidade de se chegar bem próximo de uma verdade
inquestionável. O mais importante aqui não é que as premissas sejam verdadeiras, mas
que sejam partilhadas, reconhecidas e aceitas pela audiência e pelos interlocutores.
24 Erística: significa em grego - o que ama a disputa, a discussão, a controvérsia. CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU (2004: 201).
48
Nos Tópicos, obra dedicada à dialética, Aristóteles esclarece:
O propósito deste tratado é descobrir um método que nos capacite raciocinar, a partir de opiniões de aceitação geral, acerca de qualquer problema que se apresente diante de nós e nos habilite, na sustentação de um argumento, a nos esquivar da enunciação de qualquer coisa que o contrarie.25
A dialética voltará suas atenções para as questões em que não existam ainda
bases tão sólidas para que um certo assunto seja dado por encerrado e acabado, no que
tange à certeza científica. A arte da dialética serve para investigações nas quais não
existam ainda princípios científicos assentados. Pela dialética, aprendemos a confrontar
as diversas possibilidades e deixar que elas se desenvolvam até que uma delas saia
vencendo por se mostrar mais coerente e racional. Confrontamos os vários prós e
contras e desenvolvemos cada um de acordo com a melhor argumentação lógica
possível, dando igual chance a todos os argumentos, para ver qual deles fica de pé no
final. Ou seja, na dialética fazemos uma arbitragem, não tomamos partido.
Quando discutimos um assunto cujos princípios desconhecemos, temos de
remontar das questões até os princípios. Como se faz isto? Pela discussão dialética. O
confronto crítico das várias possibilidades acaba fechando as alternativas até que, num
certo momento, temos uma espécie de intelecção ou intuição dos princípios que
governam aquele assunto.
Nem sempre é possível estabelecer a certeza absoluta das premissas, como
no silogismo apodíctico. Na maioria dos casos, as premissas serão tomadas por
prováveis, coerentes e razoáveis e é através da investigação dialética que as premissas
poderão alcançar o status de premissas verdadeiras, então, podemos indicar que o que
passa a ter relevância é a dialética. O discurso dialético mede, por ensaios e erros, a
probabilidade maior ou menor de certa tese ou proposição, de acordo com as opiniões
25 ARISTÓTELES. Tópicos (2005: 347).
49
comumente aceitas e válidas, e ainda ancorada nas exigências superiores da
racionalidade e da lógica.
O discurso retórico, ao contrário da dialética que se apóia em uma
probabilidade racional, não visa estabelecer verdades e muito menos ser lógico e
racional. Diz-se do discurso retórico que ele se ocupa do verossímil, da aparência de
verdade e não de verdades. Em retórica, tem-se o orador produzindo um discurso
verossímil que, aliado a uma forte carga emotiva, influenciará a vontade do outro
(platéia) pela persuasão.
Enquanto a dialética está mais para o diálogo, onde a coletividade pode
tomar partido e o debate se apresenta, a retórica aproxima-se mais do monólogo, em que
um orador fala e a audiência escuta. Na dialética, podemos vislumbrar um debate entre
dois, ou mais, interlocutores, acerca de dada questão; na retórica temos a figura do
orador e sua platéia (audiência), como ocorre no discurso de palanque.
O esquema abaixo ilustra tal diferenciação:
Dialética
Retórica
Com a retórica, temos a indução, uma vez que o discurso retórico induz a
vontade do ouvinte fazendo-o tomar uma decisão que se enquadre nos objetivos do
orador.
50
Na obra Arte Retórica, Aristóteles chegou a definir a retórica como sendo:
Faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão. (...) A Retórica parece ser capaz de, por assim dizer, no concernente a uma dada questão, descobrir o que é próprio para persuadir. Por isso dizemos que ela não aplica suas regras a um gênero próprio e determinado. 26
Na retórica, a persuasão não ocorrerá tomando por base proposições
irrefutáveis, mas por meio de silogismos retóricos que Aristóteles chamou de
entimemas27. O leve defeito ou a incompletude do silogismo retórico será suprido de
alguma forma para que a persuasão seja alcançada. É aí que se introduz o estudo das
paixões (pathos) como argumento determinante da técnica retórica. Aristóteles chegou a
dizer que “obtém-se a persuasão nos ouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma
paixão” e em Plebe (1978: 77) temos que “a essência e a força da retórica não é a
persuasão reacional, mas o ímpeto da paixão, o pathos”.
É pela beleza da composição e a harmonização do conjunto que mais
facilmente verificar-se-á a persuasão dos ouvintes. É desta forma que a retórica guia as
almas por meio das palavras, manifestando, assim, a magia das palavras e o
encantamento das platéias.
O discurso sofístico seria aquele em que o entimema é organizado de modo
que pareça ser verdadeiro o que está sendo proposto. O sofisma tem um formato lógico,
e mesmo constituindo-se em um defeito de raciocínio, pois as premissas, bem como a
conclusão, não resistem a uma análise mais atenciosa, mantém a aparência de verdade,
uma vez que o falso está camuflado pelo arranjamento do tipo lógico que ele apresenta.
Na obra Refutações Sofísticas28, Aristóteles chega a se referir à sofística como
26 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética (s.d.: 33). 27 Entimema: silogismo fundado sobre premissas não seguras. Silogismo truncado. CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU (2004: 192 - 193). 28 ARISTÓTELES. Refutações Sofísticas (2005: 560).
51
“silogismo sofístico”. A premissa que possui a contradição ou o defeito é desconhecida
ou desconsiderada pelo interlocutor, a contrariedade é sutil. Vale ressaltar que o
discurso sofístico serve para platéias desatentas e mais frágeis, pois com uma audiência
mais seleta, seria praticamente impossível argumentar com falhas no raciocínio; o
disfarce e a camuflagem sofística seriam revelados. A sofística seria a má retórica
enunciada por Sócrates e Platão.
Objetivando ilustrar de modo a resumir tudo o que foi desenvolvido acerca
dos quatro formatos silogísticos ou modos de engendramento discursivos, apresentamos
o quadro abaixo:
Apodíctico
Seria o necessário; as
verdades demonstrativas
Dialético Retórico Sofístico
Todo homem é mortal.
Sócrates é homem.
Sócrates é mortal.
Ele governou bem
Minas.
Minas é um Estado
complexo.
Ele está habilitado a
governar o Brasil.
Ele governou bem
Minas.
Minas é um Estado
complexo.
Ele governará o Brasil
de forma brilhante.
Todo homem é mortal.
O gato é mortal.
O gato é homem.
Note-se que a apodíctica e a dialética são mais lógicas e racionais, enquanto
que a retórica e a sofística apresentam-se menos lógicas. A retórica possui uma leve
distorção, mas que não chega a comprometer toda a estrutura; serão mobilizadas as
paixões da platéia visando a suprir leves falhas. A argumentação sofística, ao contrário,
possui um defeito mais grave, não resistindo ao mínimo crivo. Como pode ser
observado no esquema, na direção da seta a confiança e a certeza diminuem. As obras
relacionadas a cada modo são: para a Apodíctica, os Analíticos Posteriores; com a
Dialética, os Tópicos; a Retórica, a Arte Retórica; e a Sofística, as Refutações Sofísticas,
todas da autoria de Aristóteles.
52
1.5 A RETÓRICA CONTEMPORÂNEA
O empenho e esforço de Aristóteles para retirar a retórica das sombras em
que Sócrates e Platão a colocaram, trouxe uma certa valorização, ainda na Antiguidade,
aos estudos relacionados ao tema da argumentação. Apesar disso, nota-se que o
empreendimento aristotélico parece não ter sido suficiente o bastante para recuperar a
retórica do lugar pequeno e desprezível a ela delegada pela concepção socrático-
platônica.
A retórica teve certo fôlego até o fim da Antiguidade, mas com o início da
Idade Média (476 d.C. até 1.453), denominada de “Idade das trevas” ou ainda “mil anos
de trevas e escuridão”, a retórica sucumbe. Como já apontamos anteriormente, a retórica
não sobrevive à tirania29; a influência que a Igreja possuía nas decisões, hábitos e
costumes de toda a sociedade, na era medieval, assemelha-se ao regime do tirano. Em
Plebe (1978: 71) temos:
A queda da república sufocou aquela liberdade indispensável ao florescer de uma legítima oratória e, assim como a queda das tiranias sicilianas assinalou o primeiro despontar da retórica grega, assim também a queda da república romana assinalou o primeiro ocaso da retórica latina.
A retórica é relegada ao plano de uma prática mundana composta de
artifícios ilusórios e enganadores. Desta feita, ela só experimentará um esboço de
ressurgimento somente com o fim da Idade Média, durante o Renascimento30, nos
séculos XV e XVI, mas nada comparado ao apogeu que conquistara na Antiguidade. Já
29 Para examinar o crescente descrédito da retórica, evocou-se a mudança de regime no final da
Antiguidade, quando as assembléias deliberantes perderam todo poder político e até judiciário, em proveito do Imperador. A cristianização subsequente do mundo ocidental deu origem à idéia de que, sendo Deus a fonte do verdadeiro e a norma de todos os valores, basta confiar no magistério da Igreja para conhecer, em todas as matérias salutares, o sentido e o alcance de sua reveleção. PERELMAN (1997: 179).
30 Renascimento é o nome que se dá a um grande movimento de mudanças culturais, onde ocorreram muitos progressos e incontáveis realizações no campo das artes, da literatura e das ciências, após o fim da Idade Média.
53
no século XIX e início do século XX, a retórica se apresenta novamente presa à
concepção de prática menor. Poderíamos aqui aventar a possibilidade de uma “retórica
menor”, vinculada às gramáticas vernaculares romanas.
Soerguendo a retórica de seus escombros históricos, Perelman, na atualidade,
procede a um estudo profundo e rigoroso que a reabilita como poderosa estratégia
argumentativa, tal como Aristóteles a concebeu. Essa abordagem mais científica e séria
a respeito da retórica é denominada Retórica Contemporânea, ou “nova retórica”,
conforme a terminologia perelmaniana. Esse autor expressa claramente o seu interesse e
admiração pelo tema, quando no Tratado da Argumentação diz que “o estudo da
argumentação apresenta-se como terreno de pesquisas de incomparável riqueza”.
Nos Analíticos, como já foi anteriormente assinalado, a lógica é abordada
como ciência apodíctica, pois parte de uma premissa admitida como certa, que
acarretará conclusões irrefutáveis. Com a certeza das premissas, o desfecho conclusivo
é formalmente um raciocínio correto, seguro e absoluto. Perelman critica o
expansionismo indevido de um tipo de razão dedutiva e demonstrativa, que se impôs
como modelo de verdade para todos os campos do conhecimento. O fato é que, para ele,
nem sempre estamos em condições de encontrar as premissas certas e sem elas não se
pode proceder estritamente pela via lógica. Se existe uma quantidade muito grande de
premissas, poderíamos então dizer que são infinitas as possibilidades, todas, em
princípio, prováveis e hipotéticas, privilegiando portanto a dialética, a argumentação,
pois é por intermédio do debate dialético que as premissas prováveis serão testadas e
colocadas à prova. É justamente aí que se encontra a grande contribuição de Perelman,
54
Chaïm Perelman (1912-1984)
55
pois a negação do formalismo lógico, obrigou-o a buscar nos Tópicos e na Retórica de
Aristóteles a lógica discursiva, que é diferente da lógica formal, rígida e por demais
rigorosa, contida nos Analíticos.
Ele busca uma alternativa racional que não fosse aprisionável pela
formalização pura. Assim Perelman formula a sua teoria da argumentação quebrando o
paradigma do rigor do método e de uma lógica extremada e absoluta. Ele retoma a
retórica e a dialética aristotélica e as valoriza e não as considerará como uma forma
antiga e ultrapassada de pensar, e sim como um modo de pensar diferente do contido
nos Analíticos. Nesse sentido, parece que Perelman, mesmo separado por mais de vinte
séculos de Aristóteles, constitui-se em um de seus maiores discípulos, pela grandeza e
valor de suas obras acerca dos estudos relacionados à argumentação e à discursividade.
A retrospectiva histórica, por nós empreendida aqui, faz-se necessária, pois
analisaremos manifestações retóricas e dialéticas proferidas em discursos da Grécia
Antiga, articulando-as com a Moderna interpretação dos mesmos procedimentos
argumentativos que veremos a seguir no histórico discurso de defesa de Sócrates.
56
CAPÍTULO II – A ARGUMENTAÇÃO NA
APOLOGIA DE SÓCRATES
57
2.1 PLATÃO E A APOLOGIA
A Apologia de Sócrates, de autoria de Platão, remonta à autodefesa de
Sócrates, pronunciada perante seus acusadores em um tribunal composto por 500 juízes,
no século IV a.C., cujo desfecho foi a sua condenação à morte.
No que se refere a obra platônica, há uma tripartição do conjunto das suas
publicações que nos auxiliará na pesquisa sobre os depoimentos dos acontecimentos
relativos ao julgamento de Sócrates, contidos na Apologia de Sócrates. Da herança
platônica, temos os diálogos da primeira fase, quando Platão era mais moço e
praticamente transcrevia os discursos de Sócrates; as obras de transição, nas quais a voz
de Sócrates começa a desaparecer para dar lugar às descobertas do próprio Platão; e os
trabalhos da plena maturidade, cujas teorias desenvolvidas são de sua inteira autoria,
pois o distanciamento de seu mestre Sócrates é ainda maior.
Pois bem, a Apologia de Sócrates pertence às obras da primeira fase. Assim,
em nossa pesquisa, preliminarmente, diremos que a voz de Platão repetirá o discurso de
Sócrates. Embasaremos nossa afirmação nas palavras do Professor Manuel de Oliveira
Pulquério, do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos - Faculdade de Letras de
Coimbra, que disse:
Um grande consenso se estabeleceu em torno da valorização da Apologia de Sócrates, escrita por Platão, como aquela que mais fielmente retrata, não tanto os aspectos materiais como o sentido profundo dos acontecimentos.31
A Apologia possui três partes que totalizam aproximadamente 33 páginas em
média, nas suas várias traduções, tendo somente a 1ª parte em torno de 25 páginas,
31 PLATÃO. Apologia de Sócrates. Trad. Manuel de Oliveira Pulquério. Coimbra: Centro de Estudos
Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra – Faculdade de Letras de Coimbra, 1984.
58
sendo 5 páginas para a 2ª parte e 3 para a 3ª parte. Durante a 1ª parte – que é quase toda
a Apologia – temos um Sócrates empenhado em sua defesa, articulando bem suas idéias
e refutando com muita competência seus acusadores, e ainda assim, ao final dessa 1ª
parte, ele é condenado. Nas duas partes seguintes, nós percebemos um Sócrates nervoso,
extremamente irônico e agressivo para com os juízes, sendo tal atitude compreensível
pelo fato de, após ter refutado todas as acusações, ainda ter sido condenado; daí em
diante não podemos mais falar em discurso de defesa por parte de Sócrates e sim num
discurso inflamado e agressivo de um homem que viu todo o seu esforço e empenho de
defesa ser em vão, portanto, na Apologia, apreciaremos de maneira especial a 1ª parte,
que, por sinal, compreende quase toda a obra, e cujo desfecho é a condenação de
Sócrates. Como pôde Sócrates perder o derradeiro debate? Essa é uma pergunta que
parece não ter respostas e os indícios de uma “suposta resposta” está na peça oratória de
Platão, na Apologia de Sócrates.
59
2.2 O JULGAMENTO DE SÓCRATES
No ano de 399 a. C., Sócrates compareceu ao Tribunal ateniense para
responder acusações que lhe foram imputadas. Ele enfrentou um julgamento diante de
quinhentos membros do Conselho de jurados, escolhidos por sorteio entre os cidadãos
atenienses. Ao final, o resultado foi contrário a Sócrates, 280 votos a favor da
condenação e 220 contra, portanto se ele tivesse mais trinta votos a seu favor, ocorreria
um empate e ele teria sido absolvido, uma vez que o empate era favorável a quem
estava sendo julgado.
No tempo de Sócrates, aqueles que compareciam diante dos tribunais não contavam com o auxílio de advogados. Eles próprios tinham que fazer suas defesas. Para tanto, valiam-se dos serviços de redatores profissionais de discursos. Sócrates recebeu a oferta de um dos mais célebres desses profissionais, Lísis, mas recusou-a. Ele próprio quis preparar e fazer sua defesa.32
Sócrates foi condenado à morte por ingestão de cicuta e deveria ser levado
para que a sentença fosse executada, i
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