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São Paulo, 18 de Novembro de 2010______________________________________________________________________
A NARRATIVA DOCUMENTÁRIA NO CINEMA DE SANTIAGO ÁLVAREZ1
Marcelo Vieira Prioste2
Orientadora: Prof. Dra. Marília Franco3
Linha de Pesquisa: Práticas de Cultura Audiovisual
Resumo: Investigar as origens da estratégia discursiva adotada pelo cineasta cubano Santiago
Álvarez nos anos 1960 que, partindo da incorporação dos mais diversos materiais visuais e sonoros,
combinados com as imagens de arquivo e alinhavados pela montagem, atuaram na formação de uma
inventiva e persuasiva narrativa documentária, com destaque para uma de suas obras emblemáticas,
o filme curta-metragem Now (1965).
Palavras-chave: documentário; cinema; cuba; now.
A construção da narrativa no cinema documentário, desde seus primórdios, agenciou
formas gráficas esquemáticas e textuais para se estabelecer como linguagem. Na abertura do
filme Nanook of the North (EUA, 1922), reconhecido marco inicial do cinema documentário,
há um longo texto que introduz ao espectador diversos aspectos a respeito da empreitada
cinematográfica de Robert J. Flaherty. Em seguida, surge na tela o título do filme, com uma
moldura que contém do lado esquerdo uma cena, e do lado direito, o texto. Este conjunto 1 Trabalho apresentado na I Jornada Discente do PPGMPA – USP, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (Eca-Usp), no dia 18 de novembro de 2010. 2 Doutorando em Meios e processos audiovisuais (ECA/USP), mestre em Design, pós-graduado em Multimídia (UAM) e bacharel em Comunicação Social-Rádio e tv (FAAP). Professor da PUC/SP e designer gráfico e digital. E-mail: priost@usp.br3 Graduada em cinema, mestre e doutora em artes pela ECA/USP. Professora da graduação e da pós-graduação da ECA/USP. Especialista em linguagens audiovisuais e educação, produtora de vídeos documentais, institucionais e de divulgação científica. Ministrou cursos em Portugal, Espanha, Cuba e Venezuela. Ex-diretora docente da Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de Los Baños - Cuba. Criadora e ex-diretora da TV USP - CNU-SP. Coordenadora pedagógica do Projeto Educom.TV - NCE/USP e S.E.Educação-SP. Coordenadora do site www.mnemocine.com.br/aruanda. Coordenadora científica do Aruanda lab.doc. – laboratório de pesquisas e análises sobre métodos de produção audiovisual de não ficção. E-mail: marilia.franco@gmail.com
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moldura/imagem/texto assemelha-se a capa de um livro, sugerindo ao espectador tratar-se de
um caderno de viagem ou de memórias. Após uma seqüência de planos da região, surge,
então, um mapa com uma breve animação destacando a posição geográfica onde as filmagens
foram realizadas e, mais uma vez, direcionando o espectador para a orientação narrativa que
ali se impõem, um modo de representação expositivo (NICHOLS, 1991), que reitera o fato de
que o diretor vai compartilhar o relato sobre um mundo exótico e distante.
Um outro exemplo de representação gráfica a serviço de uma determinada orientação
discursiva encontra-se anos 1930, naquilo que ficaria conhecido como documentarismo
britânico clássico. Como no filme dirigido por Alberto Cavalcanti, Coal Face (Inglaterra,
1935), em que um mapa com indicações sobre onde estão localizadas as minas de carvão no
território inglês ajuda a convencer o espectador sobre a sua relevância para a economia
nacional, ao mostrá-las espalhadas por todo o país, fato reiterado pela locução. Estas são
apenas duas situações pinçadas dentre inúmeras outras em que a voz documentária foi
corporificada por manifestações gráficas, ou seja, representações visuais esquemáticas como
ilustrações, mapas, tipografias e grafismos que possuem uma função enunciativa, relatam
fatos, marcam momentos específicos no tempo ou indicam lugares, seja de maneira estática
ou na forma de animação.
Quanto ao texto escrito na tela, a sua importância para o cinema, assim como a da
tipografia, na forma de intertítulos, já havia sido reconhecida em 1926 pelo crítico literário
Boris Eikhenbaum, integrante do grupo que ficaria conhecido por formalistas russos. No texto
La cuestión de los intertítulos, Eikhenbaum destaca a importância dos mesmos não apenas no
sentido de explicar cenas e nortear a compreensão dos espectadores, mas incorporar-se à
construção narrativa como imagem, por um princípio construtivo: “O importante é que os
intertítulos estejam regidos por um princípio estilístico que lhes seja próprio, ligado ao gênero
e ao estilo do filme, e por um princípio de relação entre o intertítulo e o enquadramento, um
princípio construtivo” (EIKHENBAUM, 1998, p. 212).4
Nos anos 1960, o cinema documentário foi impactado pela expansão dos
equipamentos portáteis e ganhou um novo contorno, o cinema direto. Um dos anseios
fundamentais passaria pela busca da não-intervenção, na expectativa de transmitir ao
4 “ Lo importante es que los intertítulos estén regidos por un principio estilístico que les sea propio, ligado ai género y aI estilo dei filme, y por un principio de relación entre el intertítulo y el encuadre, es decir, por un principio constructivo.”
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espectador a mesma experiência que havia sido obtida no momento da filmagem, evitando, ao
máximo, qualquer tipo de intervenção durante a captação de imagens que seriam a base de
uma montagem “invisível”.
Neste mesmo período, enquanto o cinema direto fomentava discussões no meio
cinematográfico, na França, influenciada pelo emergente pensamento filosófico
existencialista, uma derivação deste formato também ganhava corpo. Compartilhando o uso
da tecnologia da câmera móvel e de som sincrônico, o cinema-verdade (cinéma vérité)
questionou o mito da objetividade que se instalava, passando a considerar, ao contrário do
cinema direto, que a simples presença da câmera interferiria no real, sendo o filme uma
resultante desta interferência.
Assim, tanto o cinema direto como o cinéma vérité passaram a valorizar em demasia a
circunstância de tomada, em detrimento de qualquer outra fonte informativa, gerando uma
forma narrativa que marcou muito aquele período e que, de certa forma, deixou sua herança
nos filmes atuais.
Paralelamente, no cinema de ficção, ao considerarmos o contexto ideológico dos anos
1960 em que a guerra Fria, a Guerra do Vietnã e a contracultura, dentre outros aspectos,
somados às novas perspectivas instauradas nos anos 1940 pelo neorealismo italiano, temos o
berço do chamado “cinema moderno”. Período em que revistas francesas como a Cahiers du
Cinema e Cinéthique se transformam em espaços de crítica ao “modelo hollywoodiano” de
cinema industrial pautado pela narrativa clássica, com suas normas de continuidade e
montagem que colocavam o espectador imerso em um universo ficcional e, segundo estes
princípios, potencialmente alienante. Era todo um ambiente intelectual em que...
Semiologia, psicanálise e marxismo combinam-se para aproximar as noções de código e ideologia, bem como para transformar a ideia do 'cinema metalinguístico'(aquele que tematiza a si próprio) na ideia de um 'cinema que incorpora a si um discurso sobre suas condições materiais e sociais de produção'. Deste modo, o ataque à transparência é retomado como estratégia básica do discurso político e as explicações teóricas voltam-se para o problema fundamental das condições de produção do cinema. A discussão da opacidade ou transparência do discurso “sem origem”, “tomado como um dado da percepção”, é substituída pela polêmica em torno do cinema-discurso como trabalho. (XAVIER, 2005, p. 146)
No cinema moderno, tomando a obra do cineasta Jean Luc Godard como referência, é
que esta discussão de cinema como entretenimento e produto cultural passa a ser pautada por
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um pensamento político/ideológico, principalmente a partir de sua fase com o grupo Dziga
Vertov (1968/1972) em que seus filmes são:
(...) experiências singulares de um cinema escritural, de um cinema literal. 0 texto não está no filme, nem mesmo na imagem. É o proprio filme. É um cinema liberto de toda a sua (falsa) profundidade de representação do mundo, um cinema que olhamos do mesmo modo como percorremos um livro, viramos uma página, ouvimos um discurso. Antes de ver, é preciso primeiro ler o texto-filme. (DUBOIS, 2004, p. 271)
Nesta direção, algumas cinematografias documentárias se desenvolveram fazendo o uso
de imagens fotográficas ou imagens de arquivo com sua eventual reinterpretação no interior
do enredo, produzindo diferentes formas de cinema-discurso. Desde os anos 1950 isto vinha
ocorrendo no documentarismo europeu, como a produção do francês Chris Marker, da belga
Agnès Varda e do húngaro Péter Forgács. Inclusive, tanto Marker como Varda estiveram em
Cuba produzindo e compartilhando experiências. Influência que deve ter gerado marcas do
outro lado do Atlântico, principalmente na obra do cineasta cubano Santiago Álvarez Román
(1919-1998).
Representante do nuevo cine latino-americano, Álvarez esteve envolvido
profundamente com o processo da revolução cubana, sendo fundador e diretor por mais de
20 anos do Noticiero ICAIC Latinoamericano, o cine-jornal oficial de Cuba.
O ICAIC, Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos, primeiro órgão
cultural criado pela revolução (1959), foi o cenário onde se discutiu muito sobre quais seriam
as políticas culturais a serem implantadas na ilha. E um dos poucos aspectos consensuais
nestes debates era o papel do cinema no processo da revolução. Na lei de criação do instituto
já está embutido o conceito de um cinema revolucionário e conscientizador, compromisso
que seria tão caro à filmografia de Álvarez: “O cinema deve constituir um chamado a
consciência e contribuir para liquidar a ignorância, solucionar problemas ou formular
soluções, e apresentar dramática e contemporaneamente os grandes conflitos do homem e da
humanidade.” 5
Santiago Álvarez foi criador do que ele mesmo intitulou de “cinema-urgente”
seguindo à risca os preceitos do cinema revolucionário tanto nos temas mas, 5 Trecho da lei de Criação do ICAIC n.169. publicada oficialmente em 20/03/1959 na Gaceta Oficial de la República. Fonte: VILLAÇA, Mariana. Cinema cubano: revolução e política cultural. São Paulo: Alameda, 2010, p. 44.
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principalmente, na sua forma narrativa. Em seus filmes há um discurso incisivo e muitas
vezes carregado de ironia e sarcasmo, porém evitando a chamada “voz de deus”
(NICHOLS, 1991) e, portanto, propondo um modo expositivo diferente da tradição
desenvolvida na Inglaterra por John Grierson. Na verdade, muitos de seus filmes se
parecem com uma espécie de reflexão feita com a manipulação e consequente
reacomodação de sentido para imagens de arquivo, tanto sobre assuntos correntes do
cotidiano nacional cubano como da política internacional.
Sob a direção de Álvarez foram produzidos mais de 600 cinejornais, 96 filmes e 3
vídeos, com destaques para o inventivo Ciclón (1963, 22 min.) que sem fazer uso da
esperada e didática voz over, tratou dos estragos provocados pela passagem do furação
Flora e a mobilização da população e do governo para reagir aquela adversidade. Hanoi,
martes 13 (1967, 34 min.) filme que aborda um ataque aéreo a uma aldeia no Vietnã.
L.B.J. (1968, 18 min.) uma crítica ácida ao presidente norteamericano Lyndon Johnson e
sua possível relação com os assassinatos de Martin Luther King, John e Robert Kennedy.
79 Primaveras (1969, 24 min.) uma homenagem ao líder vietnamita Ho Chi Minh, que
havia falecido naquele ano. El sueño del pongo (1970, 8 min.) um curta baseado em um
conto de cunho social do escritor peruano José María Arguedas, além de tantos outros
filmes, em diversas metragens e temáticas.
Álvarez produziu naquele período um cinema que se alimentou da realidade sem
adotar uma perspectiva mimetista, mas pelo viés da representação, foi capaz de interpretar e
re(a)presentar histórias, personagens e situações. Como na célebre definição de John
Grierson, ele propôs “um tratamento criativo das atualidades”6 (HARDY, 1979, p. 11). Ou
seja, assumiu o papel de um gerador de discurso sobre o mundo histórico, ou como ele
mesmo afirmou “(...) para mim a realidade é uma ficção constante. Gosto de ver filmar e
elaborar, a mim me interessa registrar e participar dessa realidade. Eu não gosto que
alguém me conte a história, gosto de participar dela” (ÁLVAREZ apud LABAKI, 1994,
p.71).
Esta forma de enunciação cumpriu seu papel ao longo da primeira década de
implantação da revolução socialista cubana, fazendo com que a representação da realidade
tivesse de ser confrontada com a “realidade da representação" (NICHOLS, 1991, p. 63).
6 “ the creative treatment of actuality”.
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Contundência essa que marcou definitivamente sua filmografia. Até mesmo Glauber Rocha,
numa carta a Alfredo Guevara em 1969, diz: “Os filmes de Santiago agitam mas não
informam: a ideologia, sendo repetitiva, diminui o interesse dos filmes. Apesar disso Santiago
é quem mais está perto de um cinema materialista” (ROCHA apud BENTES, 1997, p. 466).
Talvez o descontentamento de Glauber seja pelo fato de que o cinema de Álvarez
tenha evitado ao longo de sua trajetória a adoção de uma linguagem mais hermética. A
objetividade jornalística do diretor de cinejornais contaminava a ação do documentarista
revolucionário, e vice-versa, priorizando sempre a comunicação com o público. Uma
preocupação mais próxima a de um cronista que inventa uma linguagem sem perder o sentido
daquilo que se quer expressar ou, como o próprio Álvarez coloca numa entrevista: “para ser
um bom documentarista tens de ser um bom jornalista.”7
Entretanto, a expressão “cinema materialista” apontada por Glauber foi também
utilizada em relação ao cinema de J. L. Godard na sua fase com o grupo Dziga Vertov
(DUBOIS, 2004), o que pode abrir uma chave de estudo para as formas pelas quais o diretor
cubano agenciou elementos visuais e sonoros para desenvolver sua concepção de narrativa
revolucionária. E assim como fez Godard:
Não apenas mostrar as coisas, mas dizê-Ias, mostrar que as dizemos e dizer que as mostramos. A linguagem como matéria, como objeto exclusivo. Mesmo as imagens servirão para produzir linguagem, texto-imagem. Não se trata mais de contar e nem mesmo de representar, mas de apagar para (re)escrever, de decompor para ver se podemos (re)construir, de rasurar para (re)fazer. Trabalho de palimpsesto cinegráfico (DUBOIS, 2004, p. 270).
Outros autores alinham a obra sessentista de Santiago Àlvarez ao cinema de Dziga
Vertov e Serguei Eisenstein ou como diz Michael Chanan: “(...) Álvarez amalgamou uma
cleptomania criativa com a habilidade de um bricoleur para reinventar a montagem soviética
em um cenário caribenho”(CHANAN, 1996, p. 430)8. Porém, em mais de uma entrevista
Álvarez afirma só ter tomado conhecimento destes cineastas no início dos anos 1970 e ainda,
segundo ele, “(...) qualquer semelhança é pura coincidência” (ÁLVAREZ apud LABAKI,
1994, p. 41). Poderia então sua obra ter sofrido outras influências? Como do cinema moderno
7 “(...) para ser un buen documentalista tu tiene que ser un buen periodista.” (frase extraída de depoimento que integra o DVD ANTOLOGIA DE SANTIAGO ÁLVAREZ, Vol. 1, Vídeo Icaic, Havana, 2009.)8 “(...) Alvarez amalgamated creative kleptomania with the skills of a bricoleur to reinvent Soviet montage in a Caribbean setting. "
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europeu, tão presente na ilha por meio de cineastas, técnicos e intelectuais que lá estiveram?
Ou até mesmo sido influenciado pelo expoente design gráfico cubano, mundialmente
reconhecido pelos cartazes cinematográficos. Criando-se então uma espécie de “cinema-
cartaz”? Aqui, a metáfora com o cartaz está sendo usada no sentido de um material gráfico de
ampla penetração, síntese imagética e altamente persuasivo, freqüentemente encontrado nas
manifestações de cunho político e ideológico ao longo do século XX (HOLLIS, 2001).
O filme curta-metragem Now (1965, 06 min.), provavelmente o mais conhecido do
cineasta, pertence aquele conjunto de obras que procuravam dar uma interpretação
cubano/socialista a episódios ocorridos no contexto internacional. Compartilhando
material visual com os noticieros (cinejornais), Now é um exemplo destas produções em
que o agenciamento de outras presenças informacionais, como a ilustração, os grafismos, a
fotografia, a tipografia, a animação e a pesquisa sonora foram amalgamadas à imagens de
arquivo pela montagem para, neste caso, tratar dos conflitos raciais e da luta pelos direitos
civis nos EUA da década de 1960.
Segundo um depoimento de Álvarez que integra uma de suas antologias9 editadas pelo
Icaic, a motivação para trabalhar com este tema surgiu ainda nos início dos anos 1940, quando
passou uma temporada nos EUA e foi protagonista de um episódio que talvez explique a
presença no filme de muitas cenas de sofrimento infantil e agressão à mulheres:
(...) no momento em que eu tomo um ônibus de Miami a NY e no trajeto vão se amontoando os negros do sul e, por uma causalidade, uma negra sobe ao ônibus com uma criança nos braços eu, logicamente, tratei de dar-lhe assento. E as pessoas no ônibus começaram a gritar-me horrores em inglês (...) então eu pedi a negra que me passasse a criança para os meus braços. Neste momento toda a gente começa a gritar 'son of bitch' e outras coisas. E eu disse: 'tem que me matar aqui para tirar-me este negrinho dos meus braços' (ÁLVAREZ, 2009).
Portanto, dentro do filme a crítica ao segregacionismo nos EUA se dará de três
diferentes maneiras. Primeiramente na escolha da canção de protesto com sua respectiva
intérprete, conforme será explicado mais adiante. Depois pela seleção e justaposição de
imagens, que reiteram a todo instante o conflito e a opressão racista por parte do poder
público (polícia) e mesmo da sociedade civil. E, por fim, estabelecendo uma analogia entre
esta repressão e as práticas nazistas, ao usar uma melodia reconhecidamente de origem 9 DVD ANTOLOGIA DE SANTIAGO ÁLVAREZ, Vol. 1, Vídeo Icaic, Havana, 2009.
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hebraica e inserir, por 2 segundos, a cena de um palanque de desfile nazista com a cruz
suástica ao lado direito (04:03), uma bandeira que se assemelha à norte-americana ao lado
esquerdo e, ao centro, o nome de Horst Wessel, herói nazista e compositor do hino do Partido
Nacional Socialista alemão.
As observações a seguir sobre Now foram organizadas pelos seguintes aspectos:
presença imagética e montagem, trucagem (animação e efeitos) e banda sonora. Do ponto de
vista da imagem fílmica, considerou-se que, dentre as diversas formas de se estabelecer uma
análise cinematográfica está a composição visual, correspondente às manifestações plásticas,
retóricas e culturais a serem observadas com, ou até mesmo, possíveis sentidos de metáfora ou
metonímia (AUMONT; MARIE, 1990).
Neste sentido, o relevante em Now é a forma como se deu a inserção de material de
arquivo, em que 90% do tempo se fez uso de fotos em preto e branco extraídas de jornais e
revistas, principalmente a revista “Life” (RIST, on line), mas sem que haja uma identificação
precisa. Nos créditos iniciais, que são muito vagos, lê-se apenas: “fotos de todas partes”. Uma
declaração que, se por um lado mostra uma despreocupação com a indicação de fontes, por
outro ironicamente indica ao espectador que aquelas imagens eram tão comuns que poderiam
vir de qualquer lugar, estavam circulando pelos meios de comunicação impressos da época. A
textura da imagens também não deixa de ser um indicativo. É possível observar a retícula da
impressão gráfica quando a câmera se aproxima, revelando a sua origem do meio impresso. Há
também algumas sequências de arquivo incorporadas que, originalmente, foram captadas com
câmera móvel, mostrando as manifestações populares e, principalmente, a repressão da polícia.
Mas, de qualquer forma, é a técnica table top10 que predomina.
A intenção durante todo o filme é, por meio de zoom in e out, fusões,
panorâmicas, closeups e planos-detalhe dar movimento e reiterar o sentido da imagem
fotográfica, direcionar para um determinado aspecto, seja uma expressão de sofrimento ou um
punho fechado, aumentando a intensidade da comunicação visual já instalada pela imagem em
si. O encadeamento destas cenas obedece a uma lógica próxima a da “montagem figurativa” de
Sergei Eisenstein que procurava...
(...) compor visualmente "quadros", privilegiando as configurações plásticas capazes de fornecer a relação mais apropriada entre os elementos ao nível da significação desejada. 0 primeiro plano não significa um "chegar mais perto do objeto"; mas a construção de um discurso pictórico, que, muitas vezes, desloca
10 Termo genérico que designa uma técnica de captação de imagem a partir de uma superfície bidimensional.
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o objeto do espaço de origem ou combina os vários detalhes segundo regras que não são de continuidades, mas de conflito dentro do espaço específico criado pelo próprio discurso. (XAVIER, 2005, p. 132)
Como exemplo deste discurso pictórico, há uma alusão ao processo histórico que vai da
escravidão para a reação e luta no século XX, perceptível numa sequência de planos (04:32-
05:20) que foram justapostos em função de imagens de mãos acorrentadas que, no decorrer, vão
sendo substituídas por punhos cerrados, o gesto símbolo do grupo radical Panteras Negras.
Há também imagens cujo sentido foi remodelado, ou reescrito pela enunciação. Como
na foto (figura 1) em que, sobreposto ao rosto de um rapaz negro que parece gritar, foi pintada a
palavra “now” em tinta branca, como se fosse uma pichação de cunho político contestatório
feita diretamente sobre a película que, ao mesmo tempo, provoca uma associação da palavra
com a expressão de indignação do rapaz, como se ele a estivesse pronunciando. Em seguida,
uma rápida sequência de planos e um zoom out revelam a cena de violência: o rapaz está caído
no chão sendo agredido por policiais brancos.
Figura 1: Fotograma com intervenção gráfica (01'55'').Fonte: Filme curta-metragem Now (Cuba, 1965).
Durante o filme observa-se o uso de três diferentes trucagens. Uma fusão animada, em
que dos olhos de uma criança surge a imagem duplicada do rosto Abraham Lincoln que vai
fundir-se na sua estátua em Washington (01'40''). A outra é um efeito em que uma foto (figura
2) vai sendo consumida pelo fogo na frente da câmera para, em seguida, corta-se para a
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mesma imagem abrindo-se em zoom out. Esta imagem é de Will Brown, uma vítima de
linchamento feito pelos habitantes da cidade de Omaha, no estado de Nebraska, em 1919
(http://www.nebraskastudies.org/). A vítima arde nas chamas de uma fogueira cercada por
populares, e possíveis algozes, que olham para a câmera. Uma cena demasiadamente forte
que, por meio do efeito de trucagem ultrapassou os limites do registro fotográfico e incendiou
a própria película.
Figura 2: Fotograma de linchamento em chamas (4'40'').Fonte: Filme curta-metragem Now (Cuba, 1965).
Ao final, uma outra animação vai subverter o sentido de desfecho e ressaltar a ideia de
convocação à luta. O tradicional “the end” da narrativa clássica é substituído por uma
animação em que o som de uma metralhadora sugere a ação de tiros furando a superfície
branca e escrevem a palavra “now”, com acento exclamativo (figura 3).11
Desta forma, em total consonância aos preceitos do cinema moderno mais radical, o
filme se mostra como discurso e revela-se na sua materialidade. Seja quando a foto é
sobrescrita à tinta pela palavra “now”, ou quando o terror de uma cena coloca a imagem
fílmica literalmente em chamas, ou na sequência final, quando o encerramento o filme é a
tela - de projeção - sendo perfurada por balas.
11 No filme “Memória cubana” (Alice de Andrade, 2010), um dos integrantes da equipe de Santiago Álvarez na época explica a realização deste efeito a partir de uma folha de papel sendo furada quadro-a-quadro na frente da câmera.
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Figura 3: Animação que compõe a palavra now como tiros de metralhadora (5'25'').Fonte: Filme curta-metragem Now (Cuba, 1965).
Quanto a banda sonora, a canção que a preenche como um todo é a também intitulada
“Now”, composta em 1963 pelos compositores de musicais da Broadway, Adolph Green,
Betty Comden e Jule Styne, em cima de uma melodia da tradicional música hebraica Hava
Nagila, cujo título significa “alegrêmo-nos”. Porém, por ser um contundente clamor em prol
da igualdade racial, esta versão foi banida das rádios norte-americanas, como se observa no
trecho:
“A mensagem desta canção não é sutilSem discussão, sem contestação
Nós queremos mais do que apenas uma promessaDiga adeus ao pai Thomas
Me chamar de ingênuoAinda acredito
Nós somos criados livres e iguais,Agora, Agora, Agora.” 12
Ao ser interpretada pela cantora Lena Horne (1917-2010) a canção também adquiriu
uma outra dimensão dentro do cenário político da época. Horne, ativista pelos direitos civis,
foi a primeira mulher negra a participar de musicais de Hollywood, ainda nos anos 1940.
Neste período era comum que seus números musicais dentro dos filmes fossem feitos à parte
de outras sequências, de forma que eles pudessem facilmente serem cortados para exibição
em estados norte-americanos abertamente racistas.
12“The message of this song's not subtle/No discussion, no rebuttal/We want more than just a promise/Say goodbye to Uncle Thomas/Call me naïve/Still I believe/We're created free and equal, /Now/Now/ Now” (livre tradução).
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Figura 4: Créditos com imagem ao centro de Martin Luther King Jr. (37'').Fonte: Filme curta-metragem Now (Cuba, 1965).
Por fim, consciente de que diversos outros aspectos desta produção de 1965 não foram
comtemplados pelo fato deste texto ser apenas o início de uma pesquisa mais ampla, é
importante dar destaque a duas considerações, uma do ponto de vista da linguagem
cinematográfica e outra no sentido mais político. Primeiramente, aos olhos de hoje,
poderíamos considerar Now como um típico videoclipe contemporâneo, com o ritmo da
música que vai num crescendo contagiante e carrega a montagem por esta dinâmica,
valorizando o compasso e pontuando o refrão com determinadas cenas. Semelhanças que não
estariam apenas no que é exibido em canais de tv especializados, mas também, guardadas
todas as devidas proporções histórico/artísticas, com aqueles vídeos que vemos hoje na
internet, feitos por anônimos que usufruem das facilidades que a tecnologia digital os provém
ou, na afirmação de Orlando Senna:
Pois, o que temos agora na internet e nas outras mídias é uma colheita da semeadura de Santiago, da sua teoria e prática da Informaturgia, do casamento da objetividade com a subjetividade, das propostas de linguagem que estão em Now, LBJ, Hanoi Martes 13, La importancia universal del hueco, La soledad de los dioses. (SENNA, 2009).
Além disso, há uma violência explicitada nas imagens e reafirmada pela montagem
que, vista hoje, mostra-se como prenúncio do que estaria por vir. Afinal, a foto que
permanece ao fundo durante os créditos iniciais (figura 4), com Martin Luther King Jr. ao
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centro acompanhado de outros líderes ativistas13, todos posicionados de frente para o
presidente norte-americano Lyndon Johnson, numa situação de confronto e antagonismo, é
uma cena que nos faz refletir sobre o destino do líder negro quatro anos depois, assassinado
ao sair de um hotel em Memphis para participar de mais uma manifestação, em Abril de 1968.
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13 Foto do encontro na Casa Branca do então presidente Lyndon B. Johnson (direita) em 1964 com o grupo de liderança pelos direitos civis: Martin Luther King Jr. e Whitney M. Young Jr.( ao centro), Roy Wilkins e James L. Farmer Jr.(esquerda). Fonte: The New York times journal, http://www.nytimes.com/
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