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Departamento de Teologia
A oração-amizade como um caminho de humanização em Santa Teresa
de Jesus
Aluna: Valéria da Silva Pereira
Orientadora: Lúcia Pedrosa de Pádua
Introdução:
Foi feito neste trabalho um estudo sobre a oração-amizade como caminho de
humanização em Santa Teresa de Jesus.
No primeiro capítulo aprofundamos o tema da amizade e vimos como a relação é
o que constitui o ser humano, é somente no encontro Eu-Tu que o ser humano se humaniza
e percebe que a relação pessoa-pessoa é o fundamento da existência humana, pois o ser
humano se constitui na relação com o tu. Entre as muitas maneiras de relacionar-se,
aprofundamos a relação de amizade (philia) como uma experiência que pode ser vivida
como um caminho de humanização, de relação gratuita e reveladora de si mesmo, do
outro, da natureza e de Deus. Neste caminho, a antropologia cristã nos mostrou, através
do proceder de Jesus Cristo, caminhos para estabelecer relações humanizadoras nas quais
humano e divino não se separam, pois Deus está presente no mais prosaico da vida
humana, nas relações de amizade e na vida que pode ser uma epifania.
No segundo capítulo, em que se localiza o coração do trabalho, mergulhamos na
obra de Teresa de Jesus, de modo particular no Livro da Vida. Teresa, grande mística
espanhola do séc. XVI, nos mostrou com sua vida que oração é amizade, é exercício de
amor. Para ela a verdadeira experiência de oração abre para a vida, gerando uma nova
ética pessoal, liberdade, criatividade, autenticidade e uma existência comprometida com
verdade. Veremos também que a relação com Deus gera “amigos fortes de Deus” para
juntos buscarmos um mundo mais justo, fraterno e humano. Para Teresa a oração é
amizade, como ela mesma bem define: Para mim, a oração mental não é senão tratar de
amizade – estando muitas vezes tratando a sós – com quem sabemos que nos ama. Teresa
descobriu na oração-amizade um modo de ser, experiência essa que modelou a sua
existência, pois a vida é o termômetro do que se passa no interior.
No terceiro capítulo trabalhamos as consequências da vivência da espiritualidade
no mundo atual, diante da liquidez das relações, do consumismo, dos desafios e benefícios
dos meios tecnológicos. Veremos que a vivência da espiritualidade nos interpela a uma
nova lógica de relações, na qual a oração-amizade com Jesus é experimentada na história
2
humana, despertando-nos a nos posicionar de forma consciente, engajada e crítica no
tempo presente de nossa vida. Como um farol a nos iluminar na prática de novas relações,
Papa Francisco nos convoca a fazer da vida um espaço de expressão da nossa experiência
interior com Jesus Cristo encarnado, diz que é preciso descobrir a mística de vivermos
juntos, de sermos solidários uns com os outros, pois é preciso lembrar que partilhamos a
mesma existência, a mesma humanidade.
Deste modo, através do aprofundamento da vida e experiência de Teresa,
esperamos que o leitor ao ler estas páginas descubra que para todo aquele que inicia uma
verdadeira história de amizade com Deus, a vida já não será a mesma. Pois essa amizade,
se vivida com fidelidade, humildade e coragem, nos dará caminhos novos a peregrinar.
Nosso objetivo geral foi aprofundar a oração como relação de amizade na vida de
Teresa de Jesus e como essa amizade é geradora de relações humanizadoras, fraternas,
autênticas e solidárias.
Como objetivos específicos, tivemos:
1) Pesquisar na perspectiva antropológica- filosófica- teológica o tema da amizade.
2) Aprofundar a oração como relação de amizade na vida de Teresa de Jesus.
3) Explicitar as consequências da oração-amizade para a espiritualidade hoje, diante dos
desafios e possibilidade da tecnologia, das relações cada vez mais líquidas, individualistas
e consumistas.
A metodologia constituiu em uma pesquisa bibliográfica em Espanhol e
Português, que irá perpassar o tema da oração- amizade em Santa Teresa de Jesus; a
prioridade foi dada ao Livro da Vida, um livro autobiográfico.
1) A IMPORTÂNCIA ANTROPOLÓGICO-TEOLÓGICA DA AMIZADE
“Amigo fiel é poderoso refúgio,
quem o descobriu, descobriu um tesouro.”
(Eclo 6, 14)
Veremos neste capítulo que a pessoa humana não é solitária, mas existe em relação
às outras pessoas e se desenvolve em um complexo conjunto de intercâmbios. É no
3
encontro pessoa-pessoa, que o ser humano se humaniza.1 Dentre as várias formas de
relacionar-se, nos dedicaremos à relação de amizade (philia) como uma experiência que
pode ser vivida como um caminho de humanização, de relação gratuita e amorosa com a
natureza, com o outro, consigo mesmo e, com Deus/Transcendente. Neste percurso,
humano e divino não se separam, porque o Deus revelado por Jesus Cristo é relação.
1.1. O Ser humano, ser de relações: chamado a ser amigo da vida
No “princípio é a relação”, afirma-nos o filósofo Martin Buber, que desenvolve
uma profunda antropologia pautada na dialética do encontro. Para ele a “ontologia da
relação será o fundamento para uma antropologia que se encaminha para uma ética do
inter-humano”, portanto, a relação lhe é fundamental, é o fundamento da existência
humana.2
Segundo Buber, o ser humano tem duas formas de estar no mundo: o Eu-Tu, que
“é um ato essencial do homem, atitude de encontro entre dois parceiros na reciprocidade
e relação mútua”, e o Eu-Isso, que é a “ experiência de utilização, atitude objetivante”3.
As duas relações são necessárias, mas, somente na relação Eu-Tu nos humanizamos e
entramos em profunda relação.
A antropologia cristã nos afirma que a “relação é tão constitutiva da pessoa como
a sua unicidade”4. Cada pessoa é um ser único, irrepetível e insubstituível, chamado a ser
sujeito de sua história, de forma livre e responsável, tendo consciência de que tudo se
realiza na relação. Nessa teia de conexões, somos chamados a tecer relações que nos
conectem com as dimensões fundamentais em nossa vida: relação comigo mesmo, com o
mundo/natureza, com os outros seres humanos e, no nível mais profundo, a relação com
Deus. Assim, afirma o teólogo Alfonso García que “é na relação que o ser humano
descobre e aprofunda a própria identidade”5.
A amizade é, segundo o teólogo Tolentino Mendonça “uma experiência universal
e representa, para cada pessoa, um percurso inapagável de humanização e de esperança”6.
1 RUBIO, Alfonso García. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristã. São
Paulo: Paulus, 2001, p. 444-445. 2 BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução Newton Aquiles Von Zubem. São Paulo: Centauro, 2001, p. 29. 3 BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução Newton Aquiles Von Zubem. São Paulo: Centauro, 2001, p. 30. 4 RUBIO, Alfonso García. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristã. São
Paulo: Paulus, 2001, p. 316 5 Ibid., p. 316. 6 MENDONÇA, José Tolentino. Nenhum caminho será longo: para uma teologia da amizade. São
Paulo: Paulinas. 2013, p. 12.
4
Somos desafiados a abrir-nos à alteridade do outro, com gratuidade, reverência e
comunhão. A amizade encontra sua fonte no mais profundo de nossas origens
psicológicas, são transações em nível do sagrado, porque nosso contato além de íntimo,
é carregado de sentido, ela nos desperta a ir além da superficialidade para “penetrar no
santuário da intimidade”7.
Etimologicamente, a concepção de amizade está concentrada em dois termos:
philia em grego e amicitia em latim. Segundo Tolentino, na sua origem o sentido de
ambos ainda era mesclado com o campo do amor; só progressivamente o termo foi se
definindo autonomamente, e sendo refletida por filósofos desde a antiguidade, como
podemos constatar:
A antiga concepção sapiencial sobre a amizade atravessou sucessivas perspectivas
culturais, profundamente diferentes entre si; da intuição aristocrática homérica de
espontaneidade vital ao ideal metafísico contemplativo platônico; de uma visão
intelectual aristotélica ao jubiloso afeto amistoso de Epicuro, e ao precetismo ascético
estóico. Mas a intuição primordial e primária, transmitida de forma mais característica às
sucessivas gerações, é a perspectiva da amizade como virtude.8
Aristóteles foi quem pensou o tema da amizade de forma mais sistematizada,
dando-lhe uma dimensão política (relação social com os outros em vários níveis) e,
justamente por isso, a amizade “deve superar o estágio do útil e do deleitável, e
estabelecer-se na virtude”9. No seu tratado da Ética a Nicômaco, ele hierarquiza diversas
formas de amizade, como resume José Tolentino: a) a amizade útil, fundada no interesse
que nos pode advir de uma relação em que existe partilha mútua; b) a amizade aprazível,
estabelecida sobretudo no prazer que a companhia do outro nos dá; c) a amizade virtuosa,
que procura antes de tudo o bem do outro. Só esta última, no entanto, pode considerar-se
uma virtude,10 pois, benevolência, bondade, reciprocidade, e gratuidade são
características fundamentais da amizade.
Desta forma, Aristóteles destaca que a amizade pressupõe tempo, intimidade,
cultivo e carrega em si uma disposição de caráter que faz o amor philia ser recíproco,
gratuito, nos impelindo a desejar o bem às pessoas que amamos pelo que elas são.11
7 LACERDA, Milton Paulo de. Bem junto ao coração. Introdução à psicologia da amizade. Petrópolis:
Vozes, 1993, p. 36 e 22. 8 GOFF, T. Amizade. In: GOFF, T.; DE FIORES, S. Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas,
1993, p. 15. 9 GOFF, T.; DE FIORES, S. Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 15. 10 MENDONÇA, José Tolentino. Nenhum caminho será longo: para uma teologia da amizade. São
Paulo: Paulinas, 2013, p. 44. 11 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, VIII, 1157b, p. 159.
5
Aristóteles encerra seu discurso sobre a amizade com uma máxima que inspira a escolha
dos amigos, que se encontra no final do Livro IV da Ética a Nicômaco: “das pessoas
nobres você aprende coisas nobres”12.
1.2. A amizade nos evangelhos: “Já não vos chamo de servos, mas vos
chamo de amigos” (Jo 15,15)
O teólogo Tolentino em seu livro Para uma teologia da amizade, propõe: “e se
falássemos de amizade em vez de amor?” A Bíblia muitas vezes descreveu Deus a partir
da experiência do amor conjugal, a relação entre Deus e o povo aparece descrita diversas
vezes como experiência esponsal, um convívio de núpcias, onde fica sublinhada a
dimensão fusionante do encontro (cf. Jr 2,2; Ez 16, 8-13; Os 2,18-22).13
É vasto o patrimônio teológico que documenta esse exercício de metaforização do
amor, com o sentido de representar a relação de Deus com o ser humano. Esse paradigma
do amor continua sendo válido e inspirador em nossa tentativa de balbuciar o mistério de
Deus. No entanto, frisa Tolentino que “não deve ser entendido como a única via de
expressão, pois a Bíblia insiste pedagogicamente, numa pluralidade de acessos”. Diante
disso, torna-se necessário, “redescobrir a amizade” como uma teofania.14
O Novo Testamento mostra, através do jeito de ser de Jesus, que a amizade
apresenta um papel fundamental em suas relações, como descreve o evangelho de João
15, 12-15:
Este é o meu novo mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.
Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. E vós
sois meus amigos se praticardes o que eu vos mando. Já não vos chamo servos,
porque o servo não sabe o que seu senhor faz; mas vos chamo de amigos, porque
tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer.15
A diferença entre servo (doûlos) e amigo (philos) está no convite ao novo modo
de estabelecer relação com Deus e com os outros. O termo “servo” não só se aplicava a
12 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, IX, 1172a. P. 190. Apud: AVIZ, Darlan Aurélio de. “Uma alma em
dois corpos”: a amizade cristã como processo de humanização e manifestação do amor de Deus na Oração
43, 14-24 de São Gregório de Nazianzo. Dissertação (mestrado) PUC-RIO, Departamento de Teologia,
2017. 13 MENDONÇA, José Tolentino. Nenhum caminho será longo: para uma teologia da amizade. São
Paulo: Paulinas, 2013, p. 13-14. 14 Ibid., p. 15. 15 Bíblia de Jerusalém. Paulus, 2002, p.1882.
6
uma condição servil, mas também poderia designar o mais alto grau que um homem
alcançaria diante de Deus.16
No discurso de Jesus está a chave para uma teologia da amizade, pois “Jesus teve
amigos, e a amizade foi um marco na construção de seu caminho. Ele associou amizade
à sua missão; tornou-a um lugar para o reconhecimento dele próprio e da amizade de
Deus”17. A pessoa de Jesus aparece na história, como um “profeta da relação e da
amizade”18 se tornando amigo dos pecadores (Lc 7,34), dos publicanos (Lc 19,1-10), das
mulheres (Lc 8, 1-3), de Lázaro, seu dileto amigo (Jo 11,35), de João, o discípulo amado
(Jo 19,25-27) e de todos aqueles que a sociedade e a religião da época repudiavam. No
Antigo Testamento, diversos são os ensinamentos sobre a amizade nos livros sapienciais:
amigo fiel é um tesouro (Eclo 6, 14-17), não esqueça do amigo em meio as riquezas (Eclo
37,6), amigos mais queridos que irmãos (Pr 18,24), etc.
Segundo José Tolentino, a amizade dá um outro valor ao tempo, ela é “a aceitação
de que Deus nos visita através do que nos é próximo. Com os amigos construímos uma
história que é sagrada, mesmo se a nossos olhos parece apenas feita de coisas simples e
muito humanas”19. Dar um “outro valor” às relações significa relacionar com Deus e com
o outro pelo que eles são em si mesmos, na liberdade e gratuidade, pois através da amizade
é possível transpor o nível do utilitário. Por isso, não mais chamados servos, mas amigos
porque partilham de nossos anseios e segredos do coração, tornando-se aqueles pelos
quais somos capazes de dar a vida. Nesse sentido, a amizade torna-se um caminho de
transcendência.
Destarte, a amizade pode tornar-se caminho de transformação, de reencantamento
por tudo o que nos é humano, a saber, a consciência de nossa corporeidade, o sabor dos
pequenos gestos, a profundidade de um toque, de um olhar, de uma palavra, que podem
devolver sentido a muitas vidas exiladas dos caminhos da amizade.
1.3. Amizade – lugar de encontro com o humano e o divino
16 AVIZ, Darlan Aurélio de. “Uma alma em dois corpos”: a amizade cristã como processo de
humanização e manifestação do amor de Deus na Oração 43, 14-24 de São Gregório de Nazianzo; Costa.
Dissertação (mestrado) PUC-RIO, Departamento de Teologia, 2017, p. 55. 17 MENDONÇA, José Tolentino. Nenhum caminho será longo: para uma teologia da amizade. São
Paulo: Paulinas, 2013, p. 63. 18 Ibid., p. 64. 19 Ibid., p. 72.
7
Segundo José Tolentino, a “amizade é antes o próprio lugar do encontro entre
humano e o divino, o lugar onde os amigos podem participar de Deus, podem mergulhar
no seu mistério”20.
O Evangelho de Mateus nos diz: onde dois ou três estiverem reunidos em meu
nome, ali estou eu no meio deles (Mt 18,20); podemos dizer que o espaço de relação
interpessoal torna-se, em si mesmo, uma manifestação de Deus, porque a partir do próprio
mistério da Encarnação de Cristo, Deus pode e “quer ser encontrado em sua relação com
a pessoa humana, na relação das pessoas entre si e destas com o mundo”21. Esta relação
afasta de nós toda tendência de dualismos, entre sagrado/profano, alma/corpo, porque a
partir da Pessoa de Jesus Cristo tudo se integra, pois há em Deus o desejo de “em Cristo
encabeçar todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra (Ef 1, 10)22”,
tornando a vida, o cotidiano e o prosaico espaços humanos e ao mesmo tempo divinos,
ou no dizer da teóloga Lúcia Pedrosa “espaços de transcendência”23, pois, o “encontro
com o outro é, ao mesmo tempo, experiência de um terceiro transcendente, do Outro por
excelência”24. Deus se dá na relação, e por isso, podemos amar, porque amamos no e com
o amor com o qual somos amados/as.
Neste espaço inter-relacional podemos enfatizar as realidades da amizade e do
amor, do serviço e da comunhão, que podem ser expressos em diferentes níveis.25 Essa
relação pode ser pressentida e experienciada também no ato de amor entre duas pessoas
que se amam, pois “no espaço inter-relacional Deus quer estar, ele se dá a si mesmo como
terceiro implícito, como gozo e paz do Reino”26. A Encíclica Amoris Laetitia do Papa
Francisco, abre o leque para pensarmos a riqueza da vocação matrimonial com seus gestos
reais e concretos, e ressalta que “aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem
sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de
20 MENDONÇA, José Tolentino. Nenhum caminho será longo: para uma teologia da amizade. São
Paulo: Paulinas, p. 113. 21 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Espaços de Deus- Pistas teológicas para a busca e o encontro de Deus na
sociedade plural. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. MORI, Geraldo de. Deus na sociedade plural: fé,
símbolos, narrativas. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 42. 22 Bíblia de Jerusalém, p. 2040. 23 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Espaços de Deus- Pistas teológicas para a busca e o encontro de Deus na
sociedade plural. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. MORI, Geraldo de. Deus na sociedade plural: fé,
símbolos, narrativas. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 23. 24 PEDRODA-PÁDUA, Lúcia. Espaços de Deus, p. 29. 25 Cf. PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Espaços de Deus- Pistas teológicas para a busca e o encontro de Deus
na sociedade plural. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. MORI, Gerado de. Deus na sociedade plural:
fé, símbolos, narrativas. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 30. 26 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Espaços de Deus- Pistas teológicas para a busca e o encontro de Deus na
sociedade plural. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. MORI, Geraldo de. Deus na sociedade plural: fé,
símbolos, narrativas. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 31
8
que o Senhor se serve para os levar às alturas da união mística” (n.316). E de forma
profundamente bela afirma: “esta dedicação une o humano e o divino, porque está cheia
do amor de Deus. Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do
vínculo habitado pelo amor divino” (n.315)27. Deus habita a relação matrimonial.
Tudo isso torna-se possível porque é Deus que nos ama e nos torna capazes de
amar, e está presente na comunhão íntima das pessoas que se amam. A verdadeira
amizade (philia), assim como a verdadeira união de amor (eros) carregam características
do amor Ágape, como vemos no hino de 1 Cor 13, 4-7:
“A caridade é paciente, a caridade é prestativa,
não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho.
Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse,
não se irrita, não guarda rancor.
Não se alegra com a injustiça, mas se regozija na verdade...”
Deste modo, “no amor ao próximo, algo se manifesta a nós, algo se propõe a nós,
Deus se epifaniza”28. Ele está em nosso meio, presente e escondido, daí a necessidade de
cultivar olhos que veem além, pois: Deus não está longe de cada um de nós n’Ele
vivemos, nos movemos e existimos (At 17,28).
Conclusão:
Concluimos que a relação é o que nos constitui, é o fundamento de nossa
existência. É na acolhida e respeito pela alteridade do outro que nos humanizamos. Assim,
vimos que a relação de amizade (philia) foi refletida e vivida desde os pensadores antigos,
sendo sistematiza por Aristóteles e vista como uma virtude, em que é preciso superar o
nível do utilitário e do interesse, até amar e querer o bem da pessoa pelo que ela é em si
mesma.
A antropologia cristã nos mostrou que Jesus é o modelo de humano, que fez da
amizade um marco em seu caminho e em sua missão de revelar Deus como amigo da
humanidade. Pois, Deus se manifesta como um Terceiro nas relações, de amizade e
conjugal, de serviço e solidariedade, porque amamos com Ele, por Ele e Nele. Assim, o
prosaico e o concreto da vida se tornam lugar de encontro do humano e divino, pois a
amizade se torna uma teofania.
27 PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica. Amores Laetitia. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-
ap_20160319_amoris-laetitia.html. Acesso em: 06 dez. 2017. 28 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Espaços de Deus- Pistas teológicas para a busca e o encontro de Deus na
sociedade plural. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. MORI, Geraldo de. Deus na sociedade plural: fé,
símbolos, narrativas. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 29.
9
2) ORAÇÃO EM TERESA DE JESUS: RELAÇÃO DE AMIZADE COM
DEUS
“Para mim, a oração mental não é senão tratar de amizade – estando muitas
vezes tratando a sós – com quem sabemos que nos ama.” TERESA DE JESUS
Veremos neste capítulo como Teresa de Jesus, em sua profunda busca pela
verdade, descobriu na oração-amizade, um modo íntimo, transformante e cheio de vida
de ser amiga de Deus. Nesta aventura que dilata o interior, abrindo-o para a liberdade, ela
se descobre geradora de vida, criando uma grande rede de “amigos fortes de Deus” para
sustentar a todos que desejam “travar amizade com o Senhor”29.
2.1. Uma vida movida pela busca de Deus
Teresa de Ahumada nasceu em 1515, na cidade de Ávila, Espanha. Pertenceu a
uma família numerosa, de muitos irmãos. Filha de um período histórico, Teresa está
inserida no século XVI, também chamado “século do ouro”, tempo do Renascimento, de
poder político e econômico, da conquista das “Índias”30, do florescimento de correntes
espirituais e do movimento da reforma Protestante, protagonizada por Martinho Lutero.
O teólogo Patrício Sciadini ressalta que uma das características fortes em Teresa
é “a sua inquietação e angústia existencial. Ela busca e procura. Desde os 7 anos, quando
empreende com seu irmão Rodrigo a ‘fuga’ para a terra dos mouros, concebe um grande
ideal ao qual será fiel toda a sua vida: ‘eu quero ver a Deus’. Será uma mulher de
palavra”31. Esse ideal pela busca de Deus e pela verdade faz com que aos 19 anos Teresa
saia de casa e entre para a Ordem das Carmelitas.
No Carmelo assume um novo nome, uma nova identidade, ela deseja ser na Igreja
alguém diferente, não mais “Teresa de Ahumada, mas Teresa de Jesus. Este título será a
sua força, o projeto de sua vida com que iniciará uma santa rebeldia na Igreja que a torna
capaz de não viver mais à margem, mas assumir a sua missão de trazer a expansão do
29 TERESA DE JESUS. Livro da vida. São Paulo: Paulus, 1983, cap.7, 20, p. 55. A partir de agora o Livro da
Vida será citado a partir dessa edição, a não ser que se indique outra editora. Indicaremos o livro da vida
seguido do número do capítulo e parágrafo. 30 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Teresa de Ávila, Teresa de Jesus. In: BINGEMER, Maria Clara; YUNES,
Eliana (org.) Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003, p. 243. 31SCIADINI, Patrício. Teresa de Ávila: de mulher de palavra a Doutora da Igreja. In: BINGEMER, Maria
Clara; YUNES, Eliana (org.) Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003, p.217.
10
Reino à sua cooperação”32. Logo após sua entrada ao Carmelo, Teresa fica doente por
alguns anos. Retomada a sua saúde, começa a perceber que a vida que as monjas levavam
no mosteiro não era coerente com os apelos de vida de uma monja carmelita. Também
ela se vê interpelada a viver uma vida mais autêntica, quando aos 39 anos de idade tem
sua grande conversão, diante de uma imagem de Cristo “muito chagado”. Esta
experiência é preparada e acompanhada pela leitura do livro as Confissões, de Santo
Agostinho. Começa assim, uma vida mística intensa, com uma profunda experiência de
Deus.33
Dá-se assim, o início de uma grande aventura interior e exterior, na qual Teresa
de Jesus “sente dentro de si a necessidade de amar e ser amada. O amor se faz uma
urgência em sua vida. À medida que anda pelos caminhos do espírito, Teresa descobre a
pessoa de Jesus, cuja “sacratíssima humanidade” a encanta. Para ela Jesus é amigo,
companheiro, esposo, com quem realiza um maravilhoso relacionamento de amor e de
transformação”34.
Esta aventura ocorre em um ambiente de reforma espiritual que caracterizou a
Espanha desde fins do século XV. Essa reforma é alimentada pela busca religiosa de Deus
e se dá em direção à interioridade.35 Desta maneira, vai “se formando um movimento
espanhol que busca uma espiritualidade subjetiva e vital, baseada em livros que
descrevem experiências pessoais, utilizam novos conceitos e propõem caminhos de
oração, em contraste com uma espiritualidade objetiva, baseada em obras externas, na
oração vocal e fixada em livros edificados sobre a autoridade”36.
Teresa é influenciada pela corrente dos espirituais que “é definida por viver e
propor uma vida mística básica comum, ancorada na oração mental ou oração de
recolhimento”37. Sendo assim, é a partir da corrente dos espirituais que a santa
desenvolverá sua experiência, onde o ponto de partida é o conhecimento de si mesma.
32 SCIADINI, Patrício. Teresa de Ávila: de mulher de palavra a Doutora da Igreja. In: BINGEMER, Maria
Clara; YUNES, Eliana (org.) Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003, p.217. 33PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Teresa de Ávila, Teresa de Jesus. In: BINGEMER, Maria Clara; YUNES,
Eliana (org.) Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003, p. 244. 34 SCIADINI, Patrício. Teresa de Ávila: de mulher de palavra a Doutora da Igreja. In: BINGEMER, Maria
Clara; YUNES, Eliana (org.) Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003, p. 219. 35 Cf. PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Jesus: mística e humanização. São Paulo: Paulinas,
2015, p.32. 36 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Jesus: mística e humanização. São Paulo: Paulinas, 2015,
p. 34. 37 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Jesus: mística e humanização. São Paulo: Paulinas, 2015,
p. 35.
11
Pois, “este conhecimento significa entrar no mais profundo do próprio ser, no centro,
onde se encontra a Deus que é mais íntimo que a própria intimidade”38. Teresa tem uma
“percepção antropo-teológica”39 da pessoa e percebe que para se aproximar de Deus “não
é preciso ir ao céu nem sair de nós mesmos”40, mas está relacionada com o mais profundo
da pessoa humana, com uma alta antropologia, como nos lembra a herança socrática cristã
o “conhece-te a ti mesmo” que é proposta por uma longa tradição de místicos como
primeiro passo para o conhecimento de Deus.41
Deste modo, Teresa de Jesus foi se tornando uma “mulher inteira: profundamente
humana e inteiramente de Deus”42. Assumindo seu ser mulher, diante de uma sociedade
e Igreja extremamente patriarcal, ela foi irmã, amiga, mestra de oração e assim
transcendeu seu contexto histórico pela sua capacidade de abranger vários ângulos do
mistério de Deus e da vida humana. E o fez dialeticamente entrelaçando ternura e
determinação, coragem e humildade.43
2.2. A oração como um “trato de amizade”
Segundo Maximiliano Herraiz, grande estudioso da vida da santa, Teresa “definiu
a oração como amizade. Oração é amizade”44. Essa definição desabrocha de sua
experiência que ela mesma, Teresa, retrata e define como oração: “Para mim, a oração
mental não é senão tratar de amizade – estando muitas vezes tratando a sós – com quem
sabemos que nos ama”45. A oração é uma história de amizade, é a relação entre o ser
humano e Deus46, é um “encontro de amizade”47, onde o ser humano descobre a sua
verdade mais profunda: ele é capaz de Deus.48
38 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Jesus: mística e humanização. São Paulo: Paulinas, 2015,
p. 41. 39 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Jesus: mística e humanização. São Paulo: Paulinas, 2015,
p. 45. 40 Livro da Vida 40, 6. 41PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Jesus: mística e humanização. São Paulo: Paulinas, 2015,
p. 51. 42 AVELAR, Maria Carmen Castanheira. Teresa de Jesus, Teresa de Ávila. In: BINGEMER, Maria Clara;
YUNES, Eliana (org.) Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003. p. 248. 43 Cf. AVELAR Maria Carmen Castanheira. Teresa de Jesus, Teresa de Ávila. In: BINGEMER, Maria
Clara; YUNES, Eliana (org.) Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003. p. 249. 44 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 85. 45 Consideramos que a melhor tradução dessa frase se encontra, TERESA DE JESUS. Obras completas.
Frei Patrício (org.). [texto estabelecido por Tomás Álvarez]. São Paulo: Carmelitana/ Loyola, 1995, p. 63. 46 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p.107. 47 Ibid., p.98. 48 Ibid., p.69.
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Para Teresa “trilhar o caminho da oração é seguir aquele que tanto nos ama”49 é
um “exercício de amor”50, pois a oração “é a porta para se conhecer a Deus e conhecer-
se a si próprio”51. Assim a oração é um encontro pessoal, que afeta a pessoa e abre-a à
vida. É mais do que tornar-se consciente da presença de Jesus em um determinado tempo,
mas o “tratar de amizade” é ir- se tornando amigo de Deus,52 porque “embora seja Senhor,
posso tratar com ele como um amigo”53.
Para ela “Cristo é o melhor amigo”54, e faz a experiência que Deus e o homem,
aqui e agora, podem viver “amigavelmente virados um para o outro. Em abertura e
acolhimento, em escuta e manifestação”55. Ela descobre que “essa maneira de caminhar
significa querermos conciliar corpo e alma”56, pois o orar não se restringe somente ao
momento da oração, mas se estende a todos as esferas da vida, integrando corpo, alma e
espírito. Consequentemente, a “amizade configura e define a vida”57.
Assim, a oração vai se tornando reveladora de quem a faz. Ela é “epifania, escola
de verdade – a verdade de Deus e do homem – que o ser humano leva dentro de si... é
encontro na verdade”58, que se dá no tempo, no espaço e inclui a dimensão corpórea,
tornando-nos conscientes que “não somos anjos, temos um corpo” e que não podemos
“passar por anjos enquanto estamos na terra”59. A oração-amizade integra o ser humano,
o faz achar na sua verdade mais profunda a presença íntima de Deus. A oração revela o
“Quem” de Deus e o “quem” do ser humano, é a “revelação das pessoas que se voltam
reciprocamente uma para a outra em amizade”60.
Nesta aventura de amor, amizade, gratuidade, liberdade, humildade, a “oração,
“trato de amizade, abarca e compromete a vida do orante”61, pois “oração e vida cômoda
não combinam”62. Para Teresa o critério de discernimento da vida de oração é a vida que
49 Livro da vida, Cap. 11, 1. 50 Livro da vida, Cap. 7, 12. 51 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 65. 52 Ibid., p.75. 53 Livro da Vida, cap. 37,5. 54 Livro da vida, cap. 22,10. 55 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p.57. 56 Livro da Vida, cap. 13,5. 57 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 23. 58 Ibid., p. 64. 59 Livro da vida, cap. 22,10. 60 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 65. 61 Ibid., p. 35. 62 SCIADINI, Patrício. In: GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo:
Loyola, 2001, p. 9.
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se transforma, que se manifesta por obras e por um alargamento do interior, assim para
ela “a vida é sempre o termômetro da oração que existe e da oração que falta”63. E se há
oração, há mudança, pois o Espírito de Deus é impulso de vida, de liberdade, de conversão
que transforma a vida e as relações a uma nova dinâmica. Portanto, “a qualidade da vida
do orante será sempre o critério do discernimento da sua oração. A vida revela a oração
que se tem”64.
Teresa destaca muitas vezes que “Cristo é o melhor amigo”65, ou que Cristo
“deseja almas corajosas e é amigo delas”66, e frisa que para todos que querem entrar por
este caminho de amizade com Deus é preciso uma “decidida determinação”67, pois, para
ela “perder o caminho é abandonar a oração”68.
Portanto, podemos dizer que para Teresa de Jesus a oração-amizade é um caminho
espiritual relacional, humanizador e transformador; que integra todas as dimensões da
pessoa humana, que nos ensina a acolher todas as nossas contradições e tendências sem
dualismos, e nos convida continuamente a uma existência comprometida com formas
mais justas e coerentes de se viver.69 E assim, “na experiência de Deus nasce a experiência
plena do humano, em sua maturidade. Do encontro com Deus no profundo da alma
emerge um humano transformado e humanizado. A mística é, portanto, um processo de
humanização”70.
2.3. Amizade e liberdade para formar “amigos fortes de Deus”
Quanto mais Teresa crescia em amizade com Deus no íntimo do seu ser, mais seu
ser se expandia em liberdade interior, em “generosidade, simpatia, ousadia no pensar e
falar, na oração profunda” e mais apostava no amor,71 pois para ela “quanto mais santas
mais conversáveis”. A liberdade cresce em relação aos outros, o “contato com a palavra
63 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 39. 64 Ibid., p. 85. 65 Livro da vida, cap. 22,10. 66 Livro da Vida, cap. 13, 2. 67 TERESA DE JESUS. Caminho de perfeição, cap. 21, 2. In: Obras completas. Frei Patrício (org.). [texto
estabelecido por Tomás Alvarez]. São Paulo: Carmelitana/ Loyola, 1995, p. 363. 68 Livro da vida, cap. 19, 12. 69 Cf. PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Apresentação In: PEDROSA-PÁDUA, Lúcia; CAMPOS, Mônica
Baptista (org.) Santa Teresa, Mística para o nosso tempo. Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-Rio/Reflexão,
2011. p. 9. 70 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Apresentação In: PEDROSA-PÁDUA, Lúcia; CAMPOS, Mônica Baptista
(org.) Santa Teresa, Mística para o nosso tempo. Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-Rio/Reflexão, 2011, p.11. 71 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Vida e significado de Santa Teresa de Jesus. In: PEDROSA-PÁDUA, Lúcia;
CAMPOS, Mônica Baptista (org.) Santa Teresa. Mística para o nosso tempo. Rio de Janeiro/São Paulo:
PUC-Rio/ Reflexão, 2011. p. 21.
14
de Deus a torna livre e libertadora. É na palavra de Deus que ela busca o fundamento de
suas intuições”72, e como ela mesma diz: “bem pouco me importa o que se possa falar ou
saber de mim. Dou mais importância ao mínimo proveito de uma alma, do que a tudo
quanto se diz a meu respeito”73. Cresce em sua consciência teologal, se abrindo para uma
fé madura, consciente, comprometida e pede que “de devoções tolas, livre-nos Deus”74,
pois ela é a santa do essencial.
Faz parte da espiritualidade teresiana, “um espírito crítico-libertador” que a
inspira reformar a sua ordem e fundar novos mosteiros com novas regras, assim “Teresa
forma um movimento de mulheres pobres, orantes e iguais. Sustenta essa reforma através
de uma verdadeira rede de comunicação e solidariedade e a fortalece com uma
espiritualidade forte”75, porque para ela “o Senhor parece ter querido escolhê-las para
proveito de muitas almas, especialmente nestes tempos em que os amigos de Deus
precisam ser fortes para sustentar os fracos”76. A experiência do conhecimento interno
que Teresa faz de Jesus, fortalece seu ser, suas motivações, para que ela possa ser e
cultivar outros a serem presença de qualidade na vida de outras pessoas, a serem apoio a
todos que defendem essa nova maneira de se relacionar com Deus e o mundo. É realmente
preciso ser forte e perseverante, pois nesta época a Igreja católica, por medo devido às
turbulências da reforma de Lutero, tentava controlar a vida dos fiéis, dando ênfase à
oração vocal e desconfiando da oração mental. Mas Teresa é determinada, pois é preciso
“arriscar tudo, venha o que vier e, entregando-se a Deus, deixar-se guiar de bom grado
por suas mãos aonde ele quiser”77.
Dentro dessa conjuntura ela percebe a importância de se cultivar amizades que
também compartilham da confiança de serem sustentadas por Cristo e que se fortalecem
mutuamente na caminhada. Para ela a amizade será um marco em todas as dimensões de
sua vida, para ela é essencial ter boas amizades que expandem os nossos horizontes, pois
72 SCIADINI, Patrício. Teresa de Ávila: de mulher de palavra a Doutora da Igreja In: BINGEMER, Maria
Clara; YUNES, Eliana (org.) Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003, p. 221. 73 Livro da vida, cap. 40,22. 74 Livro da vida, cap. 13,16. 75PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Vida e significado de Santa Teresa de Jesus. In: PEDROSA-PÁDUA, Lúcia;
CAMPOS, Mônica Baptista (org.) Santa Teresa, Mística para o nosso tempo. Rio de Janeiro/São Paulo:
PUC-Rio/ Reflexão, 2011, p. 31. 76 Livro da vida, cap. 15,5. 77 Livro da vida, cap. 20,4.
15
ela sabe “o bom proveito que faz a boa companhia”78, boas leituras, “ter ficado amiga de
ler bons livros deu-me vida”79.
Todas essas experiências dilatam seu ser, ela se abre à comunicação, dialoga com
os movimentos de vida interna e de seu mundo geográfico, “ela necessita se relacionar
com os outros, comungar as experiências, dar o seu amor e receber o amor dos outros”80.
De sua interioridade brota vida, que a faz “abrir caminhos de vida com a própria vida”81.
Assim ela “escreve sobre oração e orienta a vida de fé e de oração de religiosos, leigos e
principalmente de suas irmãs de congregação”82, e gradativamente vai se tornando uma
andarilha de Deus, onde “a contemplação é missionária”83. Deste modo, Teresa expande
suas redes de amizade que “indicam capacidade de abertura e comunicação, de manter
amizades e relacionamentos com homens e mulheres, leigos e clérigos, ricos e pobres, de
solicitar ajudas, de coordenar esforços e recursos econômicos”84.
Nesta história de oração-amizade, que inspirou o nascimento dos “amigos fortes
de Deus”, Teresa ordena e projeta o seu ser em viver a vida em fidelidade à amizade com
Cristo que desabrocha em fidelidade à missão, às amizades. Assim ela diz a respeito de
seus amigos com os quais ela podia contar para a realização da missão da qual ela sentia
impelida por Deus: “este pacto quisera eu que fizéssemos, os cinco que atualmente nos
amamos em Cristo”85.
Assim, podemos captar e compreender que Teresa foi uma mulher de grandes
desejos, de discernimento, de grandes ideais, de uma “vontade decidida”86, e como ela
mesma diz: “verdade é que no tocante dos desejos, sempre os tive grandes”87, e isso até
78 Livro da vida, cap. 2,5. 79 Livro da vida, cap. 3,8. 80 SCIADINI, Patrício. Teresa de Ávila: de mulher de palavra a Doutora da Igreja. In: BINGEMER, Maria
Clara; YUNES, Eliana (org.) Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003, p. 223. 81 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Vida e significado de Santa Teresa de Jesus. In: PEDROSA-PÁDUA, Lúcia;
CAMPOS, Mônica Baptista (org.) Santa Teresa, Mística para o nosso tempo. Rio de Janeiro/São Paulo:
PUC-Rio/ Reflexão, 2011, p. 35. 82PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Vida e significado de Santa Teresa de Jesus. In: PEDROSA-PÁDUA,
Lúcia; CAMPOS, Mônica Baptista (org.) Santa Teresa, Mística para o nosso tempo. Rio de Janeiro/São
Paulo: PUC-Rio/ Reflexão, 2011, p. 31. 83 VILLAS BOAS, Alex. A mística poética como reinvenção da própria vida ou a poesia de si em Santa Teresa
de Ávila. In: PEDROSA-PÁDUA, Lúcia; CAMPOS, Mônica Baptista (org.) Santa Teresa, Mística para o
nosso tempo. Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-Rio/ Reflexão, 2011, p. 181. 84 PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Ávila: dez retratos de uma mulher “humana e de Deus”. In:
PEDROSA-PÁDUA, Lúcia; CAMPOS, Mônica Baptista (org.) Santa Teresa, Mística para o nosso tempo.
Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-Rio/ Reflexão, 2011, p. 127. 85 Livro da vida, cap. 16,7. 86 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p.91. 87 Livro da vida, cap. 13,6.
16
sua morte aos 67 anos em 1582. Diante de todo este dinamismo interno, aflorou uma
mulher orante, missionária, com uma fina atenção ao que se passava ao seu arredor, que
foi “livre, dinâmica e especialmente realizada no seu ser feminino; alguém que,
manifestando sua experiência espiritual, se faz mãe de muitas gerações, sendo fiel ao
título de Mestra dos espirituais”88. Em 26 de setembro de 1970, foi a primeira mulher a
ser proclamada doutora da Igreja pelo papa Paulo VI.
Teresa essa mulher de experiência e palavra continua sendo invocada ao longo de mais
de 500 anos, sendo para uns Teresa de Jesus, para outros Teresa de Ávila, e servindo de
inspiração a todos que através de seus livros desejam ser “buscadores da arte de amar”89,
pois sua experiência mística é patrimônio da humanidade, que em pleno século XXI, nos
deixa um precioso ensinamento: “onde há amor, há encontro de amizade, há oração”90.
Conclusão:
Concluímos, que Teresa de Jesus e seu profundo desejo pela busca de Deus, por
uma vida verdadeira, descobriu que a oração é amizade, pois é impensável uma vida de
amor sem encontro com o Amor. E isto é oração: ser amigo de Deus. É exercício de amor,
que se expressa no encontro de Deus com o ser humano, nos confirmando uma misteriosa
verdade: o ser humano é capaz de Deus. Essa relação de reciprocidade entre Deus e
Teresa, transforma sua vida, pois os frutos da oração se prova na vida que se tem. Assim,
Teresa cresceu em liberdade interior e fez da sua existência uma história de amizade com
Deus, com o mundo, e descobriu que sempre é preciso ser e ter “amigos fortes de Deus”,
para fazer da vida um espaço de fidelidade a Aquele que sempre nos ama. Pois como foi
visto, “a vida é sempre o termômetro da oração que existe e da oração que falta”.
3) CONSEQUÊNCIAS DA ORAÇÃO-AMIZADE PARA A
ESPIRITUALIDADE HOJE:
“O verdadeiro amante em toda parte ama e se lembra do amado! Terrível seria só se
poder ter orações em lugares remotos.” (Fundações 5,16)
88 SCIADINI, Patrício. Teresa de Ávila: de mulher de palavra a Doutora da Igreja. In: BINGEMER, Maria
Clara; YUNES, Eliana (org.) Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003, p. 227. 89 SCIADINI, Patrício. In: GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo:
Loyola, 2001, p. 8. 90 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 238.
17
Iremos destacar neste capítulo três consequências do tema da oração-amizade para
o mundo de hoje. A oração-amizade é relação de fidelidade amorosa que impulsiona para
a abertura ao próximo, provoca um dinamismo de expansão a todas as dimensões da
existência humana. Não há separação entre oração e vida, mas sim, tudo está envolvido
pelo Deus que quis estar no meio de nós. Nesse movimento de encontro com Deus e saída
ao próximo, percebemos que quem volta o olhar para dentro de si com verdade,
sinceridade é transfigurado por um amor que acolhe, perdoa e salva, gerando o desejo de
viver uma existência autêntica, comprometida e com horizontes que ultrapassem a lógica
individualista, capitalista e consumista, traçada pela nossa sociedade atual. Através dessa
experiência amorosa e gratuita de Deus, uma verdade nos é revelada: tudo nessa vida
passa, tudo muda, mas uma só coisa permanece, o amor de Deus que envolve toda a vida
e história humanas.
3.1. “Mudam se os caminhos, mas Deus não muda”. Como lidar com este
mundo líquido sem perder o essencial?
No capítulo anterior falamos que a oração é exercício de amor, é fidelidade
criativa à amizade com Deus. Mas esse exercício, hoje, é desafiado a ser vivido em
tempos líquidos, como disse, o sociólogo Zygmunt Bauman, as relações e os valores
parecem escorrer por nossas mãos, e tudo o que era sólido, se vai como fumaça, pois
“velocidade, e não duração, é o que importa”91. Santa Teresa já no sec. XVI percebe por
experiência a efemeridade das coisas e, em seu célebre poema diz: “todo se pasa, Dios no
se muda”92. Sim, Deus é amor e o seu amor não passa.
Neste contexto, em que o que foi ontem, pode não ser hoje, a vivência da
espiritualidade é uma bússola a orientar o nosso ser, a buscar um sentido para a existência
que ultrapasse a lógica individualista, utilitarista e consumista que nos envolve. Na pós-
modernidade, segundo Baumam, “a vida líquida é uma vida de consumo” e “no mundo
líquido-moderno, a lealdade é motivo de vergonha, não de orgulho”93.
E é justamente neste ponto que a espiritualidade nos inspira e convoca a
transcender essa lógica, ela nos auxilia a escolher o essencial, a não olhar as pessoas como
objetos a serem utilizados e descartados após o uso, mas sim, a viver a lógica de um amor
91 BAUMAM, Zygmund. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 15. 92 TERESA DE JESUS. Poesias, n° IX Eficácia da Paciência. In: Obras completas. Frei Patrício (org.).
[texto estabelecido por Tomás Alvarez]. São Paulo: Carmelitana/ Loyola, 1995, p. 980. 93 BAUMAM, Zygmund. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 16.
18
que se arrisca e faz-se um com os demais, no amor-serviço. O testemunho de Jesus nos
ensina: “entre vós não deverá ser assim. Ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande
entre vós seja aquele que serve” (Mt 20,26) e ensina a seus discípulos/as: “de graça
recebestes, de graça dai” (Mt 10,8).
Teresa, também com os desafios de sua época, deixou-se mover e interpelar-se
por esta dinâmica da oração que modela o ser da pessoa e a lança para a relação com o
outro, a relações humanizadoras, menos individualistas e manipuladoras. Pois “a oração
mete na alma o tormento pelos outros: o tormento do amor que crucifica todas as
tendências egoístas que se aninham e ocultam no interior do homem”94.
Dessa maneira, percebemos que a oração-amizade nos insere ainda mais no
contexto histórico em que vivemos, mas nos convoca a ultrapassar a lógica já
estabelecida, a ir na contra-mão de uma cultura cada vez mais líquida e individualista. A
sinalizar que o essencial de nossa efêmera existência, pode ser construído na gratuidade,
em tesouros que nem “a traça e a ferrugem podem corroer”(Mt 6, 20) na partilha do ser
e dos bens materiais, no desejo de ser nada além daquilo que somos, no desejo de verdade,
de perdão, de autenticidadade, de beleza e amizade. Pois, só assim a amizade pode ser
cultivada num mundo líquido, nos mostrando que “onde há amor, há encontro de amizade,
há oração”95.
3.2. Cultivar-se e cativar na era tecnológica
Para Teresa, mestra em oração a pessoa precisa primeiro “formar-se em longas
horas de intimidade com o Mestre”96. Porque antes de querer cativar os outros a também
viver a dinâmica da amizade com Deus, ela precisa estar primeiro enraizado em Deus,
pois, o discípulo formado pela oração-amizade “não transmite uma doutrina, comunica
uma vida”97. Aquele que se abre para a jornada rumo ao seu interior, descobre que é
preciso colocar-se diante de si e do outro com verdade e sinceridade, principalmente
diante da teia de relações à qual a modernidade o conecta. O cultivo interior é como uma
luz reveladora de nós mesmos, como diz Teresa: “porque em aposento onde entra sol, não
há teia de aranha escondida”98. Pois a “oração desata as fontes da ação. Converte por
94 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 220. 95 Ibid., p. 238. 96 Ibid., p. 229. 97 Ibid., p. 229. 98 Livro da Vida, cap. 19,2.
19
dentro, o orante em dinamismo de amor, quebrados e superados todos os freios do
egoísmo”99.
Nesta jornada de humanização, que vivemos em tempos de altas tecnologias, o
teólogo Antônio Spadaro nos convida a pensar a experiência cristã em tempos de rede,
pois as novas tecnologias trazem novas maneiras de entender o mundo, novas formas de
educação e “também um novo modo de estimular as inteligências e de estreitar
relacionamentos; efetivamente é um novo modo de habitar o mundo e de organizá-lo”100.
Segundo Spadaro, este novo modo de habitar o mundo é capaz de criar novas realidades
que mostram um desejo tão antigo, como novo que o ser humano tem de se relacionar.
Muitos são os benefícios trazidos pelas tecnologias, mas é preciso dizer que se não usados
de forma consciente e crítica podem gerar seres humanos fechados no individualismo, no
egoísmo, sem relações face a face e insensíveis a questões existênciais que clamam por
sujeitos que possam comprometer-se por causas de justiça e fraternidade. Neste sentindo,
Papa Francisco nos recorda:
“neste tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram
progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a ‘mística’ de viver
juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um
pouco caótica, que pode transformar-se em uma verdadeira experiência de fraternidade,
caravana solidária, peregrinação sagrada”101.
Portanto, pela tecnologia e sua linguagem, continua a sede por amizade e relações
verdadeiras, por conhecimento e comunicação. E Teresa, como boa mestra de oração, nos
mostra que a oração é um nobre caminho de amor e para o Amor, que continua dilatando
ainda hoje o coração de homens e mulheres a abrir-se aos outros para a entrega e o serviço
aos irmãos”102. Assim, uma das consequências da espiritualidade hoje, é gerar pessoas
capazes de responder aos desafios existênciais e teológicos com coragem, criatividade,
responsabilidade e profundidade de vida.
3.3. Fazer da vida uma grande oração
A oração-amizade é chamada a traduzir-se na vida. No dizer de Teresa a oração
é o que “forma o apóstolo”, ela é ”em si mesmo serviço apostólico”, que prepara, potencia
99 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 222. 100 SPADARO, Antônio. Ciberteologia: pensar o cristianismo nos tempos da rede. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 17. 101 PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica. Evangelii Gaudium. São Paulo: Loyola, 2013, n 87, p. 59. 102 Cf. GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 221.
20
para a vida e o serviço, mas acima de tudo a oração “trato de amizade” é o que ditará a
“qualidade do testemunho”103 e da vida.
A oração inspira a vida com tudo o que ela engloba: família, trabalho, estudo,
relacionamentos. E a vida é matéria viva da oração. Fazer da vida uma grande oração é
contemplar, é viver a vida de forma mais integrada, é perceber que o extraordinário está
escondido e se revelando no ordinário da nossa existência. A Evangelii Gaudium nos
chama a atenção ao dizer que: é “urgente recuperar o espírito contemplativo, que nos
permita redescobrir a cada dia, que somos depositários de um bem que humaniza e ajuda
a levar uma vida nova”104. Pois acreditamos pela fé que: “todos nós fomos criados para
aquilo que o evangelho nos propõe: a amizade com Jesus e o amor fraterno”105.
A experiência que Teresa tem com o Deus de Jesus Cristo, nos faz perceber nas
palavras de Maximiliano Herraiz que “a oração é para servir. É experiência de serviço, de
amor, de presença a todos” e que “a oração não é freio, mas um gerador apostólico”106. A
oração alarga nossos horizontes, inspira-nos a uma vida autêntica, a fazer o bem e bem
todas as coisas. Por que para Teresa a oração é dinâmica de amor, e o que vai fazer da
vida oração não é quanto tempo a pessoa passa em solidão, ou se faz muito ou pouco na
vida apostólica, mas o que conta é amor com que vivemos e fazemos as coisas ao nosso
redor. “Só o amor conta. ‘Só o amor dá valor a todas as coisas, e que seja tão grande que
nenhuma lhe estorve o amar, é o mais necessário’”107. Assim sendo, não podemos
esquecer de uma verdade: “um contemplativo é ativo, vive comprometidamente a sua
existência na mesma medida em que é contemplativo”108.
Enfim, a fidelidade à oração-amizade nos proporciona um olhar místico e uma
sensibilidade afinada para perceber que vida e oração, vida e palavra ambas se nutrem, se
iluminam e se fundem. É na vida que se dá a história de cada um, e todos são chamados/as
a escrever também a sua história de amizade, pois a amizade é um sinal de amor que nós
cristãos professamos: “Deus ama-nos e chama-nos à sua companhia”109.
103 Cf. GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 224. 104 PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Loyola, 2013, n 264,
p.150. 105 PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Loyola, 2013, n 265, p.
150. 106 GARCIA, Maximiliano Herraiz. Oração, História de amizade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 219. 107 Ibid., p. 216. 108 Ibid., p. 217. 109 Ibid., p. 247.
21
Conclusão:
Vimos que a oração-amizade deve ser trabalhada neste contexto líquido,
consumista, individualista e em meio aos avanços tecnológicos. A prática da
espiritualidade compromete e engloba toda a nossa vida. Aquele/a que se deixa possuir
pelo mesmo Espírito que conduziu Jesus, experimenta um amor que humaniza, que abre
os horizontes diante dos desafios e possibilidades da nossa existência. O processo de
crescimento espiritual nos desperta à consciência crítica e interpela a ultrapassar os
valores estabelecidos pela sociedade de consumo e a criar espaços onde a solidariedade,
a fraternidade, a amizade, o perdão possam habitar. Pois experimentamos que Deus é
amor, e onde há amor, há amizade, e por isso também há oração. Desde modo, somos
chamados a escrever com a vida a nossa própria história de oração-amizade.
Concluímos que as relações de amizade sempre marcaram o ser humano; sendo
assim, a amizade é refletida por vários pensadores desde da antiguidade. A relação é o
que nos constitui, e vimos, a partir da antropologia cristã e do testemunho de Teresa de
Jesus, que todo ser humano é capaz de Deus, e que a amizade pode se tornar um caminho
de humanização, quando inspirada pela fidelidade ao maior de todos os amigos: Jesus.
Assim, toda a vida pode ser iluminada e vista por outro ângulo se transfigurada por esta
experiência de amizade com Deus.
Apontamos que na espiritualidade cristã, vida e oração não se separam, pois, a
vida nos leva para a oração e a oração nos lança a tudo o que envolve a nossa existência.
A vida é lugar de revelação e união com Deus. A partir da encarnação de Jesus, a vida, a
nossa história humana podem ser um espaço de transcendência, de comunhão e união
com Deus. Pois, tudo pode passar, mas nada fica fora do amor de Deus, que com seu
Espírito continua chamando homens e mulheres a arriscar a vida inteira com liberdade,
criatividade e autenticidade, na missão de criar novas relações onde o amor, a amizade e
o serviço sejam um caminho de humanização e de encontro com o mistério da Trindade.
Referências bibliográficas:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.
AVIZ, Darlan Aurélio de. “Uma alma em dois corpos”: a amizade cristã como processo de humanização
e manifestação do amor de Deus na Oração 43, 14-24 de São Gregório de Nazianzo. Dissertação
(mestrado) PUC-RIO, Departamento de Teologia, 2017.
22
BAUMAM, Zygmund. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
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