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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
ELISEU APARECIDO DE CAMARGO
A OVELHA NEGRA NO REBANHO DO SENHOR
Trajetória de um Negro Protestante
São Paulo – SP
2017
ELISEU APARECIDO DE CAMARGO
A OVELHA NEGRA NO REBANHO DO SENHOR
Trajetória de um Negro Protestante
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, como
requisito à obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Joao Baptista Borges Pereira
São Paulo – SP
2017
C172o Camargo, Eliseu Aparecido de A ovelha negra no rebanho do Senhor: trajetória de um negro protestante / Eliseu Aparecido de Camargo – 2017 142 f.: il ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017. Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borge Pereira Bibliografia: f. 134-135 1. Experiência religiosa 2. Superação 3. Condição social 4. Influência da religião I. Título LC BX4836.B6
DEDICATÓRIA
Ao Ser Supremo, pela vida e possibilidade de empreender
esse caminho evolutivo, por propiciar tantas oportunidades
de estudos e por colocar em meu caminho pessoas
preciosas.
AGRADECIMENTOS
Há um dito popular que diz: “Nada se inventa, tudo se copia”. Porém, esta é uma falsa
realidade. Hoje somos testemunhas do que comprovamos.
Nada se constrói por si só. Assim como toda caminhada não se faz sozinho, sempre
havemos de contar com nosso semelhante.
Agradeço a todos que me ajudaram a construir não somente este trabalho, mas
também a realização de um sonho.
Primeiramente, quero agradecer a minha família. Mãe, você sempre acreditou e me
incentivou ao máximo para alcançar meus objetivos. Eis me aqui concretizando um
dos meus maiores sonhos. Pai, obrigado pelo apoio e por sempre estar a meu lado.
Agradeço aos meus filhos, Anderson, Douglas, Renam, Damaris, Denis, Daniel,
Bruno, Giovana, Julia, Elvira Melo e a meu cunhado e irmão, Jaime, por serem meus
companheiros e incentivadores.
Agradeço a você, em especial, minha filha Damaris Bianca, pelo interesse em ver o
seu pai realizando este feito tão importante para nós. Sei o quanto tem esperado para
ver o nosso sucesso nestas lutas.
Agradeço a Claudia, por me dar o privilégio de ser o pai de seus filhos, lutamos muito,
luta esta, que tem nos ensinado a respeitar as nossas particularidades.
Sou grata aos meus amigos, aos que se foram e aos que se encontram presentes
neste mundo, pela motivação, apoio, inspiração e força que sempre me ofereceram.
Vocês, mais do que ninguém, sabem quanto me ajudaram na construção deste
trabalho.
Agradeço a GESEG e a todos os seus colaboradores, na pessoa do nosso Gerente,
Orlando Taveiros, que não poupou esforços para que este sonho se materializasse.
Ao Mackenzie, que possibilitou a incrível e rara oportunidade de me tornar
mackenzista. Não tenho palavras para poder expressar minha gratidão pelo
Mackenzie, que me proporcionou estudar todo esse tempo em que me encontro aqui,
e aos meus grandes amigos e professores que tive o privilégio de conhecer. Sei que
é algo para poucos. Também sei que levarei tudo o que passei e aprendi pelo resto
de minha vida. O que posso dizer com toda a convicção e orgulho: Eu sou Mackenzie.
Professor Ricardo Bitum, se não fosse você, não teria conhecido meu orientador. Se
hoje posso efetivar meu sonho, grande parte disso devo-lhe. Professor, saiba que é
uma das pessoas que admiro.
Ao meu orientador João Baptista, que me recebeu desde o primeiro dia de sua aula.
Conhecê-lo sempre foi um sonho distante, de repente ficamos tão próximos, que sinto
que me adotou. Essa foi, sem dúvida, minha melhor conquista no Mestrado. Seu
apoio, orientações, ensinamentos, disponibilidade, sua forma de agir foram
fundamentais para a minha formação.
Agradeço a você Rita, por fazer parte da minha vida, sua preocupação em ver este
trabalho realizado e concluído, não poupando esforços em me ajudar.
Por fim, é impossível não agradecer às Palavras de Agur em Provérbios 30: “Duas
coisas te peço; não mais negues, antes que eu morra: afasta de mim a falsidade e a
mentira; dá-me o pão que me for necessário; para não suceder que, estando eu farto,
te negue e diga: Quem é o SENHOR? Ou que, empobrecido, venha a furtar e profane
o nome de Deus”.
A Riqueza não é pecado: Nem tão pouco a pobreza. Casos estes que são condições
para nos tornamos Melhores.
“Percebe-se que o ser humano possui uma força
interior e uma capacidade de superação, muito
maior do que ele próprio imagina.”
Tatiana K. Moriya
RESUMO
No presente trabalho, far-se-á uso da própria experiência de vida, travestida de teorias
Antropológicas e Sociológicas, para entender vários aspectos da religiosidade, da
desigualdade racial e das condições sociais do negro no Brasil. Dentro desse viés,
será possível verificar a experiência de vida social, que vai da família à esfera
religiosa. A questão social é vivenciada pelo autor, primeiramente, na família, naquela
que se formou como a primeira instituição que fazemos parte. Depois de sofrer com a
desintegração do seio familiar, o autor passa a ter um convívio nas ruas que
possibilitou a aquisição de muitos “ensinamentos” por parte de indivíduos que, sob um
olhar da sociedade, não são benquistos. Contudo, de forma proveitosa, podemos
assim dizer pedagógica, o autor, por meio de uma filtragem, após algum tempo
vivenciando e observando as atitudes dos mal-intencionados, que, em sua maior
parte, eram da mesma faixa etária e daqueles mais velhos, conseguiu absorver
ensinamentos. E mesmo sabendo aonde o levaria se continuasse indo “no embalo”
dos outros jovens, conseguiu sobreviver nas ruas sem se contaminar e tão pouco se
tornar um infrator. O presente trabalho descreve os efeitos, em uma criança, de uma
vida em família interrompida precocemente. Vários fatos negativos foram vivenciados
e influenciaram na formação deste ser, que ainda não comportava dentro de si
conceitos de caráter e de idoneidade.
Palavras-chave: Condições Sociais; Influência religiosa; Superação; Experiência
religiosa
ABSTRACT
This will make it will use the very travesty life experience working Anthropological and
Sociological theories to understand various aspects of religiosity, Racial Inequality and
Social Conditions of the Negro in Brazil. Within this way you can check this traumatic
experience with the social reality experienced that formed as the first institution that
we are part of the family, and after suffering from the disintegration of the family
environment, now has a living on the streets that enabled acquisition of many teachings
by individuals under a look of society that are not well-liked, but a profiteer, we can
say, teaching, making use of filtering after some time experiencing and observing the
attitudes of meaning evil that were generally those of the same age and those who
were older and even knowing where it would take me if I kept going, "the momentum"
of other young people, regarding the form of how to survive on the streets without
contaminating and so little become an offender. Considering that because of family life
have been stopped early and have witnessed several negative factors that help and
the formation of a child still does not contain within itself the concepts of character and
integrity.
Keywords: Social conditions; Religious influence; Overcoming; Religion experience
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO......................................................................................... 13
1.2 O Negro no Contexto Social e Religioso........................................... 16
1.3 Relevância......................................................................................... 24
1.4 Metodologia....................................................................................... 28
2 O INÍCIO DA VIDA DE UMA OVELHA NEGRA...................................... 30
2.1 Externando o Início da Vida de uma Ovelha..................................... 31
2.2 A Doença da Minha Mãe e as Consequências na Minha Vida......... 44
2.3 A Caminho de uma Vida Nova.......................................................... 59
2.4 A Migração da Ovelha de um Celeiro para Outro............................. 67
3 A OVELHA REENCONTRANDO O CAMINHO DA VIDA...................... 73
4 A OVELHA DESFRUTANDO DO RIO DE BENÇÃOS........................... 80
5 A OVELHA NEGRA NO RIO DE BENÇÃOS DO PROTESTANTISMO.................................................................................. 106
6 GUISA DE CONCLUSÃO....................................................................... 132
7 REFERÊNCIAS........................................................................................134
ANEXO 1.....................................................................................................136
ANEXO 2.....................................................................................................138
13
1 INTRODUÇÃO
O mundo contemporâneo encontra-se em vertiginosa transformação e a
sociedade do conhecimento e do capitalismo traz desafios sobre a prática de vida do
negro e a sua inserção na sociedade de classes (FERNANDES, 2008a).
O interesse por este estudo surgiu mediante a obtenção da compreensão do
pleito em busca da viabilidade que a pós-escravatura proporcionou ao negro, não
dispondo esse grupo de elementos concretos para a ascensão social como um todo.
A partir da questão do negro que vem tentando construir e alcançar o seu espaço, o
interesse por este estudo surgiu mediante a dificuldade de crescimento pessoal,
profissional e social, encontrada por aqueles que não conseguiam visualizar um fio
condutor que chegasse até a esperança. Quando se perde a esperança, perde-se a
razão de viver. E, no momento em que se perde a razão de viver, parece que não
existe mais espaço no mundo. Para muitos negros que ainda viviam na ilusão do “mito
da escravidão benévola”, a esperança ainda impulsionava a construção de novos
projetos de vida. Diante desse cenário, vislumbrado pelos negros pós-escravos que
acreditavam que o mundo seria melhor para eles na condição de libertos, estes não
atentaram para as crises instauradas por causa da sua libertação na esfera da política,
da exclusão social, da moral e da própria ética. Ao querer desenvolver um estudo
sobre o negro, ainda escravizado, e sobre qual era o posicionamento da Igreja
Protestante, mais especificamente da Igreja Presbiteriana do Brasil, em relação à
Abolição dos Escravos, este trabalho passou a ser de interesse pessoal do autor, pelo
motivo de ser ele um negro e, principalmente, ser integrante de uma Igreja
Presbiteriana do Brasil. Desse modo, o autor quis verificar como a Igreja que ele
frequenta lidou com este assunto num período em que a própria Igreja Protestante
buscava o seu espaço. Na condução de tal pensamento, o autor intentou neste
empreendimento acadêmico em poder falar de um negro, que também sofreu com
uma herança deixada pelos antepassados que pouco contribuíram para ser tratados
de forma diferente, haja vista, as dificuldades encontradas por eles. E foi essa forma
de tratamento recebida pelos negros do passado que estimulou o autor a falar da sua
própria vida.
14
Vida esta, afetada por uma desestruturação familiar precoce, que contribuiu
para que a trajetória vivida pelo autor tenha se tornado um exemplo para aqueles que
almejam crescer como indivíduos e que fazem parte de uma sociedade excludente.
No percurso, vários acontecimentos surgiram, de sorte que a religiosidade, presente
desde a infância, corroborou de forma positiva para a continuidade desta trajetória de
vida1.
Segundo Jaime (2016, p. 407):
“Existem várias maneiras de contar uma história de vida para
a audiência. O biografado produz sua narrativa não apenas de
um tempo/lugar. Ele leva em conta também quem é o seu
interlocutor (o pesquisador), quais são os objetivos da
pesquisa e sua audiência. É novamente Pierre Bourdieu (2004,
p. 80-81) quem apresenta uma importante observação a esse
respeito. Segundo ele, “o objeto próprio desses discursos, isto
é, a apresentação pública, logo, a oficialização, de uma
representação privada de sua própria vida, implica um
acréscimo de limitações e de censuras especificas”.
Crapanzano (1984), por sua vez, adverte que a história de vida
é o resultado de uma complexa negociação que o próprio
sujeito faz na constituição de si mesmo. Dessa forma, ao
reconstruir uma biografia, cabe levar em consideração uma
orientação de Davis (2003). Para ele, em vez de buscar
cegamente “a verdade”, é importante que o pesquisador
incorpore na análise as ambiguidades, as contradições, a
descontinuidade”.
Essa linha de pesquisa subsidiou a elaboração do presente trabalho intitulado
“A Ovelha Negra no Rebanho do Senhor” e tem como objetivo verificar e analisar como
vem ocorrendo a integração social do negro na sociedade de forma que não seja
excluído deste crescimento global. “Ovelha Negra” é uma expressão pejorativa
utilizada para denominar uma pessoa que é diferente das outras e que está fora dos
1 “Ensina a criança no caminho que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviara dele”
(BÍBLIA SAGRADA, 2011, Provérbios 22 vers. 6).
15
padrões considerados normais pela sociedade. Se uma família tem membros de
conduta ilibada, decentes e honestos e algum integrante seja visto como
irresponsável, ladrão ou fora dos padrões ditos normais para aquele grupo familiar de
indivíduos, é de imediato considerado a ovelha negra da família2. O termo “ovelha
negra” sempre foi tratado de forma pejorativa, e, com isto, sofre com algo que ainda
está enraizado e inculcado em grande parte da sociedade que é o “estigma”. Sobre
isso, Goffman (2015) explica que um indivíduo estigmatizado é considerado como
2 Este conto, publicado em Mundo das metáforas, 2001, é uma obra de ficção sobre um universo de
seres, de fantasia ou acontecimentos, causando impacto e prendendo a atenção daqueles que o leem,
desta forma o conto vai de encontro a algumas realidades vividas.
A Ovelha Negra
Era uma vez uma ovelhinha diferente das suas irmãs de rebanho: era negra. Por isso, era desprezada
e sofria todo tipo de maus tratos. As outras lhe davam mordidas, patadas; procuravam colocá-la em
último lugar no rebanho. Quando estavam num prado pastando, o rebanho inteiro tentava não deixar
que a ovelhinha negra provasse uma ervazinha sequer. Dessa forma, sua existência era horrível.
Farta de tanto desprezo, a ovelhinha negra afastou-se do rebanho. Durante muito tempo vagou sem
rumo pelo bosque. Quando anoiteceu, exausta, a ovelhinha deitou-se, sem perceber, em um monte
de farinha, onde dormiu.
Ao raiar o dia, acordou e viu, cheia de surpresa, que se havia transformado em uma ovelha muito
branca, imaculada. Voltou então ao seu rebanho, onde foi muito bem recebida e proclamada rainha,
pela sua bela aparência.
Naquela ocasião, estava sendo anunciada a visita do príncipe dos cordeiros, que vinha em busca de
uma esposa.
O príncipe foi recebido no rebanho com grandes honras. Enquanto ele observava as ovelhas que
formavam o rebanho, desabou uma violenta tempestade. A chuva dissolveu a farinha que cobria o
pêlo negro de nossa ovelhinha, e ela recuperou sua cor natural.
Quando a viu, o príncipe resolveu que seria a escolhida. As outras ovelhas perguntaram por quê.
- É diferente das outras. E isso, para mim, é suficiente.
Assim, a ovelhinha negra tornou-se princesa e teve, finalmente, o destino justo que merecia.
16
tendo uma característica diferente daquela aceitável pela sociedade, ou seja, não se
encaixa aos padrões de “perfectibilidade” e “normalidade” que existe enquanto regra
numa sociedade de produção. Assim, a pessoa estigmatizada é categorizada como
“o diferente”, ficando em desvantagem aos demais sujeitos, e por esse motivo é
tratada de maneira diferente.
Demonstrar-se-á neste trabalho a quebra pelo autor deste paradigma ou regras
limitantes que impedem o crescimento de um indivíduo, salientando que a superação
o levará a um status quo que aos olhos de seus semelhantes seria inatingível. E
mesmo tendo grande possibilidade de se perder neste mundo em que podemos dizer
“O mundo em que renasci”3. Em certo sentido, o presente trabalho é uma biografia
amparada por esquemas teóricos da Antropologia e Sociologia, sendo assim, o texto,
quase um depoimento, a partir de agora será escrito na primeira pessoa.
Com este estudo de inclusão, não pretendo produzir mais um trabalho sobre o
negro, mas sim algo inovador construído em função da pungência do novo, do
preconceito, da discriminação e até da segregação racial que se desperta. Pretendo
tratar de um tema que, queiramos ou não, é um assunto que diz respeito a todos.
Portanto, a população global deverá estar envolvida com o trato sobre o negro na
sociedade. Por isso, é urgente que as Ciências da Religião tratem desse fenômeno, e
sem receio de estar entrando na seara alheia e de estar se intrometendo nas vidas
afetadas pela estigmatização. As Ciências da Religião, por estudarem
comportamentos sociais dos indivíduos, não só podem como devem tratar desta
questão.
1.2 O Negro no Contexto Social e Religioso
Ainda hoje, em pleno século XXI, convivemos com algo devastador em um
mundo globalizado que é o “racismo” e que ainda subsiste também no centro das
igrejas evangélicas. Porém, a Igreja protestante é uma instituição que, desde os
3 Esta música descreve o que o autor passou na vida e de como a proteção Divina o fez chegar ao longínquo. “O mundo em Que Renasci”, composição de Arlindo Cruz e Rogê (participação de Marcelo D2).
17
tempos primórdios, zela teoricamente contra a desigualdade social e até mesmo
“racial”, não deixando de lado o processo de reconhecimento entre um indivíduo e
outro, no sentido de que todos são iguais, a fim de contribuir por meio dos princípios
da acepção de pessoas. O preconceito tem sido visto como algo contínuo neste
mundo globalizado, e a Igreja também não é exceção, mesmo levando em
consideração que a Bíblia é clara no combate à discriminação de qualquer espécie.
Em Tiago 2.1, há o alerta: “Meus irmãos, como crentes em nosso glorioso Senhor
Jesus Cristo, não façam diferença entre as pessoas, tratando-as com parcialidade”.
Nessa linha de valorização e reconhecimento do homem em que todos são iguais
perante ao Senhor, a Bíblia nos ensina a romper com qualquer estrutura destoante da
igualdade, assim como a sociedade greco-romana e qualquer outra que fundamente
o seu descaso pelo outro por motivações raciais (judeu ou grego), sociais (escravo ou
livre) e de gênero (homem ou mulher).
Ao chegar à Igreja Presbiteriana, logo percebi a falta de negros no seu interior
e, como no passado, esta realidade se vive no presente. Hoje percebo tal ausência
de forma latente. A todo instante, de um modo ou de outro, tenho de reafirmar que
sou negro, a fim de demonstrar, para o público nas igrejas e para a sociedade em
geral, que a minha forma de pensar a fé, de me pronunciar e de viver a fé cristã é
bastante influenciada pela preocupação com a promoção de políticas que promovam
a igualdade racial. Isso, apesar de a Igreja refletir em algumas circunstâncias a visão
da sociedade, muitas vezes, até sem intenção, como se vê nos dias de hoje e falando
por experiências vividas dentro da comunidade evangélica da qual faço parte e por
motivos expostos acima. Todas essas questões têm de estar na pauta das igrejas
como um todo, a fim de ganharmos forças no combate ao racismo e à desigualdade:
“John Wesley pregava nas praças, e muitos que eram tidos como
excluídos da sociedade abraçaram o Evangelho. Aliás, os metodistas
nasceram, então, com o cunho social muito elevado e o são até os dias
de hoje” (CARTA PASTORAL SOBRE O RACISMO, 2011, p. 9).
Uma forma de combater o racismo na Igreja e também em outros locus sociais
é não o tirar de discussão. Segundo o Pastor Marcelo
18
“[...] somos desafiados a estar atentos com essa temática, não tirar o
racismo do debate. Muitas pessoas são contra as cotas raciais, mas
para quem viveu ou vive a dor do racismo, que sabe que os negros
viveram abandonados nos guetos, políticas como essas são
necessárias”. (CARTA PASTORAL SOBRE O RACISMO, 2011, p. 10).
Essa afirmação ao que nos parece e acreditamos é de cunho particular,
todavia, temos de ressaltar que é pertinente à questão. Longe de ser uma questão
esgotada ou deixá-la isolada dentro de uma caixa asseverando que é passado, o
racismo ainda está presente nas sociedades.
A Igreja tem um papel importante nessa situação, faz-se necessário que a
instituição religiosa se levante como guia da verdade e, assim, se faça diferente para
fazer a diferença, trazendo ensinamentos que o homem foi criado à imagem e
semelhança de Yahweh4. Eu entendi isso na Igreja e aprendi a viver dessa forma e,
assim, ganhei maturidade para enfrentar as dificuldades fora do âmbito da Igreja.
Fazendo prevalecer que a igualdade não foi estabelecida pelo homem e, sim, por
Yahweh, na sua infinita Graça e Misericórdia. Tive minha vida transformada na Igreja
e vejo que o mundo pode ser transformado em muitos aspectos, mas no que tange a
nossa temática, as diferenças devem continuar sendo combatidas e hoje faço valer o
que aprendi e estou aprendendo na Igreja, “combater o bom combate...” (BÍBLIA
SAGRADA, 2011, Segunda Carta de Paulo a Timóteo).
O racismo é um reflexo que deturpa a visão de humanidade, deturpa o olhar,
ao dar diferentes valores a diferentes grupos humanos. Não se pode admitir que nesta
esfera da igualdade vejamos que existe um melhor do que o outro. A escravização
dos povos africanos é a mais dramática e evidente prova dessa visão deturpada.
Praticamente todas as denominações religiosas cristãs ocidentais, católicas e
4 “Lê-se Javé. Os que traduziram a Bíblia para a versão dos setenta assim entenderam Deus: É um ser
único, criador de todas as coisas e verdadeiro. Ele é aquele que pode dar vida para a humanidade. Mais ainda ele é justo e aplica a justiça, um Deus que vai ao encontro do homem e se torna libertador. Um ser transcendente e que para o entendimento humano permanece um mistério. A Bíblia mostra que o Deus de Abraão e Moises “é o que é”, entretanto ele não está alheio ao processo da história, se compromete com ela, faz com a humanidade um pacto e uma aliança, e esta aliança constantemente vai se renovando” (HARRIS, 1998, p. 345-348).
19
protestantes não só foram omissas como também apoiaram e se beneficiaram do
sistema político-econômico escravagista e desumanizante.
Em um Concílio de Baltimore, realizado em 1780, com a presença de alguns
pastores de várias denominações, foi redigida uma importante e sábia declaração:
“A escravidão é contraria ás leis de Deus, do homem, da natureza e danosa à sociedade; contraria aos ditames da consciência e da pura religião, já que não devemos fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam” (CARTA PASTORAL SOBRE O RACISMO, 2011, p. 10).
Um episódio ocorrido no Rio de Janeiro com um missionário protestante
confirma essa triste opção. Ele assistiu a um leilão de escravos no centro da cidade,
em que adultos, jovens e crianças acorrentados eram escravizados. Ao seu lado
estava um fazendeiro, seu conhecido, e que demonstrava real interesse em ser
evangelizado. Horrorizado com a cena, o missionário comentou que ações como
aquela não deveriam existir e que eram frontalmente contrárias aos princípios bíblicos.
O fazendeiro, duramente incisivo, retrucou que o regime escravocrata era
imprescindível economicamente ao país e que a religião não deveria se misturar com
aqueles assuntos. Em vez de corrigir a visão do candidato a membro da Igreja, o
pastor ficou calado e concluiu que, se desejasse obter sucesso na tarefa de
implantação de sua denominação no Brasil, não deveria tocar em assuntos
controvertidos como aquele. E assim ele fez; deixou de lado a questão da
escravização das pessoas negras e resolveu cuidar somente dos assuntos que não
atrapalhassem a sua tarefa “evangelizadora”5.
Muitos indivíduos admitem que o racismo é uma questão pessoal e que não
tem implicações mais sérias, contudo não condiz com a verdade. Racismo produzia
e ainda produz consequências graves e enormes prejuízos à população negra e ao
próprio país.
Para Nelson Mandela:
5 CARTA PASTORAL SOBRE O RACISMO, 2011.
20
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender. E se elas podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto” (CARTA PASTORAL SOBRE O RACISMO, 2011, p. 17).
Na medida em que essas ações se dirigem contra uma das formas mais
perversas de desigualdade social que é aquela associada à discriminação racial,
somos levados a crer que a mentalidade haverá de sofrer mudanças em favor do bem
comum. Segundo estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
a discriminação racial resulta em desigualdade entre negros e brancos e entre homens
e mulheres, e isso de duas maneiras: primeiro, porque o negro tem educação
sistematicamente inferior, o que o coloca em posição desvantajosa no mercado de
trabalho; e segundo, porque mesmo quando se comparam trabalhadores negros e
brancos que compartilham o mesmo nível educacional, os negros recebem menor
remuneração. A luta contra todas essas formas de preconceito, discriminação e de
segregação6 deve ser uma precondição para a verdadeira unidade das lutas dos
excluídos, uma unidade que parte do reconhecimento da igualdade como síntese das
diferenças, e não da igualdade que pretende se igualar ao Método de Procusto7. Os
negros de hoje, principalmente nos Estados Unidos da América (EUA), têm um
profundo orgulho de si mesmos, que foi conquistado em lutas memoráveis e heroicas
contra a segregação, num aspecto que ia dos Panteras Negras a Martin Luther King
6 “De um modo geral, tornando-se a literatura referente à ‘situação racial’ brasileira, produzida por
estudiosos ou simples observadores brasileiros e norte-americanos, nota-se que os primeiros, influenciados, pela ideologia de relações raciais características do Brasil, tendem a negar ou subestimar o preconceito aqui existente, enquanto os últimos, afeitos ao preconceito, tal como se apresenta este em seu país, não conseguem ‘ver’, na modalidade que aqui se encontra” (NOGUEIRA, 2016, p. 287-308).
7 Procusto representa a intolerância do homem em relação ao seu semelhante. O mito já foi usado como metáfora para criticar tentativas de imposição de um padrão de vida em várias áreas do conhecimento, como na economia, na política, na educação, na história, na ciência social e na administração. Procusto era um bandido que vivia na serra de Eleusis. Em sua casa, ele tinha uma cama de ferro, que tinha seu exato tamanho, para a qual convidava todos os viajantes a se deitarem. Se os hóspedes fossem demasiados altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, e os que tinham pequena estatura eram esticados até atingirem o comprimento suficiente. Uma vítima nunca se ajustava exatamente ao tamanho da cama porque Procusto, secretamente, tinha duas camas de tamanho diferentes. Continuou seu reinado até que foi capturado pelo herói ateniense Teseu que, em sua última aventura, prendeu Procusto lateralmente em sua própria cama e cortou-lhe a cabeça e os pés, aplicando-lhe o mesmo suplício que infligia aos seus hóspedes.
21
Jr. A comunidade negra não pode partir do sentimento de humilhação e rebaixamento
por parte da sociedade, sejam eles de qualquer segmento cultural.
Há de se entender no presente que nada é mais falso do que a alegação
proclamada de que o racismo não existe. Os movimentos populares negros precisam
hoje, de forma consciente, mostrar e reivindicar os espaços a serem ocupados pela
massa negra, a preencher esta lacuna existente com igualdade, já que o racismo
sempre existiu e continua a existir. Os movimentos de ação afirmativa devem enfrentar
a discriminação e a segregação existente nas bases raciais, forçando a sociedade a
refletir e a agir adiante da extrema desigualdade social e do endêmico e hipócrita
racismo de modo abrasileirado. Modo que impõe aos negros uma forma de pensar de
que é preciso silenciar-se sobre o preconceito existente há tempos. Os negros, assim
como outras etnias, devem exigir tratamento diferenciado para que os direitos de
cidadania sejam de fato universalizados.
A pobreza do negro no Brasil é decorrente de legado histórico; o que temos
hoje é resultado de ações construídas durante anos. O destino não estava traçado e
o caminho não era único, ainda que o passado tenha o seu peso no presente. O Brasil
foi colonizado sobre a égide da desigualdade, da injustiça e da exclusão: ou seja,
nossa realidade hoje é reflexo de um passado construído e pautado na desigualdade
social e na formação de conceitos puramente excludentes. Constituindo hoje um país
onde a pobreza não ocorre devido à falta de recursos, mas também devido à
desorganização social, suscitando assim um dos maiores índices de desigualdade em
nosso país.
“Já se foi o tempo em que a pobreza era justificada como uma incapacidade da classe inferior, sem a possibilidade de quebra desse elo. O mito da cultura da pobreza segundo a qual os pobres não melhoram suas condições porque não querem, desfaz-se, sempre na dura frieza das evidências, empíricas e históricas” (ABRANCHES, 1998, p. 16).
Outro fator agravante são as novas tendências que surgiram no mundo atual,
como a ideia de privação de “capacidades” (SEN, 2000). A visão do “pobre” sofre
alterações e este passa a ser visto como um produto da estrutura, e não como um
trabalhador inapto ou mesmo um delinquente que escolhe a sua condição. A pobreza
22
absoluta significa não ter acesso aos bens e serviços essenciais, é a impossibilidade
de suprir as necessidades básicas, alimentares e não alimentares. A pobreza relativa
significa a desigualdade e a falta de recursos ou de consumo em relação a padrões
usuais ou aprovados pela sociedade do que é considerado essencial para uma vida
digna. As desigualdades sociais expressam as modalidades e os mecanismos
mediante os quais numa dada sociedade são distribuídos bens e recursos, atribuindo
posições diferenciadas e relativas aos indivíduos e grupos em relação a uma escala
de valores mediante a qual estes lugares sociais são válidos.
O conceito de exclusão social amplia as dimensões de análise da pobreza e
das desigualdades. É o processo pelo qual indivíduos ou grupos são total ou
parcialmente excluídos de participar integralmente da sociedade em que vivem.
Segundo Rouanet (1993), os conceitos de universalidade, individualidade e
autonomia estão sendo tratados como novas interpretações, em que o universalismo
está sendo substituído pelo nacionalismo, proliferando em muitos casos o racismo e
a xenofobia; o individualismo se expressa no conformismo e busca somente pelo
benefício próprio; a autonomia transformou-se em desresponsabilidade pelo ser
humano, em que cada um é responsável por si mesmo e muitos vivem em condições
sub-humanas. É preciso então uma ação mais voltada para a maioria da população,
para que se busque o bem-estar de todos.
Este estudo propõe a responder a estas questões: De um modo geral, a
periodização que caracteriza a evolução sequencial de um indivíduo muito jovem
entregue aos desprazeres da vida extemporaneamente, principalmente quando você
é o protagonista e o agente solene da ação desta história. A medida que fui me
aprofundando na análise do meu passado, mais se reforça as convicções sobre a
inadequação da minha parte nesta corrente social da qual integramos. Mas é preciso
não perder de vista as linhas condutoras pelas quais se traçou o soerguimento das
fases existenciais não muito promissoras até então.
Vislumbro, assim, um primeiro período que foi marcado pelas constantes
desavenças de um casal, que culminou na separação desse núcleo familiar, fazendo
com que a desestruturação passasse a ser aos integrantes dessa família um indicativo
para o infortúnio.
23
O novo status que se configurou na desordem familiar alterou substancialmente
o modus vivendi daquela que, até aquele momento construiu referenciais com
princípios, mas que passou a desenvolver a matrifocalidade, levando-a a não suportar
a dissipação de algo tão importante que aprendeu com seus princípios sobre a família.
Nesse processo de reformulação da vida por causa dos acontecimentos que se
fizeram presentes, este jovem começa a sofrer os efeitos da desintegração e, assim,
assume o papel de cuidador daquela que deveria cuidar. Deixando de fazer parte de
algo importante para o desenvolvimento na formação de um indivíduo, passa a ter na
rua um lugar de refúgio, vivenciando e aprendendo a se comportar mesmo em
situação adversa, tendo grandes possibilidade de se influenciar pelas “coisas
erradas”, mas sendo beneficiado nas orientações recebidas por aqueles “capacitados”
para o crime, e não admitindo a possibilidade de se envolver em tal finalidade.
A referência religiosa recebida na juventude corroborou e muito para a não
aproximação de uma vida pregressa, prevalecendo os valores apreendidos que
fizeram com que o conceito de família fosse considerado, nesta esfera de mundo,
como um bem maior. Com o advento da aquisição de uma nova família, tudo mudou,
e a partir daí a responsabilidade de cuidar e sustentar a casa recaiu sobre um jovem
que acabara de completar 18 anos.
Tornou-se pai após a adolescência, e isso significou o aumento das
responsabilidades, que, naquele momento, foi visto por grande parte das pessoas
como adversidade, mas, para ele, surgiu como um novo desafio. O aumento das
responsabilidades contribuiu para a descoberta da autonomia por conta da mudança
de “ser adolescente” para “ser pai”.
Vivendo no limite da necessidade e fazendo uso do seu esforço e da superação,
trabalhando dia e noite para que esta nova família não viesse a sofrer com a falta do
básico para sobreviver. Nessa luta constante em sobreviver, teria de recomeçar algo
que não havia iniciado, haveria de encontrar um meio para estruturar sua vida, com o
objetivo de não passar necessidades; tinha esperança de mudança, de reconstruir
sua vida, novos valores, em busca da felicidade familiar.
Como teve formação familiar católica, com referências espíritas por parte de
alguns integrantes da família, viu no convite de uma missionária coreana a
oportunidade de se encontrar novamente com Deus. E foi em uma Igreja Presbiteriana
que descobriu uma nova maneira de dar sentido a sua vida.
24
No afã de entender melhor as palavras de Yahweh, refez algo que outrora fazia
com afinco, que era cultuar a Deus, pois abandonou a religião católica desde que
começou a passar a maior parte do tempo na rua. Com um amadurecimento precoce
e seu amor paternal, relembrando o que ocorrera no passado, ou seja, a
desestruturação familiar, sentiu a necessidade de se reencontrar com Yahweh, de se
tornar um homem, pai, amigo, profissional, marido, enfim, um ser humano melhor, que
tem fé. Hoje é participativo dessa crença e faz parte do corpo de Cristo, entende
melhor os propósitos de Deus para a vida de seus filhos e da sua própria vida; é nesta
convicção que se apega, porque foi ela que mudou a trajetória da sua existência.
1.3 Relevância
A dificuldade de inserção do negro nas sociedades de classes na
contemporaneidade se caracteriza em um grande flagrante na sociedade. Tais
acontecimentos hoje trazem imbuídas questões de diversos teores, denunciadoras do
modus vivendi, principalmente da população negra, tais como: formas de organização
social, construção, compreensão e representações da realidade social empírica.
Esses acontecimentos surgem a partir de uma realidade histórica em que as grandes
questões sobre o racismo, a segregação, a desigualdade social e a religiosidade são
dadas como desarraigadas em muitos países como em nosso Brasil.
No trato dessa temática, se fez necessário, portanto, apreender as
particularidades inerentes ao que acontece com o negro e que o torna diferente de
outras etnias, por exemplo, o branco, o índio e até mesmo posteriormente os
estrangeiros, em um momento de pós-escravatura, em que os negros começam a
perder um espaço do qual ainda não ganharam. Essas particularidades, bastantes
significativas, estão relacionadas à prática de vida, que nós como negros teremos de
enfrentar no campo social (Sociológico) e cultural (Antropológico), por existirmos, no
decorrer do tempo compreendido desde a escravidão até os dias atuais como algo
definido como “estigma”8, que, em alguns casos, por estarmos dissociados dos
8 “Os gregos, tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor, uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos. Mais tarde na era Cristã dois níveis de metáfora foram acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de graça
25
padrões ético da moral social, por entenderem que não fazemos parte nem somos
reconhecidos como componentes do padrão normal de vida social, preestabelecidos
por parte de uma sociedade.
São questões que serão mais bem definidas e desenvolvidas posteriormente.
Numa primeira instância, nossa pretensão é unicamente situá-las no cenário da
temática em discussão.
Dentre tantas situações calamitosas já vividas pela humanidade, o tema exige,
por meio da minha própria vivência, leituras e quadros empíricos, pois não há algo tão
devastador como o preconceito e a segregação racial. Desse modo, torna-se
necessária a leitura e um trato sério, livre dos preconceitos e dos estigmas da moral
social.
A situação do negro no Brasil e no mundo é muito grave e, por isso, exige a
participação de um grupo cada vez maior de pessoas, oriundas de todos os campos
da sociedade, a fim de que a contribuição social seja dada em todas as instâncias
teóricas e empíricas. Faz-se urgente uma somatória de esforços para atingir a grande
expectativa da população negra.
O motivo que me impulsionou a pesquisar este assunto é resultante, portanto,
de um processo gradual de conscientização da problemática exposta até aqui. A ideia
não me ocorreu por acaso, mas resulta de um longo processo que vem do meu
nascimento à minha compreensão de como podemos ser inseridos na sociedade de
forma justa, a fim de corrigirmos as disparidades há séculos existentes e propagadas
pelo racismo latente que impera em uma sociedade não paritária e para construirmos
uma sociedade igualitária, e não excludente.
Na qualidade de estudioso das questões sociais, fui me aventurando a adentrar
neste tema, intentando de algum modo contribuir da forma mais concreta possível
com essa questão. O tema nasce, exatamente, das minhas experiências de vida,
ligadas a um dos principais ícones da vida humana que é a família, que por sofrer com
a desestruturação precoce, começa a se desintegrar, fazendo com que seus
integrantes passem a viver ao bel-prazer de uma sociedade que impõe limites àqueles
divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais de distúrbio físico” (GOFFMAN, 2015, p. 11).
26
que não fazem parte de um grupo favorecido. A intenção aqui não é exterminar a
sociedade que busca valores no ser humano como um todo e, sim, fazer-se entender
que uma sociedade é formada por várias etnias e todos têm o direito à vida em
sociedade, onde grupos sociais trabalham pela questão.
Todo esse arsenal de informações permitiu o acesso à questão e se configurou
num aporte essencial para elaboração desta proposta de trabalho.
A contribuição pretendida não está diretamente voltada para o estudo do negro
escravo nem tão pouco tratar do “mito da escravidão benévola”, no sentido de abordar
o seu surgimento e toda a trajetória percorrida pela população negra até chegar ao
seu reconhecimento social, visto que esses aspectos já foram bastante contemplados
em outros estudos produzidos até o presente. Porém, o que me interessa pesquisar e
que considero ser inovador dentro desta questão da “Ovelha Negra no Rebanho do
Senhor” se funde e justifica através das experiências vividas por mim. Ou seja, o perfil
de um negro que, a partir do seu modo de vida e como se redefiniu individual e
coletivamente nos vários campos sociais nos quais estão inseridos, após uma
apuração da sua condição de vida.
Além disso, este trabalho visa a precisar as formas como este indivíduo tem
lidado com essa nova realidade que se construiu, em que se verificou novas
representações sociais e imaginárias, tanto sobre o próprio meio de vida, quanto sobre
a sua vida pessoal na sociedade, no seu grupo familiar, na religião e no seu trabalho.
O presente trabalho trata da trajetória de um jovem negro e tem como objetivo apontar
aspectos elementares de sua vida e de como o caminho percorrido fez com que
encontrasse o sentido da vida e, através dela, a busca pela superação, que, atrelada
a isto, trouxe contigo a motivação e a determinação, a fim de se tornar uma criatura
em novidade de vida. Não basta, portanto, apenas mudar a nossa atitude para com
Yahweh, precisamos também mudar à nossa maneira de viver, pois ao verdadeiro
arrependimento segue-se uma mudança de comportamento.
Não passa, porém, de um trabalho preliminar, ou melhor dizendo,
circunstancial, empreendido, originalmente, com o intuito de verificar a aplicabilidade,
para um jovem cheio de esperança. Este estudo concluiu pela improcedência da
noção de que a falta de oportunidades é responsável pelo desfavorecimento dos
indivíduos. Isso decorre de um novo segmento que outrora era velado e que agora se
27
aflora de modo claro e escancarado que é a segregação racial. Esta faz com que os
sonhos e expectativas de um indivíduo sejam suprimidos pelo crivo da desigualdade
e também pela dificuldade de inserção na sociedade de classes, assim definido por
parte da sociedade que não expressa a sua totalidade.
Neste sentido, empreendi e me foquei em trazer à memória eventos e uma
gama de acontecimentos ocorridos no percurso da vida, para que, de maneira humilde
e progressista, alcançasse êxito através da valoração e superação, tão esquecidas
por aqueles que desconhecem ou não fazem questão de saber o que é superação.
Na minha trajetória desta escrita, já neste trabalho, procurarei de forma fiel,
sistematizar os dados então obtidos através das minhas lembranças, dando vida aos
inúmeros acontecimentos que me proporcionaram escrever algo sobre a trajetória da
minha própria vida.
Assim é, que, premido pelas circunstâncias, dei início, a partir de fevereiro de
2015, a redação do presente trabalho. Para tanto, retornei, pois, ao que denominamos
uma investigação da minha própria memória a fim de recuperar momentos positivos e
negativos, levando em conta que todo este arcabouço trouxe a lume acontecimentos
que serviram como, entre outras coisas, “o conceito de inspiração e motivação”, seja
por não condizer, segundo penso, com a situação em que vivi desde a minha infância.
Acabei, desse modo, realizando a única coisa que me pareceu viável, fazer dessas
circunstâncias o registro de algumas características, como, o modo de agir e pensar
o mundo como tal, tendo como referência a rua. Tal repertório encontra-se
fundamentado, sobremaneira, em meu próprio testemunho. De fato, ambicionando
uma compatível composição entre o que eu tenho a dizer e o que os meus leitores
vão pensar, atentando para a qualidade desses testemunhos, preferi submeter-me,
por assim dizer, a redação deste trabalho, a fim de obter o respeito e a compreensão
dos leitores, para que a partir deste, seja quebrado todo e qualquer paradigma. Com
isso, há nesse trabalho uma profunda abastança, por vezes extremadas, de
sinceridade, e, não raro, a propósito de questões que eu não poupei expor por se
tratar da história da minha vida. Almejo, assim tão somente, que pelo temor de que
possa parecer estar clamando por justiça, sem lograr, contudo, evitar a parcimônia,
eu tenha pelo menos apresentado testemunhos valorosos para o conhecimento da
questão racial no pais.
28
Apesar do meu empenho para melhorar a condição de vida, como será visto,
as condições de subsistência se farão presente ao longo da narrativa, tal afã
converteu-se, antes de mais nada, na luta pela estrita sobrevivência no início da minha
vida como jovem, mas responsável o bastante para avançar em meus propósitos, por
ter tido um amadurecimento precoce.
Em nossa analise partiremos do princípio que a condição de “ovelha dentro do
rebanho” constitui-se um fato social universal, o que lhe confere o passaporte para ser
tratada globalmente, ancorada na análise epistêmica das ciências da religião e, mais
especificamente, da sociologia e antropologia. Desse modo, pretendemos aprofundar
a análise sociológica de um negro em especifico, procurando contribuir para a
construção do conhecimento cientifico acerca dos diversos modos e formas, e de
como a população negra se porta ao se defrontar com a sua nova condição de vida e
procurar dar outros nortes para a mesma, a partir dessa nova realidade.
.
1.4 Metodologia
Diante da abordagem temática em questão, pretendo conduzir o relato da
experiência de vida como a única maneira de facilmente ter uma ideia de como se deu
a história de vida do indivíduo dentro deste tema, conforme foi escrito por Gaulejac
(apud JAIME, 2016, p. 78-79):
“Para escrever sua própria história, é preciso primeiro saber ler
a parte que foi escrita (e que ainda continua sendo) por outros sujeitos,
individuais ou coletivos. Afinal, todo bom autor é, antes de tudo, um
bom leitor”.
Gaulejac (apud JAIME, 2016, p. 78-79) sinaliza alguns caminhos e, para tanto,
busca suporte na etimologia:
29
“[...] o termo ‘sujeito’ vem do latim subjectus, que quer dizer ‘submetido,
sujeitado’, ou de subgicere, que significa ‘submeter, subordinar’.
Portanto, trata-se de uma palavra que remete, inicialmente, a ideia de
submissão, aqui entendida como uma pessoa submetida à autoridade
de outra. O sujeito, afirma, é inicialmente sujeitado a sua família, às
normas do meio, aos códigos sociais, a sua história, em síntese. É isso
que significa ler melhor a sua própria história e empreender o trabalho
de construção de si mesmo como sujeito”.
Afinal como bem aponta Gaulejac (apud JAIME, 2016, 78-79) em frase posta
em epígrafe neste capitulo: “se o indivíduo não pode mudar a história, uma vez que o
que se passou não é modificável, ele pode modificar a maneira como essa história
age sobre si”. Ou ainda: “o indivíduo é o produto de uma história da qual ele busca
tornar-se o sujeito” (Gaulejac apud JAIME, 2016, p. 78-79).
No primeiro momento tomaremos como referência a exposição na forma
escrita, as condições de vida a que se viveu, decorrente da desestruturação familiar
na esfera da precocidade, passando a conviver com o que o mundo oferecia tomando
como referência de vida a rua. A convivência e as experiências vividas na rua foram
proporcionadas pela separação dos pais, fazendo com que a sua mãe recebesse o
papel da matrifocalidade. A minha mãe sempre foi protagonista neste cenário do grupo
familiar não com o intuito de se tirar a autoridade patriarcal, mas agindo de forma
matrifocal. Hunaldo Beiker (1972) descreve a figura da mãe como estável, em que seu
estado de equilíbrio é externado com um poder de decisão sobre os filhos e a casa,
quando não, passa a ser em muitos casos a figura mais importante neste ciclo familiar,
como foi o caso da minha mãe na vida dos seus filhos principalmente para mim.
No segundo momento, trabalharei o período de transição da Igreja Católica
para a Igreja Protestante. Desde a mais tenra idade, meus pais me ensinaram que
Yahweh é real. Mostraram-me, por serem católicos não tão praticantes, que seguir a
Yahweh é a prioridade sobre todas as coisas, não importando quão absurdo isso
pudesse parecer para mim naquele momento. Ao olhar para traz, pude perceber o
quanto eu aceitava mal a ideia de me tornar protestante. Percebi que as implicações
seriam enormes, mas cada vez mais envolto com a causa, me tornei membro de uma
Igreja Presbiteriana do Brasil. Desde o início da minha conversão, a Igreja me ajudou
a crescer mais do que eu podia imaginar.
30
No terceiro momento, indicarei como a Igreja agiu como agente transformador
na minha vida, motivando, dando esperança e fazendo com que eu acreditasse que o
mundo pode ser melhor diante da minha disposição em querer vê-lo e vivê-lo por outro
viés. Acreditando ser capaz de romper com qualquer paradigma estabelecido por uma
sociedade excludente, e ainda fazer prevalecer, em dias contemporâneos, a
segregação racial e a própria desigualdade social, sendo contrário ao estabelecido
por Yahweh.
Para tanto, pretendo proceder da seguinte forma: roteirizar os relatos
oferecidos, a fim de seguir os dados cronológicos para esclarecer qual foi a
importância das Igrejas, em específico a Protestante, sobre um indivíduo que teve a
oportunidade de seguir um caminho diferente do proposto no início de uma vida não
tão promissora; seguir os critérios formais da metodologia da pesquisa científica, a
partir da definição dessa ordem cronológica e da exposição da trajetória de vida; e
usar as técnicas da exposição da própria vivência no campo empírico, na condição do
método dedutivo e indutivo. Para a exposição, farei o aporte nos teóricos que se
relacionam com a questão, a exemplo de Florestan Fernandes (2008), que trata da
integração do negro na sociedade de classes, em seus volumes I e II, manifestando
as dificuldades do negro pós-escravatura e deixando claro o legado do branco em
relação ao negro; de Hunaldo Beiker (1972), que externa de maneira muito
esclarecedora a forma de vida de negros e favelados tendo como um dos fatores
principal a matrifocalidade sobre famílias desestruturadas; de Erving Goffman (1982),
que aponta um assunto extremamente atual que ainda perdura na contemporaneidade
o “estigma”, dentre outros que serão citados no decorrer da pesquisa.
2 O INÍCIO DA VIDA DE UMA OVELHA NEGRA
2.1 Externando o Início da Vida de uma Ovelha
Chamo-me Eliseu Aparecido de Camargo, neste momento tenho 47 anos de
idade, nasci em 9 de setembro de 1969, natural do Estado de São Paulo, filho de
Waldemar de Camargo e Ilda Ismael de Camargo com um irmão chamado David
Aparecido de Camargo. Hoje sou um profissional da área de segurança e trabalho no
Instituto Presbiteriano Mackenzie como Encarregado de Segurança. Sou de uma
31
família humilde, no que tange ao comentário de Borges Pereira (2001, p. 248), a “elite
negra” que se desenvolveu na:
“[...] minúscula parte da população de cor que, graças ao grau de instrução, a êxitos econômicos e profissionais, conseguiu distinguir-se da grande massa negra”.
Meu pai sempre exerceu a profissão de metalúrgico trabalhando em empresas
de renome como a Landroni e Elevadores Otis dentre outras. Em seu currículo houve
a habilidade peculiar atribuída a ele que era um exímio jogador de futebol amador da
várzea, de onde surgiu o meu prazer e gosto pelo futebol, porque sempre que ele
podia levava-me para assistir a seus jogos9. Na perspectiva da maioria, o negro tem
talento para ser jogador de futebol, principalmente na várzea. Em muitas
oportunidades esse jogador talentoso, na periferia, recebe a admiração de todos e
passa a ser respeitado, o que lhe confere vantagem em relação aos outros, pois é
reconhecido fazendo com que o seu status suba de forma repentina e duradora dentro
das comunidades, isso aconteceu com meu pai. Segundo Florestan Fernandes e
Roger Bastide (apud PEREIRA, 2001, p. 27):
“[...] o futebol, o rádio e agora também o teatro constituem esferas de sucesso marcante para os negros. A ideia de que os pretos são especialmente dotados para “certas coisas” está substituindo as antigas noções de que não o seriam “para nada”, ou que o seriam, mas no mau sentido, ou de que só seriam aproveitáveis no serviço doméstico”.
Minha mãe exercia a profissão de cerzideira e trabalhou nesta atividade até se
aposentar por invalidez. Ela tinha uma característica diferenciada de meu pai, pois
sempre buscou se esmerar para o seu engrandecimento intelectual, moral e cívico,
haja vista, que, em tempos em que as ótimas escolas eram destinadas aos brancos,
minha mãe se destacou estudando no Liceu de Artes Modernas onde adquiriu ofício
9 “Experiências do dia-a-dia testemunham com eloquência que na sociedade brasileira, ou em suas variantes mais urbanizadas, há pelo menos duas dimensões onde o homem de cor parece gozar de condições peculiares, diferentes daquelas comumente observadas nas demais esferas de atividades das quais participam brancos e pretos. Referimo-nos ao rádio e ao futebol” (PEREIRA, 2001, p. 26).
32
e teve a oportunidade em aprender a tocar piano. Isso, em uma sociedade em que a
figura feminina encontrava mais dificuldade do que os homens, principalmente as
mulheres negras. Para enfatizar essa afirmação, há dados que revelam seu
enquadramento profissional nessa estrutura trabalhista, onde o ritmo de
aproveitamento dos negros é bem diferente do dos brancos, não por capacitação, e
sim por produção e mão de obra consideradas de baixa qualidade, sem atentar para
a discrepância entre homens e mulheres.
Tenho um irmão com diferença de um ano a mais que eu. Ele sempre foi mais
comedido e muito mais reservado e sério. Hoje exerce a profissão de Policial Militar
em São Paulo. A família aqui apresentada mantém padrões de relações sociais
características de um grupo composto por todos os membros que compõem o modelo
de uma família ideal, no quesito organização e na sua funcionalidade. Tem como chefe
o homem, exercendo uma função patriarcalista com autoridade sobre os outros
integrantes, sendo ele o mantenedor da ordem e do progresso, para todos, em uma
sociedade onde a desigualdade social e as diferenças requerem um esforço fora do
comum para a sobrevivência física e a sobrevivência psicossocial. Para alguns grupos
étnicos, como o negro, historicamente fragilizados, um descuido do chefe pode tornar
flutuante esse esquema, com a possibilidade de desintegração do próprio grupo
familiar.
Minha mãe sempre foi a protagonista neste cenário familiar não com o intuito
de tirar a autoridade patriarcal, mas agindo de forma matrifocal.10 Segundo Hunaldo
Beiker (1972, p. 86):
“Embora suprimida economicamente, mas sobre tudo socialmente, a ter um companheiro (e estável), a mulher parecia ser, neste contexto de vida, mais necessária ao homem do que este a ela, para quem havia uma possibilidade comparativamente maior de sobrevivência independentemente do marido ou companheiro. De fato, já se viu que na luta pela existência a mulher assumia, muitas vezes, além do papel feminino, também o masculino”.
10 “Diz-se de, ou relativo a certos tipos de organização familiar caracterizados pela valorização explícita
e elaborada do papel materno, em que as relações entre mães e filhos são mais enfatizadas do que as
relações entre marido e mulher e em que a mãe tem o controle sobre os recursos econômicos e os
processos de decisão” (DICIONÁRIO INFORMAL, 2016).
33
Na família matrifocal, a figura da mãe é estável e o seu estado de equilíbrio é
externado com um poder de decisão sobre os filhos e a casa; quando não, passa a
ser em muitos casos a figura mais importante neste ciclo familiar, como foi o caso da
minha mãe na vida dos seus filhos, principalmente na minha. Para Beiker (1972, p.
86),
“Essa importância feminina na manutenção do grupo
doméstico resultava por sua vez, na proeminência dentro do quadro
familiar, surgindo a família matricial [...]”.
Particularmente digo que a minha mãe sempre foi a figura mais importante em
nossa família destacando-se como uma coluna central na construção do núcleo
familiar; nesse período era muito difícil uma mulher assumir uma casa e uma família
sem passar pelo crivo de uma sociedade androcêntrica. Embora esta família tenha
sofrido uma desintegração precoce em curto espaço de tempo, em minha opinião, tal
ruptura teve muitos resultados positivos e negativos, ao qual demonstrarei de forma
biográfica em páginas seguintes. O relato aqui descrito focalizando todas as situações
que me envolveram trouxe para mim um aprendizado, que deixou sequelas, mas que
serviu para o meu crescimento.
Começo esta narrativa dizendo não me lembrar com nitidez de como foi a minha
infância antes dos meus 5 anos de idade. Lembro-me após essa idade e devido aos
acontecimentos que começaram a deixar marcas em minha vida. Deixo claro que
essas marcas também atingiram a todos os membros da família, mas esta é a minha
história. Segundo Florestan Fernandes (2008a, p. 117),
“Enfim, os anos em que o ‘negro’ descobre, por sua conta e risco, que tudo lhe fora negado e que o homem só conquista aquilo que ele for capaz de construir, socialmente, como agente de sua própria história”.
Morávamos em uma casa de aluguel no Bairro de Vila Mazzei e foi lá que tudo
começou. As constantes brigas entre meu pai e minha mãe foram se tornando cada
vez mais complicadas. Naquela época meu pai bebia muito e a fama de mulherengo
também contribuiu para as desavenças. Minha mãe sempre foi trabalhadora, não que
meu pai não fosse, mas ela foi uma mulher de atitude e por isso não aceitava esse
tipo de comportamento. Quando comentava com ele sobre algo que deveria ter sido
34
feito, o espanto era inevitável por parte dele, pois minha mãe já o havia resolvido. Por
ter essas virtudes, nos proporcionou muitos momentos felizes, pois exercia com
exímio sua maternidade. Sempre que possível nos proporcionava lazer, levavá-nos a
passeios, viagens, restaurantes e a casa de suas amigas. Enfim, foram momentos
marcantes. Mas nem tudo na vida é um mar de rosas; quase todo fim de semana
acontecia uma briga entre meu pai e minha mãe. Essas brigas já estavam ficando
insustentáveis. Então a família da minha mãe começou a intervir no relacionamento
do casal; pergunto-me até hoje se isso foi benéfico ou maléfico.
No entanto, com as duas últimas brigas antes da separação sofri um impacto
muito grande, porque nessa intercorrência participei de forma significativa. No
momento da penúltima briga, minha mãe pegou um ferro de passar roupa para lançar
contra meu pai e tive de intervir para não acontecer uma tragédia.
A última desavença acabou culminando na separação do casal. Por ter sido a
derradeira, afetou-me de tal forma que, quando falo da minha infância, esse episódio
me vem à memória pois tive de tentar separar os dois em uma briga na qual eles
chegaram às vias de fato. No auge da briga, minha mãe me pediu ajuda e solicitou
que eu chamasse a polícia. Isso me deixou dividido, pois para um menino de apenas
6 anos ter de chamar a polícia para levar o pai, que sempre foi presente e sob o ponto
de vista dessa criança era bom e o herói para mim e para meu irmão. A prova desse
bom relacionamento é mantida para ambas as partes até hoje. A solicitação da minha
mãe em chamar a polícia me fez sentir um traidor, tanto que não o fiz. Minha mãe
pediu socorro, mas ninguém veio a seu auxilio, no entanto, avisaram os nossos
familiares maternos, e com isso deu-se início ao momento mais ambíguo para todos
até os dias de hoje. Com a chegada dos meus tios a nossa residência, depois que os
meus pais pararam de brigar, houve por iniciativa deles em relação a meus pais. Em
outras palavras, foi decidido que a situação era insustentável e que teriam de se
separar. A decisão foi imediatista e a mudança de moradia, inevitável, ou seja, minha
mãe, meu irmão e eu fomos morar com meus tios e avós, deixando para trás o meu
pai e sua casa.
Essa ação desenvolvida por nossos parentes, com o intuito de fazer o melhor
para as partes, colocou em muitos momentos da minha vida um questionamento.
Quando reflito sobre o assunto de forma madura, na maioria das vezes chego a pensar
35
que os parentes agiram como se fossem o Juiz de Paz, tomando uma decisão que
não caberia a eles, e sim aos meus pais. Meus parentes sempre usaram como
parâmetro o fato de ocuparem posições sociais de grande relevância na sociedade,
comparando-se às famílias negras.
Meu avô aposentou-se após trabalhar nas Lojas Pernambucanas. Minhas tias
mais velhas eram funcionárias públicas, sendo uma delas Investigadora de Polícia do
Estado de São Paulo. Outras tias, irmãs gêmeas eram costureiras profissionais de
grandes marcas. A tia, que me tem como filho, é Oficial de Justiça na Vara da Família
também em São Paulo. Continuando a árvore genealógica, meu tio Augusto é
advogado e funcionário público da Prefeitura, outro tio é músico e compositor de
Escola de Samba, e, por último, porém, não menos importante, temos uma tia que
trabalhava em uma fábrica.
Enfim, fomos levados da nossa casa e passamos a morar em um quartinho no
fundo da casa dos meus avós. Passados alguns dias, meu pai se mudou para a casa
de seus parentes, vizinhos da nossa casa. Porém, meu pai nunca aceitou a forma de
como eles se separaram, devido à intervenção dos meus tios. Tenho para mim que
os dois sempre gostaram um do outro, apesar das desavenças. Depois da turbulência
da separação e com a situação relativamente ajeitada, passamos a conviver eu, meu
irmão e minha mãe de forma harmoniosa, em plena cumplicidade.
Por meus tios serem solteiros na época, sempre fomos os sobrinhos queridos.
Meu avô sempre comedido em tudo que fazia e em sua postura de patriarca da família,
sempre me chamava à atenção e dizia que eu era encrenqueiro e que vivia arrumando
confusão. Às vezes até penso que ele via em mim a figura do meu pai. Em muitos
momentos, chego a pensar que todas as minhas ações positivas e principalmente as
negativas tiveram início com a desestruturação familiar, como as constantes brigas
entre mim e meu irmão, fazendo com que cada um de nós reagisse de forma diferente
com a situação estabelecida. Acredito que minha indignação diante dos fatos me levou
a essa rebeldia em que muitas vezes me fez bater à porta da delinquência.11 Eis aqui
11 “2 em cada 3 menores infratores não tem o pai dentro de casa. Família e escola são principais freios à entrada de jovens no crime, afirma promotor de São Paulo. Especialistas ouvidos pela Folha afirmam que a derrocada da vida de um adolescente, a ponto de levá-lo para o crime, começa quando, ainda criança, ele perde os vínculos positivos e passa a sofrer privação emocional” (FOLHA DE S.PAULO, 2016, p. B8).
36
um depoimento que, penso, ilustra o meu comportamento (FOLHA DE S.PAULO,
2016, p. B8):
“Cansado de ver a mãe agredida pelo padrasto, o estudante Filiphe Gomes, aos 12 anos, decidiu enfrentar um adulto violento. Puxou uma faca e disse que não aceitaria mais aquilo. A tragédia de Filiphe foi ver a mãe tomar o lado do marido. Foi o impulso que faltava para que fosse morar na rua, debaixo do viaduto do Chá, no centro da capital paulista. Não demorou para ganhar más companhias e, na sequência, um novo abrigo: a Fundação Casa, após um assalto a mão armada”.
Acredito que minha incompreensão em forma de rebeldia decorria da distância
e da falta de oportunidade em poder conversar com meu pai, em poder dizer o que
pensava dele, e também por ser um garoto levado e que brigava muito com meu
irmão. Minha vida era dificultada por alguns agravantes causados por minhas
características de respondão, briguento, intolerante, malcriado, porém sempre
respeitando os mais velhos.
A relação que eu mantinha com minha avó materna, tias e tios não era
diferente, pois implicavam comigo, e todas as vezes em que eu brigava com meu
irmão sempre me culpavam. Entre brigas de irmãos não importa a diferença de idade,
o mais novo sempre vai ficar em desvantagem. E como nunca gostei de levar
desvantagem, certa vez, posso dizer que foi a última briga com meu irmão, tomei
posse de uma pedra escolhendo a maior que avistara e um garfo de cozinha. Quando
ele viu esses dois apetrechos, saiu em disparada descendo as escadas e ganhando
a rua numa velocidade que eu não consegui alcançá-lo. Depois que passou a ira,
ambos voltamos para casa. Ele bem depois de mim, cada um vindo de um lugar
diferente. Ao chegarmos, minha avó colocou as suas mãos, uma em cada cabeça,
tentando nos mostrar que éramos irmãos e nada poderia nos separar e que essas
brigas eram em vão.
Hoje percebo o quanto herdei dos meus pais. Achava-me mais parecido com
meu pai, mas no decorrer da vida, conhecendo melhor minha mãe e em função de
meu aperfeiçoamento intelectual, adquirido ao longo da vida, me vejo nela.
Reforçando essa percepção, recordo-me de uma frase em que minha mãe disse, que
procuro colocá-la em prática no meu dia a dia: “Eliseu, em tudo você tem que usar a
37
cabeça, trabalhe com a cabeça e serás bem-sucedido”. Essa frase ecoa muito mais
hoje do que em outras épocas, não que não fizesse uso de tal ensinamento, pelo
contrário, o meu atual momento e o conhecimento da vida e as dificuldades
encontradas, requerem muito mais tempo de reflexão; anteriormente não possuía
entendimento suficiente nem estudo esclarecedor para o processo de socialização
atribuído à falta de entendimento.
Por meio do ensinamento de sabedoria da minha mãe, enlaço o momento em
que uma nova fase da minha vida começou a ter outro sentido, embora tivéssemos
uma vida de tranquilidade após a separação, muitos aspectos sociais nos afligiam.
Como, por exemplo, a saída da pré-escola na Igreja Católica e o começo do primário,
hoje Ensino Fundamental I, na Escola Pedro Alexandrino. Muitas coisas aconteceram
e à medida que os dias passavam me defrontava com a formação da minha
identidade, mesmo que ingenuamente. Logo comecei a sentir falta da Irmã Margarida
que atuava na pré-escola da Igreja Católica, com seu carinho e atenção dispensada
para comigo. Isso foi detectado em muitos aspectos, pois, quando teve a primeira
reunião de pais e mestre do Primário, deu-se início a um momento marcante que hoje
entendo: filhos de pais separados ou aqueles que não os têm começam a viver uma
crise de identidade a partir de uma série de reuniões.
A situação incômoda se configura quando a criança se depara com os pais
participando da reunião e no momento em que a professora faz uma pergunta que vai
marcar a vida das crianças pela vida inteira: “Cadê o seu pai? Por que não veio à
reunião? Você tem mãe e pai?”.
Essa situação não afetou o meu convívio na escola, sempre fui bem-sucedido
por nunca haver repetido de ano, por que era esforçado dentro da sala de aula e
sempre tive um bom relacionamento com os professores. Embora fosse muito
bagunceiro, não no sentido literal da palavra, por ser esforçado e sempre dedicado à
escola, minhas bagunças passavam despercebidas, e como era algo em que todo o
mundo dava risada, inclusive os professores, sempre ganhei a simpatia de todos. Era
briguento quando deveria ser, estudava quando deveria estudar e fazia traquinagem
quando podia. Talvez o meu carisma agradasse a todos.
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Lembro-me de que quando passei a frequentar o ginásio, hoje Ensino
Fundamental II, o inglês fora incluído na grade escolar. Nessa aula, o professor
escolhia um aluno para falar na frente da sala; quando eu era o escolhido, todos,
inclusive o professor, já sabiam que a aula seria divertida, pois nunca tive interesse
pela matéria. Ao falar na frente, só enrolava, dizendo palavras que não faziam o menor
sentido e ainda trocava as pronúncias de tal modo que a turma caía na gargalhada,
algo muito divertido para uma aula de inglês.
Nas outras disciplinas, sempre me destaquei, mas havia algo que não gostava
de fazer: os tais trabalhos em grupo e mesmo os individuais, admito, não os fazia.
Recordo-me de que todas as vezes em que os professores formavam grupos de
trabalho, eu sempre fazia parte do das meninas e, como me valia da condição de
sobressair nas disciplinas estudadas, sempre era solicitado pelos professores para
ajudar aqueles que tinham dificuldades, principalmente em matemática e nas matérias
relacionadas à história, geografia, educação moral e cívica, educação artística. Na
disciplina de português sempre passava raspando, então não havia como ajudar meus
colegas. Em troca do meu auxilio, não fazia os trabalhos em grupo, tinha sempre uma
insignificante contribuição, mas nada muito expressivo.
Hoje entendo que poderia ter contribuído muito mais do que contribuí, vejo que
me aproveitava da situação, mas foi assim que agi naquela época sem nenhum
remorso nem consciência pesada, pois os professores, penso eu, sabiam, mas não
falavam nada. Minha convivência no período escolar sempre foi de ótimo
relacionamento com todos, desde as “tias da limpeza” até o diretor. Nunca recebi
nenhum tipo de advertência. Os inspetores me tratavam bem, porém, nas aulas vagas
íamos jogar bola nas quadras poliesportivas. Como nunca gostei de levar desaforo
para casa, sempre me envolvia em brigas, mas por desfrutar da simpatia de quase
todos, os inspetores me chamavam à parte e diziam: “De novo Eliseu, você não tem
jeito vai pra sala antes de ter de levá-lo à Diretoria”. Como gostava de jogar bola, era
essencial para os times, principalmente nos campeonatos internos onde as brigas
eram resolvidas de forma tranquila.
Certa vez, não me lembro em qual série do colégio, algo inusitado aconteceu.
Houve uma gincana promovida pela escola para todas as classes de uma determinada
série, e a classe que conseguisse o maior número de prendas iria ganhar um passeio
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até o Sesc Itaquera. Como eu era um jovem sempre extrovertido, logo os colegas de
sala me colocaram como líder do grupo, daí começou meu esforço em levar todos
para o Sesc. Nossa campanha começou um pouco tímida, sem muitas prendas,
assim, tive a Ideia de começar a pedir prenda nas casas. Como os produtos
arrecadados não tinham tamanho nem peso especificados, todos os artigos fechados
valiam para contar pontos, desde um pacote de fósforo até uma caixa de pasta de
dente. Havia em nossa sala um aluno cujos parentes trabalhavam em confecção que
nos ajudou bastante trazendo várias peças de meias. Com isso, o grupo ficou bastante
fortalecido e entusiasmado. E como nosso esforço em pedir nas casas estava indo
bem, mas não o suficiente para alcançarmos duas salas que se destacavam, arquitetei
algo que deu resultado naquele momento: o de passar no supermercado antes de ir
para a escola e lá pegar prendas de pequeno volume. Admito, hoje, que tudo o que
fiz com a ajuda de um colega de classe era pura traquinagem. Às vezes comprava
dois pacotes de dropes, um pra mim e outro pra levar para a gincana. Quando
começamos a ver os resultados, ficamos cada vez mais entusiasmados e passando a
acreditar que conseguiríamos vencer. Ao final, vimos que a nossa classe havia
vencido e que iríamos para o Sesc, a euforia tomou conta de todo o grupo.
Hoje não me orgulho do que fiz, pois me trouxe algumas consequências; uma
delas foi acreditar que, mesmo sendo um garoto que ainda não tem consciência do
que é certo e errado e costuma agir por impulso, sem a noção do malefício que
algumas atitudes podem trazer, nada é resolvido de forma fácil e sem o menor esforço.
Quem está envolvido em uma tarefa, tem de agir com honestidade sempre, falo isso
por causa do que fiz depois do episódio do supermercado. Dias depois da nossa ida
ao Sesc, e ainda desfrutando da ótima reputação recebida de forma desonesta, cometi
algo que deixou minha mãe muito chateada, fazendo com que tomasse uma atitude
comigo que mudaria toda a minha vida, em que eu aprenderia a ser um homem com
caráter e a desenvolver a virtude de ser honesto por obrigação. Conforme Roberto da
Matta (apud GENNEP, 1978, p. 11):
“Falando em iniciação, aliás, não se pode deixar de notar a profunda
observação de Van Gennep que a iniciação dos jovens tende a
adquirir, em muitas sociedades, uma espécie de autonomia, com uma
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recriação de formas alternativas de vida social, fundadas em princípios
diversos daqueles que vigoram no mundo diário”.
Afinal, certo ou errado, eu estava trilhando o caminho da iniciação. Como a
traquinagem no supermercado havia dado certo e sem consequências, certo dia eu
estava com vontade de comprar algumas coisas para mim, como doces, bolachas e
chocolates, mas não tinha o dinheiro para tanto. Então entrei na casa da minha avó e
me dirigi ao quarto da minha tia, quando percebi que a sua bolsa estava sobre a cama
e não havia ninguém no quarto, cometi outro erro: abri a bolsa da minha tia e me
apoderei do dinheiro que ali estava. Comprei muita besteira e, no dia seguinte com o
que sobrou, tomei sorvete e mais algumas coisas, enfim fiz a maior festa. Quando
cheguei em casa à tarde, o burburinho já estava formado. Minha tia deu falta do
dinheiro, e todos queriam saber quem havia pego, apesar da desconfiança cair logo
sobre mim, por vários motivos. Minha mãe, já sabedora do filho que tinha, veio falar
comigo e, como nessa idade temos a tendência de negar tudo, ela não proferiu
nenhuma palavra depois que falei que não tinha sido eu. Disse-me apenas que eu
trocasse de roupa, pois iríamos sair, e isso já era quase 11 horas da noite. Ela me
pegou pelo braço e saímos de casa. Como minha mãe não falava nada, fiquei
assustado, muito mais quando saímos da Vila Mazzei e começamos a ir em direção
ao Jardim Tremembé, e fiquei apavorado, pois, do Jardim Tremembé, entramos nas
Palmas do Tremembé e aquela região à noite, no meio da semana, é um breu só.
Naquela época não havia moradias como nos dias de hoje, era um deserto sem a
presença de transeuntes. Depois de todo o temor que passei, o que já valeria como
uma boa lição, chegamos a 20ª Delegacia no Bairro da Água Fria. Mal acabamos de
entrar na delegacia, surgiu um homem forte com barba por fazer e com cara de bravo
perguntando o que aconteceu. Minha mãe começou a relatar o que eu fiz, e o
investigador, sem ao menos perguntar para mim o que eu havia feito, disse as
seguintes palavras: “Deixe-o aqui que logo cedo o encaminharemos para a Febem
(Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor).”. Se eu já estava apavorado, depois
das palavras do investigador entrei em desespero. Mas minha mãe, desfrutando da
sua sabedoria e sendo conhecedora do seu próprio filho, disse ao investigador: “Pode
deixar que eu vou levar meu filho de volta para casa”.
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Fizemos o mesmo caminho de volta, porém, estava mais aliviado ao saber que
não iria ser preso. Naquele momento, o caminho de volta já não tinha o mesmo efeito
do de ida, pois, o susto na delegacia foi maior. Essa foi uma lição que aprendi e que
não deixo de falar para os meus filhos; minha mãe foi sábia, e a mulher sábia edifica
o seu lar. Devido à sua atitude, nunca mais pratiquei qualquer delito por menor que
fosse, e sempre que posso falo desse episódio como uma experiência que vivi e contei
com o ensinamento da minha querida mãe. Fui perdoado pelas minhas tias e hoje sou
motivo de orgulho para todos, pelo menos é o que eles dizem.
Porém, nem tudo foi um desastre nesse período escolar. Depois de ser
reconhecido como “herói” e pelo apoio que dava aos colegas de sala ajudando nos
exercícios escolar, comecei a me tornar popular. Como sempre fui tímido para arranjar
namorada, tudo isso facilitou minha vida com as meninas. Logo comecei a namorar
aquela que mais necessitava de ajuda e que sempre manifestava para as outras que
deveriam colocar meu nome nos trabalhos escolares. Por incrível que pareça, essa
menina com quem comecei a namorar hoje é a minha esposa com a qual tenho quatro
filhos. Falaremos desse assunto mais adiante em momento oportuno.
As coisas caminhavam muito bem na escola. Na rua me chamavam de
“pompom beiço, beiço” por causa dos meus lábios serem um pouco, ou melhor
dizendo, bastante avantajados. Rapidamente essa alcunha se popularizou e às vezes
me chamavam de “beiçola”. Isso me incomodava no começo. Vale lembrar que todo
apelido só pega quando você não gosta, esses pegaram e vieram para ficar, devido
ao tamanho do beiço e porque é uma das características da raça negra.
Por eu ter um espírito de luta muito grande e por me considerar um guerreiro,
no sentido de “correr atrás”, como dizíamos em nosso meio, comecei a trabalhar muito
cedo. A partir dos 10 (dez) anos de idade ia a uma feira livre, localizada à Rua Manoel
Gaia, todas as quintas-feiras e fazia o que chamávamos de “carreto de mão”, usando
aqueles carrinhos de dois braços de madeira com quatro rolimãs. O carreto de mão
era mais prático, pois conseguia fazer o serviço com mais agilidade. As senhoras de
idade sempre levavam seus próprios carrinhos de feira, mas o bairro tinha bastante
subida, inclusive na rua em que morávamos. Assim, sempre ficava à espera delas,
por voltarem totalmente fatigadas. No começo foi complicado fazer a freguesia, mas
depois quase não dava conta de levar todas as clientes que, na sua maioria, moravam
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na mesma rua em que morávamos. Quando não era dia de feira livre, aquelas
senhoras sempre me ofereciam trabalho em suas casas, como para carregar areia e
pedra tirando de suas calçadas e colocando para dentro de suas casas. Ali eu tomava
café e ainda ganhava uns trocados. Por sempre estar em atividade ganhando dinheiro,
sempre colaborava com as despesas do lar comprando minhas coisas e coisas para
casa. Essa atividade me rendia uns trocados para poder comprar as minhas coisas,
pois sempre gostei de ter condições de comer e beber o que desejasse e vestir o que
queria.
Houve um episódio inusitado que marcou minha vida de forma significativa. Tal
fato contribuiu e muito para a formação do meu caráter como homem, que lutou muito
para alcançar seus objetivos, incluindo até mesmo a luta, com responsabilidade, pela
sobrevivência familiar, mesmo com pouca idade. Tudo aconteceu quando arrumei um
trabalho num mercadinho localizado na Avenida Coronel Cezefredo Fagundes, no
bairro do Jardim Tremembé, na periferia da zona norte da cidade. Comecei a
desenvolver o que posso chamar de “maturidade precoce”. No início fui empacotador.
Mal havia completado um mês de trabalho e logo o dono me colocou para fazer
entregas. Foi nessa fase que o gerente do supermercado avisou-me que o pagamento
iria ser feito dois dias antes de completar o mês e isso me deixou muito contente, pois
era o meu primeiro pagamento completo na minha vida de trabalhador mirim. Tomado
por uma ansiedade a qual não consegui mensurar, fiz tantos planos para quando
recebesse o dinheiro que até pensei que aquele salário iria comprar um caminhão de
mercadorias. Enfim, e pensava em comprar muito mais coisas que imaginava.
Quando me chamaram para receber o ordenado, logo disse de uma forma tão
espontânea que “com o dinheiro que eu vou receber eu quero levar arroz, feijão, óleo
e mistura”. O dono do supermercado ficou perplexo e me respondeu que eu haveria
de levar o que pedi e ainda sobraria dinheiro. A minha atitude, como costumávamos
dizer em nosso meio “moleque de atitude”, foi vista por todos ali naquele
supermercado como uma atuação digna e louvável para um garoto de pouca idade.
Isso fez com que eu incorporasse tal postura em meu coração e faço questão de falar
sobre o assunto com os meus filhos com muito orgulho.
Depois da minha saída do mercadinho, ingressei na Guarda Mirim de
Guarulhos e lá aprendi muitas coisas. Um dos pontos mais importantes que me
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marcou foi o aprendizado da disciplina enfatizada pelo Major Dantas. Muito exigente,
ele fazia com que entrássemos em forma todas as manhãs. Os mais antigos tinham a
incumbência de passar a revista no grupo, a fim de verificar a farda, os sapatos, que
deveriam estar engraxados e brilhando, os cabelos cortados em estilo militar. Era
como se estivéssemos em um quartel. Os antigos, como chamávamos os mais velhos
do grupo, sempre tratavam os novatos com respeito. Havia nessa época um rapaz
experiente chamado Maicon. Ele era benquisto por todos, sempre alegre e sorridente,
todavia o que mais me chamava a atenção no Maicon era a sua alta estatura, um
negro de pele muito escura, com uma humildade que contagiava todos. O que mais
eu gostava era da sua proteção e seu cuidado para comigo e isso começava a se
estender para os mais antigos; desse modo conquistei a simpatia de todos até mesmo
do Major Dantas.
Muitos na Guarda eram filhos de mãe solteira, alguns garotos egressos de
orfanatos, filhos de pais separados e na sua maioria meninos e meninas de baixa
renda. Todas as manhãs tomávamos café, almoçávamos e depois éramos
dispensados. Devido à Guarda nos sublocarmos no mercado de trabalho, sempre os
mais antigos conseguiam colocação primeiro. O Maicon, a exemplo desse formato,
trabalhava na Olivetti (fábrica de diversos produtos, dentre eles máquina de escrever),
alguns na Pirelli (fábrica de pneus) e outros, em empresas de grande porte na região
de Guarulhos. Passado algum tempo, comecei a trabalhar como estoquista em uma
grande loja no centro de Guarulhos que se chamava Comercial Mesquita. Pelo fato
de trabalharmos, não íamos todos os dias para o “quartel”. Eu saia da Vila Mazzei e
me dirigia ao centro de Guarulhos para trabalhar com uma satisfação enorme, algo
que descrevo nos dias de hoje como um “jovem entusiasmado”, do grego en+theos,
tamanha era a minha felicidade. Mesmo sendo um garoto, era muito responsável, não
chegava atrasado e tão pouco perdia o dia de trabalho. E, do mesmo modo como
aconteceu na Guarda, também desfrutava da simpatia de todos na loja, inclusive do
dono do estabelecimento.
Nesse início de trajetória como trabalhador, a minha família se sentia muito
orgulhosa de mim. Embora meu irmão fosse mais velho, apenas por um ano, ele
começou a trabalhar bem depois de mim. Pelo motivo de eu ser mais “atirado”, como
era chamado, e sempre tomar a iniciativa em tudo com relação a meu irmão, criou-se
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uma dependência dele para comigo. Meu irmão tinha uma natureza mais reservada e
até se comunicava pouco, assim, minhas tias e tios sempre me levavam a vários
lugares e ele sempre ficava em casa, porém, estivemos em muitos eventos juntos.
Dentre esses momentos juntos, há alguns que não esquecemos e outros que fazemos
questão de não trazer à memória, algo a ser narrado posteriormente em ocasião
oportuna.
2.2 A Doença de Minha Mãe e as Consequências na Minha Vida
Com o advento da separação entre os meus pais, no início parecia que minha
mãe estava suportando tudo aquilo com muita força, haja vista que sempre foi uma
guerreira, mulher de fibra, trabalhadora, determinada e decidida em todas as suas
ações, e se não bastasse, era muito inteligente e vivia dizendo que eu deveria “agir
com a cabeça”. Hoje vejo que todas essas virtudes do ser humano, percebidas em
minha mãe, quando externadas, sempre transmitem às pessoas que somos quase
perfeitos. Causando admiração, acabamos por ser um exemplo a ser seguido e, com
isto, deixamos a impressão de que somos pessoas que não se abalam contra esta
guerra externa, travada pelo próprio ser humano. Contudo somos todos dotados de
aspectos emocionais que nos causam um conflito interno, que independe da nossa
vontade.12
Para que se possa entender o que acabei de escrever tenho que falar de um
período da minha vida que não será muito fácil de relatar assim como outros que estão
12 “A composição estrutural da ‘família negra’ também contribuía para precipitar e manter certas
anomalias. As interferências sócio-páticas mais frequentes se associavam ao empobrecimento
permanente do núcleo da família. A ausência do ‘pai’ não só impedia o funcionamento normal da
instituição, privada dos papeis masculinos do ‘marido (ou ‘companheiro’, ‘amásio’ etc.), do ‘pai’ e do
‘chefe da casa’; ela prejudicava, irremediavelmente, o equilíbrio básico [...]” (FERNANDES, 2008b, p.
248).
45
por ser relatados, mas este foi como se não houvesse o amanhã, porque sempre
tivemos nossa mãe por perto. Ela nos transmitia segurança, era quem organizava tudo
em nossa humilde casa, pela sua valorização explicita e elaborada ao papel materno,
ela tinha o controle sobre os recursos econômicos, sobre os processos de decisão e
sobre a nossa vida social e até mesmo intelectual, mas ela não teve como ter domínio
sobre seu estado psicológico naquele instante.
Quando pensávamos que tudo estava de acordo com as nossas vidas, minha
mãe começou a ter problemas no trabalho, ocasionados pelo seu estado de saúde.
Tudo indica que, teve sua saúde prejudicada em virtude da separação. Por sempre se
mostrar forte, ninguém imaginava o que estaria porvir. Ela passou a ter atitudes
estranhas como não ir trabalhar e começar a tomar remédios descontroladamente.
Isso a deixava perturbada. Logo em seguida, começou a se ausentar de casa e, por
morarmos em um quartinho separado da casa da nossa avó, um dia estávamos em
casa e minha mãe não chegava. Passamos a nos preocupar de tal forma que não
sabíamos o que fazer. Dirigimo-nos até a casa da minha avó e comuniquei o sumiço
da minha mãe às minhas tias. Elas se mobilizaram a procurá-la junto conosco e depois
de uma busca exaustiva, fomos encontrá-la em uma casa de repouso no Jaçanã.
Descobrimos pelo relato das atendentes da casa de repouso que ela havia sido
encontrada na rua totalmente perturbada; levaram-na ao Hospital do Mandaqui e
depois de passar pelo psiquiatra foi encaminhada à casa de repouso.
Devido a nossa pouca idade, não podíamos visitá-la. Isso só era permitido em
data especial, assim ficamos sem vê-la por uns três meses. Fiquei muito triste com a
situação em que minha mãe se encontrava, principalmente por saber que ela não
estava por perto e teríamos de ficar sobre os cuidados das minhas tias, tios e dos
avôs. Isso me incomodava e comecei a frequentar a rua onde ficava boa parte do dia.
Havia em nosso bairro uma casa de fliperama; passei a frequentá-la quase todos os
dias quando saía da escola. Em um desses dias arrumei uma briga e tomei um tapa
de um rapaz que frequentava o local. Como ele era mais velho do que eu, saí em
desvantagem e, desse modo, os dias foram se passando.
Quando minha mãe saiu da casa de repouso ela se aposentou por invalidez e
deixou de trabalhar. Nossa situação financeira já não era como antes; naquela época
a questão de pensão alimentícia não era tão delineada; meu pai fazia uma compra de
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vez em quando. Eu sempre fazia algum tipo de trabalho e ajudava nas despesas de
casa, ao contrário do meu irmão, que só começou a trabalhar em torno dos 16 anos.
Esses momentos de separação da minha mãe me trouxeram algumas marcas
que sempre serão lembradas como acontecimentos que proporcionaram crescimento
pessoal que aprimorou minha maturidade. Isso ficou claro, principalmente quando foi
internada pela segunda vez às vésperas do Natal. Ela havia desaparecido, porém,
dessa vez não apresentara os mesmos sintomas de antes. Isso dificultou minha
percepção e sensibilidade para detectar o que estava acontecendo. Além do mais,
tínhamos um motivo para não perceber, estávamos tão empolgados com a chegada
do Natal e preocupados com os presentes que iríamos receber, algo muito comum
para a nossa idade.
Dia 23 de dezembro, à noite. Minha mãe não apareceu em casa; atribuí a
ausência a seu hábito de não conseguir ficar dentro de casa, sempre arrumando algo
para fazer, hábito que herdei dela. Ao anoitecer, e já preocupados, meu irmão e eu,
que já estávamos deitados no quartinho, não falávamos nada um com o outro. Ele não
sabia o que eu estava pensando nem eu sabia o que se passava em seu pensamento.
Ali, deitados em nosso beliche ficamos a noite quase toda em claro. Ao amanhecer,
pulei da cama e comecei minha peregrinação em busca de notícias da minha querida
mãe. Comecei pelo Hospital do Mandaqui, foi desgastante, pois tive de ir a pé da Vila
Mazzei até lá e depois voltar à Santa Casa do Jaçanã.
Minhas buscas foram infrutíferas; voltei para casa com uma enorme tristeza no
coração. Como era véspera de Natal, meu irmão e eu nos isolamos em nosso
quartinho e ficamos quietos, cada um em sua cama, sem falar nada um com o outro.
Tínhamos muitos colegas em comum e eles foram até a nossa casa para saber se
iríamos sair. Era costume nos juntarmos e passarmos nas casas para comer e beber,
mas essa noite foi diferente. Com a aproximação da meia-noite e os fogos de artifícios
começando a ecoar em nossos ouvidos, fiquei consternado diante da situação, não
pelo Natal em si, mas por não ter encontrado minha mãe e perceber que naquela
situação o que é alegria para uns é tristeza para outros.
Passada a noite nebulosa, embora fosse um dia de festa, recebemos a notícia
de que ela estava internada no Mandaqui. Foram mais dois meses de ausência
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daquela que sempre representou a matrifocalidade em casa. E com isso, a minha
presença em algumas rodas de rapazes que se envolviam no crime passou a ser mais
frequente. As experiências obtidas começaram muito cedo, principalmente pela minha
característica de estar sempre envolvido com pessoas mais velhas do que eu. Isso
acontecia não porque me achava superior aos meus colegas da mesma faixa etária,
mas sim por ter aprendido coisas que eles não aprenderam.
Em todo lugar que chegava, sempre ganhava a simpatia do pessoal, mas como
em nossa vida nem tudo nos favorece, lembro-me de que devido à internação da
minha mãe e por passar boa parte do dia na rua, comecei a frequentar um bar que
ficava próximo a minha casa, onde havia uma mesa de sinuca. Lá eu observava os
rapazes jogando, mas na verdade eram os meus primos que gostavam de ir àquele
local. Em certo dia encostei-me à mesa de bilhar e atrapalhei a jogada do Zé Porco.
Ele pegou o cigarro que estava fumando e o encostou bem próximo do meu olho, por
pouco não o queimou, o que poderia ter me deixado cego.
Zé Porco era uns três anos mais velho do que eu, e tinha a fama de malandrinho,
com várias passagens pela antiga Febem. Quando cheguei em casa e as minhas tias
viram aquilo, no mesmo instante uma delas, chamada Vilma, me pegou pelos braços
e fomos até o bar. Lá, ela foi tirar satisfação com o Zé Porco. Disse-lhe que eu tinha
família e não era moleque de rua, acrescentando que, se alguma coisa acontecesse
comigo, ela voltaria para falar com ele. Depois de tal episódio, esse tal de Zé Porco
“ficou na bronca”, mas nunca mais mexeu comigo. Porém, a advertência da minha tia
foi dura: “Você só fica na rua aprontando, cuidado para não morrer na mão de
malandro, porque você é briguento e debochado”. Esse tipo de situação só foi
aumentando, conforme os dias passavam, as brigas nas ruas ficavam mais frequentes
e intensas. Nesse período tínhamos uma roda de amigos, que nos conhecíamos
desde pequeno: o Ticão, o Marião, o Nego Abelha, o Robson, o meu irmão David, o
Negão e o Pariga. Depois foram aparecendo mais alguns que daria uma lista enorme.
O interessante é que briguei com todos eles. Nas brigas de rua em que me
envolvia, meu irmão, quando estava presente, nunca participou, nem mesmo se eu
estivesse apanhando. Nessa época eu e o Negão começamos a frequentar alguns
bailes. Apesar de ser o mais novo da turma, quando meus amigos pensavam em ir
para o baile, eu já estava cansado de frequentar esses bailes, por isso me
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respeitavam. O motivo disso é quase óbvio: eu já havia desbravado os lugares que
eles temiam ir, pois eram ambientes que não tinham boa fama para ser frequentado e
onde a entrada só era permitida a partir dos 18 anos.
O salão de baile ficava próximo à estação do Metrô Santana, na zona norte de
São Paulo, e era chamado de Zimbabwe que significa “Casa de Pedra”. Havia uma
pergunta que todos da turma se faziam: como entrávamos se éramos todos menores
de idade. Informei-lhes que naquele baile, que muitos malandros frequentavam, havia
uma moça que se chamava Doraci, negra, alta, forte e de cabelo black power13.
Tínhamo-nos conhecido no baile do Rosa Baiana e já havíamos caído em sua graça.
Ao ver-nos no Zimbabwe, disse que era para esperarmos que assim que desse uma
brecha iria nos colocar para dentro.
Todos esses termos e palavras que podem não ser intelectualmente sofisticado
se fazem necessário por se tratar de um vocabulário coloquial. Foi o que aconteceu
sempre quando estávamos dentro do salão, ficávamos andando quase sempre e nos
deparávamos com alguns conhecidos do nosso bairro.14 Nessas ocasiões, éramos
acolhidos por eles com certo interesse, por serem considerados os maiorais,
exploravam a nossa cordialidade e nos convenciam a ir até o bar comprar bebida
alcoólica para eles. Compensava-nos com dinheiro para que comprássemos
refrigerante. Algo que nunca acontecia. Juntávamos o dinheiro do refrigerante e
13 O cabelo black power é um dos principais símbolos deste movimento cultural que começou a ganhar
destaque nos anos 1960 e 1970, principalmente nos Estados Unidos. A ideia era desconstruir a imagem
do padrão de beleza eurocêntrico e promover a fortificação da identidade e raízes africanas da
população negra estadunidense. Para isso, homens e mulheres de etnia negra começaram a abdicar
das populares técnicas de alisamento capilar e passaram a usar os seus cabelos ao natural, estilo este
que ganhou o nome de cabelo black power, pois era usado pelos ativistas deste movimento na tentativa
de valorizar a estética negra (o “poder negro”). Atualmente, o cabelo black power é bastante popular,
passando inclusive a ser apropriado por outras culturas. No entanto, é importante lembrar que o uso
deste penteado representa muito mais do que uma tendência de moda, mas sim um poderoso símbolo
de empoderamento que representa a luta contra o preconceito racial. 14 “Toda sociedade geral pode ser considerada como uma espécie de casa dividida em quartos e
corredores, com paredes tanto menos espessas e portas de comunicação tanto mais largas e menos fechadas quanto mais esta sociedade se aproxima das nossas pela forma de sua civilização. Todo indivíduo ou grupo que por seu nascimento ou qualidades especiais adquiridas não tem direito imediato de entrar numa casa determinada desta espécie e instalar-se em uma destas subdivisões encontram-se assim em um estado de isolamento, que toma duas formas, encontradas separadamente ou combinadas. São fracos por estarem fora desta sociedade especial ou geral; são fortes por estarem no mundo sagrado uma vez que esta sociedade constitui para seus membros o mundo profano” (GENNEP, 1978, p. 41).
49
aproveitávamos para comprar uma bebida para nós e ainda dávamos uma “bicadinha”
na bebida.
Tudo isso era possível porque, como bons malandros que eram e
frequentadores assíduos do baile, demonstravam simpatia por mim, haja vista que a
situação da “bicadinha” sempre passava despercebida. Os “cadeieros” eram os que
mais implicavam conosco dizendo para a gente ir devagar. Todos tinham um apelido,
o Mugão, o Quinquin, o Maninho, o meu primo Nandão e o mais temido daquela
“banca”, o Palitó.
Ao chegarmos à nossa “quebrada” o comentário era geral, pois expúnhamos
aos nossos “colegas” as façanhas cometidas “naquela noite”. Logo, começamos a
frequentar outros bailes em outras regiões. Quando ouvíamos falar que em tal lugar
havia baile e que estavam “cheios de minas”, todos nos mobilizávamos para poder ir.
Como eu e o Negão já tínhamos “mais experiência” do que os demais, eu sempre
liderava a nossa caravana. Eu era tão ousado que a partir do momento que um novo
integrante chegava era podado por mim para não ir ao baile conosco.
Eles ficavam com tanta raiva de mim que parecia que eu era o chefe do bando,
algo que até hoje quando nos encontramos comentam, porém, a minha alegação era
de que se houvesse alguma “treta vocês não iriam segurar”. Ficávamos ansiosos para
que o domingo chegasse logo. Quando chegava o tão esperado dia saíamos depois
do almoço e íamos para o Asa Branca de Pinheiros. Era um baile que chamávamos
de matinê, frequentado por rapazes negros com raras exceções.
Aquele baile era um dos melhores. Quando terminava era uma loucura, pois
quase todos os frequentadores praticamente pegavam o mesmo ônibus em direção à
Barra Funda. Até conseguirmos, tínhamos de andar uns cinco pontos antes para
poder embarcar. Quando isso acontecia, tínhamos uma certeza: a polícia sempre
parava os ônibus devido à bagunça que se instalava dentro do coletivo, pois alguns
passavam por debaixo da catraca, outros a pulavam e assim por diante. Quando o
coletivo passava pelo Pacaembu, toda aquela multidão negra descia e se dirigia à
famosa Rua do Samba na Barra Funda. Ali era um tipo de roda de samba ao ar livre
com a rua fechada para os frequentadores e um palco instalado bem no meio da via.
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A Barra Funda, no início do século 20, teve a sua característica transformada.
A população que era predominantemente branca passou a receber os primeiros
negros, presença que se intensificou nas décadas seguintes. Assim aquele bairro se
tornou o polo do samba. Chegávamos à Rua do Samba por volta das 19h e saíamos
em torno das 20h; se alguém pensava que iríamos embora se enganava, pois logo ali
bem próximo, no mesmo bairro da Barra Funda, havia o Clube da Cidade, um baile
promovido pelo antigo e famoso Chic Show. Todos esses eventos tinham
predominância negra; eram também frequentados por alguns “malacos” que viviam
naquela época roubando tênis, jaquetas e principalmente correntes de ouro nos faróis.
Os bailes aconteciam nos quatros cantos da cidade. Lembro-me de que uma
vez por mês o Chic Show promovia, na S. E. Palmeiras, um com celebridades do
mundo artístico da época (Tim Maia, Jorge Ben Jor, Sandra de Sá, Djavan entre
outros). Mesmo eu, com pouca idade, frequentava esses espaços onde podia me
vestir da mesma forma que os outros para ir ao baile do mês. Íamos ao Isaac, da Rua
Maria Antônia, mandar fazer sapatos bico fino e mocassins, pois tínhamos de ir a
caráter, com roupa da nossa moda (calça boca de sino, calça pizza), cabelo cortado
nas grandes galerias, como a 24 de maio no centro de São Paulo. Lá tínhamos que
escolher ou GÊ cabeleireiros ou o Almir cabeleireiros. Nesses lugares, os convites
para os bailes eram vendidos, por isso ali a concentração da massa negra sempre foi
grande. Todas as festas eram um enorme sucesso, fazíamos questão de não perder
um baile de fim de semana. A sociabilidade nos bailes era um tanto conturbada, pela
mistura de jovens do bem e outros que faziam maldade, isto é, praticavam delitos,
como roubos.
Pude presenciar algumas atividades ilícitas em alguns bailes e o mais
interessante era que a maioria desses “negros função”, como eram chamados,
sempre compareciam nas festas acompanhados de moças brancas, que
frequentavam nossos bailes. O prazer que elas demonstravam em estar ao lado deles
levava-nos a perguntar como essas “minas” podem gostar de “caras função”?
Os bailes e todos esses lugares frequentados pela massa negra sempre foi um
palco de diversão para um público diferenciado. Erámos um grupo de negros que
faziam das suas festas um ponto de encontro onde o descaso com a cor da nossa
pela não ocorria, a cor da nossa pele era respeitada; havia alguns de cor branca, mas
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eram aceitos em nosso meio, mas o inverso não acontecia. Devido a minhas saídas
e o início precoce em participar desses eventos, minha tia caçula, que também
gostava de ir aos bailes, sempre me levava a lugares onde não havia problema com
a minha idade. Um desses foi à famosa Festa do Vinho em São Roque, onde era
realizado um baile de sábado para domingo. No início da manhã, as caravanas saíam
rumo à São Roque, a cidade ficava repleta de ônibus e os negros tomavam conta
desta cidade. La havia um lugar destinado às barracas de vinhos, como se fosse uma
grande praça fechada e com só um lugar de entrada. Encontravam-se vários tipos de
pessoas, as de boa e de má índole. Muitas famílias traziam seus filhos para um
passeio diferente, mas um tanto perigoso ao que comparo aos grandes clássicos entre
dois times de futebol. O que acontecia em São Roque era uma festa da cidade em
que os três primeiros domingos tinham como público a população local e dos seus
arredores; acredito que nesses fins de semana não havia tanta bagunça como no
último domingo.
Essa invasão de negros requeria cuidados especiais por parte das autoridades
da cidade, bem como: reforço policial, ambulâncias de plantão em frente à feira,
agentes da prefeitura de plantão e outras providências comuns a grandes
concentrações de público. Nesse evento pude aprender coisas, que hoje reflito para
que não se repitam mais. Tive uma experiência nesse lugar que analiso como um feito
que poderia ter se desencadeado para a prática de coisas ilícitas, e narro o episódio,
como disse, como uma experiência.
Naquela ocasião, minha tia tinha conhecimento de que o pessoal do Jaçanã
não era bem relacionado e relutou em nos deixar ir com a caravana, mesmo sabendo
que o meu tio, bem-intencionado, seria nosso tutor. No percurso fomos por dentro de
uma feira livre até onde estava localizado o ônibus. No meio da calçada vieram
descendo três rapazes, dois morenos e um branco de olhos verdes, mas a aparência
deste último era de uma pessoa castigada pelo regime carcerário. De repente, ele se
aproximou do meu tio, na minha presença, e perguntou-lhe se eu poderia “segurar a
sua maconha”. Meu tio, a princípio, disse-lhe que não seria possível, dado alguns
motivos relevantes para o momento, além de eu ser menor de idade. Mesmo depois
desse argumento, o indivíduo insistiu na situação e convenceu meu tio a me sujeitar
àquela situação.
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Devido à ausência de conhecimento desse tipo de ato ilícito, carreguei aquilo
sem a menor preocupação com as consequências que poderia acarretar sobre mim.
Hoje analiso o episódio como um aprendizado sobre a falta de responsabilidade do
meu tio. Muitas coisas poderiam ter acontecido com a sua autorização, por exemplo:
a possibilidade de ter sido abordado por policiais, que nesse tipo de evento o
contingente é maior; os meus pais poderiam ficar sabendo e os meus parentes
também; e algo que me fez refletir na idade adulta que foi o próprio contato com as
drogas em um momento de transição da pré-adolescência para a adolescência, onde
a curiosidade sobre o mundo externo é aguçada e, por conta disso, a possibilidade de
querer conhecer e ser aliciado por alguém que você nunca viu é enorme. Além disso,
aquele era um ambiente onde muitos fumavam maconha. Enfim, tudo isso poderia
acontecer por causa da falta de responsabilidade daquele que deveria me proteger
naquela situação, mesmo porque ele, o meu tio, não fazia uso de entorpecente.
Ao analisar o caso acima, sou levado a pensar que em uma situação inusitada
como essa, se eu estivesse no lugar do meu tio hoje, passeando com o meu sobrinho
ou qualquer pessoa que estivesse sob a minha responsabilidade, jamais agiria ou
procederia daquela forma, dada a importância de algo muito sério vivido naquele
momento. Tanto é que, passados alguns anos do episódio, mesmo ainda sendo
menores de idade, meu irmão, eu e amigos organizamos uma excursão para São
Roque. Foi um feito extraordinário para a nossa idade, vibrávamos a cada dia que
antecedia nossa excursão, desde a locação da empresa de ônibus, porque tínhamos
de encontrar a que nos oferecesse o menor valor. Fazíamos tudo por telefone sem
que a pessoa do outro lado da linha imaginasse que éramos menores. Após tudo
acertado com a empresa, tivemos a preocupação de vender todas as passagens sem
fins lucrativos, pois o que realmente queríamos era viver a experiência de fazer algo
importante e que nos realizasse como pessoas adultas, mesmo não sendo, e que nos
credenciaria a conquistar as meninas.
Chegado o grande dia da viagem, nessa época eu já namorava com a Claudia,
por isso ela acabou indo junto e muitos levaram suas garotas para este passeio que
foi um daqueles de tirar o chapéu. Mas nem tudo são flores, pois havia um amigo
chamado Ticão que sempre se relacionava com as garotas mais bonitas, e brancas.
No momento em que nos arrumávamos para partir, checando se todos estavam
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presentes, chegou um grupo de rapazes procurando o Ticão para tirar satisfação,
porque ele havia mexido com a namorada de um rapaz e eles queriam a cabeça dele
de qualquer jeito. Como eu já me encontrava dentro do ônibus e percebi toda a
movimentação lá fora, desci para averiguar o que estava acontecendo; contudo já
conhecia o Ticão de longa data e já o havia livrado de muitas confusões, assim,
imaginava o que me esperava. Essa situação, no entanto, nos causou preocupação
porque, como havia dito anteriormente, lá era um lugar frequentado por pessoas de
boa índole e de má índole e tínhamos sobre nós a responsabilidade dos passageiros
e da própria excursão.
Os ânimos ficaram acirrados por parte dos jovens que queriam falar com o
Ticão, então, tomei a decisão naquele momento de descer do ônibus para falar com
eles sendo acompanhado pelos integrantes da nossa turma. E foi nesse instante que
se deu início a uma discussão generalizada, porém, a turma do deixa disso entrou em
ação e passei a mediar a situação de forma que consegui convencê-los de que tudo
aquilo não passava de um mal-entendido. Pedimos desculpas pelo ocorrido e
solicitamos a nossa turma para que entrasse no ônibus para irmos embora.
Pensávamos que toda aquela confusão havia terminado, mas não, ouvimos o
vidro traseiro do ônibus se estilhaçar e percebemos que os jovens do lado de fora
arremessavam várias pedras contra o vidro do ônibus. Foi aí que pedimos ao motorista
que saísse logo daquele local para não acontecer algo pior. Depois de percorrermos
alguns metros longe do alcance dos malandrinhos, arrumamos uns sacos pretos e
tampamos a parte traseira do ônibus para podermos seguir viagem. Por causa dessa
situação, outro problema foi causado: o motorista perguntou-nos quem iria pagar o
prejuízo causado no ônibus. Dissemos a ele que não fomos nós quem quebrou o vidro,
e sim pessoas da qual não conhecíamos.
Essa viagem foi muito significante e divertida para todos nós, inclusive para
mim que tive o prazer de finalizar o que comecei. Depois disso, fizemos outra viagem
para a Caverna do Diabo em Cananeia, foi uma excursão muito mais tranquila do que
a outra. Tudo que realizamos nesses eventos era como se fosse uma situação em
família, ou seja, um pelo outro, justamente pela falta dos vínculos afetivos que a família
deveria proporcionar.
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Sob meu ponto de vista, ser pai e mãe implica não apenas uma filiação
biológica, mas também uma filiação socioafetiva. Essa ruptura propicia uma crise
identitária pela qual passei, como define Van Gennep (1978, p. 113) ao dizer:
“Frequentemente, e isso é um fato sobre o qual chamo a
atenção, os vínculos do moço ou da moça com seus ambientes
anteriores (de idade, sexo, parentesco, tribo) são considerados tão
poderosos que é preciso agir com cautela para rompê-los”.
Enfraquecidos pela ausência daquela que desempenha um papel fundamental
na matrifocalidade com muito mais importância da figura patrifocal, os jovens passam
a conviver com uma transição abrupta da vida infantojuvenil para a vida adulta,
sofrendo uma inserção precoce no mundo marginal, onde a oferta ao consumo de
drogas e de bens, ao uso de armas e até mesmo ao próprio tráfico de drogas podem
levá-los à perdição.
Conforme havia dito anteriormente e na Introdução, destaco aqui a importância
da observação participante. Essa crise identitária em grande número de casos é
suprida pela inserção em novos grupos sociais. E a coerção exercida por esses
grupos para que o jovem faça parte deles é muito forte. Muitos, como chamamos na
comunidade, dos “cabeças fracas” se rendem às propostas que os levarão à perdição.
Alguns, como eu, contam com a sorte de não se enveredar por caminhos do mal.
Sempre fui aceito por todas as turmas e aprendi muito com elas, e o fato de meu pai
ser conhecido no mundo do futebol de várzea e ser respeitado por isso me ajudou.
Aonde eu ía, os “caras” diziam: “olha o filho do Vadão, o moleque é esperto”.
Quando meu pai estava quase parando de jogar futebol, se juntou com os
colegas e fundaram o Mela-Pé, time que existe até hoje. Depois da sua fundação,
meu pai parou de jogar e a direção da agremiação ficou por conta dos meus primos.
Logo comecei a ir aos jogos, que eram realizados aos sábados à tarde. Todos iam em
um ônibus alugado da Empresa Nações Unidas. A rapaziada sentava no “fundão” do
ônibus fazendo batucada, e o consumo de entorpecentes também era usual. Como
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eu conhecia a molecada do bairro vizinho onde se localizava a sede do time, o meu
acesso e o estreitamento para novas amizades foram fortalecidos; meu irmão e meus
colegas não iam nesse tipo de lugar.
As amizades nesse bairro eram diferentes, por que eles ficavam a semana
inteira indo ao cemitério fumar maconha e explorar as trilhas no Horto Florestal; lá tive
a primeira lição de vida na malandragem. Estávamos todos em uma roda sentados
em uma grande pedra. Eu era o mais novo e contava com a proteção de alguns, mas,
mesmo assim, sofria com a coerção que foi muito grande para fazer uso de coisas
ilícitas. Lembro-me de que um dos moleques que estava lá, o Quinho, chegou em mim
e disse: “Olha Beiço vou lhe dar um papo reto, aqui quase todos são viciados e se
você chegar com alguma coisa e deixar na mão deles você não achará mais nada, e
aprenda uma coisa, o que é seu é seu, não dê nada pra ninguém segurar”.
Quando chegava sábado, todos esses moleques também acompanhavam o
time. Ao verem que o grande entusiasmo deles, formaram-se os times de dentinho de
leite (10 a 12 anos), dente de leite (13 a 15 anos) e o dentão (15 a 17 anos), e eu
passei a jogar no dente de leite. Os três times eram muito bons e chegamos a jogar
em vários campos em São Paulo.
Muitas coisas presenciei nesses jogos: tiroteio, prisões e brigas. Houve uma
vez em que eu estava no fundo do ônibus com outros rapazes que não jogavam, mas
acompanhavam a campanha do time e frequentavam a sede. Acabei me envolvendo
em uma briga com o irmão de um deles. Tudo começou com uma brincadeira sem
malícia de tapas na cabeça, mas que foi interpretada de forma errônea por um dos
integrantes do grupo, o Pardal, que devido ao uso de drogas, estava em estado
alucinado. À medida que ele se aproximou de mim, eu me levantei, coloquei uma mão
em cada ferro que fica no teto do ônibus e pulei com os dois pés no peito dele. Fomos
separados pelos ocupantes do ônibus, mas o pior estava por vir porque quase todos
ali começaram a comentar que eu teria de ajustar contas com o Maninho, irmão do
Pardal. No entanto, o Maninho sempre gostou de mim, me pagava refrigerante e
sempre que ia jogar bola pedia para que ficasse com a sua carteira. Entretanto, isso
não poderia atenuar o que ele poderia fazer comigo depois daquela briga com seu
irmão.
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Diante da minha temeridade, me adiantei no assunto com ele e disse que o seu
irmão veio para cima de mim como se tivesse sido eu o causador das brincadeiras.
Naquele momento, ele desferiu algumas palavras que serviram como bálsamo para
mim: “Fica tranquilo neguinho, ele está muito louco”. Essas palavras me deixaram
aliviado, dada a sua periculosidade e sua fama.
Meu pai ficou sabendo do ocorrido e tomou algumas precauções. Sempre que
encontrava seus conhecidos de futebol, a primeira coisa que perguntava era sobre
mim. Pedia a todos que ficassem de olho e a resposta sempre era a mesma: “estavam
cuidando e zelando por mim”. Isso era verdade. Eles sempre me ensinaram a não
fazer coisas erradas mesmo que eles fizessem, sempre me davam conselhos.
Quando escutavam algum tipo de comentário a meu respeito, me chamavam em
separado e me explicavam o que era certo e o que era errado.
Lembro-me de um episódio em que eu quase coloquei tudo a perder na minha
vida, pois, por mais que recebesse a proteção dos mais velhos, que me blindavam,
essa blindagem poderia ser rompida; sempre seremos vulneráveis quando passamos
muito tempo na rua. É nesse lugar que se aprende coisas boas e coisas ruins, o que
determina na rua onde a sua semente vai ser germinada, por mais que existam
pessoas no mundo do crime com más intenções e que se aproveitam dos mais fracos.
Também existem aqueles que causam o mal somente a eles próprios. Os que têm
mais vivência no crime acabam adotando um garoto como seu pupilo, assim como
aconteceu comigo. Porém, quando se convive na rua, não se consegue viver somente
da proteção dos mais experientes. Se o jovem não aprendeu ainda a sobreviver, corre
o risco de ser aliciado a fazer coisas que nunca imaginaria a fazer.
Quando comecei a namorar, passei a frequentar o bairro da minha namorada,
hoje minha esposa. E por conhecer os jovens que frequentavam os mesmos bailes
que eu, transitava nos bairros vizinhos sem a menor preocupação, ao contrário dos
jovens, amigos meus, que tinham dificuldade em se relacionar com aqueles garotos.
Os jovens dos bairros vizinhos achavam que os garotos do meu bairro, inclusive
meu irmão e primos, eram os “neguinhos metidos”, isso mais por causa das garotas.
É nesse período em que tinha trânsito livre que conheci alguns rapazes como o
Rodolfo, o Muté, o Gabiru e o Magal. Foi a partir desse contato com pessoas diferentes
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que certo dia recebi um convite que nunca deveria ter aceitado. Esse pessoal me
propôs fazer um assalto a uma casa, que, por coincidência, ficava na rua atrás da
minha casa, e não sei por qual motivo acabei me deixando levar pela facilidade com
que diziam que iria ter.
Os proprietários estavam viajando, e os garotos estavam monitorando a casa
há algum tempo. Assim como em todo lugar e na periferia não é diferente, a palavra
de um homem não pode voltar atrás. Depois que confirmei que estava disposto a
realizar o mal empreendimento, disse-lhes que precisa ir para a minha casa. Saí com
o dia e a hora marcada para a realização do feito.
A distância entre o bairro da minha namorada e o meu não era muito grande,
mas só era possível vencê-la andando, além do mais, existia uma ladeira muito
íngreme a ser percorrida. Esse foi o trajeto com a maior duração de tempo que alguém
possa mensurar. Subi a ladeira tão pensativo que nem me dei conta de quanto levei
para chegar em casa já tarde da noite. O que mais ocupava meu pensamento era o
arrependimento em ter aceitado o convite e não poder voltar atrás.
Mantive minha palavra de que iria fazer o combinado. Porém, algo de muito
importante que se construiu dentro de mim ao longo da minha juventude, algo de
grande valor, que me dava a sensação enorme de proteção, foi ter ouvido falar de
Yahweh muito cedo na Igreja Católica. Isso acontecia todas as vezes em que eu dava
lugar para as travessuras e concebia a ideia de que eu havia exagerado ou passado
dos limites. Sempre ao deitar pedia para Yahweh me livrar do que de pior poderia
acontecer e ficava quase que a noite inteira na espera de um novo dia. Aquela noite
em que dei minha palavra não foi diferente. Foram várias noites com o pensamento
naquela residência e em Yahweh para me livrar, e acabava tomando consciência de
que a minha irresponsabilidade poderia me levar à ruína. Naquele momento pensei
em Yahweh para tentar resolver de alguma forma o dilema sem que eu saísse
“arranhado”. Foram noites e noites nesta angústia:
“Se a condição humana é esta, então o homem vive numa angústia existencial. Ter de escolher a todo instante é angustiante, pois cada escolha irá refletir diretamente no que se é. A angústia é o reflexo da
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liberdade humana, desta ampla possibilidade de escolher e ser responsável por cada escolha” (SARTRE, 1999, p. 550).
Yahweh, em sua infinita bondade para conosco e a sua misericórdia derramada sobre
os seus filhos, me livrou dessa situação em que me envolvi. Algo que poderia mudar
a minha vida toda por causa de uma única palavra “sim”. O mais intrigante e
surpreendente foi como Yahweh agiu nesse episódio. Relato aqui como se
desenvolveu tal empreendimento da ruína.
Como eu tinha de passar pela casa da minha namorada quase todos os dias,
era inevitável não me encontrar com um dos garotos que estava envolvido naquela
trama. Sempre que encontrava um deles, ouvia as mesmas palavras de forma
diferente, “E aí Eliseu, está firmado”. Isso me corroía por dentro, até que um dia meu
primo Muté e o Rodolfo vieram falar comigo e disseram que não iríamos mais no fim
de semana assaltar a casa porque os proprietários haviam retornado, e não seria mais
possível a invasão da residência. Aquelas palavras foram como Bálsamo de Gileade
em meu corpo, o alívio encontrado em meu coração foi como se eu tivesse tirado das
minhas costas uma pedra de uns 50 quilos. A forma como Yahweh agiu, foi tão
tremenda, que nunca mais permiti em meu pensamento mexer em qualquer coisa que
não me pertencesse e não permitir que coisas desse tipo aconteçam, podendo eu
evitar.
2.3 A Caminho de uma Vida Nova
Logo depois de tal episódio, comecei a namorar um pouco mais firme. Refiro-
me um pouco mais comprometido, pois, por causa das minhas saídas, inventava para
minha namorada que ia embora mais cedo por causa de dor de cabeça. Tudo isso
para poder ir aos bailes mais tarde ou às quadras de escolas de samba. Também tive
o privilégio de um álibi forte que era a companhia do meu cunhado. Assim, ficava mais
fácil, ele sempre foi legal comigo, ao contrário da minha sogra, que não gostava do
meu jeito de ser.
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As minhas saidinhas não perduraram por muito tempo. Logo que sosseguei, e
nesta época estava com 17 anos, a minha namorada ficou grávida. Por ser uma moça
que começou as tarefas do lar precocemente para cuidar dos irmãos mais novos, pois
sua mãe trabalhava, tive de assumir a responsabilidade do lar precocemente também.
No entanto, mesmo tendo pouca idade e já tendo enfrentado alguns percalços na vida
juvenil, comecei a me conscientizar de que deveria assumir ela e o bebê. E como
afirma Van Gennep (1978, p. 109):
“Por outro lado, se dois namorados querem casar-se contra a vontade
de suas famílias ou contra regras sociais que lhes parecem mais ou
menos inúteis ou absurdas, em geral há acomodação. [...] Casar-se é
passar da sociedade infantil ou adolescente para a sociedade madura,
de certo clã para outro, de uma família para outra, e muitas vezes de
uma aldeia para outra. Esta separação do indivíduo de certos meios
enfraquece estes meios, mas reforça outros. O enfraquecimento é ao
mesmo tempo numérico (portanto dinâmico), econômico, sentimental”.
Toda a minha família foi comunicada. Com essa notícia um pouco assustadora
e repentina, todos ficaram sem palavras e, quando deram conta do que eu havia feito,
vieram as críticas dizendo que eu era muito jovem para assumir esta
responsabilidade, e que eu não tinha nem onde morar, nem estrutura para tal. A
reação dos meus familiares não me deixou frustrado. Algo pior aconteceu. Minha mãe
sempre foi muito apegada a mim, e isso aumentou ainda mais principalmente por
causa do quadro de instabilidade emocional ser o seu ponto fraco. No momento em
que ela tomou conhecimento da notícia de que eu iria ser pai teve outra crise. Ficou
perturbada e não falava coisa com coisa e isso me deixou muito mal, pois não parava
de pensar que tudo aquilo estava acontecendo com minha mãe por minha causa. Era
eu o responsável por tudo isto.
Passei algumas noites muito triste, mas como disse anteriormente, sempre que
me deparava com momentos difíceis recorria a Deus, e a forma como ele agiu foi
grandiosa: minha mãe não sumiu de casa nem precisou ser internada novamente.
Com o passar dos dias ela foi se estabilizando emocionalmente até se recompor por
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completo, algo que me alegrou a ponto de ser eternamente grato a Deus pelo que fez
por mim e por minha mãe, situação ocasionada pela quebra do vínculo familiar entre
meus pais. Nas palavras de Van Gennep, (1978, p.120):
“Além do mais, todo casamento, justamente porque não são apenas
dois indivíduos que se acham em jogo mas realmente vários círculos
mais ou menos vastos, é uma perturbação social. Um casamento
acarreta o deslocamento de um certo número de elementos uns com
relação aos outros, e este deslocamento, atuando por continuidade,
determina uma ruptura de equilíbrio”.
Com 17 anos já possuía quase quatro anos de registro em minha carteira de
trabalho. Comecei a me preocupar com outras prioridades. Depois do susto com
minha mãe, passei a frequentar a casa da minha namorada mais vezes e isso
incomodava minha sogra. Contudo como eu e minha namorada tínhamos amigos em
comum, eles nos davam suporte. Todo o dinheiro ou quase tudo que ganhava eu
usava para comprar peças de roupa para o enxoval do bebê. Fazia feira para a casa
dela uma vez por semana. E a mãe da minha namorada começou a levar algumas
peças de roupa para o enxoval do bebê, dizendo que era para nos ajudar. Certo dia,
nossa colega Liu veio conversar comigo dizendo que eu deveria acertar as pendências
que haviam ficado na loja. Depois de entender o que acontecera e obtido
esclarecimentos, fiquei perplexo ao saber que minha sogra comprava roupas para o
bebê e dizia que era para colocar na minha conta sem eu ter nenhum tipo de conta
naquele estabelecimento. Apesar de isso contribuir para diminuir a possibilidade de
um bom relacionamento entre mim e minha sogra, continuei minha vida normalmente
e acabei pagando uma dívida que não era minha. Com o passar dos dias, a situação
foi ficando difícil em todos os aspectos, principalmente por não solicitar ajuda de meus
parentes e a cobrança por parte da mãe dela ser cada vez mais insistente. Sem
alternativas para conseguir mais recursos financeiros, comecei a fazer serviços extras
para aumentar minhas rendas, indo além do trabalho registrado em carteira.
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A vida prosseguia de forma conturbada, mas seguia. Assumi minhas
responsabilidades como homem, embora tivesse apenas 17 anos. Tudo isso foi um
momento novo e difícil para mim, contudo penso que o que fez com que assumisse a
gravidez dela, embora namorássemos por pouco tempo, foi o fato de eu ter tido pais
separados e pensar nas frustações e nas dificuldades de uma criança em tal situação.
Não concebia a ideia de um dia ver meu filho passando na rua e não me reconhecer
como uma figura paterna, isto é, ser ignorado pelo meu filho.
Conforme ia se aproximando a data da chegada do bebê, os conflitos na casa
dela aumentavam. Sua mãe implicava quase todos os dias com ela dizendo que “eu
não era homem para casar com ela”. Todos os dias repetia as mesmas palavras,
apelando para que a filha se separasse de mim, pois não enxergava virtudes nem
atitudes que me levassem a assumi-la e à criança. Ledo engano dela.15
Com o nascimento do bebê chamado Anderson, lembro-me de que na
maternidade foi uma alegria generalizada. Embora a minha paternidade fosse
precoce, sempre fiz tudo com dedicação e afinco. Não decepcionei ninguém.
Passados uns dois meses o ambiente era outro e já parecia estável. Devido a minha
falta de estrutura e condições para alugar uma casa, passei a frequentar a casa da
minha sogra quase que diariamente, chegando até a dormir lá em muitas noites.
Certo dia minha sogra me fez uma proposta em relação à moradia: era para eu
ficar na casa em que ela morava de aluguel, e ela iria viver com o namorado na casa
dele, que também era alugada. Como eu tinha o apoio do meu cunhado Jaime, ele
disse que se eu quisesse me ajudaria com as despesas e o aluguel, desde que
pudesse ficar morando conosco. Diante de tamanha dificuldade, aceitei e passamos
a viver juntos. Pagávamos o aluguel e fazíamos as despesas da casa. Tudo parecia
estar bem encaminhado, até que chegou um dia em que minha sogra, que não estava
convivendo bem com o namorado, retornou para sua casa de origem, pois o aluguel
da casa estava em seu nome e não poderíamos falar que isso não era possível.
15 “A identidade da passagem através das diversas situações sociais com a passagem material, a
entrada numa aldeia ou numa casa, a passagem de um quarto para outro ou através das ruas e das praças. É por isso que com tanta frequência passar de uma idade, de uma classe, etc. a outras exprime-se ritualmente pela passagem por baixo de um pórtico ou pela abertura das portas” (GENNEP, 1978, p. 159).
62
Logo retornei à casa da minha mãe porque a convivência com minha sogra era
impossível. Uma semana depois minha sogra tomou uma atitude que ninguém
esperava e que contribuiu para que eu me revoltasse. Ela havia colocado a minha
futura companheira para fora de casa. Foi uma revolta generalizada. Não sabia o que
fazer naquele momento, pois não tinha condições de alugar uma casa nem abrigá-la
na casa da minha mãe composta de um quartinho. Além do mais, o restante da minha
família não apoiava a ideia. Foi um momento desesperador. Recorri ao meu Deus e
pedi a Ele que me ajudasse naquela situação, pois havia uma jovem mulher com um
recém-nascido na rua. Foi nesse momento que o meu cunhado Jaime decidiu ir
embora com a irmã e, pela providência de Deus, o namorado da minha sogra, o Zé
do Gogó, deu abrigo a nós três.
Como em tudo em nossas vidas nunca é um mar de rosas e como o meu
cunhado Jaime precisava ir trabalhar, houve momentos em que minha companheira
e o bebê ficavam sozinhos na casa do Zé do Gogó. Com o passar dos dias, ela me
relatou que ele ficava fazendo insinuações dizendo-lhe que se quisesse ficar morando
com ele bastava ela dizer que sim. Fiquei muito furioso com sua história e a sua queixa
em ter de passar por isso, porém ela se manteve firme mesmo em uma situação
adversa e também não me permitiu que fizesse justiça com as próprias mãos, como
eu desejava.
Diante daquela situação, sem alternativas e tendo de resolver a questão o mais
rápido possível, surgiu uma solução dada pelo meu cunhado Jaime que nos
acompanhava em todo o processo. O Pedrinho, pai biológico do meu cunhado, estava
morando em Itaquaquecetuba, mais especificamente em Manoel Feio. Lá havia várias
casas no mesmo quintal, de propriedade do pai do Pedrinho. Foi-nos oferecido dois
cômodos, ou seja, um quarto e uma cozinha, muito pequenos, mas era o que tínhamos
conseguido. Como o Pedrinho gostava de mim talvez pelo fato de conhecer meu pai,
concordou em não receber aluguéis nos primeiros meses.
A mudança foi para mim uma decisão difícil, pois estava deixando quase tudo
de mais importante em minha vida, primeiramente a minha mãe e depois minha
família, em prol de uma que acabara de constituir. Assim anunciei a meu pai que iria
me mudar para outro lugar, bem longe de onde nasci e me criei, com palavras sucintas
e breves: “Pai estou indo morar em Itaquaquecetuba nas casas do Pedrinho, não
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precisa se preocupar comigo nem me ajudar. Vou dar um jeito, eu me viro”. Tive de
me preparar para enfrentar outra situação mais difícil e dolorosa para mim: comunicar
a minha mãe essa mudança repentina. A preocupação com relação a minha mãe era
uma só, ela poderia ter uma recaída por conta de tal situação e ficar debilitada
psicologicamente com os sintomas já expostos anteriormente.
A nossa ida para outro local foi rápida, decidimos quase tudo em um só dia e
partimos no dia seguinte, pois precisávamos desocupar a casa do Zé do Gogó o mais
rápido possível, tamanha era a preocupação de ele tentar fazer algo de ruim a nós.
Além do mais, não tínhamos nada para levar, somente a roupa do corpo e uma mala
com nossas roupas e a do bebê. Nessa época, eu tinha um sonho de seguir a carreira
militar. Fiz tudo o que um jovem de 18 anos deveria fazer: me alistei, me apresentei
no dia solicitado e no momento em que fui aceito no Exército Brasileiro e já iria tirar
as medidas da farda, um oficial perguntou se teria alguém naquele meio que tivesse
algum impedimento social que se manifestasse. Ao pensar na minha nova família,
mesmo relutante, levantei meu braço. A partir daquele momento, eles me
dispensaram e acabei por ter uma das maiores frustrações da minha vida, pois a
minha vontade em “servir” o Exército era tão grande que sonhava com isso quase
todos os dias.
Quando chegamos à nova moradia me senti impotente diante da situação, pois
como já disse a casa era composta de dois cômodos pequenos e devido a nossa falta
de estrutura e condições financeiras, aproveitamos um sofá-cama que havia no local,
comprei um fogão de duas bocas e obtivemos algumas doações de utensílios
domésticos. Assim, íamos nos virando como podíamos. Nessa época trabalhava em
uma fábrica de estamparia no bairro do Pari. Diariamente pegava o trem na estação
de Manoel Feio até a estação do Brás. Para isso, acordava de madrugada porque o
percurso era longo e a volta ao lar também, sofrida, porém gratificante, pois, mesmo
tendo acabado de completar 18 anos, me considerava um pai de família.
As dificuldades continuavam a nos rondar a todo instante. Nossas refeições
eram muito precárias, em virtude da exigência de um cuidado especial para com o
bebê. Toda a atenção era voltada para o bebê: a compra de roupas, alimentação,
fraldas e outras necessidades. Assim, não nos dávamos ao luxo de nos preocuparmos
com nossas próprias carências materiais. Passávamos a comer, quase que
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diariamente, um tipo de carne que não saía do nosso cardápio, ora o que
denominamos de “carcaça de frango”. Tal carcaça nada mais era do que a costela,
onde se concentra uma quantidade excessiva de ossos e pouca carne. Por ser a mais
barata do que as outras partes, era a que eu podia comprar quase todos os dias
quando voltava do trabalho. Diante desse quadro que me incomodava, resolvi tomar
uma atitude que poderia mudar o panorama da nossa situação, algo que trouxesse
aspectos positivos para nossa condição. Foi quando resolvi arrumar um outro
emprego, algo que me fornecesse estabilidade e que permitisse cuidar melhor da
minha família, pois todo o final de mês eu teria a certeza de receber meu ordenado.
Tomei conhecimento de que os Correios e Telégrafos tinham aberto inscrições
para o cargo de carteiro. De imediato fui fazer minha inscrição. Quando cheguei ao
local, não havia mais vagas para carteiro, somente para auxiliar de serviços postais.
Era o menor salário na classificação de cargos e salários dos Correios. Por precisar
melhorar de vida, comecei a fazer o teste e passei. Quando anunciaram que estava
tudo certo e que logo me chamariam para ocupar o cargo, fiquei muito feliz, pois
representava a possibilidade de trabalhar em uma estatal. Fiquei aguardando o
telegrama chegar em casa. Como a minha ansiedade era demasiadamente grande,
todos os amarelinhos “carteiros” que passavam por mim eu os indagava de como era
os procedimentos de quem havia passado nos testes. Eles me disseram que era
melhor ir até lá para verificar o cadastro, se estava tudo certo e pedir para conferir o
endereço; todas essas informações de quem trabalhava nos correios para mim foram
pessoas usadas como instrumentos de Deus para abençoar a minha vida e da minha
família. Como havia conversado no sábado com o carteiro, logo na segunda-feira fui
até os Correios Central no bairro da Lapa. Chegando lá, me dirigi ao departamento de
seleção. Ao falar com a funcionária que me entrevistou, ela me disse: “Você está com
vontade de trabalhar mesmo. O seu cadastro está correto e o endereço também.
Aguarde o telegrama em casa”.
Finalmente, o telegrama chegou convocando-me para começar a trabalhar nos
Correios e Telégrafos. Fiquei tão maravilhado que chorei de emoção. Agradeci a Deus
por esse presente que mudaria a minha vida e da minha família, e havia mais, Deus
proporcionou que eu fosse convocado para trabalhar em Suzano, cidade vizinha a
Itaquaquecetuba. Com uma nova oportunidade de emprego e desfrutando também da
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estabilidade, tudo melhorou, pois não pagava o transporte coletivo, recebia o vale-
alimentação e tudo contribuía para começarmos a colocar as coisas em ordem.
Passados uns seis meses morando naquela região distante de São Paulo, sentíamos
muitas saudades do local de nossas origens e não demorou muito para voltarmos a
nosso bairro.
Ao retornarmos, alugamos uma casa no bairro de Joamar e, paralelamente, eu
consegui uma transferência para trabalhar nos Correios da Rua dos Trilhos, no bairro
da Mooca. Nossa vida foi mudando gradativamente. Depois de algum tempo
trabalhando como auxiliar de serviços postais, participei de um processo seletivo para
trabalhar na manutenção de veículos na função de auxiliar de mecânico e, novamente,
orei a Deus para que tudo desse certo. No momento dos testes na garagem dos
Correios da Vila Maria, eles disseram que não havia vaga na mecânica e me
ofereceram trabalhar na borracharia, depois, novamente disseram que lá também não
havia vaga e, por último, pediram para que eu me deslocasse até os boxes onde
lavavam os caminhões e pediram para fazer a limpeza de três veículos. Tudo isso foi
um teste para ver qual era minha disponibilidade em aceitar o que fora proposto e,
devido à falta de recusa por mim, consegui a vaga de auxiliar de mecânico.
Após seis meses como auxiliar, já desempenhava a função de mecânico oficial
e, por haver passado por outro processo seletivo, oficializei a profissão, que já estava
desenvolvendo há algum tempo. Ao passar a exercer essa nova função, agradeci a
Deus por mais essa oportunidade. Aprendi muito com os colegas de trabalho na.
Naquele local havia um mecânico chamado Antônio, vulgo Tonhão, que me ensinou
muito sobre mecânica e sobre a vida. Passávamos momentos juntos e ele sempre me
aconselhava, mostrando-me um caminho melhor do que eu já conhecia, pois sempre
que podíamos falávamos de coisas concernentes à Bíblia. Foi o Tonhão que contribuiu
muito para que me tornasse um mecânico de referência.
Trabalhei nos Correios por 13 anos. Foi com o salário que recebia lá que
comprei um terreno, quando ainda estava com aproximadamente uns 24 anos de
idade. Nesse período estávamos morando na zona leste, em Cidade Tiradentes.
Lembro-me de que nos fins de semana saía de madrugada para me deslocar da
Cidade Tiradentes à zona norte para tirar terra do terreno. Fazia com um carrinho de
mão, até que determinado dia a vizinha mandou tirar a terra do seu terreno com a
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máquina e o maquinista errou o local e aplainou o meu terreno. Devido ao meu esforço
de ter tirado por um longo período a terra em um carrinho de mão, minha vizinha e eu
entramos em acordo para que eu pagasse um pouco mais que a metade do valor pago
por ela. Pela minha falta de condições financeiras, combinei com a vizinha pagá-la em
três vezes, pois as minhas despesas eram altas e o orçamento também era apertado.
Enquanto trabalhava nos Correios fiz muita amizade. Uma delas foi com o seu
Claudio que gostava muito de mim. Ele me arrumou um trabalho extra em seu bufê, e
quase todos os fins de semana trabalhava com ele como copa, isto é, aquele que lava
tudo do início ao fim da festa. Esse dinheiro extra me ajudou muito na construção da
nossa casa. Lembro-me de um dia em que seu Claudio me ofereceu um serviço em
outro bufê, porque naquele fim de semana não iria haver festa no seu
estabelecimento. Peguei o endereço e quando chegou a tarde do sábado me
desloquei para o novo local do trabalho. Naquela noite, com um salário menor que
recebia com o seu Claudio, trabalhei bastante. Lavei tantos copos, pratos e panelas
que, no final estava exausto. Ao se aproximar do término da festa, comecei a colocar
os copos nas caixas apropriadas e empilhá-los uma sobre a outra. Ao começar a
guardar alguns materiais da festa, não sei como, derrubei algumas caixas de copos.
Entrei em desespero e no mesmo instante veio um pensamento inevitável: “Já estou
recebendo pouco e agora estes copos quebrados vão ser descontados do meu
pagamento e não vou receber nada”. O dono do bufê, um italiano alto e forte chamado
Jesus, olhou a cena e me disse: “Estou observando você desde a hora em que chegou
e o seu trabalho também. Não vou descontar nem um tostão do seu pagamento, pois
essas coisas só acontecem com quem trabalha, pois quem se esconde do trabalho
isso não acontece”. Toda essa história e a maneira de como terminou foram um alívio
para mim. Fez-me ver que existem pessoas que ainda valorizam trabalhadores
dedicados e comprometidos com aquilo que lhe é proposto. Após passar um período
trabalhando nos Correios da Rua Mergenthaler, no bairro de Vila Leopoldina, no
horário da tarde, sempre que chegavam as sextas-feiras, reuníamos um grupo de
colegas de trabalho para irmos beber umas cervejas. Quase sempre eu pegava o
penúltimo ônibus, pois, se houvesse a necessidade de descer para ir até o sanitário,
ainda conseguiria pegar a última condução até o Metrô Santana. Em algumas sextas-
feiras entrava no coletivo um negro magro aparentando ter os seus 55 anos. Ele subia
meio embriagado e tocando um “samba da antiga” em uma caixa de fósforo. Um dia
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foi diferente dos outros, tive um aprendizado com este “negro” que mesmo um tanto
embriagado disse algumas palavras que deram um norte a minha vida. Ele fez uma
pergunta a todos que estavam no ônibus: “Vocês sabem o sentido da filosofia?”. Como
ninguém respondeu, continuou tocando sua caixa de fósforo. Ao visualizar-me no
fundo do ônibus, aproximou-se e disse-me: “O sentido da filosofia é enquanto todo
mundo fala, você pensa: seja um carroceiro, mas seja um bom carroceiro. Seja bom
naquilo que faz não importa o que faça”. Essas palavras ecoam em meus ouvidos
sempre que tenho de fazer uma reflexão sobre alguns aspectos da vida. Foram
ensinamentos de um negro, embora parecesse ser uma pessoa humilde que
externava seus sentimentos de forma vaga em seus momentos de bebedeira. Sempre
que tenho a oportunidade de falar sobre aquele negro e as suas palavras, o faço, tanto
para meus filhos como para quem necessita delas.
2.4 A Migração da Ovelha de um Celeiro para Outro
A minha família sempre foi religiosa, meus avós católicos e meus pais também.
Em decorrência dessa religiosidade é que recebemos nossos nomes de personagens
bíblicos como o de David e Eliseu, dados pela minha mãe. Com isso tivemos de passar
por quase todos os sacramentos da Igreja Católica: primeiro foi o batismo, depois o
catecismo e a primeira comunhão; a crisma ficou para mais tarde, o que acabou não
acontecendo. Essas experiências foram muito bem aceitas por mim, tive um
envolvimento na Igreja muito amplo, participava como colaborador nas festas juninas.
Na escola de catequese sempre mostrei interesse em aprender e era assíduo nas
missas de domingo pela manhã e nas de quartas-feiras também participava com muita
frequência. Interessava-me muito pela dinâmica da missa do Padre Pedro, um senhor
já de idade avançada, mas carismático, se dava muito bem com todos a ponto de ficar
no bar do Felipe tomando seu aperitivo diário.
O que mais me fascinava era a atividade do coroinha em fazer a visita pessoal
aos Sacramentos. Depois, a preparação da credência com o cálice, as âmbulas,
galhetas e o lavabo, a marcação dos livros que seriam usados, a verificação das velas
a serem utilizadas, certificação de que estavam em bom estado para acendê-las, e a
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separação das vestes sacerdotais. A cada missa dominical, minha vontade era de um
dia poder estar no altar como os colegas mais velhos que ajudavam o padre em todas
as missas, me via cumprindo esse cerimonial que só poderia ser exercido por aqueles
que tivessem sido batizados e que já teriam feito a primeira comunhão. Até que
chegou um dia em que fui selecionado para fazer parte da equipe de coroinhas do
Padre Pedro. Quando coloquei aquela sobrepeliz, que era uma espécie de alva
encurtada, com aquelas mangas largas na cor branca e de linho com rendas, por um
momento estava me sentindo como se fosse um padre.
Foi uma experiência muito gratificante porque a Igreja como organização
humana trouxe para minha vida algumas mudanças relevantes, pois, o meu
comportamento em várias oportunidades não condizia com aquilo que havia
aprendido. Muitas vezes fiz coisas erradas e sempre me apegava com o pensamento
em Yahweh para livrar-me do pior. Hoje vejo que, com a religiosidade absorvida na
Igreja Católica, meu comportamento mudou e os meus conceitos também mudaram.
Muito das minhas opiniões mudou e, à medida que as minhas necessidades iam
surgindo, minha conduta quase sempre era condizente com minha essência. Minhas
ações foram transformadas de acordo com os valores aprendidos na Igreja. Vejo que
essa base religiosa me fortaleceu para enfrentar os problemas que surgiram em minha
vida, mesmo com pouca idade e em um momento de adversidade.
Quando falo em um momento adverso, refiro-me ao conceito de família que
aprendi na Igreja porque sempre fui muito ligado à minha mãe. Não sei o porquê, mas
talvez seja pelo motivo de ser eu o caçula ou pelo fato de ela sempre comentar que
quando eu nasci o médico disse-lhe que deveria ter um cuidado especial comigo – ela
seguiu isso à risca. Preocupava-se tanto comigo que me colocava em uma redoma
de vidro a fim de me proteger. Falando dessa forma até podemos imaginar que cresci
uma criança mimada, sem comunicação e sem nenhum contato com o mundo externo.
Não, ao contrário disso, aprendi muito com as atitudes de minha mãe e puxei um
pouco do lado do meu pai como dizemos nas ruas. Tudo que vi e assimilei tive de
colocar em prática de uma maneira precoce como já relatado. Em virtude de minha
mudança para um novo segmento religioso, que outrora era de tradição católica
praticante de meus familiares, e com a inserção neste novo modo de viver
apresentado pelos missionários coreanos, como exposto adiante, alguns conceitos
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foram mudando, com o aprendizado que obtive nos estudos bíblicos, nos quais
algumas questões foram colocadas, entre elas, a idolatria. Percebi que algumas
práticas da Igreja Católica, enquanto doutrina, não combinavam com minha forma de
pensar. Foi na igreja evangélica que me encontrei, porque entendi que a Bíblia deveria
ser levada mais a sério, e muitas vezes no catolicismo há inúmeras concessões.
Ao me inserir neste novo segmento religioso, logo comecei a frequentar a
classe de catecúmenos16 que, diga-se de passagem, em muito contribuiu para o meu
crescimento espiritual, do contrário foi o agente principal para este desenvolvimento.
Logo após essa importante passagem pela classe de catecúmenos, no qual aprendi
a doutrina da Igreja Presbiteriana e também sobre a fé reformada, decidi fazer a
profissão de fé. Diante de tudo o que estava aprendendo, algo de muita importância
foi absorvido.
Quando me refiro que antes de aprender sobre a doutrina pensava que ter
mudado de segmento religioso me traria muitos benefícios, logo percebi ter sido um
ledo engano. Quando se trata do Evangelho na proclamação do Cristianismo, não
podemos pensar em benefícios, pois não se pode buscar interesse próprio e
contradizer o que diz a Palavra de Yahweh sobre alcançar o interesse comum a todos
que é a Salvação. Não se pode buscar algo que não se tem, e quem procura
benefícios dentro da Igreja Evangélica não os acha dentro desta forma de
prosperidade. Na convivência com a Igreja Católica havia muito mais condições
econômicas e de outras ordens do que nas vias evangélicas. É possível considerar
que se perde muito em termos sociais e econômicos ao se desprender das coisas
ligadas aos benefícios que pensamos obter quando somos inseridos na Igreja
Evangélica. Esta tem como uma das preocupações a educação e a formação do
indivíduo no seio de sua cosmovisão, juntamente no eixo da transformação de
mentalidade, advinda da transformação espiritual. Isso faz com que encaremos a vida,
os problemas, a profissão e a educação de modo diferente.
16 “É uma expressão adotada pela igreja para designar um grupo de principiantes na vida cristã, que se reúnem para estudar a Palavra de Deus. O significado de catecúmenos é ‘noviço’, pois qualifica a pessoa que está principiando no conhecimento da fé crista. Os catecúmenos surgiram logo no início da Igreja Primitiva tendo em vista a necessidade de doutrinar e preparar os novos convertidos que desejavam agregar-se a igreja, tendo em vista a grande quantidade de gentios vindos do paganismo. Este período de preparação chegava a cerca de 02 anos” (TOKASHIKI, 2017).
70
O evangélico diante de sua nova natureza procura estudar mais e, assim busca mais,
preparando-se melhor para o mercado de trabalho, gerando uma transformação de
mentalidade, de atitude. E não os benefícios que outra Igreja possa lhe dar, para não
correr o risco de viver em um mundo segmentário religioso à base de troca, no mais
puro materialismo que impregna a sociedade em geral. A cosmovisão voltada para a
formação e educação do indivíduo tem a sua importância, porque mostra para este
qual o seu papel na sociedade. Isso é algo que advém da Ética Bíblica, porque o
indivíduo começa a perceber o seu lugar e a sua importância na própria sociedade,
tal fato se torna uma consequência positiva para todos nós.
Quando se adquire uma nova ideologia religiosa, automaticamente ocorrem
mudanças na estrutura social, tendo como fundamento a própria ascensão social17 de
alguma forma. O interesse reside na utilização da doutrina cristã por indivíduos que
têm determinada posição na “estrutura social”, que vivem determinadas condições de
existência e, neste sentido, são portadores da ideologia de seu novo grupo.
A transição de um segmento religioso para outro significa a ruptura com um
passado religioso, uma opção exclusiva por um tipo de relação com o sobrenatural e
com a proposta de um estilo de vida diferente. O que me atraiu através dessa
efetivação se explica nas palavras de Regina Novaes (1985, p. 48) quando proferiu
que: “O catolicismo realiza uma unidade religiosa vertical, pois reúne sobre a sua
égide fiéis que têm posições diferentes e até antagônicas na estrutura social”. Ao
afirmamos que somos católicos sem ao menos entendermos o que significa, o
fazemos por hereditariedade e damos continuidade aos ensinamentos dos pais. Ser
cristão, por outro lado, implica ruptura com esse passado religioso, e ao se confirmar
como tal, põem-se em relevo elementos diferenciadores e importantes para a
construção de sua identidade social.
17 Numa sociedade de classes, a ascensão social por meio da escolaridade e do trabalho é possível,
de tal modo, que a ascensão está ligada à ideia de crescimento numa escala social. Certamente o caráter negativo da exclusão e da desigualdade pertinente ao capitalismo não pode ser negado ou desconsiderado, porém, ainda que sua lógica tenha aspectos de perversidade, também é inegável que, contraditoriamente, a ascensão social seja possível, embora nem sempre para todos.
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“Ser crente [...] é romper com a ‘religião de família’, fazer uma
opção voluntária e exclusiva, ter entendimento da religião, participar na
organização da congregação e da divulgação de sua fé, ser um ‘cristão
verdadeiro’, ou seja, ter contato direto com os poderes sobrenaturais
(receber os dons do Espírito Santo) e adotar um estilo de vida rígido
(viver apartado das coisas do mundo). E o motor da identidade crente,
isto é, o que dá realidade a esta identidade, que possui caráter
relacional, que se constrói através do jogo dialético de suas
semelhanças e diferenças com outras alternativas religiosas, encontra
matéria-prima na própria posição subordinada que tem no campo
religioso” (NOVAES, 1985, p. 67).
Os cristãos reforçam os recortes procedidos para a construção de sua
identidade religiosa, enfatizando a importância da experiência comum e da opção
comum que os une. A experiência da conversão marca o início de uma nova vida em
que o passado é renegado e a opção exclusiva por ser cristão implica “viver como
cristão”. A valorização negativa do passado, em contrapartida com a valorização
positiva do presente, leva cada um dos adeptos a realizar sua identidade religiosa no
outro, naquele que teve a mesma experiência de conversão e que optou por “andar
em novidade de vida”.
O Catolicismo, tal como é ali vivido, está imbricado em sua concepção de
mundo, revelando-se por expressões religiosas que colorem suas conversas, pela
importância que se dão aos sacramentos ali instituídos. Ao contrário do que é
presumido no Catolicismo, a Igreja Evangélica através da ênfase na ajuda mútua e da
homogeneidade no modo de vida, tem em seu arsenal de atributos um “locus da
pobreza” onde os adeptos se sentem bem por estarem entre “iguais”.
O que me impulcionou a procurar e desvelar a adoção de um sóbrio modo de
vida, rompendo com a “lei dos pais” proporcionando uma mudança em meu estilo de
vida, com as possibilidades desta nova opção religiosa, foi a proposta oferecida por
este grupo social que me possibilitou compreender as repercussões positivas na
prática da vida socializada, dando crescimento tanto na ocupação da estrutura social,
bem como, no crescimento espiritual. O diferencial dos cristãos está no afastamento
das coisas secularizadas como prerrogativa de “modo de vida correto”, fazendo com
72
que os cristãos evangélicos sejam vistos com admiração e respeito por outros grupos
sociais, além de sempre respeitá-los também como um grupo religioso. Isso não
implica dizer que todos os cristãos estão imunes a intercorrências no decorrer da sua
vida:
“O cigarro, as aventuras amorosas, o jogo, a bebida, a dança, antes
de serem proscritos, são definidores da masculinidade, assim como o
interesse pela moda e as festas fazem parte da vida das moças que
ainda não escolheram seus parceiros matrimoniais. Todos estes
elementos são constitutivos de um determinado momento do ciclo da
vida, da juventude. Porém o casamento e o nascimento dos filhos
mudam a posição do indivíduo, um novo grupo doméstico se constitui
e é preciso implementar sua subsistência social” (NOVAES, 1985, p.
144).
Ao contrário dessa estrutura separatista que impera no Catolicismo, sem que
haja o intuito de depreciar tal instituição, vemos que no âmbito evangélico há uma
característica marcante para com os membros da Igreja, assim como descreve Regina
Novaes (1985, p. 150):
“ [...] e o fato de que a maioria de seus recursos materiais e intelectuais
são de origem local, permite a identificação dos problemas de seus
adeptos e a procura de soluções no próprio seio da organização
religiosa. O que como parte do rebanho em uma religião universal e
hierárquica torna-se bem mais difícil”.
As mudanças fazem parte da realidade de todos, assim como mudar o rumo da
vida que outrora ia para um lugar que muitos, infelizmente, não sabem para onde
estão indo, justamente por não ser uma escolha própria e consciente, mas por ser um
discurso que sempre é transmitido de pai para filho. O homem sobrevive em constante
mudança e com isto passa a adquirir conceitos importantes que o deixam fortalecido
73
para enfrentar os percalços de sua própria vida. Pois, até mesmo na própria instituição
é tratada a maneira como podemos melhor lidar com tais percalços.
3 A OVELHA REENCONTRANDO O CAMINHO DA VIDA
Todos sabemos que viver em um ambiente desfavorável ou até mesmo
abandonados pela própria sorte, em que a falta de estrutura social nos faz cair em
uma selva de pedras, fazendo com que a mudança para um novo cenário aumente as
possibilidades de uma nova vida. Na tradição e na história da Igreja Evangélica estão
à disposição muitas possibilidades que agregaram a meu caráter, nas minhas atitudes
e no meu comportamento como um todo. Viver essa experiência de ovelha perdida na
cidade grande, que encontra uma oportunidade de relativizar a ideia do migrante e
deixar de lado essa visão preconceituosa, aprendendo a ver o outro somente como
diferente, e desfrutar dos benefícios que esta passagem possibilita ao encontrar na
associação cristã é uma forma de substituir as redes de relações primárias deixadas
no local de origem18. Ao nos transferirmos de um celeiro para outro, vem ao nosso
imaginário o que se pode esperar deste novo ambiente. Quais serão as contribuições
que daremos ao fazermos parte de um outro rebanho, sendo que temos de levar em
consideração que a aceitação por parte deste novo “grupo” pode não ser tão produtiva.
Uma ovelha com boa saúde, reconhece-se pelo seu comportamento, pelo seu aspecto
físico e pelo bom funcionamento do seu “organismo social”, tendo como principal
objetivo agregar valor durante o período de estadia, ao ser oferecido um novo modo
de vida. Tendo como princípio básico de comportamento na sociabilidade que deve
ser comum a todos os integrantes. E é nessa nova perspectiva que fui construindo e
adquirindo ferramentas para explorar este novo espaço. A Igreja como um todo
também contribui para a formação de um novo ser que se insere na esfera social
integrado na sociedade.
18 “Na literatura especializada, o ‘pentecostalismo’ aparece relacionado com os processos de
industrialização, migração e urbanização que configuram um modelo de mudança social na América Latina. Neste contexto, os convertidos - através da filiação religiosa - encontrariam uma forma de substituir redes de contato primário e apoio existentes na ‘sociedade tradicional’ e de se adaptar à ‘sociedade moderna’” (NOVAES, 1985, p. 17).
74
Há exatamente 15 anos atraz, recém-chegado à Associação Sobradinho bairro
de comunidade carente, na zona norte de São Paulo, buscava algo que nem eu
mesmo sabia o que era. Entretanto, Este que minha alma almejava e se revelou a
mim era: Jesus Cristo.
Idealizava que, a partir dessa experiência com Jesus, todos os meus problemas
estariam resolvidos, o que foi um ledo engano. Encontrava-me em uma Igreja
Reformada Tradicional em que a única família de negros era a minha. Não poderia
deixar de perceber essa gritante diferença.
Logo após a nossa chegada à periferia de um bairro da zona norte de São
Paulo, um grupo de Missionários Coreanos Presbiterianos começou um processo de
evangelização. Uma das missionárias de nome Lídia, ao detectar que éramos
moradores novos naquele bairro, começou a se aproximar da nossa família. Como o
cabeça da casa ficava o dia inteiro trabalhando e a possibilidade de me encontrar em
casa era muito difícil, a minha evangelização passou a ser algo complicado de
acontecer. Porém, as virtudes da Tia Lídia, como missionária, fizeram com que ela se
aproximasse da minha esposa e ali se deu início a uma nova fase de nossas vidas.
Pois, ao nos evangelizar, falava sempre de Jesus. Aproveitando a oportunidade de
que minha esposa não trabalhava, a missionária conversava bastante com ela. E
como minha esposa sempre me relatava tudo o que havia sido falado pela missionária,
eu sempre a ouvia atentamente. Em virtude da minha criação religiosa e de sempre
ter convivido e tido ligações com questões religiosas desde a minha infância como
coroinha do padre em uma Igreja Católica, eu ficava cada vez mais encantado com
os relatos de minha esposa.
À medida que as visitas da Tia Lidia se tornaram frequentes, minha curiosidade
sobre esta nova doutrina aumentava. A questão mais interessante para mim naquele
momento era ver como essa igreja poderia se mostrar diferente, ou seja, lidar com a
diversidade étnica e social. Sendo que sempre ouvi falar da diferença com que a Igreja
trata o outro. “Na verdade, é que, em última instância, o diferente somente encontra o
seu sentido pleno naquilo que ele não é”.
Como tudo aquilo que a missionária Lídia estava falando era algo novo e
diferente, fui sendo tomado por uma aguçada curiosidade em querer saber como era
a Igreja. Certo dia encontrei a missionária e disse-lhe que iria fazer uma visita à Igreja.
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Era uma quarta-feira, em que se ministrava um estudo bíblico. Pouco antes de
começar o estudo, apareci na porta, para a minha surpresa, todos os integrantes
daquela sala olharam para trás atônicos ao me ver.
A liderança era composta por missionários coreanos. Eles se levantaram e
foram me recepcionar à porta. Para minha surpresa, a missionária Lídia se dirigiu até
a mim e proferiu as seguintes palavras: “Eu estar surpresa pela visita, muitos falam
que vêm e não vem, eu orar para Yahweh e pedir perdão porque conversando com
Ele disse que o senhor não viria, e Yahweh mostrar pra mim que eu estava enganada,
eu deveria bater cabeça na parede muitas vezes, tem que pedir perdão a Deus...”.
Depois daquele dia, minha vida mudou. Tenho absoluta certeza de que a
daquela missionária também com a minha presença, pois ela havia entendido ter
recebido uma pedra preciosa das mãos de Yahweh. Depois da minha primeira visita,
fui com minha esposa à escola dominical. Devido a meu entusiasmo em sempre ter
curiosidade em todos os aspectos, comecei a me interessar pelos estudos bíblicos.
Uma das suas características era a dedicação e o comprometimento em ensinar bem
e de maneira eficaz, embora fossem rígidos na questão de doutrina e zelo pela
Escrituras Sagradas a ponto de enfatizar sobre guardar o domingo literalmente como
diz as escrituras. Em muitos momentos eles eram extremistas e isso chegava a afastar
as pessoas que iam visitar a Igreja e se chocavam com tamanha rigidez com que eram
ensinados. Certa vez, uma criança foi impedida de entrar na Igreja só porque portava
uma fita vermelha no braço, e Tia Su, uma das missionárias, disse-lhe que ela só
poderia entrar depois que tirasse a fita. Tais atitudes causavam espanto para os
recém-chegados.
Comigo foi diferente, apreciava o jeito de como conduziam as coisas porque
sempre gostei do regime disciplinador, os horários de culto eram seguidos à risca, não
se podia chegar atrasado; no coral, se alguma mulher estivesse menstruada, não
poderia cantar no coro da Igreja; em dia de culto aos domingos à noite, tanto a liturgia
como a pregação eram precedidas por um aviso a todos os participantes que o silêncio
era fundamental do início ao término do culto. Como eu tinha criança pequena, eles
se dispunham a ficar com a criança a fim de evitar a evasão de toda a minha família
por acharmos que estávamos atrapalhando o culto.
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Tudo isso me fascinava, e cada fim de semana que se aproximava, minha
euforia em poder aprender era surpreendente, principalmente nos estudos da escola
dominical e nas quartas-feiras quando podia ir. À medida que meus questionamentos
apareciam por causa da tradição católica, que para mim era muito forte, os
missionários se preocupavam, chegando a ponto de, a cada término de uma escola
dominical, eles me chamarem em separado e explicarem algumas questões que no
seu entendimento, não havia ficado claro. Eles se esforçavam ao máximo para que
eu não retornasse com dúvidas ao meu lar e como ainda moro a dez casas da Igreja,
sempre iam até a minha casa para esclarecer alguma dúvida que poderia ter ficado
sem explicações.
Quando por um motivo ou outro não íamos à Igreja, Tia Lídia, como era
carinhosamente chamada, ia nos visitar e saber o motivo da nossa falta, pois, o
cuidado com a nossa família por parte dos missionários era muito intenso. Até aquele
momento não havia indagado a qualquer um dos missionários sobre o tratamento
diferenciado dado a nossa família. Até por parte do pequeno grupo de membros, que
acompanhavam os missionários coreanos na implantação de igrejas, éramos tratados
com muito carinho.
Passados alguns domingos, na escola dominical e nos estudos das quartas-
feiras, os missionários, observando minha vontade de aprender cada vez mais sobre
as Escrituras, intensificavam os ensinamentos com maior profundidade. Um belo dia,
ao qual não esquecerei, Tia Lídia disse-me que, desde o primeiro dia em que entrei
naquela igreja, ela entendeu ser eu uma pessoa muito especial juntamente com a
minha família. E quanto a pedir perdão a Yahweh por desacreditar na minha ida à
Igreja, ela entendeu como tendo sido presenteada e que tinha que cuidar deste
presente como algo muito precioso. Em continuidade à nossa conversa, ela externou
de forma muito emocionada que nunca havia evangelizado um negro e, tão pouco,
uma família inteira, que para ela foi tão forte isso acontecer em sua vida que todos os
dias agradecia a Yahweh por este presente.
E eles levaram tão a sério essa questão que, logo após a minha integração
como membro da Igreja, os estudos recebidos por mim eram cada dia mais intensos.
À medida que ia tomando conhecimento da Palavra de Deus, visualizava uma
intenção por traz de tudo o que estava acontecendo. Isso se confirmou quando os
77
irmãos da Igreja declaravam a todo momento que eu e a minha família éramos muito
especiais e manifestavam ainda o cuidado que deveriam ter conosco orientados pelos
missionários.
Certa vez, Tia Lídia falou-me que Yahweh havia preparado algo de muito
especial para mim e, surpreendentemente, a ouvi dizer que um dia eu iria ser o pastor
daquela Igreja, o que pra mim foi motivo de orgulho. Não no sentido de aguçar a
soberba, mas pela valorização da pessoa que chegou naquela comunidade
recebendo carinho e afeto, que outrora nunca havia recebido, mesmo, porque, quando
se chega a determinados lugares em que predominantemente as famílias que ali se
encontram são brancas, e agora me refiro à Igreja, imaginava que eu e minha família
iríamos nos deparar com uma luta de resistência, até porque toda a atenção estava
voltada para nós. Isso poderia incomodar parte dos membros da comunidade, o que
não ocorreu, pelo contrário, todos me incentivaram e me chamavam de “Seu Eliseu”,
como alguém que um dia iria fazer a diferença naquela comunidade.
Em decorrência dos acontecimentos inesperados para mim, deu-se início a
uma nova etapa naquela comunidade. Foi-me ofertado estudar música e o
instrumento oferecido foi o violino da própria Tia Lídia. Sabíamos que eles, os
coreanos, são muito fechados e reservados, e a maioria dos missionários daquela
comunidade eram de mulheres, que moravam em um apartamento em um bairro da
zona norte da cidade. Por questões éticas e morais, elas não admitiam a entrada de
homens em sua casa. Porém, no momento do convite para estudar música, junto veio
o convite para conhecer meu instrumento musical no apartamento delas, eu e toda a
minha família.
Senti-me honrado com tal gesto, porque, em minha compreensão, aqui no
Brasil, a Igreja continua sendo uma instituição revestida de características que
colaboram para a construção de valores. É um dos campos promovedor mais profícuo
dos ideários de luta dos movimentos sociais e, a partir dela, diversas conquistas
podem ser alcançadas, com vistas à abolição das diferenças e maior equiparação
social. Os movimentos que se processam dentro das igrejas, com a aplicação do
conteúdo programático religioso mais a articulação desse mecanismo social com os
movimentos sociais, políticos, culturais e religiosos, promovem a efetivação de uma
contundência humana, que busca lutar contra tudo o que pode ser opressor e
78
excludente. É notoriamente sabido que aquele que detém o conhecimento teórico-
prático-religioso não se sujeita facilmente ao opressor. Sob a luz do saber, luta contra
o breu da segregação. Sendo assim, as igrejas nutrem o povo de tal forma que ele,
ciente de sua capacidade, de seus direitos, de seus deveres e de sua cidadania, deixa
de ser massa de manobra e passa a ser visionário da esperança de um novo porvir e
gerente de sua vida, na luta igualitária.
E com esse desenvolvimento religioso absorvido de maneira eficaz e frutífera,
comecei a enxergar alguns aspectos na forma horizontal. Quando começou o
processo de transição da Igreja dirigida pelos missionários para uma Igreja já formada
por Pastor, Presbíteros e Diáconos, tive a plena convicção de que tudo seria diferente,
teria de me adaptar a um regime menos rigoroso e passar a aceitar uma doutrina bem
mais flexível. Eu e minha família, éramos sempre confrontados e questionados de
como suportávamos tanta rigidez doutrinária. Porém, para nós, era muito mais difícil
aceitar uma nova doutrina, mesmo que em nosso aprendizado tivéssemos de guardar
o domingo como o dia do Senhor. Na escola dominical, as mulheres usavam saia; não
se podia trajar nenhum tipo de adereço que desse margem a pensar na idolatria; os
horários eram rigorosamente cumpridos, não se admitindo atrasos; e muitos outros
detalhes que não encontramos quando fomos adotados e passamos a conviver com
uma nova modalidade, como membros de uma Nova Igreja. Reconheço que por mais
rígido que foram os missionários coreanos, sentimos muito a falta deles e, por mais
que a nossa cultura no âmbito da igreja fosse diferente, a doutrina recebida pelos
coreanos nos fez pessoas melhores, criando em nós um desenvolvimento
humanitário, cultural e religioso.
O senso de organização e a busca incansável pela honestidade e a sua
cultivação, o respeito ao próximo e a valorização dos princípios como algo inerente ao
homem sempre foram enfatizados por eles. E, ao contrário do que estávamos
recebendo em um novo momento, sofremos com o impacto contrastante de uma nova
forma de doutrina por parte da Igreja que nos assumiu.
Particularmente, todos os ensinamentos recebidos colaboraram para a
reconstrução de um novo homem que passou a ver a vida por um outro viés. Toda a
absorção de conhecimento e ensinamentos doutrinários dados pelos coreanos e a
apresentação de Jesus Cristo como salvador fez com que meu interesse em me
79
aprofundar cada vez mais nos estudos teológicos aumentasse para ser capacitado
em servir a uma comunidade carente de homens instruídos e solícitos.
E ao verem esta vontade de servir, os missionários viram em mim um líder em
potencial para aquela igreja congregacional, haja vista que se fazia necessário a
formação de líderes para continuidade do trabalho, iniciado por eles. A Igreja estava
passando por um período de transição e, com os ensinamentos recebidos dos
missionários coreanos, éramos quase intimados a deixar o mesmo formato e a mesma
característica da igreja iniciada por eles. Foi nesse período em que surgiu o interesse
em fazer Teologia. Não para o pastorado, e sim para tornar-me um líder com
conhecimento para transmissão do saber a fim de contribuir para o crescimento da
comunidade e do meu próprio. Ressalto que foi nesse momento de estudos, na
Universidade, que percebi quanto culturas diferentes interferem na vida do homem,
fazendo com que comece a fazer parte de vários ambientes, onde o que importa é o
repasse da ideologia de cada grupo.
Depois do incentivo para estudar por parte dos missionários e começar a
compreender as várias formas que se apresentam as sutilezas de cada cultura,
comecei a entender o porquê de termos sido tratados com tanto carinho. Hoje pode-
se entender que a Igreja é agente institucional na construção de valores para o negro;
num ambiente onde todos são considerados iguais, já somos tratados como diferentes
mesmo que ingenuamente. Pode-se dizer que tanto os missionários como eu estavam
sendo confrontados com séculos de história de opressão contra o homem negro. A
relação da sociedade escravista, da qual o Brasil se formou, colocou os homens
negros num lugar subalterno na relação intergênero. Mas o que acontece é que
Yahweh nos fez sujeito da nossa história.
Em outras palavras, naquele diálogo com a missionária hoje entendo que fui
liberto do jugo opressor que dizia que o homem negro era inferior ao homem branco.
Para aquela missionária, um negro que caiu do céu com toda a sua família se tornaria
uma pedra preciosa a ser lapidada. Hoje também entendo que, mesmo sem intenção
aparente, a missionária indiretamente buscava o resgate da identidade negra no
Protestantismo e a mudança da face das igrejas protestantes. Em seu entendimento,
uma família negra acabara de ser integrada naquela comunidade evangélica, que
mesmo participando do processo igualitário e a busca pela visibilidade por parte dos
80
negros, os missionários pareciam ter resgatado uma família exclusa do jugo da
escravidão. É preciso compreender que mesmo os missionários, daquela
comunidade, não agiam de forma segregacionista, pois, tiveram sensibilidade de
perceber que um negro, com sua família, se tornaria referência naquela comunidade.
4 A OVELHA DESFRUTANDO DO RIO DE BENÇÃOS
Devido ao meu ciclo nos Correios ter chegado ao término, onde passei 13 anos
trabalhando, e devido a uma proposta de trabalho recebida por parte de um membro
da Igreja Presbiteriana a qual eu e minha família estávamos participando, minha vida
mais uma vez sofreu grande transformação. Essa irmã, que se chama Inez Borges,
ocupava um cargo no Instituto Presbiteriano Mackenzie. Tal proposta me daria a
oportunidade de trabalhar e estudar e proporcionar ainda estudo para meus filhos em
uma instituição de renome como o Mackenzie. Tive de passar novamente por uma
escolha angustiante, só que agora era diferente, havia conhecido Yahweh com mais
profundidade e passei a conversar mais com ele. A partir daí, passei a agir não
segundo a minha vontade, e sim Daquele que nos trata como filhos e nos dá a direção
do caminho a ser percorrido.
Foi uma decisão muito difícil, pois já trabalhava há treze anos nos Correios, e
tinha estabilidade por ser uma empresa estatal. Além do mais havia outra
preocupação, aliás, outras, que era a minha família e a possibilidade de não dar certo.
Essa mudança poderia colocar tudo o que já havia sido conquistado a perder, e eu
estaria assumindo a responsabilidade de ver a estrutura que estávamos começando
a ter ser arruinada por uma decisão minha. Mas como aprendi a viver sobre a vontade
de Yahweh, comecei a articular minha saída dos Correios de forma que a minha
audácia também estivesse sendo externada. Parece redundância, mas não é e digo
o porquê: comecei a confiar em Deus e com isso vem uma atitude humana de se
colocar à frente de Deus e exercer a autoconfiança, mesmo sabendo que seremos
responsáveis pelas nossas ações. Podemos aqui colocar como uma condição de
Conatus.
81
Como eu sempre desfrutei de um ótimo relacionamento com todos nos
Correios, desde o pessoal da faxina até o gerente, não poderia sair pedindo demissão,
e se isso acontecesse não iria receber os meus direitos trabalhistas e a situação ficaria
ruim. Como eu conhecia o Administrador Postal Thomé, por ter trabalhado com ele na
Vila Leopoldina, fui conversar com ele sobre o meu interesse em sair, mas seria
melhor eles me demitirem a fim de garantir os meus direitos trabalhistas. Yahweh na
sua infinita bondade tocou no coração daquele homem para que viabilizasse minha
saída recebendo todos os meus direitos, algo que por ser uma empresa estatal haveria
a necessidade de um motivo e a anuência do Diretor Geral para tal feito. Neste ínterim,
fui falar com a Inez sobre a vaga no Mackenzie. Ela disse que havia uma vaga na
segurança, porém, não poderia garantir o êxito na sua ocupação por mim.
Aconselhou-me a vir falar com o Chefe da Segurança na Universidade, e, ao chegar,
me anunciei-me como conhecido da Inez que trabalhava nos Recursos
Humanos(posteriormente, ela saiu do departamento de RH, para dar aula no próprio
Mackenzie). O Sr. Sergio, da Segurança, disse conhecê-la e pediu para que eu
aguardasse que iria surgir uma outra vaga no departamento. Como tudo na vida temos
de esperar a melhor hora e oportunidade, despertei o interesse em fazer Teologia no
Mackenzie. Fiz minha inscrição e passei no Vestibular.
Devido à falta de recursos e não tendo o dinheiro para pagar a matrícula e tão
pouco as mensalidades, a própria Inez ofereceu-se a pagá-la. Contudo já estava muito
grato a ela pela oportunidade de trabalhar, e, assim, tive vergonha em aceitar sua
ajuda financeira para aquela situação. Acabei pedindo o dinheiro emprestado a meu
irmão e comecei o curso de Teologia. Mais uma vez, pela falta de recursos financeiros
e com a aproximação da mensalidade, fiquei muito preocupado. A Igreja em que
congregava havia se predisposto a me ajudar com o custeio do curso, por entender
que minha contribuição seria muito importante na construção de uma liderança
eclesiástica. No entanto, naquela ocasião ela havia adquirido instrumentos musicais
para o louvor da Igreja e não poderia ajudar-me, pois o orçamento estava
comprometido. Entrei em desespero e disse a mim mesmo que só deixaria o curso no
Mackenzie se fosse impossível de continuar estudando por falta de pagamento.
Tudo apontava para mais um episódio em que deveria contar com a ajuda
Superior. Encontrava-me em um estado de profundo desânimo pela possibilidade de
82
não concluir o curso. A mensalidade venceria no dia 10 de cada mês e, quando
faltavam uns 15 dias, solicitaram que eu comparecesse ao Departamento de Bolsas.
Chegando lá, fui informado que o meu curso de Teologia, assim como o de Filosofia,
seria oferecido a mim com 50% de desconto e, para fazer uso desse benefício, deveria
entregar alguns documentos no departamento. Esse já era um desconto significativo,
porém, meu orçamento não comportava um gasto adicional, a bolsa só serviria como
uma espécie de atenuante. Levei todos os documentos em uma segunda-feira; no
sábado recebi um telegrama solicitando minha presença urgente no Departamento de
Bolsas. Logo imaginei que minha bolsa de 50% havia sido cancelada, e, assim, outra
vez me senti impotente diante do ocorrido, mas comecei a pensar em muitas
possibilidades, menos em abandonar o curso.
Ao chegar ao Departamento de Bolsas na segunda-feira encontrei um
conhecido que hoje é Gerente de Compras no Mackenzie. Contei-lhe o motivo do
telegrama e o meu receio de que a bolsa tivesse sido cancelada, quando ele fez o
convite para que eu subisse para falar com o Gerente de Bolsas, o Sr. Augusto Rosa.
Este era um homem cheio de bondade no coração e temente a Yahweh, que me
ajudou muito depois que passou a conhecer-me. Quando me convidou a sentar,
percebeu minha aflição e brincou dizendo que todas as bolsas de estudos tinham sido
canceladas e que eu deveria fazer o pagamento da mensalidade na sua integralidade.
Após ver pelo meu semblante que acreditara em sua história, reagiu de forma abrupta
e tratou de parar com a brincadeira. Deu-me a notícia que causou um impacto muito
grande em minha vida acadêmica, ele anunciou que o Mackenzie havia feito uma
parceria com o MEC e todos os alunos oriundos de escolas públicas, que passaram
entre os cinco melhores no Vestibular de cada curso, receberia uma bolsa integral até
o término do curso, com a condição de não poder pegar nenhuma pendência. Foram
cinco de todos os cursos, Teologia, Filosofia, Psicologia, Direito, dentre outros. A
minha alegria era tanta que quase não acreditava no que estava acontecendo. Passei
a agradecer a Deus por sua providência e que não atribuísse castigo a mim porque
cheguei a ter dúvidas sobre minha permanência no Mackenzie. Após sair daquela sala
todo entusiasmado e cheio de alegria no coração, olhei para o alto e o agradeci
dizendo: “Obrigado Yahweh!”. E não atente para a minha pequenez porque sou
homem de pequena fé”. Como tudo tem um preço, existia algumas exigências a serem
cumpridas; uma delas era a de não ter nenhuma pendência em qualquer disciplina até
83
o final do curso. Foi um momento muito gratificante, tiramos fotos dentro da biblioteca,
demos entrevista e ainda saímos na capa da Revista do Mackenzie, revista esta que
guardo com maior carinho como recordação.
Passado o primeiro semestre, foi um alívio, porque estava sem estudar fazia
algum tempo e tudo o que se passava na Universidade era novidade; parecia que eu
estava diante de um gigante, assim como na passagem bíblica de David e Golias.
Após a conclusão do primeiro semestre, Yahweh me agraciou novamente. Aquela
oportunidade de mudança de emprego se efetivou e comecei a trabalhar no
Mackenzie como Agente de Segurança, o que me facilitou para poder terminar o curso
de Teologia com um esforço acima do normal, como funciona para todos que querem
trabalhar e estudar e, no meu caso, cuidar da família.
Desde que cheguei ao Mackenzie não parei de estudar, é certo que entre um
curso e outro houve um espaço de tempo. Todavia, mesmo cursando Teologia, fiz
licenciatura em Filosofia e depois ingressei no Curso de Filosofia, onde permaneci por
dois anos. Como dependia do meu emprego, muitos cursos não podiam ser feitos por
questão de horário de trabalho, mas à medida que conciliava os dois sempre
aproveitava as oportunidades e, numa delas, comecei a fazer a Pós-Graduação e a
concluí. Algum tempo depois, me dei por convencido de que não iria estudar mais por
conta das atividades profissionais, mas confesso que não consegui e acabei por
ingressar em um novo curso, o de Lato Senso no Curso de Ciências da Religião.
Tive muitas dificuldades para ingressar. Primeiro foi a aquisição da bolsa de
estudo, que, como funcionário, tenho direito, mas, por não ser um curso correlato com
a atividade profissional, não consegui. Após esse impasse, comecei a buscar uma
bolsa por situação de precariedade. Consegui, obtive um desconto na mensalidade
de 70%, mas mesmo assim ficou inviável. O valor afetaria meu orçamento de forma
drástica e não conseguiria arcar com outros compromissos já firmados, além do
sustento da casa que ficaria comprometido também. Novamente me apoderei do
conhecimento que obtive ao longo dos anos no Mackenzie e fui tentar ganhar mais
desconto. Essa peregrinação resultou em pagar 10% da mensalidade.
Na vida profissional no Mackenzie também desfrutei de oportunidades e
aproveitei todas. Após quase cinco anos trabalhando como Agente de Segurança, fui
84
convidado a atuar no Setor Administrativo da própria Segurança, em que aprendi e
desenvolvi muitos projetos na área. Depois de fazer um bom trabalho na área
administrativa, recebi outra oportunidade, no mesmo departamento: exercer a função
de Encarregado de Segurança dentro da própria Universidade. Função esta que
desempenho com o maior afinco e dedicação neste universo que é o Mackenzie, e
digo que todas as minhas ações como Encarregado de Segurança são motivo de
orgulho para todos que me conhecem e trabalham comigo. Todo o conhecimento que
recebi tanto na vida acadêmica como na vida profissional é externado, a fim de
contribuir com aqueles que carecem deste tipo de atitude.
O tratamento dado ao homem na Igreja Católica se difere do que é apresentado
na Igreja Protestante. Isso não quer dizer que uma seja melhor do que a outra. Na
Igreja Protestante, o tratamento é dado de forma direta, diferentemente da Igreja
Católica, em que o trabalho individual é menos expressivo. E em se fazendo essa
distinção entre os dois segmentos religiosos, passei a introjetar o que denominamos
de “choque cultural eclesiástico”, com a sensação de confusão e incerteza num
momento em que me considerava um neófito, que acabara de descobrir um mundo
totalmente novo e muitas das vezes com sentimentos de ansiedade por querer saber
quais são as diferenças que outrora me fascinavam e que poderiam me afetar a ponto
de mudar de um segmento para outro sem que tivesse preparação adequada. Ao
entrar em um ambiente novo, você se depara, vamos dizer, com novos códigos de
conduta; isso exige uma mudança de postura. Por me encontrar desprovido de
referências adequadas a uma nova realidade onde os conceitos de cristianismo são
diferentes de um segmento para o outro, tive a primeira experiência de me sentir como
diz um dito popular um “estranho no ninho”.
Com a chegada da nossa família à Igreja Presbiteriana, eu, principalmente, vivi
esse choque cultural eclesiástico por dois motivos. O primeiro foi que saí de um
segmento religioso católico em que tive uma presença bastante significativa devido
ter passado a minha infância nesta denominação e lá aprender sobre a (Trindade) e
passar por alguns sacramentos da Igreja. Ao chegar à comunidade protestante
precisei criar um novo modelo de comportamento, que se estabeleceu em uma nova
rotina na vida protestante. A começar pelo que chamaremos de “estrato social
eclesiástico inferior”, dei este nome não por me sentir inferior, mas sim porque a
indicação das diferenças se fez muito presente, assim como as desigualdades entre
85
as pessoas de determinada sociedade. Na Igreja em que frequentava não foi
diferente, existiam ali três grupos de pessoas distintas e mais tarde se tornou quatro:
Missionários Coreanos, Famílias oriundas do Ceará19, A Família do Sr. Eliseu e
algumas pessoas da Comunidade Local.
Uma das características fundamentais da Igreja Protestante que se distinguia
da Igreja Católica foi a aproximação dos indivíduos uns com os outros, fator
predominante no caso por ser uma Igreja pequena, ou melhor dizendo, uma
Congregação sem uma Igreja-Mãe que cuidasse, eram os próprios coreanos quem
faziam tudo. Os investimentos de formação e capacitação, inclusive a manutenção da
Igreja, eram todos feitos de forma que entendêssemos que naquela comunidade
eclesiástica haveria de ter oportunidades em aprender e que quem nascesse servo
não morreria servo no sentido literal da palavra. Comecei a aprender que se nasci
servo do pecado seria liberto por Jesus Cristo, era o que mais a Tia Lídia” falava: “Seu
Eliseu, o senhor vai ser uma nova criatura e deve andar em novidade de vida”.
Com o advento do “choque cultural eclesiástico”, comecei a perceber que os
coreanos gostam de regime hierárquico; de certa forma vivem numa espécie de castas
nesta organização social eclesiástica, pelo menos foi o que pude perceber logo no
início. Na Igreja depois dos missionários coreanos, as famílias mais antigas na
congregação desfrutavam desse privilégio de sistema castoide.20 Como quase todos
eram parentes, as mulheres eram as que mais desfrutavam das benevolências dos
coreanos, acho que por causa da matrifocalidade eclesiástica exercida pela Tia Lídia.
Tia Lídia era, como podemos dizer, a líder mor, era ela quem promovia a preservação
da ordem sob a orientação divina e através das Sagradas Escrituras. Minha relação
com o Sagrado em momentos passados, e com o conhecimento adquirido daquilo que
é Profano num período de distanciamento da Igreja, fez com que tão logo cheguei-me
aproximasse da Igreja Presbiteriana. Passei a ter uma crise de identidade eclesiástica
por conta de tudo que aprendi na outra denominação e umas das primeiras situações
19 Essas famílias originárias do Estado do Ceará eram provenientes de uma cidade interiorana chamada
Jaguaretama, onde todos tinham um grau de parentesco: primo casava-se com prima e até mesmo entre parentes de primeiro grau. Por isso eles exerciam uma predominância muito efetiva no quesito quantidade na Congregação, mesmo porque todos os meses mandavam buscar algum parente para conseguir trabalho em São Paulo. 20 Como em quase todas as congregações, principalmente as evangélicas, as mulheres na maioria das vezes são as que tomam a iniciativa de frequentar uma Igreja, depois evangelizam seus filhos e maridos. Dificilmente o marido vai primeiro; no meu caso, eu tomei a iniciativa.
86
foi o fato de ter de romper de forma brusca com todos os laços com a Igreja Católica,
sob todas as hipóteses, pois os missionários coreanos eram extremamente
conservadores com relação a isso.
Devido ao meu distanciamento da Igreja Católica por um período extenso,
minha aproximação e curiosidade para com este novo seguimento e a vontade de
aprender com bastante afinco fizeram com que eu superasse este novo desafio e me
dedicasse ao estudo da Bíblia. Esses estudos bíblicos me fascinavam de tal maneira,
que não faltava a nenhum deles as quartas-feiras. Além disso, os missionários eram
excepcionalmente dedicados ao estudo da palavra, tinham prazer em esmiuçar os
textos bíblicos e passar adiante tudo o que se podia ensinar. Como sempre demonstrei
vontade de aprender, eles sempre passavam tarefas a serem realizadas em casa a
fim de provocar a vontade de ler cada vez mais.
Sem querer usufruir de uma falsa modéstia, me dedicava tanto nos estudos,
juntamente com o Alessandro,21 que entrou no mesmo período que eu na Igreja e, por
sua vez, também era um excelente aprendiz das Escrituras. Fazíamos perguntas aos
coreanos sobre o que havíamos aprendido nos estudos bíblicos e sempre Tia Su se
mostrava interessada com o nosso interesse em aprender. Tia Su na hierarquia
estrutural dos missionários é quem ensinava sobre a Palavra de Yahweh, dominava a
língua hebraica e a língua grega.
Para melhor esclarecer a questão da hierarquia dos missionários coreanos,
demonstrarei como era formado o arcabouço das Igrejas implantadas por eles e como
esta estrutura organizacional se tornou ponto de referência aos membros daquela
congregação e, principalmente, para mim.
Sempre gostei de disciplina rígida, embora em alguns momentos da vida não
tive tal conduta. Com a chegada nessa comunidade evangélica, me deparei com uma
forma diferente com que os missionários coreanos trabalhavam para o Reino de
Yahweh, trazendo, acredito eu, características peculiares do povo asiático,
principalmente os evangélicos que fazem tudo com muita reverência, dedicação e
21 Este rapaz, embora fosse mais novo do que eu, exercia um esforço acima do normal em aprender. Sua sensibilidade na absorção em conhecer as Sagradas Escrituras encantava a todos, principalmente os missionários coreanos.
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comprometimento. Essa estrutura me contemplou com ensinamentos eficazes sobre
a palavra de Yahweh, trouxe fundamentos sólidos para quem estava iniciando.
Tia Lídia, era a pessoa responsável pela evangelização, era a mentora
espiritual, que tinha a responsabilidade de ir às ruas e de casa em casa no entorno da
Igreja, para evangelizar e apresentar Jesus Cristo como único Salvador. Suas
constantes visitas, em uma casa que abrira as portas para ela, tinham um trato
especial, assim como foi com a minha família. Ela não deixava de fazer orações na
sua entrada e na sua saída de cada lar visitado, e fazia questão de deixar claro que
estava naquele local por que Yahweh mandara. Tia Lídia era muito respeitada pelos
outros integrantes da família dela pela sua devoção e empenho para o crescimento
do Reino de Yahweh.
Aqui tomo como exemplo minha família para falar da estrutura dos missionários
devido a sua conduta ser igual as outras famílias evangelizadas por ela. Tia Lídia
sempre fez questão de frisar que ela pregava a Salvação. Sua insistência em ver a
família que estava sendo evangelizada entender que o caminho era Jesus e fazia com
que a minha aproximação fosse cada vez maior. A devoção e a reverência com que
trabalhava para Yahweh em alguns casos eram muitos rigorosos. Lembro-me de que
certo dia fiquei chocado com sua atitude, melhor dizendo, em várias situações fiquei
pasmo, ela era muito rígida com as pessoas que chegavam à Igreja, não admitia
barulho de criança chorando no culto. Como na época, tinha criança de colo, em
muitas oportunidades deixei de ir ao culto por causa dela, sabia que isso incomodava
os missionários. E todas as vezes que faltávamos no culto, tínhamos a certeza de que
Tia Lídia ia nos visitar para saber o motivo da nossa ausência. Assim,
compartilhávamos o motivo, e ela dizia para não deixarmos de ir por causa disso, pois
éramos muito queridos e sempre haveria alguém para ficar com as crianças.
E sempre íamos aos cultos nos domingos. Tio Dongue e Tio Benjamim
revezavam nos cuidados com as crianças. No entanto, isso não acontecia com todas
as famílias que chegavam à Igreja, algumas deixaram de ir porque os missionários
solicitavam que deixassem seus filhos em casa para não atrapalhar a pregação nem
a ordem do culto. Eles eram muitos rigorosos quanto à ordem no culto, mas com a
nossa família o tratamento era diferenciado. Tia Lídia me chamava carinhosamente
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de Sr. Eliseu e via em mim um líder em potencial. Dizia que um dia eu iria me tornar
o pastor da Igreja, algo que sempre sinalizava como uma profecia.
Tia Lídia entre os missionários era a mais respeitada, como se fosse a líder
suprema de determinado grupo. Essa liderança se estendia a todos daquela
comunidade, tanto é que, sempre que estávamos participando dos trabalhos da Igreja,
era ela que tomava as decisões e sempre era consultada para decidir sobre situações
importantes, era como se fosse um tipo de Moisés quando saiu do Egito com o povo
de Yahweh e passou a peregrinar no deserto.
Já Tia Su era a responsável pelo departamento de ensino. Tinha um
conhecimento das Sagradas Escrituras que nos motivava a buscar este
conhecimento, nos cultos de quarta-feira, que chamávamos de estudo bíblico.
Tínhamos a oportunidade de aprender sobre os livros da Bíblia com profundidade e
dificilmente saíamos com alguma dúvida, ela sempre nos questionava perguntando
se existia algum assunto dentro do que foi falado naquela noite para esclarecer. E, é
claro, que eu e o Alessandro não passávamos despercebidos com nossas
indagações. Isso fez com que os missionários, e principalmente Tia Su, nos olhassem
como alunos diferenciados, nos apresentando estudos bíblicos cada vez mais
intensos e, em contrapartida, nos dedicávamos muito para aprender. Tia Su, sempre
disposta a responder e tirar todas as dúvidas, ainda solicitava algumas leituras para
uma melhor compreensão dos textos bíblicos, além das tarefas que tínhamos de fazer
em casa para o próximo encontro. Na Escola Dominical também era ela a responsável
por ensinar os adultos, porém, com uma diferença, nos estudos bíblicos todos
participavam inclusive os outros integrantes da missão coreana.
Lembro-me de que logo que a Igreja estava para ser adotada, ao que falaremos
deste assunto posteriormente, por uma Igreja que chamavam de Mãe, fomos
convidados a participar de um concurso bíblico promovido pela Igreja Presbiteriana
da Penha e suas Congregações, em um Clube de Campo do Mackenzie, no Cabuçu,
em Guarulhos. O texto bíblico a ser discutido foi o Livro de Oseías, e, como éramos
convidados da Igreja e não conhecíamos ninguém daquela comunidade, nos sentimos
como se fossemos estranhos no meio daquele rebanho. Também havia outro fator
preponderante nesse evento: a diferença social em relação ao nosso grupo. As
meninas da nossa Igreja usavam vestido e nenhum dos rapazes estava de bermuda
89
ou de short, houve um estranhamento generalizado por parte das outras
comunidades. E como era um domingo, a situação ficou pior, pois para os coreanos o
domingo é um dia especial, visto de maneira rigorosa, algo que entenderemos a
seguir. Tia Su havia nos preparado de forma exuberante, tanto que naquele dia demos
uma demonstração de aprendizado das Sagradas Escrituras. Todos ali ficaram
atônitos com a desenvoltura e domínio sobre as perguntas que se faziam e as
respostas dadas pela nossa congregação.
Os Pastores e os Presbíteros que presenciaram as atividades se perguntavam
como pode um povo tão simples e humilde saber tanto sobre os Livros da Bíblia. Para
eles, éramos uma comunidade, ou seja, um agrupamento de pessoas sem instrução
e afastados de qualquer possibilidade de crescimento cultural por sermos moradores
periféricos. Mas naquele momento tínhamos algo que eles não tinham, a dedicação
da Tia Su, com suas peculiaridades do povo coreano, com um fator cultural próprio e
que, de certa forma, eu fui beneficiado juntamente com os outros integrantes daquela
comunidade. Não podemos dizer que eles sejam mais inteligentes, porque inteligência
= algo inato, eles já nascem com aquilo. Não, eles são iguais a todo mundo, mas, com
o pragmatismo da cultura deles, parecem mais inteligentes, sim. O problema é que,
no sistema de ensino asiático, no geral, o importante é apenas a nota e não o
pensamento crítico, e isso fez toda a diferença em nossa cultura. Com tudo o que
aprendemos e assimilamos da cultura coreana, principalmente a dedicação e a
disciplina, ressalto que todos fomos agraciados por tê-los como instrumentos em
nossas vidas. Hoje somos pessoas diferentes.
A filha da Tia Lídia se chamava Ester e era a responsável pelo departamento
musical, tocava teclado e piano. Ester levava tão a sério a música, aliás todos, que
chegava a seguir todo o ritual dos Levitas22 com relação à musicalidade. Sempre tive
interesse em aprender a tocar algum instrumento musical, e Ester sempre se colocou
22 “11Ora, quando os sacerdotes saíram do Lugar Santo, e, de fato, todos haviam se consagrado, não
importando a divisão ou a classe de seus grupos, 12 os levitas músicos e cantores, todos eles, isto é,
Asafe, Hemã, Jedutum e os filhos e parentes deles, vestidos de linho fino, com címbalos, com alaúdes
e com harpas, também estavam em pé ao lado oriental do altar, e juntamente com eles cento e vinte
sacerdotes, que tocavam as trombetas; 13 Os que entoavam as trombetas e os cantores, louvaram e
agradeceram a Yahweh a uma só voz. Ao som de cornetas, címbalos e outros instrumentos, ergueram
suas vozes em uníssono ao SENHOR e cantaram: ‘Porque ele é bom, o seu amor dura para sempre!’.
Em seguida, toda a Casa se encheu da Nuvem de Glória de Yahweh” (BÍBLIA SAGRADA, 2011, 2
Crônicas 5; 11 a 13).
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à disposição para me ensinar, mas eu não conseguia encontrar em mim algo que me
motivasse. Ao contrário do que aconteceu quando estava no “mundão”, onde não saía
das rodas de samba tocando instrumento de percussão. Tia Lídia sempre me
incentivou a tocar violino, chegou até a oferecer o instrumento emprestado, se eu
mostrasse interesse, no entanto, vi que não era a minha tocar violino.
Houve alguns momentos durante o ensaio do coral que eu me atrevia a querer
participar, mas sempre fui desafinado para cantar e isso era externado de forma
explícita quando abria a boca. Até os hinos que eram cantados por toda a
congregação nos cultos e na escola dominical tinha a minha participação de forma
desastrosa. Sempre destoava dos que contribuíam para um perfeito louvor, mesmo
sabendo que chegava aos ouvidos de Yahweh como se fosse aroma suave.
E por eles serem muitos rígidos e disciplinados, com o departamento musical
não era diferente, tomei a iniciativa de não me expor diante da falta, não de força de
vontade, mas sim de um verdadeiro aprendizado e uma força de vontade acima do
normal. Quando eu pegava o microfone e esboçava qualquer iniciativa para louvar,
sempre aparecia um membro da igreja e dizia: “Sr. Eliseu, você vai ser um ótimo
pregador, um ótimo professor de escola dominical, mas para louvar só se Yahweh
fizer uma obra em sua vida”. Todas essas falas eram em tom de brincadeira e, como
eu concordava com eles, levava também na gozação. Sempre me conformei em não
querer participar do coral, porém, aprendi todos os hinos da igreja no hinário Salmos
e hinos (1957) de forma muito rápida, e fazia questão de cantar todos eles com maior
entusiasmo e reverência.
“Os hinos expressam a união dos irmãos na fé, e por conta do conteúdo
de suas letras são também um elemento incentivador de sua militância.
Oração e hinos, no mesmo culto, se intercalam enfatizando ora a
individualidade ora a força do coletivo” (NOVAES, 1985, p. 79).
Ao contrário do que vivi na Igreja Católica em que não se dá muita ênfase à
musicalidade, na Igreja Evangélica a música é muito explorada e logo me identifiquei,
91
por ser algo que sempre gostei. Nos estudos bíblicos tínhamos a oportunidade de
escolher um hino para ser cantado; entre os meus favoritos, paradoxalmente, estavam
o hino número 438, “Alvo Mais Que a Neve”, que expressava meus anseios, e o de
número 438, “Conta as muitas Bênçãos” (SALMOS E HINOS, 1957). Como se
escolhiam os hinos pelo seu número, não tinha a obrigação de dar início, não correndo
o risco de começar desafinado.
Mas como tudo em nossa vida não é um “mar de rosas”, houve um momento
em que fiquei um tanto intrigado e perplexo com a comunidade evangélica. Logo na
minha chegada à Igreja, em que tudo era novo e interessante e, às vezes causava
estranheza, comecei a perceber que na escola dominical e nos cultos à noite havia
poucas meninas e mulheres na igreja, na sua maioria mães com suas filhas. Pouco
depois, me foi esclarecido que, quando essas mulheres e meninas estavam em seu
estado de menstruação, não podiam participar das atividades da Igreja no que tange
ao coral. Somente poderiam retomar as atividades depois que tivesse cessado o
período menstrual.23 Não sei se o termo adequado para essa situação poderia ser
chamá-los de extremistas, não no sentido literal da palavra com o que se pode dizer
sobre os extremistas nos dias de hoje, mas sim extremistas na aplicação das Leis em
relação às Escrituras Sagradas.
Outro integrante dos missionários coreanos foi o Tio Dong. Na ordem
classificatória da Igreja, ele era o responsável pelo departamento dos jovens, sabe-se
que veio para a igreja posteriormente aos outros missionários, pois sua família não
tinha nenhum vínculo com a congregação. Todos os jovens dentre meninos e meninas
gostavam dele, e a sua participação era somente aos domingos na escola dominical
e no culto à noite. Bem mais comedido que os outros missionários,Tio Dong, sempre
estava de bom humor e supereducado para com todos. Ele exercia a função de
diácono aos domingos, além de cuidar de meus filhos, mais especificamente o
Douglas, que requeria atenção especial por ficar correndo na Igreja e atrapalhando a
pregação. Como ele, todos os missionários tinham um carinho especial com a nossa
23 "Quando uma mulher tiver fluxo de sangue que sai do corpo, a impureza da sua menstruação durará
sete dias, e quem nela tocar ficará impuro até à tarde. Tudo sobre o que ela se deitar durante a sua
menstruação ficará impuro, e tudo sobre o que ela se sentar ficará impuro” (BÍBLIA SAGRADA, 2011,
Levítico 15; 19).
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família. Ficávamos incomodados com a situação, mas conseguíamos manter a nossa
atenção na pregação, e quase todos os domingos após o culto eu ficava meditando
sobre o texto bíblico lido e pregado. Se tivesse alguma dúvida, esclarecia na quarta-
feira, no estudo bíblico, e com isso aprendi muito. Além da simpatia, também não
poderia deixar de externar o aprendizado que tive com o Tio Dong e que carrego em
minha caminhada nesta vida.
Embora os missionários não deixassem transparecer, mas percebia-se que
eram pessoas com alguns recursos financeiros, havia quem dizia que recebiam verba
dos seus compatriotas da Coreia para implantação de Igrejas, e outros tinham
atividades seculares que os possibilitavam ter uma estrutura favorável no Brasil. E foi
nesse momento que o Tio Benjamim (falarei dele mais à frente) anunciou o seu
casamento. Os missionários decidiram levar só os jovens da igreja, incluindo, é claro,
meu filho Anderson. Porém, era um momento em que eu e minha família não nos
consubstanciávamos de um relacionamento extenso a ponto de ir a um casamento,
no qual a desigualdade social era grande. Além disso, não tínhamos condições de
comprar roupas para meu filho ir ao casamento. Sempre fui um tanto reservado, não
porque o senso de inferioridade me contemplava, e sim por não querer que o meu
filho, mesmo que seja em um casamento evangélico, pudesse se deparar com uma
situação em que as pessoas fazem acepção diferenciada, mesmo que isso seja feito
de forma velada, e desse modo se sinta um “estranho no ninho”24. Como já me senti
em alguns momentos destoado daqueles que estavam ao meu redor, nesta relação
de espécie de casta, disse para os missionários que o meu filho não iria ao casamento
porque não teria roupa adequada para um evento dessa natureza. Ao comunicar a
meu filho e explicar-lhe o motivo de não ser possível a sua ida ao casamento, ele
começou a chorar dizendo que queria ir à festa e contou aos outros membros da União
Presbiteriana dos Adolescentes (UPA) o motivo de não poder ir. Tal comentário
chegou aos ouvidos do Tio Dong, que logo veio dialogar comigo e saber o real motivo
da ausência do garoto no evento. Desse modo, deixei claro que o meu filho poderia
se destoar dos outros convidados por sua condição social e até mesmo por se tratar
24 Esta posição de me sentir estranho no ninho não quer dizer que faça parte do meu cotidiano sentir-me excludente ao que tange uma sociedade onde a desigualdade social é muito grande e por, assim dizer, não conseguir conviver com o diferente. Pelo contrário, tal postura evita o constrangimento interno do próprio indivíduo. É uma maneira de nos preservar, pelo fato de estarmos em lugares requintados diferentemente daqueles frequentados por nossa etnia populacional. Ao que tudo indica a recíproca é verdadeira.
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de pessoas de etnia diferente. Além disso, havia o fato de que suas roupas não eram
adequadas para a ocasião, e eu não tinha dinheiro para comprar outras. Segundo
Florestan Fernandes (2008a, p. 368):
“O preconceito de cor, bastante atenuado atualmente, ainda é um
obstáculo muito grande a ser vencido, eis que os próprios pretos, quase
em sua maioria, aceitam-no como uma condição inevitável, limitando
as suas pretensões e colocando-se, a si próprios, numa situação de
inferioridade”.
Foi nesse momento em que ele me disse algumas palavras que mudaram o
meu conceito, não só naquele instante, mas que carrego em meu coração como um
aprendizado que repasso para todos que tenham senso de inferioridade: “Seu Eliseu,
tem alguns acontecimentos na vida que nunca esqueceremos, que nos deixam
marcas e se o Sr. não permitir que seu filho vá ao casamento, ele ficará frustrado ao
ver que todos os jovens da mesma classe social e da mesma igreja foram ao
casamento e ele não. Isso vai fazer com que seu filho nunca esqueça deste dia, deixe-
o ir, sei que tem motivos que não discutirei no momento, porém, ao deixá-lo ir, alguns
paradigmas serão quebrados e até mesmo o preconceito pela cor da pele”.
Todo esse processo de sentimento de inferioridade se dá porque somos muito
influenciados pelo meio em que vivemos e por tratar-se, no caso em questão, de uma
festa requintada. Não permitiria que ele passasse vergonha ou sentisse vergonha da
sua origem por estar no meio de pessoas com poder social elevado, algo que o
encabularia. Isso ocorre, pois, alguns padrões são impostos pela sociedade e, quando
alguém não se encontra dentro de um modelo esperado, pode sofrer preconceito e
ficar um complexado. Era isso que eu, como pai, estava evitando. Hoje, depois da
lição do Tio Dong, não agiria dessa forma. E acrescento que um pai, antes de
desenvolver a autoestima de seu filho, deve desenvolver a sua. Este excesso de
comparação, de cobranças e exigências irreais em muitos casos acabam
prejudicando os homens, que podem criar crenças destrutivas ou construtivas que irão
prejudicá-los ou fortalecê-los. Contudo, em qualquer momento das nossas vidas
podemos desenvolver complexos. Nem sempre depende de como o outro te enxerga,
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e sim da maneira equivocada com que criamos as diferenças, levando em conta nossa
situação social. Não necessariamente temos de passar a vida sem reagir às situações
do cotidiano, sem a perspectiva de mudança. É um ledo engano achar que somos
uma raça inferior.
As pessoas podem se supervalorizar em detrimento de outras, mas o poder de
reação está em cada um de nós que acredita em seu potencial para uma ascensão
social, como no caso de David e Golias, onde cada um lidou com sua diferença e
explorou em si o que havia de melhor para aquela ocasião.
Outro integrante que fazia parte do grupo de missionários coreanos é o Tio
Benjamim, o noivo citado anteriormente. Ele era o responsável pelo departamento
infantojuvenil, seu modo de se relacionar com os jovens sempre foi algo admirável por
todos principalmente para mim. O Tio Benjamim cuidava de um dos meus filhos e, por
ser um irmão muito querido e educado, sempre me ajudava com suas conversas na
educação dos meus filhos, mesmo não tendo filhos. Quando se aproximava sempre
vinha acompanhado de algum ensinamento para que aplicássemos na educação
doutrinária de nossos filhos. Como muitos dos jovens não tinham a presença de seus
pais na Igreja, o Tio Benjamim era um tipo de aio” para eles.25
A Igreja em sua composição estrutural era bem definida, não da forma oficial
de uma Igreja composta por um Pastor, Presbíteros e Diáconos, mas todos tinham as
suas funções predefinidas. No momento da celebração da Santa Ceia, que ocorria
uma vez por mês, um Pastor de fora era convidado para ministrá-la e para realiza
outras atribuições comuns que competiam àquele membro eclesiástico.
A nossa convivência naquela pequena igreja (Congregação), localizada num
bairro de periferia da zona norte de São Paulo no Jardim Fontalis, foi muito
enriquecedora, com uma produção doutrinária, disciplinadora e intelectual, que não
só fez com que tivéssemos um crescimento espiritual, mas também nos preparou para
enfrentarmos o mundo secular através de outro viés, até mesmo quando estávamos
para ser assumidos por uma Igreja-Mãe em que os valores e referenciais aprendidos
25 “A palavra ‘aio’ ou ‘tutor’ vem do grego que quer dizer, literalmente, ‘uma pessoa que conduz uma criança’. Os aios na época de Paulo foram servos responsáveis pela proteção dos filhos de seus senhores, levando-os para a escola, corrigindo-os, etc. Não foram os professores, nem os pais, mas serviam para cuidar da criança. É claro que esta função foi temporária. Quando o filho chegava à maioridade, não estava mais sujeito ao aio” (BÍBLIA SAGRADA, 2011, Gálatas 3:24-25).
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com os coreanos não se assemelhavam com o da outra Igreja. Nesse período
contávamos com alguns colaboradores que contribuíam de forma muito significativa.
Um desses foi o Presbítero Luiz, um homem consagrado e temente a Yahweh, de
uma simplicidade, mesmo sendo um conhecedor das Sagradas Escrituras. O
Presbítero Luiz acompanhava os missionários coreanos na implantação de igrejas
colaborando em dois domingos por mês. Quando sabíamos que era ele quem iria
pregar, a evasão no culto à noite era quase mínima. Todos ali apreciavam a sua forma
de pregação, inclusive eu, que aprendi muito com ele, até mesmo na sua forma de
falar, os gestos com as mãos e a entonação da voz, que em dados momentos do culto
me fascinavam.26 Realmente me espelhei na sua forma de pregar o Evangelho.
Depois de algum tempo, quando já havíamos sido transformados em Congregação da
Igreja da Penha, desenvolvi meu próprio estilo de pregar e todos também se
encantavam com o meu desenvolvimento e desenvoltura para falar.
Existem pessoas que de um jeito ou de outro mudam de alguma forma a nossa
vida ou até mesmo a nós mesmos. O Presbítero Luiz foi um irmão que passou pela
minha vida e na de outros, me ensinou a melhorar e contribuiu muito para o meu
crescimento espiritual, demonstrou como deve ser um líder. É certo que aprendi muito
com ele, mas tinha consciência de que não chegaria ao seu status mesmo sabendo
que quem nos capacita é Yahweh, algo que não tenho dúvida. No início, quando subia
no púlpito para pregar, tentava seguir o seu modo de falar, de gesticular. O que mais
eu admirava nele era sua maneira de falar com um coração temeroso. Ele sempre
dizia: “Não podemos brincar de ser crentes”.
Logo no começo de uma nova etapa de transição para sermos Congregação
da Igreja Presbiteriana da Penha, os irmãos missionários coreanos de nossa igreja
eram vistos como extremistas, não no sentido literal da palavra, mas por causa dos
usos e costumes rígidos. Eram vistos como cumpridores dos mandamentos quase
que na sua totalidade, procurando seguir alguns ritos totalmente arcaicos, causando
estranhamento da realidade na qual fomos inseridos. Como em todo e qualquer lugar,
26 Deixo claro que, pela sua dedicação e compromisso e a forma fidedigna e reverência com que o Presbítero Luiz explanava As Escrituras Sagradas, nos prendíamos na forma diferente de entender com facilidade a mensagem por ele desenvolvida.
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quem chega tem de se adaptar às normas regidas por quem já está estabelecido em
um processo de aculturação.27
Porém, a Igreja que nos adotou designou um presbítero que atuava na Igreja-
Mãe. A nossa igreja ficava na zona norte, próximo ao Jaçanã, e a Igreja-Mãe, na zona
leste no bairro da Penha. Essa família, composta pelo presbítero com sua mulher e
sua filha moravam bem próximo da nossa igreja, então ficou mais fácil para que o
trabalho se desenvolvesse na teoria. Pelo fato de a Igreja-Mãe não ser tão
conservadora, mas sim tradicional, houve um choque cultural eclesiástico entre as
duas e a convivência naquele momento ficou um pouco tensa. Nessa ocasião, eu já
havia me desenvolvido espiritualmente o bastante para poder assumir a liderança na
Igreja, caso os coreanos aceitassem a Igreja-Mãe para ser a tutora de nossa
comunidade. Quando isso começou a acontecer, as diferenças entre um povo e outro
se afloraram, dada as dessemelhanças culturais e econômicas. De um lado, uma
igreja onde só eu tinha uma posição profissional, pois na época trabalhava nos
Correios. Os outros trabalhavam na sua maioria de ajudante de pedreiro, pedreiro e
as mulheres eram costureiras autônomas e que ainda costuravam roupas para vender
no bazar da igreja. Do outro lado, os membros da Igreja da Penha, em sua maioria,
tinham uma posição social privilegiada, eram profissionais liberais como médicos,
engenheiros, tal como o presbítero que ajudava em nossa igreja, um advogado bem-
sucedido, casado com uma psicóloga muito requisitada no meio em que convivia.
A diferença era tanta entre as duas comunidades, que logo se via pela maneira
de vestir, principalmente entre os jovens. As meninas em relação aos meninos da
nossa comunidade sofriam muito mais; os meninos usavam calças e camisa normal,
no entanto, as meninas em todas as atividades da Igreja lá estavam elas de vestido
que quase chegava ao tornozelo. O presbítero e a sua esposa tentaram mudar isso
em um curto espaço de tempo, mas suas tentativas, não na sua totalidade, foram
infrutíferas. Para eles, os processos renovadores não incluíam em seu âmago os
principais fatores doutrinários da vida da Igreja. Os processos denominados pela nova
igreja, que para eles eram arcaicos, mantinham o passado no presente sem que
27 Conjunto das mudanças resultantes do contato, de dois ou mais grupos de indivíduos, representantes
de culturas diferentes, quando postos em contato direto e contínuo. A transmissão de elementos de uma cultura vai sempre precedida por uma relação, que implica a aceitação de alguns e a rejeição de outros elementos culturais.
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tivéssemos um olhar através da luz da Escrituras. Os missionários coreanos não
admitiam tal mudança porque, para eles, as mulheres e as mocinhas deveriam trajar
roupas adequadas para o Senhor como forma de reverência.
“De outro lado, a mudança aculturativa pode
ser retardada, como decorrência de ajustamentos
internos, que se seguem à aceitação de traços ou
padrões estranhos; ou pode ser uma adaptação reativa
de modos de vida tradicionais. Sua dinâmica pode ser
vista como: Adaptação seletiva de sistema de valores:
Processos de integração e diferenciação: Geração de
sequências de desenvolvimento: Resultantes de
atuação de determinantes ligadas a papéis e a fatores
de personalidade” (PEREIRA, 1974, p. 33-34).
Outra situação que causou encalistramento foi o fato de que, todas as vezes
que o culto ou uma solenidade iria começar, era anunciado por uma sineta que
preanunciava a chegada do pastor ao púlpito, e os missionários faziam questão de
tocá-la. Para uma igreja tradicional como a que estava chegando, isso era ultrajante.
Mas as questões não paravam nesses dois episódios. Algo que incomodou e muito
as duas partes foi a questão da guarda do domingo: por um lado, uma igreja tradicional
e por outro, uma igreja conservadora.
Todos que frequentavam a Igreja tinham por costume deixar tudo preparado no
sábado para não ter de fazer qualquer atividade nos domingos. Como eu era o caçula
da Igreja e desfrutava da simpatia dos missionários, e o fato de não ter tido esses
hábitos em minha vida secular, burlava todos os rituais dominicais neste sentido. Era
muito complicada toda essa situação de não poder lavar roupa, não recolher as roupas
do varal, não poder ir à feira comprar frutas e legumes. A feira na Vila Zilda era e é
até hoje aos domingos. É a mais popular da região, com preços que atendem a nossa
realidade. E quando nos deparávamos com algum irmão indo embora em seus carros,
tínhamos uma certeza: os missionários iriam exortá-los por essa prática. Até o hábito
de fazer comida aos domingos era censurável, tudo haveria de ser feito no sábado,
porque domingo é do Senhor, e não se faz nada além de cultuar Yahweh. A Igreja que
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iria nos adotar reprovava essa conduta. O posicionamento dos missionários era tentar
à luz das Sagradas Escrituras explicar que não deveríamos levar ao pé da letra, e sim
rever o contexto histórico para a devida aplicação.
“Por isso mesmo, a transferência dessas produções
culturais de um ecossistema para outro, e mesmo
durante o seu crescimento, exige-lhes um continuo e
hibrido processo de adaptação ao meio ambiente”
(SILVA; HENDERS; CAMPOS, 2014, p. 146).
Após a confirmação dos missionários coreanos de que a Igreja Presbiteriana
da Penha iria ser a nossa Igreja-Mãe, passamos a conviver com os presbíteros
designados a essa colaboração. Foi um período de transição muito tumultuado, de um
lado uma igreja conservadora que chegava quase ao extremo e, do outro, uma igreja
tradicional que chegava quase ao liberalismo guardadas as devidas proporções.
Os processos de mudança que operavam na diferenciação e na integração da
estrutura da Igreja quase não repercutiam no padrão de ordenação eclesiástica, a
maior dificuldade entre as duas era a da falta de sincronização, no que tange à grande
diferença social entre elas. No início parecia que a transição iria acontecer de forma
tranquila e harmoniosa, mas o que ninguém esperava era que os conflitos por
questões doutrinários começaram a se externar. Os membros da nossa igreja,
inclusive eu, não estávamos nos adaptando28 a essa nova forma de doutrina e, com
isso, vieram os conflitos doutrinários, na forma de liturgia, na celebração da Santa
Ceia, na reformulação da escola dominical e, o que mais causou desconforto e até
mesmo intrigas, foi com relação ao batismo. Os missionários diziam que o batismo
era um só e que se alguém já havia sido batizado em outra igreja não precisaria passar
por outro ritual. Quando a Igreja-Mãe nos assumiu, eles disseram aos membros que
tínhamos de ser batizados novamente; alguns aceitaram, outros não. Esses pontos
divergentes só serviram para aumentar o descontentamento da nossa igreja em
28 “Compreende aqueles fenômenos que resultam quando grupos de indivíduos com diferentes
culturas entram em contato direto e continuo com mudanças subsequentes nos padrões culturais de um ou ambos os grupos” (PEREIRA, 1974, p. 31).
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relação aos membros da Igreja-Mãe. Sua proposta para conosco era boa, e as ações
que iriam se desenvolver causariam um impacto positivo no bairro. Logo no começo
foi nomeado um Pastor para ficar na Igreja em tempo integral. Como não tínhamos
Pastor na época dos missionários coreanos, ficamos muito empolgados com a ideia.
Éramos uma igreja pequena, os pastores iam uma vez por mês para ministrar a Santa
Ceia.
Com a chegada do Pastor Marcelo Coelho, nossa vida dentro e fora da Igreja
mudou, e a minha muito mais. Não que somente eu tivesse sido abençoado, pelo
contrário, todos fomos, mas é que sempre tive a necessidade de buscar em pessoas
especiais algo que poderia acrescentar em minha vida, assim como aconteceu na
minha juventude, com o Presbítero Luiz Faria e muitas outras pessoas que agregaram
e muito para o meu desenvolvimento como homem.
Com o Pastor Marcelo, não foi diferente. Apesar de ter quase a mesma idade
que a minha, sua experiência espiritual me fez enxergar o mundo por outro viés. Com
os ensinamentos que obtive com os missionários coreanos, com o Presbítero Luiz,
com o Presbítero da Igreja-Mãe e a sua esposa e, consequentemente, com o Pastor
Marcelo e outros tive a oportunidade e o privilégio de, em uma única igreja, de conviver
e aprender com várias competências, tornando-me um homem mais flexível e aberto
às mudanças. Tornei-me mais tolerante com as diferenças, ao contrário do que vivi
em minha juventude, em que se tinha de se mostrar respeitável para ser aceito. Enfim,
tornei-me mais maduro para enfrentar os desafios da vida dentro da Igreja, assim
como no mundo secular.
Dentro desse bojo, a minha constatação foi que o convívio entre etnias e
pessoas distintas não pode deixar de existir, pois, quando isso acontece nos
enfraquecemos, deixando um dos maiores e mais importantes mandamentos que é
amar ao nosso próximo como a nós mesmos. A primeira lição que aprendi na aula da
escola dominical, ministrada pelo Pastor Marcelo, em seu primeiro dia na Igreja, de
forma oficial foi: “Bem-aventurado o homem que tem fome e sede de Justiça”. Esse
estudo foi muito construtivo, de tal forma que, até hoje quando o encontro, falo da sua
primeira aula. O Pastor Marcelo se tornou meu amigo e muito querido por toda a Igreja.
A relação dele com os membros era das melhores, além de ter sido o primeiro pastor
da nossa igreja. Ele como Pastor tinha a responsabilidade de formar uma liderança
100
para a nossa igreja, e deu-se início um estudo bíblico voltado à capacitação de líderes.
Foi nessa época que comecei a fazer parte desse estudo e me aprimorar. Sempre
gostei de tomar a iniciativa em tudo, e isso facilitou para adquirir um conhecimento
específico voltado para um bem comum.
Com o meu desenvolvimento e de outros irmãos, decidiu-se, por meio do
Conselho da Igreja-Mãe, que a nossa igreja já comportaria a eleição de dois diáconos.
E, como haveria eleição na Igreja Sede para Presbíteros e Diáconos, iriam designar
dois para a congregação. Nesse período já havíamos participado de alguns eventos
na Igreja Sede e passamos a conhecer os irmãos que congregavam naquele local.
Quando chegou o dia da eleição para oficiais da Igreja, fomos todos participar do
evento e, como era de esperar em Yahweh, fui eleito o primeiro Diácono da nossa
congregação por unanimidade.
Como éramos uma congregação nessa época, não poderíamos ter o nosso
próprio conselho, e sim uma Mesa Administrativa, composta pelo Pastor Marcelo, pelo
Presbítero Mario (nome fictício) e sua esposa e eu como Diácono. Esse diaconato foi
um ofício que desenvolvi com a maior satisfação. Incluindo os requisitos exigidos para
o diaconato e as suas atribuições, fui muito mais além do que o oficio exigia. Foram
cinco anos à frente desse oficialato que me fizeram crescer muito como pessoa; o
crescimento espiritual foi tão intenso que se fosse para escolher ficaria como diácono
em vez de ser um presbítero, tamanha era a minha satisfação em ajudar o próximo,
algo muito impactante na minha vida.
Além da minha função, em muitos casos e em diversos momentos fazia as
vezes do pastor. Sempre que um irmão não ia à Igreja, lá estava eu indo fazer uma
visita àquela família que se ausentava, sempre com a preocupação em atender às
famílias que necessitavam, com orações, em conversas para ver se de alguma forma
poderíamos ajudar e, dependendo da necessidade, entregávamos mantimentos para
suprir a falta de tal. Uma vez por semana fazia visitas aos mais idosos, não só por
causa do meu ofício na Igreja, mas também por ter um ótimo relacionamento com
todos e isso estreitou a comunhão e os laços de amizade, assim como foi com o Pastor
Marcelo, que me ajudou e muito a desenvolver o meu oficialato na diaconia.
Certa vez, quando o Pastor Marcelo já havia saído da Igreja e estávamos no
aguardo de outro pastor, ou seja, estávamos em um período de ausência pastoral, a
101
Igreja combaliu, digamos, se sentiu órfã e as frustrações trouxeram para cada membro
uma sensação de abandono e descaso por parte da Igreja-Mãe. Dado o motivo da
Congregação me considerar como um pastor, por causa dos cuidados que tinha com
cada irmão, desde as crianças até os adultos e idosos, tive de alguma forma tomar a
frente de alguns trabalhos na Congregação. No entanto, não sabia por onde começar,
não sabia como deveria proceder diante de tamanha responsabilidade.
Foi nesse momento de insegurança e até mesmo de acreditar que não seria
capaz de assumir tal responsabilidade, que fui ter uma conversa com o meu velho
amigo e irmão em Cristo, o Presbítero Luiz, citado acima como o responsável por eu
conhecer um cristianismo autêntico e verdadeiro no que tange à conversão de um
homem, não que as outras religiões não sejam verdadeiras, mas no aspecto pessoal
dirigido a mim. Pois aprendi no meio evangélico outros valores e outros referenciais
que me ajudaram nesse momento de crise da igreja. E o Presbítero Luiz me fez abrir
os olhos a fim de enxergar a necessidade da Congregação e como eu poderia
contribuir com tudo aquilo, e disse mais: “Yahweh tem te capacitado e há de capacitar
mais ainda, porque esta obra não é de homens é Dele”. Foi quando orei a Yahweh e
agradeci a Ele por mais esta oportunidade de desafio contando com a sua proteção.
Pois, haveria de contribuir com a pregação nos cultos, nos estudos de quarta-feira, na
abertura da escola dominical e com os estudos para os adultos, além de desenvolver
o meu diaconato.
Todos na congregação me consideravam como o Pastor da Igreja e até hoje a
consideração nesse sentido é imensa, tanto é, que alguns pastores consagrados
sempre me perguntaram quando eu iria me tornar um pastor. Essa oportunidade me
fez crescer espiritualmente e a cada desafio, a cada queixa dos irmãos, eu aprendia.
Quando alguma questão estava difícil de resolver, colocava meus joelhos no chão e
pedia direção para Yahweh a fim de dar continuidade ao trabalho e sempre recorria
ao Presbítero Luiz para receber orientações pertinentes à questão. E Yahweh usou
de benevolência para comigo usando pessoas como instrumentos espirituais para
abençoar minha vida. Logo que tudo começou a se acertar, fizemos algumas
programações na Igreja para que não tivéssemos tanta evasão e, com isso, tentar
suprir de alguma forma a ausência daquele que tanto almejamos, o Pastor.
102
Depois de algum tempo, a Igreja-Mãe designou outro Pastor para atuar de
forma integral na Congregação. Mas como não conseguimos agradar a todos, a
primeira coisa que ele fez foi me podar de algumas atribuições que ele entendia que
era da sua responsabilidade. Isso mexeu novamente com a Congregação. Havia
certas atitudes que eu não entendia e não aceitava. Em virtude da minha longa
permanência nas ruas da periferia, vi alguns procedimentos que não imaginava que
pudessem acontecer dentro de uma igreja, tais como: falar da vida alheia, não ajudar
a quem precisa e mais algumas situações que não convém comentar. Com o tempo,
o novo Pastor foi conhecendo os membros e passou a escolher as pessoas para
ajudá-lo com os trabalhos da Congregação, e eu voltei a exercer meu oficialato de
forma integral. Em algumas visitas, o Pastor me acionava para ir com ele, pois como
alguns membros moravam em bairros vizinhos e até mesmo distantes, tinha a
incumbência de acompanhá-lo.
Em decorrência da minha intensificação como diácono, comecei a fazer visitas
novamente nas casas que precisavam de assistência, e uma situação inusitada
aconteceu. Havia na Congregação, a família do Zé da Creche, composta por sua
mulher, Maria, e nove filhos. Alguns deles frequentavam a Congregação, no entanto
o Zé da Creche e a Maria não faziam parte da Igreja. Devido à situação precária em
que viviam, eu na condição de diácono sempre fazia visitas à família e levava cestas
básicas. Com a chegada do novo Pastor à Igreja, quase tudo passou a ser do seu
jeito. Assim que solicitei algumas cestas básicas para a Igreja-Mãe, o Pastor me
questionou sobre a real necessidade das famílias que recebiam tal ajuda e disse-me
ainda que era importante reavaliar as pessoas que recebiam auxílio da Igreja e
relacioná-las para que ele pudesse ter um controle maior.
Essas famílias, na sua maioria, viviam em bairros sem nenhuma infraestrutura,
eram carentes de necessidades básicas, como esgoto, luz e asfalto dentre outros
itens. Quando me foram enviadas as cestas básicas vindas da Igreja-Mãe, a primeira
coisa que fiz foi colocar uma dentro de meu fusquinha e, em vez de ir direto para casa
do Zé da Creche, fui à casa do Pastor e disse: “Vou entregar uma cesta básica para
aquela família que possui nove filhos, o Reverendo quer ir comigo, assim terá a
oportunidade de conhecer os pais daquelas crianças que estão frequentando a
Congregação. Chegando lá, o Senhor poderá avaliar melhor a situação e ver com
seus próprios olhos se temos de ajudar esta família ou não”. Depois de uma pequena
103
insistência da minha parte, ele aceitou o convite e nos dirigimos à casa daquela
família.
Como eu conheço todos os bairros no entorno da igreja, sabia que para chegar
à casa deles haveríamos de subir morro e descer morro, passando no bojo de algumas
favelas. No caminho, pude perceber que o Pastor estava ficando assustado e a todo
instante me perguntava se estávamos chegando, foi quando avistei o último morro e
disse-lhe que era só descê-lo. Quando paramos em frente à casa, o Pastor desceu do
carro, observou bem o visual e disse que o lugar em que estávamos era estranho e
assustador. Logo depois, proferi a seguintes palavras: “Se o Senhor não guarda,
Pastor, em vão vigia a sentinela”. Nesse momento, começamos a subir as escadas
do barraco, e fomos convidados a entrar na casa, que não tinha porta, somente um
lençol que cobria o vão. Como é de costume em todas as casas que visitamos, sempre
nos é oferecido um café, no mínimo. Quando visitamos à casa dos irmãos vindos do
Ceará, eles quase nos oferecem um banquete, sempre acompanhado de doce de leite
e, o que mais gostava, os queijos. Nesse dia, na casa do Zé da Creche, eles não
tinham nem o leite das crianças. E como a ajuda para eles não vinha só da igreja,
sempre a Maria pedia para que um dos seus filhos fosse até a nossa casa para ver se
ajudávamos com mantimentos. Ao fazer esse relato para o Pastor, ele disse: “Esta
família não precisa de uma cesta básica, eles precisam de três”.
As várias situações que vivi como diácono da Igreja fizeram com que eu olhasse
o outro, ou melhor dizendo, o meu semelhante com outro viés. Sempre ajudei as
pessoas mesmo tendo pouca idade, mas como diácono aprendi que há pessoas que
têm muito mais necessidade do que eu. Ser usado como instrumento de Yahweh para
ajudar o próximo é uma ação muito enriquecedora, tanto espiritual como pessoal. E
tenho a certeza de que o Pastor que foi fazer a visita comigo teve uma experiência
inédita e que contribuiu para ele ver que na Igreja existem vários povos de diferentes
classes sociais.
As diferenças na Igreja começaram a desaparecer e, com isso, a comunhão
entre os irmãos começou a se externar de forma harmoniosa e pacífica, todos lutando
por um bem maior e comum a todos. Logo após a chegada do Pastor, a nossa Irmã
Inez deu início a um projeto antigo que tinha para a nossa Igreja, uma escola infantil.
104
Por princípio, dois de meus filhos estudavam na escolinha e eu contribuía em meus
momentos de folga na parte administrativa e operacional da escola. Fiquei muito
contente em ter tido a oportunidade de ver meus filhos estudando na escolinha, pois
me fez lembrar de quando estudei na escolinha infantil da Igreja Católica onde aprendi
sobre Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. E até os dias de hoje não me
esqueço do aprendizado e tenho certeza de que meus filhos também não.
Desde que iniciei o diaconato já havia sido informado que deveria compor a
Mesa Administrativa da Congregação. Assim, sempre utilizei o aprendizado que tive
em minha vida secular em toda a situação que demandava o relacionamento
interpessoal. E isso me ajudou a compreender e entender as diferenças e a integração
de um povo que busca a Justiça, o Amor e a Misericórdia de Deus, para que a sua
Graça seja derramada sobre todos nós. E desfrutando de todo esse conceito adquirido
ao longo da trajetória vivida neste mundo, onde sempre me importei com a
desigualdade social e com o bom relacionamento interpessoal, fiz sempre valer uma
máxima: “Passei a viver para servir, sirvo porque aprendi a viver servindo”.
Nessa nova posição eclesiástica que me encontrava, tive uma experiência
inusitada que, no decorrer do tempo, pude perceber que deveria ter tomado outra
atitude. Porque posturas negativas podem acarretar um desgaste espiritual muito
grande e, assim, deixamos de nos fortalecer espiritualmente por causa de atitudes
impensadas. Como havia uma ligação muito forte entre eu e povo da Igreja, todas as
vezes que tínhamos de reivindicar algo para a Igreja-Mãe, lá estava eu como o
representante da Congregação e toda esta conjuntura me causou um desgaste
emocional muito grande. Não que eu estivesse com depressão, mas por ser eu o
representante da Congregação nomeado por eles sem eleição e, a partir do momento
da minha aceitação, assumi toda a responsabilidade. Com isso, muitas solicitações
por parte da Congregação não eram aceitas. Se faziam reuniões para discutir a ajuda
que a Congregação deveria ter e, no apagar das luzes, sempre ficávamos para depois,
quando acontecia de não obtermos uma resposta negativa no mesmo instante. Foi
nesse período em que eu já estava bastante desgastado que fui conversar com o
Presbítero designado para ficar na Congregação. Disse-lhe: “Sr. Presbítero, com todo
o respeito que tenho por vós, o Sr. não pode ficar olhando a Congregação com os
meus olhos. Eu vejo coisas que o Sr. não verá se não for com os seus próprios olhos”.
105
Ao se aproximar a eleição para oficiais, o Presbítero marcou uma reunião
comigo e falou-me da importância que eu tinha na Congregação e que os prejuízos
espirituais na minha vida poderiam ser grandes se eu não participasse. Foi quando
mantive a minha decisão em não participar do escrutínio. Chegado o dia da eleição
em que a Congregação haveria de indicar dois nomes para ir à Igreja-Mãe, a
congregação ao ver que o meu nome não estava na relação, algo inusitado aconteceu,
todos que estavam presentes olharam para o fundo da Igreja com a feição de espanto
como se me perguntassem o por que eu não iria participar. Fiquei comovido diante de
tamanha consideração por parte dos fiéis e com os olhos cheios de lágrima, porém,
me segurando para que elas não corressem pela minha face. E mais uma vez o
Presbítero que estava ao meu lado perguntou-me se eu tinha certeza do que estava
fazendo. Em resposta, proferi as seguintes palavras: “A congregação neste momento
está precisando de um Pastor, ele vai ser muito mais importante para a comunidade
do que eu. O Sr. pode ficar tranquilo que sempre estarei aqui e não declararei o motivo
da minha decisão”.
Dentre muitos acontecimentos na Igreja esse foi o que mais mexeu comigo.
Com o passar do tempo, pude perceber o quanto que deixei de contribuir com meus
queridos irmãos e ser abençoado por Yahweh por não ter sido uma benção para a
Congregação. Obtive um crescimento muito extenso ao ser um membro de uma igreja
evangélica, cresci na parte espiritual, aprendi a amar o próximo como a mim mesmo
e agreguei muitos ensinamentos passados por Irmãos queridos que me fizeram
crescer como pessoa também.
Hoje vejo o mundo com outro viés, não me esquecendo da minha trajetória de
vida. Se neste momento da minha vida, eu declaro e exponho o que passei é porque
cresci e aprendi a ser um homem que trata tudo de igual para igual.
“Portanto, quer comais quer bebais, ou façais, qualquer outra
coisa, fazei tudo para a glória de Deus. Não vos torneis causa de
tropeço nem a judeus, nem a gregos, nem a igreja de Deus; assim
como também eu em tudo procuro agradar a todos, não buscando o
meu próprio proveito, mas o de muitos, para que sejam salvos” (BÍBLIA
SAGRADA, 2011, 1 CoríntioS 10: 31-33).
106
Da minha experiência pessoal junto a essas duas frentes de igrejas
protestantes, uma Congregação da Missão Coreana e a outra uma estruturada Igreja
Presbiteriana do Brasil, constato situações diversas que devem receber o meu
respeito por terem contribuído para o crescimento de um jovem que passou a acreditar
num futuro promissor por causa desses dois segmentos religiosos, onde a diversidade
tornou-se pouco a pouco um valor. A Missão Coreana, por sua vez, levou-me a viver
a vida de forma disciplinada, algo que externo no meu dia a dia como valores éticos e
morais. Além disso, deu-me uma abertura de mentalidade que resultaria no esforço
de ser alguém na vida, através do estudo e do Temor a Deus.
A Missão Coreana nos ensinou muito, embora com um sistema de uma Igreja
Congelada, com um sistema de ensino anacrônico. A Igreja Presbiteriana do Brasil
muito acrescentou na sua forma contemporânea de ministrar, nos proveu uma
compreensão de mundo voltado para o conhecimento eclesiastico. Cada cultura teve
algo a ensinar. Portanto, a diferença que alguns consideraram tão ameaçadora, para
mim, foi a fonte de um discernimento mais profundo do mistério da existência humana.
“Conviver não é simplesmente viver com alguém, lado
a lado. Não é uma simples aceitação do outro. Mas, no
meu entender, conviver significa entrelaçar culturas,
dividir formas diversas de pensar, de ser, de agir, de
crer, de perceber e encarar a própria vida, para criar, a
partir deste convívio, algo diferente e novo em mim
mesma e no outro” (Irmã Edi Maria Eidt, missionária de
São Carlos Borromeo).
Não podemos deixar de pensar no passado em razão do presente, não
sabemos sobre o futuro e temos de ter a certeza de que o nosso futuro é consequência
do nosso presente.
5 A OVELHA NEGRA NO RIO DE BENÇÃOS DO PROTESTANTISMO
107
Como descrito no primeiro capítulo, sempre fui uma pessoa que acreditou em
Yahweh, porém, frequentei a Igreja desde a minha infância. Isso aconteceu em
decorrência de minha família ter feito partes de um segmento de cunho católico.
Assim, aprendi muito com a passagem pelo Catolicismo e fundamentei minha base
religiosa com a mudança para o Protestantismo. Minha vida até o momento da
mudança foi desregrada29, embora tenha sido e continuo sendo um homem
responsável.
O Protestantismo mudou a minha vida, passei a ver o mundo e as pessoas que
nele vivem por outro viés. Hoje vejo na impossibilidade de realização de alguns feitos,
em que me senti frustrado, e com um complexo de inferioridade30, que culminou com
a minha autoestima baixa, não no sentido literal da palavra, mas porque pensava que
a parte de cima era inatingível. As dificuldades em sustentar a família, sem saber em
dados momentos em quem confiar e o que fazer para reverter esse quadro, levando
em consideração sobre as dificuldades que foram sanadas a partir de um novo
relacionamento.
O Protestantismo me apresentou Yahweh com o qual eu podia ter um
relacionamento diário, ao contrário de como era antes, em que recorria a Yahweh nos
momentos de aflição, através da leitura da sua palavra e dos diálogos estabelecidos
entre nós. Agora sabia em quem confiar e todos os impedimentos, que outrora não
permitiam uma mudança em minha vida, ficaram para trás. Hoje estou aqui falando a
vocês na forma escrita, demonstrando quanto foi significativo minha inserção no
Protestantismo, me tornei uma nova criatura. Quando me vejo a pensar no estilo de
29 Normalmente, o passar dos anos traz mais calma à vida de modo geral, o que acaba por contribuir
ainda mais para uma vida quase normal. Não se pode deixar de levar pelo sentido literal da palavra “desregrada”. Olhando para trás, este termo em minha vida vem dizer que, como um adjetivo qualificativo, pode tanto ser empregado com um sentido pejorativo, quando se refere ao indivíduo que leva uma vida sem regras, padrões ou limites, como também uma designação para uma vida hedonista, alegre e livre. 30 Sentimento este de que se é inferior a outrem, de alguma forma. Tal sentimento se aflorou de uma inferioridade que não partiu unicamente do imaginário, mas também do pensamento, de que sempre devemos compensar de alguma forma aquilo que pensamos não conseguir realizar por ter enraizado o conceito de sermos incapazes, frente as outras etnias. Ao que possível usarmos como exemplo o “Complexo de Napoleão”, podendo este ser num nível mais amplo e se estabelecer na esfera da “Inferioridade Cultural”, onde me encaixo por correr atrás de meus objetivos acreditando que sou capaz, utilizando-me do poder de superação, tendo aprendido no Protestantismo que os gigantes que assombravam a minha vida podem cair.
108
vida que vivia, não tenho dúvidas de que este novo segmento religioso por mim
seguido fez com que eu conhecesse Yahweh de outra forma.
A Igreja Evangélica possibilitou eu acreditar que é possível qualquer um ter a
sua vida mudada, é possível transformar para melhorar. Temos de acreditar que existe
uma forma de mudar o curso da nossa história, refiro-me às mudanças que sofri
positivamente, tornando-me um indivíduo intrépido, que toma atitudes em meio a
situações que exigem mais responsabilidade da minha parte. Não podemos nos
esquecer que nessa época a minha família possuía um grande contingente, e por
estar sofrendo, não no sentido pejorativo que a palavra exige, todavia, um sofrer no
sentido de ser atingido positivamente na vida moral, social e principalmente espiritual,
que impuseram novos rumos para abarcar a minha história de vida.
O Protestantismo mudou a minha vida, embora, sempre acreditei que a
mudança depende de nossas escolhas e da livre vontade antepor, a partir do momento
da visualização da perspectiva de uma vida melhor e de um mundo melhor para se
conviver. Todas as vezes que pensava em curvar a minha cabeça e se conformar com
o que estava sendo imposto sobre mim, houve repudia da minha parte.
Aprendi no Protestantismo que não podemos ter atitudes de passividade, ou
seja, aceitar aquilo que está preestabelecido para um povo desfavorecido por causa
da sua história. Não devemos nos contentar somente com o que os olhos contemplam,
e também não ter o intelecto agredido por pessoas que pensam que não podemos ser
inteligentes. Dispus-me a estabelecer melhores rumos a ser seguido, já não
enxergava os homens como gigantes diante de mim, passei a enfrentar tudo e todos
no melhor dos sentidos, com sabedoria e conhecimento, pois tive um grande
ensinamento da minha genitora. Ela sempre dizia: “Eliseu tem de trabalhar com a
cabeça”. Fui ousado porque estava novamente sendo agraciado e, por isso, ganhei
força, pois tive a aceitação de Nosso Senhor Jesus Cristo que mudou o meu viver
através da Igreja Protestante. Segundo o pensador irlandês, Clive Staples Lewis
(1898-1963),
“Não pensa [o cristão] que Deus nos amará
mais por sermos bons, mas que Deus nos fará
bons porque nos amou primeiro; do mesmo
modo que o teto de uma estufa não atrai o sol
109
por ser brilhante, mas brilha porque o sol
irradia sobre ele”.
A Igreja me ensinou a buscar a verdade que liberta e aprender a mudar a
história da nossa vida porque cremos em um mundo melhor. Através de ensinamentos
que obtemos da palavra de Yahweh, buscamos tudo aquilo que é benéfico para
mudarmos a nossa vida de acordo com os preceitos de Yahweh. Dessa maneira,
aprendemos a viver de forma a depender de Deus e procurando seguir seus
ensinamentos através de Jesus Cristo, como este que trago em meu coração e
repasso onde quer que eu vá:
“Duas coisas te pedi; não mas negue, antes
que morra: 8- Afasta de mim a vaidade e a
palavra mentirosa; não me dês nem a pobreza
nem a riqueza; mantém-me do pão da minha
porção de costume; 9- Para que, porventura,
estando farto não te negues, e venha dizer:
Quem ‘é o Senhor? Ou que empobrecendo,
não venha a furtar, e tome o nome de Deus em
vão” (BÍBLIA SAGRADA, 2011, Provérbios 30,
versículos 7 a 9).
A vida está cheia de desafios que, se aproveitados de forma criativa,
transformam-se em oportunidades. E foi a partir desse momento em que comecei a
buscar a Deus que as oportunidades começaram a aparecer, não quero dizer que
conhecer a Yahweh é mudar de vida31. Como descrito no capítulo anterior em que falo
do tempo em que trabalhei nos Correios e Telégrafos e lá me deparei com pessoas
que serviram como instrumento nas mãos de Yahweh para me abençoar e motivar-
me na realização dos meus projetos elaborados após o aprendizado recebido na
Igreja Evangélica.
31 "Teologia da Prosperidade é uma doutrina religiosa cristã que defende que a benção financeira é o
desejo de Deus para os cristãos e que a fé, o discurso positivo e as doações para os mistérios cristãos irão sempre aumentar a riqueza material do fiel” (WIKIPÉDIA, 2016).
110
Com a chegada do Pastor Marcelo à Congregação, o meu interesse em fazer
o curso de Teologia no Mackenzie se externou de maneira muito forte e tal intenção
foi amadurecendo devido a minha preocupação em poder contribuir de alguma forma
com os membros da nossa comunidade, embora, já em dados momentos eu
ministrasse estudos bíblicos.
Como era sabido por todos, a Congregação passava por um período de
transição e uma nova formação de liderança tinha de ser escolhida para dar início a
um processo de organização eclesiástica. Essa nova dinâmica que a Congregação
estava vivendo mexeu comigo, no sentido de estudar com mais profundidade tudo o
que era concernente às Escrituras Sagradas a fim de adquirir e poder contribuir com
mais conhecimento e, de tal sorte, transmiti-los. Após algum tempo estudando e
esmerando-me em esquadrinhar os conteúdos ali escritos, tive a intenção de procurar
um lugar onde o estudo religioso fosse explorado com mais profundidade.
Nesse período a busca por mais conhecimento me levou a ingressar em um
Instituto Bíblico na Igreja Presbiteriana da Vila Nilo, ministrado pelo Pr. Mario. Como
sempre gostei de aprender e o Instituto deixou algumas lacunas, não porque o Pr.
Mario não fosse bom em ensinar e, sim, porque eu queria algo a mais, a minha mente
exigia isso. E foi nesse momento que passei a procurar uma Escola de Teologia que
atendesse ao que procurava. Assim, descobri que no Mackenzie32 havia um curso
novo de Escola Superior de Teologia e que estava em vias de aprovação do MEC. Na
época mantinha uma aproximação com alguns colegas que trabalhavam nos Correios,
principalmente com aqueles que vivenciaram um aprendizado em Institutos Bíblicos.
E, sempre que podíamos, falávamos sobre essas questões, fazendo com que o meu
interesse ficasse cada vez mais aguçado pelo estudo sobre religião. O Tonhão, que
trabalhava comigo, foi um dos meus grandes incentivadores, sempre que podíamos
32 “A educação para mim é o fio condutor para o progresso, se estendendo a todas as etnias. A educação foi colocada como condição número um da luta do ‘negro’ contra a miséria, o ‘preconceito de cor’ e a desorganização social. Foi-lhe atribuído, mesmo, um valor mais elevado que ao conflito, encarado como um recurso cuja eficácia dependia, diretamente, do êxito prévio de reeducação do ‘negro (FERNANDES, 2008b, p. 50).
111
decorríamos sobre assuntos ligados à religiosidade. Embora o seu segmento religioso
fosse o Pentecostalismo, tínhamos muitas coisas a dialogar e discutir.
Como o Mackenzie é uma extensão da Igreja Presbiteriana e os nossos
pastores tinham conhecimento de como funcionava a Universidade Presbiteriana
Mackenzie, foi comunicado sobre o período em que poderíamos fazer a inscrição para
o Vestibular; e assim que abriram as inscrições fui logo fazê-la. No momento em que
precedeu as inscrições para o Vestibular no Mackenzie, fui ter uma conversa com o
Presbítero responsável por nossa Congregação, a fim de viabilizar ajuda no quesito
financeiro para poder pagar o curso. Num primeiro momento, o Presbítero João de
Deus (nome fictício) disse que iria me ajudar com os custos do estudo e que eu
poderia ficar tranquilo que, se dependesse da Congregação, eles iriam me ajudar.
Afinal era do interesse da Congregação formar uma liderança, e a minha iniciativa em
estudar Teologia seria algo benéfico para os membros, para a Congregação e para
mim.
Sempre gostei de estudar e havia concluído o Ensino Médio havia pouco
tempo, tendo-o feito já em idade avançada, por ter de trazer o sustento para casa e,
assim trabalhar exaustivamente. Por isso, deixei de frequentar a escola para poder
tentar de alguma forma amenizar as necessidades sofridas por falta de estrutura
social. Desse modo, tomei a decisão de enfrentar mais este desafio, de ingressar na
Universidade, reacendendo a possibilidade da realização de um sonho, aproveitando
uma oportunidade que outrora não seria possível por falta de recursos e de tempo,
não por condições intelectuais, e sim por falta de perspectiva de vida em ter acesso a
uma Universidade por ser desfavorecido.33 Com isso, revivemos no plano histórico
que a “população de cor” despertara do entorpecimento e reivindicava, de forma um
tanto desorganizada, mas com afinco, o resgate da “espoliação secular”.
Em meio a tantos desafios e responsabilidades que imperavam sobre mim, não
tive dúvidas do meu objetivo em estudar, fiz a inscrição para o Vestibular e, na data
da prova, lá estava eu todo entusiasmado. Tão logo entrei na Universidade e me
deparei com um lugar no mundo que não sabia que existia, fiquei fascinado, todas
33 “As relações histórico-sociais, que alteraram a estrutura e o funcionamento da sociedade, quase não afetaram a ordenação das relações raciais, herdadas do antigo regime. Ela se perpetuou com suas principais características obsoletas, mantendo o negro e o mulato numa situação social desalentadora, iníqua e desumana” (FERNANDES, 2008b, p. 7).
112
aquelas edificações e ainda integrando o seu complexo as edificações tombadas que
trazem a história daquela instituição. Chegado o momento de fazer a prova e, por
causa do tempo em que fiquei afastado da escola, o meu estado emocional e
psicológico naquele momento foi de grande expectativa para saber como seria meu
desempenho. Todos na Congregação estavam torcendo por mim e um dos maiores
incentivadores nesta causa foi o Pr. Marcelo e a Dona Inez.
Quando se estabeleceu a data do resultado, a cada dia que se passava ficava
mais apreensivo e não dormia direito, porém, algo me deixava esperançoso. Pensava
em contrapartida de como seria minha vida estudando Teologia em um local como
aquela Universidade, reconhecida nacionalmente por dar ênfase ao aprendizado com
excelência e acima de tudo com princípios. Lisonjeado fiquei por acreditar que poderia
fazer parte desse empreendimento, que foi planejado primeiramente por mim e pelas
pessoas que estavam fazendo parte deste projeto e esperando, assim como eu, pela
confirmação de um resultado satisfatório, sem deixar de ter fé em Yahweh. Após um
período de expectação, saiu o resultado do Vestibular, e a partir daquele momento eu
já poderia me considerar um aluno do Curso de Teologia sem exercer a prepotência.
Como em tudo em nossa vida temos que lutar para conquistar alguma coisa,
nessa situação também não foi diferente. Todos ficaram contentes com o resultado
favorável e me parabenizaram por mais este desafio superado. Os membros da
Congregação, o Pr. Marcelo, a minha família e o Tonhão ficaram felizes por mim e
este último foi o que mais demonstrou-se entusiasmado, porque, tão logo eu
começasse a estudar, tinha a certeza de que ele teria assunto para as nossas horas
de intervalo nos Correios. Apesar de ele ser de um segmento pentecostal e defender
ferrenhamente uma doutrina que julgava ser a mais correta, todavia, os nossos
diálogos sobre religião sempre foram pacíficos e respeitosos. Chegada a hora de
efetivar a matrícula, não contava com uma situação financeira não muito boa, pois,
não tinha o dinheiro para pagar o meu ingresso na Universidade. Contudo contava
com aquilo que temos de mais precioso que é a Graça e a Misericórdia de Yahweh, e
Ele fazendo uso dos seus Filhos para serem usados como instrumento em suas mãos
para abençoar vidas.
Naquela oportunidade, a Dona Inez, sabendo da minha dificuldade, me
ofereceu o dinheiro da matrícula, acrescentando que eu poderia pagar quando
113
pudesse, não havendo pressa em quitar meu saldo negativo para com ela. Eu até
pensei em aceitar o dinheiro, mas não peguei, e como eu iria receber as minhas férias
dali um mês, decidi pedir o dinheiro para meu irmão de sangue David, que me
emprestou com algumas ressalvas que não serão expostas. Resolvido o problema da
matrícula, comecei o curso em meados de 2005. Logo no primeiro dia que iniciei o
curso e adentrei pelo portão da Rua da Consolação, onde se localiza o Mackenzie,
fiquei tão feliz por estar realizando um sonho, que, assim que me sentei na cadeira,
estando só dentro da sala de aula, abaixei a minha fronte e comecei a conversar com
Yahweh e agradeci a Ele por mais esta oportunidade. Devido ao tempo extenso que
parei de estudar e por não saber como funcionava essa nova empreitada, fiquei um
pouco assustado, tudo ali era novo, o sistema de prova, as atribuições de notas, como
se faziam os trabalhos, enfim, eu haveria de ter de enfrentar outro gigante, mas estava
disposto a ir em frente e travar esta nova batalha.
Passados uns dez dias de estudo frequentando a sala de aula regularmente,
uma outra preocupação se aproximava: o dia de pagar a mensalidade, que tinha como
data de vencimento todo dia 10 de cada mês. Contudo, como eu tinha a garantia de
que a Congregação iria me ajudar com a mensalidade, fiquei em estado de placidez.
Chegado o fim de semana em que fui para a escola dominical, procurei o Presbítero
responsável pela parte financeira da Congregação e, para minha surpresa, ele me
comunicou que naquele momento a Congregação estava sem condições de me
oferecer ajuda, porque tinham acabado de comprar instrumentos musicais para o
louvor. Fiquei frustrado naquela ocasião e o meu desespero em não poder pagar a
mensalidade foi tão forte que pensei em desistir antes mesmo da segunda-feira.
Apesar de tudo o que o Catolicismo me apresentou, foi no Protestantismo que aprendi
a conversar com Yahweh diretamente e após sair da escola dominical, subi a rua de
casa que é a mesma da Congregação e adentrei no meu recinto e comecei a orar,
pois a minha intenção era de não ir nem ao culto da noite, tamanha a minha revolta e
indignação.
Quando eu vivia nas ruas, aprendi muitas coisas, e uma delas era que a
palavra falada não podia voltar atrás; eles se comprometeram em ajudar-me, contudo,
não tinha dúvida de que os meus planos e objetivos estavam firmados no Senhor. Na
segunda-feira, fui trabalhar extremamente abalado e chateado e, como se estivesse
esperando e acreditando na Providência de Yahweh, me encontrei com o meu
114
companheiro de trabalho, o Tonhão. Ele passou a falar comigo de uma forma tão sábia
e providencial para o momento, dizendo-me para confiar em Yahweh. Terminado o
meu expediente de trabalho, fui direto para a Universidade. Tão logo cheguei à
entrada da Universidade, algo me fortaleceu, o meu coração naquela ocasião gozava
de grande paz e, ao passar pelo corredor externo da Universidade, disse para mim
mesmo: “Eu não vou desistir e só vou sair daqui o dia em que me expulsarem por falta
de pagamento; no que depender de mim termino este curso”.
Como a minha vida sempre foi repleta de desafios e a minha vontade de vencer
superava qualquer obstáculo, resolvi pedir ajuda a Yahweh novamente e rogar pela
sua intervenção nesta causa. No tocante aos dias que antecederam a data de
pagamento da matrícula, recebi um comunicado para comparecer ao departamento
de bolsas da Instituição. Ao chegar ao local indicado, obtive uma solicitação para que
providenciasse alguns documentos para regularizar minha situação junto àquele
departamento, porque o curso de Filosofia e Teologia ofereciam um desconto de 50%
nas mensalidades. Fiquei naquele instante muito contente e já senti as mãos de
Yahweh agindo na causa. Num primeiro instante, metade dos meus problemas com
relação à mensalidade estava resolvida, e reconheço o bem que me fora concedido,
mas não era o suficiente, por causa das minhas condições financeiras que não
admitiam tirar um centavo do meu salário, para outro fim, que não fosse o sustento da
família.
Durante a semana trabalhava nos Correios e o orçamento sempre fora
apertado, sempre que surgia algumas atividades extras para complementar a renda
nos fins de semana lá estava eu trabalhando nas sextas, nos sábados e às vezes aos
domingos para compor a renda familiar. Dessa maneira, na terça-feira, depois de
entregar todos os documentos solicitados, fui assistir aula e, em uma das disciplinas
expostas naquele dia, ministrada pelo professor Ronaldo Cavalcante, na área da
Teologia Sistemática, revelou-se algo muito interessante para quem estava vivendo
momentos de aflição. E o professor começou a discorrer sobre a Angeologia,
explicando que existiram vários anjos e que alguns deles foram portadores de boas
novas,34 algo muito enfatizado pela Tia Su em seus ensinamentos bíblicos.
34 “E, respondendo o anjo, disse-lhe: Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado a falar-
te e dar-te estas alegres novas” (BÍBLIA SAGRADA, 2011, Lucas 1:19).
115
Já na sexta-feira, quando cheguei em casa da Universidade, fui comunicado
que havia chegado um telegrama. Acomodei-me e li a mensagem, que, para minha
surpresa, continha vários carimbos de “urgente”, assustando-me. O conteúdo era uma
convocação para que eu comparecesse ao departamento de bolsas. Todavia, faziam
três dias que acabara de entregar os documentos e novamente estavam me
convocando a comparecer na segunda-feira ao local. Pensei comigo “como eles me
deram 50% de desconto na mensalidade, é provável que agora me tirem e eu voltarei
à situação anterior, afinal não havia a necessidade de ter num telegrama a quantidade
excessiva de carimbos de “urgente”. Vão tirar o que me concederam já na próxima
segunda-feira, pensei. Passei o fim de semana todo pensando no que estava
ocorrendo em minha vida e não encontrei paz em meu coração, sabendo que
novamente corria o risco de não ficar na Universidade por não ter condições de pagar.
Mesmo admitindo essa possibilidade, passei o dia de segunda-feira no trabalho
totalmente desanimado, conversei com o meu superior nos Correios e pedi para sair
mais cedo do trabalho, a fim de chegar mais cedo no departamento que fechava às
17h. Ao chegar no departamento, me deparei com o Danilo, um colaborador do setor,
que me disse o seguinte: “Por determinação da Diretoria, todas as bolsas foram
canceladas e as mensalidades terão de ser pagas na sua totalidade”. Fiquei
desnorteado e sem reação diante daquelas palavras. Em face de meu semblante
totalmente transtornado e antevendo uma situação desconfortável em que eu podia
ficar, Danilo me convidou a falar com o seu Supervisor. Ao término das escadas, pediu
para que eu aguardasse, pois iria anunciar minha chegada. Estranhei quando pediu
para que eu aguardasse, já que tinha me comunicado de antemão que a bolsa havia
sido cancelada. Depois de esperar por um período de mais ou menos cinco minutos,
um homem de baixa estatura, bigode bem aparado e um terno todo engomado, veio
falar comigo e se apresentou como Sr. Augusto, o responsável pelo departamento de
bolsas.
Novamente me vi diante de outro gigante, no sentido figurado. Ao que ele me
convidou a entrar na sua sala, me sentei e comecei a ouvi-lo atentamente, no entanto,
tive a percepção de que o colaborador havia falado algo àquele senhor. Quando ele
começou a proferir certas palavras de motivação, me incomodei por ter passado por
116
uma situação a pouco minutos a trás, a qual contradizia com que o nobre Sr. falava.
E assim ele começou a explicar o motivo de eu estar naquele lugar e que não era para
receber a notícia de que a minha bolsa havia sido cancelada, e sim de que o
Mackenzie fez uma parceria com o MEC e, dentro do que foi estabelecido, algumas
resoluções assim se definiram:
“Todos os alunos oriundos da Escola Pública e que
ingressaram na Universidade por meio de avaliação, refere-se, ao
vestibular, e que ficaram entre os cinco primeiros colocados em cada
curso (Direito, Psicologia, Filosofia, Teologia dentre outros...), haviam
de ganhar uma bolsa de estudo de 100%(cem por cento), contanto que
não se admitiria nenhuma dependência nas disciplinas até a finalização
do curso” [ver anexo, p. 138] (REVISTA MACKENZIE, 2001).35
Antes mesmo de ele terminar de falar, meus olhos se encheram de lágrimas e
ele me disse que eu tinha sido contemplado por ter passado entre os cinco primeiros
colocados e por ser oriundo de uma escola pública.
Ao me recompor deste estado de exultação em que me encontrava e vendo o
que Yahweh acabara de fazer comigo, obtive mais informações concernentes ao
benefício recebido e as bênçãos de Yahweh não pararam, além da bolsa integral, o
dinheiro pago na matrícula iria ser restituído totalmente. E nesse momento pude
perceber o quanto somos abençoados vivendo na presença de Yahweh. Logo me
lembrei do hino que cantamos na Congregação, “Conta as muitas Bênçãos”, e,
paralelamente a isso, depois de ouvir as desculpas do Danilo em dizer-me que era
uma brincadeira, fui até a Capela da Universidade e comecei a orar agradecendo a
Yahweh e pedindo o seu perdão, pois a minha conduta foi semelhante ao descrito em
uma passagem bíblica que diz: “E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-
lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?” (BÍBLIA SAGRADA, 2011, Evangelho
de Mateus 14: 31).
35 “Iniciativa do Mackenzie de oferecer bolsas de estudo a alunos da escola pública aprovados no
vestibular para diferentes cursos não tem precedentes, segundo Secretária de Educação do Estado de São Paulo” [ver Anexo, p. 138] (REVISTA MACKENZIE, 2001).
117
O meu ingresso na Igreja Protestante me abriu muitas portas. No período em
que eu estava estudando, me refiro ao primeiro semestre, e, por todos os dias que ia
à Universidade, sempre vislumbrava como era o Mackenzie. E, pelo fato de alguns
membros da Congregação trabalharem na Universidade, também comecei a
amadurecer um pensamento em meu coração tamanho era o meu deleite em um dia
trabalhar nesse local. Todos os dias no diálogo diário com o Tonhão nos Correios,
falávamos sobre o assunto de um dia quem sabe eu fazer parte dessa Instituição.
Nessas idas e vindas, surgiam vários temas e, por ele ser “negro”, também falávamos
da questão do preconceito em ambientes como o Mackenzie e das minhas
dificuldades em me manter para continuar estudando. Eu explicava a ele que a
contemplação da bolsa de estudo foi extremamente significativa, no entanto, as
dificuldades ainda existiam. Tive de contar-lhe que além de não poder voltar para casa
a fim de me alimentar por causa do tempo em que levaria do trabalho para casa e de
casa para o trabalho, aumentariam muito as despesas de transporte, o tempo gasto
no coletivo, e iria fazer com que chagasse todos os dias atrasado, além disso, o
desgaste físico seria enorme, fora despesas com livros, cópias e alimentação que não
seriam realizadas por falta de recurso.
O problema da alimentação foi resolvido, pois alguns membros da
Congregação trabalhavam na Universidade, e um deles o Mazinho, que trabalhava no
Serviço de Apoio, me ofereceu a possibilidade de tomar café em seu setor todos os
dias quando chegasse para estudar; como não ia para casa, chegava cedo a tempo
de poder tomar um café preto e comer algumas bolachas quando tinha, ficava muito
satisfeito e dava graças a Yahweh por aquela alimentação que ajudava a segurar até
a chegada ao meu lar. Daí por diante comecei a transitar da entrada da Rua da
Consolação até o subsolo do Edifício João Calvino e, todos os dias fazia o mesmo
trajeto. Lá, além do café, descansava um pouco as pernas e, quando se aproximava
o horário de entrar em aula, me deslocava até o prédio da Teologia para estudar.
Certo dia algo inusitado aconteceu. Como eu passava todos os dias por dentro
da recepção do Edifício Joao Calvino direto para o subsolo, ninguém até aquele
momento havia me questionado sobre qual era o meu destino todos os dias dentro
daquele edifício. Sempre avistava um segurança na recepção do referido edifício, mas
ele não me perguntou nada. Contudo naquele dia, especificamente, depois de passar
pela recepção, após uns três minutos, adentra à sala um segurança negro, forte, com
118
um bigode bem aparado, que me fez algumas indagações como: “O senhor poderia
me dizer o que faz todos os dias descendo aqui para o subsolo, por que o senhor
passa pela recepção e não nos comunica aonde vai?”. E eu respondi: “Hora, não vejo
ninguém pedindo para me anunciar e tão pouco vejo alguém se anunciando na
recepção, então, penso eu, que a entrada é livre a todos, mas se tiver algum problema,
podemos resolver da melhor forma possível, porque eu venho todos os dias aqui
encontrar um amigo no subsolo e tomo café com ele, é o Mazinho”. Diante disso tudo,
o segurança disse-me que estava tudo bem e que agora ele sabia para onde eu estava
indo. Hoje esse segurança trabalha comigo e é um dos que faz parte da equipe
liderada por mim aqui no Mackenzie.
Depois de passar quase três meses estudando e tendo como rotina diária todas
essas atividades, a vontade em trabalhar no mesmo local em que eu estudava foi
aumentando e passei a falar todos os dias sobre o assunto com a Dona Inez, que
trabalhava nos Recursos Humanos e, quem sabe, poderia me ajudar a conseguir um
emprego no local. Nessa etapa da minha vida, desfrutava de uma estabilidade nos
Correios, já me encontrava com 13 anos de serviços prestados, e conhecia quase
todo o mundo. E foi nessa etapa que comecei a viabilizar minha saída dos Correios,
marcando uma reunião com o Gerente Postal Thomé, e facultar a minha entrada no
Mackenzie.
Essa foi uma época em que mais me senti apreensivo, e o motivo para ficar
dessa forma foi nada mais do que a incerteza de que tudo aquilo daria certo. Assim,
esboço aqui o motivo da minha angústia: tinha 13 anos de prestação de serviços em
uma estatal, onde o meu emprego estava garantido, obtinha todos os benefícios de
uma grande empresa, contava com uma assistência médica dos Correios, a
estabilidade me proporcionava zelar pela minha família e, com esses benefícios e
mais os serviços extras que fazia, conseguíamos nos manter.
Ao contrário da situação que vivia nos Correios, estava querendo trabalhar em
um local ao qual não sabia se daria certo e, com isso, toda a estrutura familiar que
dispúnhamos até então conquistada poderia ser destruída. Haja vista que muito ainda
teria de ser alcançado e esse assentimento poderia prejudicar o desenvolvimento de
algo que estava passando da condição de precariedade para uma condição básica.
Embora, essa estrutura familiar ainda não houvesse atingido seu ápice, o pensamento
119
de que os obstáculos que se opunham à nossa completa integração em amplos
contextos socioeconômico e sociocultural não tinham sido totalmente desbravados,
para assim poder saber de que forma tais desafios seriam vencidos. No decorrer dos
dias, algo de muito estranho estava acontecendo dentro de mim, era uma inquietação
no meu corpo e no meu coração, que nesse momento as minhas orações foram
intensificadas, pois a cada dia que se passava a vontade de trabalhar no Mackenzie
aumentava.
Desse modo, comecei a arquitetar como poderia sair dos Correios recebendo
minha rescisão como se estivesse sendo despedido, com todos os meus direitos. A
primeira conversa foi com o Supervisor da Mecânica Veicular que se chamava
Simões. Ao começar a dialogar com ele, expliquei qual era a minha intenção e se
havia essa possibilidade. Ele me respondeu que esse assunto não era da sua alçada,
então solicitei permissão para falar com o Gerente Administrador Postal, que naquela
ocasião era o Thomé, com quem eu havia trabalhado nos Correios da Vila Leopoldina.
Recebida a autorização para falar com o gerente, liguei para a secretária dele
perguntando se ele poderia me atender para falar-lhe sobre a minha saída da estatal.
No dia seguinte, a secretária me ligou informando-me e quando deveria me apresentar
para a reunião com o gerente. Quando fui ter com o gerente, assim que ele me avistou
sentado na sala de espera, pediu que eu entrasse, e, após darmos início a minha
questão, parabenizou-me por ter entrado na faculdade, dizendo que já havia recebido
essa informação. E nesse instante aproveitei a dizer-lhe de, forma muito transparente,
que tinha a intenção de trabalhar onde eu estava estudando, para facilitar o meu dia
a dia. À medida que a nossa conversa foi avançando, ele me perguntou se eu tinha
consciência do que estava fazendo, se do outro lado já estava acertada a vaga de
emprego e, se estivesse, teria de esperar passar o mês de dissídio para voltar a falar
com ele.
Todas essas iniciativas foram sendo tomadas em um contexto totalmente de
incertezas, a única certeza era a paz interior que acredito que Yahweh estava me
dando de “Graça”. Fazia tudo isso com paz no coração, no entanto, como homem
pecador que somos e muitas das vezes somos homens de pouca fé, sentia medo em
alguns instantes da vida, mas continuava com o meu propósito. Desse modo, resolvi
conversar novamente com Dona Inês, e ela me disse que iria conversar com o
Supervisor de Segurança do Mackenzie sobre duas vagas que havia tomado
120
conhecimento para recrutamento. Porém, deixou bem claro que não poderia
assegurar que eu conseguiria a vaga e me orientou a conversar com o Supervisor de
Segurança.
No dia seguinte lá estava eu para ser anunciado pela secretária do supervisor.
Quando me pediram para entrar, me apresentei e, de uma forma um pouco
precipitada, fui logo falando que me encontrava empregado, que estudava Teologia e
que a Inês do RH me enviara para conversar sobre a possibilidade de ingresso na
área da segurança. Como tudo, essa situação estava tomando proporções favoráveis
e numa ordem que eu não sabia explicar, mas tinha consciência de que estava
acontecendo pela direção de Yahweh, tudo o que eu fazia, tudo que falava, sentia
dentro de mim que Yahweh estava ao meu lado, e até sentia a unção dos meus lábios
para proferir as palavras. Como dizíamos quando convivia nas ruas, proferir as
“palavras certas”.
O Supervisor de Segurança começou a falar sobre o salário e os benefícios
disponíveis para quem prestava serviço na Instituição. Fazendo um paralelo com
todos os benefícios que eu tinha nos Correios, nesse quesito não sairia perdendo.
Quando ele falou sobre a remuneração recebida pelos agentes de segurança, fiquei
empolgado. Com um dia de serviço, se conseguisse o emprego, haveria de ganhar,
me lembro como se fosse hoje, R$ 200,00 a mais em relação ao que recebia nos
Correios com 13 anos de serviços prestados. Daí ele me perguntou se já tinha curso
de Vigilante Patrimonial, porque para ingressar nessa profissão exigia-se o curso, e
eu não possuía.
Este diálogo com o Supervisor foi muito agradável, principalmente quando ele
me disse que era para esperar que a duas vagas iriam sair depois de uns 20 dias. Saí
daquela sala tão entusiasmado, que no dia seguinte fui falar com o Gerente
Administrador Postal para viabilizar a minha saída dos Correios para poder fazer o
curso de Vigilante, que tinha duração de 15 dias. Neste ínterim, enquanto não obtinha
uma definição da minha saída dos Correios, fui novamente conversar com a Dona
Inez e contei-lhe sobre como esse projeto estava sendo concretizado e conduzido, e
acrescentei, ainda, que quem estava conduzindo tudo era Yahweh. No dia seguinte
fui procurar a Escola de Formação para Vigilantes, que teria sido indicada pelo
Supervisor de Segurança. Ao chegar ao local e obter informações sobre o curso, para
121
a minha surpresa iria começar uma turma nova após três dias, isso em meados de
agosto de 2001.
Como tudo estava ocorrendo em uma ordem cronológica tão eficaz, já não
pairava mais dúvida a respeito da Mão de Yahweh sobre todos os acontecimentos.
Dali fui direto para casa e falei sobre minha decisão, e não tinha mais dúvida sobre a
transferência de emprego. Conversei com meu pai, Waldemar, e ele me perguntou se
eu estava certo da decisão e novamente disse que Deus era comigo. Novamente me
apresentei para o Gerente dos Correios e ele me falou que estava tudo acertado para
a minha demissão, além disso, os Correios pagariam todos os meus direitos pelo bom
serviço prestado; eles reconhecerem que era uma oportunidade de estudar, crescer e
progredir. Fiz o curso e logo após o término me apresentei no Mackenzie e informei
ao Supervisor de Segurança que concluí o curso e estava à disposição para iniciar
quando fosse possível. Ele olhou nos meus olhos e afirmou que eu tinha muita
coragem de fazer tudo aquilo sem ter uma certeza. Eu respondi que desenvolvi e
aprendi a exercer a “Fé” e confiar.
Passados alguns dias, recebi uma ligação para comparecer ao RH (Recursos
Humanos) , para tratar da minha contratação como Agente de Segurança. No entanto,
sabia que alcançar essa oportunidade estaria isento do entrave que inclui o negro no
mundo profissional, pois na análise de Jaime (2016, p. 58):
“[...] as empresas almejam a inclusão racial, mas não estruturam um
plano de carreira para os profissionais negros. Para eles, as
organizações os admitem para mostrar um quadro de funcionários
diverso, mas os mantêm nos níveis hierárquicos mais baixos, sem criar
possibilidades de crescimento”.
Trabalhar no Mackenzie foi a realização de um sonho, tudo haveria de mudar
em minha vida, inclusive a posição social. Mesmo sendo um Agente de Segurança, o
fato já renderia mais oportunidades tanto para mim como para a minha família, pois
estávamos diante de uma ascensão social contra a diversidade racial, num valor que
iria enaltecer o acesso à educação para os meus filhos estendendo-se à toda a família,
inclusive eu.
122
“A escravidão, a abolição inconclusa e a permanência do racismo produziram no Brasil uma acintosa divisão social que ainda hoje segrega negros e brancos [...]. Ainda assim, são inequívocos certos indícios de atraso. O ambiente corporativo brasileiro, por exemplo, é um espelho ampliado dessas distorções [...]. Nas empresas aqui instaladas, públicas ou privadas, nacionais ou multinacionais, é nítido o que se conceituou na literatura como racismo institucional, isto é, aquele em que nada é formalizado, nada é dito de forma direta, mas o resultado se traduz de maneira inexorável em “no black”. Em um pais em que 54% da população é formada por negros, como explicar sua ausência quase completa dos cargos de presidente ou vice-presidente nas empresas? Quantos são negros no primeiro, segundo ou terceiro escalão de corporações públicas ou privadas? [...]” (VICENTE, 2016, p. A3).
Terminei o curso de Teologia e no decorrer dos estudos iniciei a Licenciatura
em Filosofia e depois participei do curso de Filosofia.
Neste momento em que vivemos em uma era da revolução tecnológica, a
informação e o conhecimento são armas poderosas para vencer o preconceito. E
diante deste panorama, obtemos a benevolência dos movimentos afrodescendentes
que valorizaram as conquistas desta população, que em um passado não tão distante
enfrentaram os desafios por toda a sociedade, como definiu Kabengele Munanga36 ao
prefaciar o trabalho de Pedro Jaime (2016, p. 13):
“Visto deste ponto de vista, é um trabalho de grande originalidade,
comparativamente aos estudos anteriores que exploraram faces da
vida do negro no Brasil [...]. Os executivos negros de duas gerações,
cujas trajetórias profissionais são analisadas aqui, revelam por meio de
seus depoimentos que, mesmo se suas vidas, como de resto as de
todos nós, são marcadas por ambiguidades e contradições, não se
deixaram engolir pelo mito da democracia racial. Dito de outra forma, e
fazendo referência ao ditado popular, eles não se consideram ‘negros
de alma branca’ [...]. Suas histórias de vida e trajetórias profissionais
só podem ser bem entendidas, como acertadamente sugere o autor
desta obra, quando colocadas contra o pano de fundo das lutas pela
36 Kabengele Munanga é Antropólogo, professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e professor visitante sênior da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
123
implementação de políticas de ação afirmativa e pela defesa das
diferenças e da diversidade na perspectiva do dialogo pós-colonial”.
Primeiro, com a Constituição de 1824, estabeleceu-se o Catolicismo como religião
oficial do Estado, protegendo assim as famílias dos imigrantes europeus, em
detrimento às famílias negras. E, ao mesmo tempo, os cultos afro-brasileiros eram
perseguidos, trazendo dificuldades para a organização social familiar dos negros. Em
contrapartida, a Constituição de 1934, primeira a garantir educação para todos os
brasileiros, dizia textualmente que cabia a União, aos Estados e aos municípios
“estimular a educação eugênica”.37
Mas não foi só na vida acadêmica que progredi, na esfera profissional, depois
de cinco anos como Agente de Segurança, passei a exercer a função Administrativa
na própria Secretaria da Segurança e, concomitantemente, concluí o curso de Pós-
Graduação. Mais uma vez, obtive outra benção de Yahweh na vida profissional ao
receber uma promoção para ser Encarregado de Segurança no Mackenzie, cargo que
desempenho até os dias de hoje, panorama este bem observado por Jaime (2016, p.
25):
“Uma vez que os negros brasileiros não têm acesso nem mesmo às
faculdades ruins, o que dirá dos cursos de especialização, pós-
graduação, língua estrangeira, mestrado, MBA, quase que
imprescindíveis nos currículos de executivos? [...] Com pouco preparo,
os negros não têm acesso também a bons empregos e,
consequentemente, não conseguem adquirir experiência profissional
que os qualifique para competir no mercado de trabalho”.
37 Segundo Francis Galton, é o controle da reprodução humana a fim de manter características desejáveis e eliminar características consideradas indesejáveis ou inferiores. Galton propunha que “as forças da seleção natural, como agente propulsor do progresso, devem ser substituídas por uma seleção consciente e os homens devem usar todos os conhecimentos adquiridos pelo estudo e o processo da evolução nos tempos passados, a fim de promover o progresso físico e moral no futuro” (GALTON,2008).
124
Muitos espaços profissionais ocupados ainda pela minoria negra são de difícil
acesso. E muitos negros passam a enxergar estes espaços como algo que não nos
pertence, acham que é um alvo inatingível, não por causa de nossa capacidade, mas
sim por ter recebido o estigma de que negro não serve para ocupar certas atividades
profissionais. Isso revela que a questão racial representa uma barreira ora facilmente
perceptível, ora menos, mas que, em todos os casos, dificulta a construção da
trajetória profissional do executivo negro. Uma barreira que possui substrato
sociocultural, mas também psíquico, que podemos apresentar como “o negro é uma
peça de marketing nos programas de diversidade”. Surge um novo elemento cultural
que veio adequar o negro às novas alternativas ocupacionais que foram surgindo em
seu entorno. Como descreve João Baptista Pereira (2001, p. 108):
“Os indivíduos de cor, mais de meio século após se libertarem
do regime servil de trabalho, e agora em cenário urbano, ainda andam
à busca de sua integração em sistema socioeconômico, onde as
posições mais categorizadas ou são ocupadas, ou são disputadas com
maior êxito pelos brancos. Para a maioria de cor, submetida a rigoroso
processo de peneiramento, restam apenas as ocupações mais
inexpressivas e pior remuneradas e, como consequência, as menos
indicadas para categorizar os indivíduos profissionalmente e serem
assim transformadas em dispositivos pelos quais o negro e seus
descendentes possam tentar a grande aventura de remover os
obstáculos que se opõem a sua mobilidade no amplo espaço definido
pela estrutura global da sociedade”.
Ao beber da água desse rio de benção proporcionado por Yahweh e tendo sido
agraciado com tudo o que estava recebendo, tanto na esfera acadêmica quanto na
profissional, aprendi que sempre dependemos da “Providência de Deus” e do seu
auxílio, mesmo que em dados momentos agimos de forma negligente para com a
vontade de Yahweh para nossas vidas, mesmo que muitas vezes a manifestação do
nosso eu possibilite ações que irão de encontro com o erro humano, resultante de
indivíduos que não esperam pela vontade de seu “Senhor”. No desenvolvimento das
minhas atribuições profissionais como Encarregado de Segurança, obtive
experiências positivas e negativas, pelo fato de trabalhar com um público de diferentes
125
pensamentos, atitudes, educação, classe social e poder aquisitivo.38 Essas
experiências sofridas nos trazem um aprendizado e externam a forma de vida inter-
relacional entre indivíduos de diferentes camadas sociais, que no decorrer do
exercício da função são válidas para o nosso crescimento e de quem está em nosso
entorno trabalhando também.39 Ao passo que, quando nos relacionamos com outras
pessoas tidas como normais, haverá em uma das esferas aquilo que se denominou e
se enraizou como “estigma”, fazendo surgir uma categoria sobre alguns indivíduos de
determinadas camadas sociais que se denominou ser o “estigmatizado”, aquele que
carrega em si a sensação de não saber aquilo que os outros estão “realmente”
pensando dele, ou, em alguns casos, um sentimento que se torna manifesto como
descrito por Goffman (2015, p. 23):
“Quando normais e estigmatizados realmente se encontram na presença imediata uns dos outros, especialmente quando tentam manter uma conversação, ocorre uma das cenas fundamentais da sociologia porque, em muitos casos, esses momentos serão aqueles em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos do estigma”.
Falo referindo-me sobre um acontecimento que ocorreu no Mackenzie. Alguns
alunos do Curso de Engenharia queriam adentrar ao Campus de São Paulo pela
portaria da Maria Antônia. Ao chegar ao local, fui informado pelo segurança que um
dos alunos estava aparentemente alcoolizado em decorrência das atividades
realizadas no “trote” dos calouros, e estava insistindo em entrar no Campus. Tendo
em vista a proibição de entrada no Campus de alunos na referida condição, fui
conversar com o rapaz explicando as regras da Universidade, já conhecidas pelos
alunos da Instituição, inclusive por esse que era veterano, estudava desde 2009. O
rapaz, por sua vez, informou que pretendia buscar sua mochila que estava no Diretório
38 “Para se compreender o fascínio que tais situações exercem sobre o homem de cor, deve-se levar
em consideração todas as dificuldades que, historicamente, o negro tem encontrado para se associar livremente, para formar grupos de interesse” (PEREIRA, 2001, p. 108). 39 É verdade que esse esforço aconteceu por autoexigência, uma vontade que sempre tive de “ser o
melhor”, não para mostrar aos outros, mas como forma de provar a mim mesmo que tinha condições de fazer um trabalho bem-feito. Estudos que interrogam o racismo a partir de uma perspectiva psicanalítica (Fanon, 2008; Souza, 1983) mostram que situações de discriminação vivenciadas ao longo da vida vão sendo introjetadas na personalidade dos sujeitos que a sofrem, levando-os a criar mecanismos de defesa (JAIME, 2016, p. 57).
126
Acadêmico do qual fazia parte. Para que a situação fosse resolvida e a fim de evitar
problemas para o aluno, possibilitei que tivesse acesso à sua mochila, mas somente
para pegar os seus pertences e, mesmo assim, acompanhado por um dos nossos
seguranças. O aluno, por sua vez, de imediato, concordou com a proposta e assim foi
feito. De forma a evitar que a portaria ficasse desprotegida, fiquei no lugar do
segurança que acompanhou o referido, aguardando o seu retorno.
Passados vários minutos sem o retorno do aluno e tão pouco do segurança,
me vi na necessidade de ir até o Diretório para verificar o que estava acontecendo.
Chegando lá, recebi a informação do segurança de que o aluno estava subindo e
descendo as escadas do prédio junto a outros rapazes, dando risada e fazendo gestos
de desprezo. Então, eu, devidamente autorizado por outro aluno a subir as escadas
do prédio para conversar com o aluno A, ao encontrá-lo, mencionei que ele estava
descumprindo o acordo firmado entre nós e que, diante disso, somente se retiraria do
local se o acompanhasse até a portaria. O aluno A, por sua vez, na presença de
diversas outras pessoas, passou a proferir diversas agressões verbais, tais como:
“Saia daqui. Você não tem o direito de ficar aqui. Você é um lixo. Você no mínimo
deve morar na favela e é um favelado.40 Você não passa de simples segurança e se
é segurança é porque não tem estudo e o seu salário não deve passar de R$ 500,00,
e eu com 19 anos já tenho uma empresa”. Fiquei espantado com tanto desrespeito e
ofensas vindo de um estudante universitário, de quem se esperava educação e bons
modos em relação a todos, principalmente em relação aos funcionários da instituição
em que estudava, em que estava se formando. Para Jaime (2016, p. 387).
“Em uma passagem do livro A Sociedade dos Indivíduos,
Norbert faz reflexões muito pertinentes ao trabalho deste livro.
Referindo-se à dinâmica da sociedade, ele afirma que, em certos
40 A forma como indivíduos de determinados grupos sociais veem o outro revela quão grande é a diferença na questão da desigualdade e que devem ser reconhecidas entre os grupos. O fato de sermos negros e morarmos em bairros afastados dos grandes centros urbanos, e morarmos em periferias não determina que sejamos bandidos ou pessoas atrasadas o suficiente para sermos excluídos da sociedade. Em uma pesquisa sobre A Imagem da Periferia realizada pela Folha de São Paulo conclui-se que “a periferia está associada a pobreza e a violência para a maioria dos entrevistados. Quatro em cada dez moradores declararam ter o costume de evitar ir a alguns bairros da cidade. Quase um quarto dos paulistanos sofreu preconceito em razão do local em que mora, taxa que, cresce dez pontos porcentuais (34%) entre aqueles que se declaram negros [...]. No geral, a periferia está associada ao caos urbano e social” (FOLHA DE S.PAULO, 2016b, p. B8).
127
estágios, os instrumentos de violência à disposição de alguns
permitem-lhes negar aos outros aquilo de que eles precisam para
garantir e efetivar sua existência social, ou mesmo ameaçá-los,
subjugá-los e explorá-los constantemente; ou, então, as metas de
alguns podem exigir que se destrua a existência social e física de
outros”.
Sou sabedor de que a sociedade estabelece os meios para categorizar as
pessoas e, sob essa perspectiva, a somatória de atributos passam a ser considerados
como normais e naturais para cada sociedade de classes, considerando-se assim
como algo que aparentemente é correto se fixando e sendo estabelecido como padrão
para certos indivíduos que tendem a formar símbolos de estigma. “Um estigma é, então,
na realidade, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo” (GOFFMAN, 2015, p.
13). Entretanto, devido a minha boa preparação e experiência profissional, não reagi
às provocações, mas simplesmente respondi que, contrariamente ao presumido por
ele41 (aluno) tinha formação superior em Teologia, Licenciatura em Filosofia e Pós-
graduação em Análise do Discurso pela Faculdade de Letras e Comunicação; tinha
imóvel próprio não localizado em área de favela e recebia remuneração superior ao
mencionado pelo aluno. Tal resposta foi dada a ele de forma branda e serena, com o
objetivo de demonstrar o falso julgamento feito pelo aluno, pois, mesmo que eu
estivesse inserido nas circunstâncias mencionadas pelo aluno, nada justificaria a
conduta ofensiva dele, uma vez que o respeito deve ser dado a todos, principalmente
para efetivação e reconhecimento da dignidade humana. Naquele momento não
poderia me sentir inferior, pois, quando o aluno me estigmatizou, fui firme em defender
a minha identidade.
“Ter consciência da inferioridade significa que a pessoa não
pode afastar do pensamento a formulação de uma espécie de
41 “Os gregos, tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se
referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor, uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos. Mais tarde na era Cristã dois níveis de metáfora foram acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de graça divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais de distúrbio físico” (GOFFMAN, 2015, p. 11).
128
sentimento crônico do pior tipo de insegurança que conduz à
ansiedade [...]. O medo de que os outros possam desrespeita-
la por algo que ela exiba significa que ela sempre se sente
insegura em seu contato com os outros; essa insegurança
surge, não de fontes misteriosas e um tanto desconhecidas
como uma grande parte das nossas ansiedades, mas de algo
que ela não pode determinar [...], afastar uma formulação
definida que diz ´eu sou inferior, portanto as pessoas não
gostarão de mim e eu não poderei sentir-me seguro com elas”
(GOFFMAN, 2015, p. 145).
Exercendo o meu direito de cidadão de ser respeitado, me dirigi à delegacia e lavrei
um boletim de ocorrência pelo crime de injúria contra o aluno e de reparação por danos
morais, servindo, inclusive, como efeito pedagógico para que ele não reiterasse tal
conduta, conforme explica Jaime (2016, p. 393):
“A presença do racismo e do sexismo, somada à utilização de
estratégias defensivas para lidar com eles, gerou custos emocionais,
causando sofrimento psíquico. Como não se identificam com o
discurso do movimento negro na época em que começaram suas
trajetórias e uma vez que estavam isoladas, não conhecendo outros
executivos negros com quem pudessem conversar, tiveram
dificuldades de se lançar no trabalho de produção de si mesmos como
sujeitos e de construção de identidades negras positivamente
afirmadas. Foram racializados no mundo corporativo como objetos
(olha lá um negro!) e não como sujeitos (eu sou negro!)”.
Alguns signos que traduzem informações sociais a respeito de outro indivíduo
têm como função primordial trazer à tona algumas referências superficiais. Tal fato,
contudo, não justifica que essas referências marquem o indivíduo para o resto da sua
vida, estigmatizando-o por aspectos que trazem em seu ser, aspectos adquiridos na
trajetória da vida e no quesito biológico, que se pode traduzir como congênito, ou seja,
no sentido literal da palavra, algo visto pela sociedade como defeito. Ser negro não é
ser defeituoso, muito menos é ser favelado ou mesmo ter a sua condição social
129
desfavorecida para tornar-nos sem representatividade. Nós negros não temos culpa
de ter uma característica congênita, a qual nos acompanha ao longo de toda a vida,
característica que surge desde o nosso nascimento ou mesmo antes, durante a
gestação no ventre de nossa progenitora.
Essa particularidade está presente desde o nosso nascimento e não se pode
admitir que indivíduos nos marquem de forma negativa pela condição da cor da pele
e tão pouco pelo que se apresenta nas informações sociais estabelecidas no individuo
como signos preestabelecidos ou mesmo estabelecidos.42 O contrário também se faz
verdadeiro, assim como em todas as profissões, há de se admitir que sempre temos
que nos defender, tanto por legítima defesa, como para se defender de alguma
acusação. Dentro das minhas atribuições como Encarregado de Segurança, houve
outra situação inusitada e de muita complexidade. De acordo com as normas
estipuladas pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie, no período de férias, e, aqui, me
refiro ao mês de julho, os alunos não estão autorizados a praticar nenhuma atividade
recreativa nas quadras poliesportivas.
Em um dia aparentemente tranquilo, três jovens adentraram o Campus e se
dirigiram para as quadras poliesportivas. Ao serem indagados sobre a presença deles
naquele local e verificando que não eram alunos do Mackenzie, o Agente de
Segurança me chamou via Rádio Transmissor (HT) para que eu, na condição de
Encarregado, tomasse conhecimento dos fatos relatados pelo segurança e, assim,
tomasse as providências cabíveis para aquela situação. Ao responder, obtive mais
informações que justificariam o meu parecer e a minha decisão respaldado pelas
normas do Instituto, ao qual sempre procurei cumpri-las da melhor forma possível. E,
com todo este aparato de dados, falei ao segurança que convidasse os jovens para
deixar o Campus e que lhes explicasse os motivos que nos levavam a tomar tal
atitude, dizendo: “Nos desculpem, mas o Mackenzie está em período de férias e
nenhuma atividade esportiva é realizada nesta ocasião, as quadras são fechadas para
os alunos e principalmente para os visitantes”. Ditas tais palavras aos jovens, foi
42 “Desde meados dos anos 1980, o poder público começou a dar respostas a essas demandas com a criação de conselhos voltados para a população negra, primeiro em São Paulo, no governo de Franco Montoro em 1985, e, em seguida, em diversos outros estados da federação. O governo Fernando Henrique Cardoso, iniciado em 1995, representa um marco fundamental nessa mudança de cenário, pois a primeira vez que o Estado brasileiro não apenas reconheceu oficial e publicamente a existência de racismo no país como criou um grupo interministerial voltado para a reflexão sobre as possibilidades de adoção de ações afirmativas no Brasil” (JAIME, 2016, p. 394).
130
solicitado que se retirassem. O segurança os acompanhou até determinado ponto e
os orientou que seguissem em linha reta para que saíssem pela portaria mais próxima.
Ao pensar que estariam cumprindo o que fora a eles solicitado, o segurança enganou-
se redondamente. Em vez de saírem pela portaria mais próxima, os rapazes pegaram
outro rumo e se dirigiram à praça de alimentação. Tudo havia sido registrado pelo
Sistema de CFTV do Mackenzie. Ao me avisarem pelo HT, solicitei a outro segurança
que me encontrasse no local onde estavam os jovens. Ao nos aproximarmos, percebi
um forte cheiro de fumo em um deles que usava um cabelo rastafári comprido. Os
outros dois estavam com roupas normais. Quando me dirigi a eles e perguntei porque
não atenderam à solicitação de deixar o Campus pela portaria mais próxima, o rapaz
de cabelo rastafári se levantou da cadeira e começou a proferir palavras de ameaça,
e os outros dois disseram que iriam terminar de comer e logo em seguida deixariam o
recinto. Concordamos com a decisão deles e informamos que esperaríamos até
acabarem sua refeição, posicionado assim segurança na porta da praça de
alimentação, a fim de não causar constrangimento ao grupo. Nesse momento, um
deles se levantou da cadeira (o de cabelo rastafári) e novamente proferiu algumas
palavras, porém, dessa vez, foram termos fortes: “Vocês estão dizendo para a gente
sair só porque somos negros, qual que é irmão? Vocês estão pensando que estão
falando com quem, aqui é nós, qualquer coisa a gente dá um salve para os irmãos e
vocês lá fora vão ver o que acontece, pode pá”.
Nesse momento ele despertou a atenção daqueles que estavam na praça de
alimentação, e todos olharam atônitos para aquela situação. A partir daí tínhamos de
tomar uma posição, e como sempre orientei os meus comandados que se a situação
estivesse saindo do controle, o que estava do lado assumia a ocorrência, foi o que
aconteceu comigo. O segurança que me acompanhava disse-me “chefe, deixa que eu
resolvo porque não vamos perder a nossa razão por causa desses jovens”. Com muito
trabalho eles saíram do Campus fazendo ameaças, afirmando que nos encontrariam
do lado de fora, mas saíram. Passados uns 20 dias, chegou um investigador de polícia
com uma intimação para que comparecêssemos ao Departamento de Homicídios e
Proteção à Pessoa (DHPP) para prestar esclarecimentos sobre um episódio de
racismo dentro da Universidade contra jovens negros.
131
Quando fui receber os investigadores, disse que era eu quem estava na
ocorrência juntamente com outro segurança negro. O investigador deu risada e falou
que era perda de tempo, mas tinha sido instaurado um inquérito policial. Ao
verificarmos os envolvidos por parte da acusação, para a nossa surpresa, dois dos
jovens eram filhos de um Desembargador, foi quando começamos a entender o que
estava por trás de tudo isso.43 No momento em que tratamos do assunto com o meu
superior, chegamos à conclusão de que o assunto era no mínimo cômico, por se tratar
de dois seguranças negros sendo acusados de descriminação racial. Assim, solicitei
ao meu superior que enviasse um advogado do Mackenzie para nos acompanhar.
No dia marcado estávamos todos no DHPP e, ao tomarmos conhecimento do
teor da acusação, iríamos ser ouvidos pelo escrivão de polícia, a fim de falarmos a
nossa versão do ocorrido. Mesmo assim, o escrivão não deixou de tecer um
comentário ao ver dois seguranças negros envolvidos naquela situação atípica,
dizendo que o inquérito seria encerrado por não haver fundamentação comprobatória.
Ao querer definir quem daria o depoimento primeiro, o escrivão olhou para mim e disse
que eu seria o primeiro, porque percebia, pela minha aparência, que eu era o chefe e
meu companheiro de trabalho ficaria mais tranquilo depois da minha fala. Tendo sido
arquivado o inquérito policial, pudemos observar que, geralmente, quem detém o
poder se acha acima do bem e do mal, não se importando com as outras pessoas, no
intuito de levar vantagem em tudo o que maquina. Os principais protagonistas dessa
trama são os jovens que estão frequentando esses cursos, que estão se formando.
São eles que vão ter que multiplicar esse esforço e construir um novo dizer de sua
história. O que a gente pode contar é como as coisas se passaram até que eles
chegassem lá. Mas, a partir daí, muda tudo! Tudo muda. A história está sempre por
ser escrita e só a posteriori interpretada.
As conquistas do movimento negro no Brasil contemporâneo apontam, de meu
ponto de vista, para um caminho sem retorno e, se antigas lideranças são
compreensivelmente absorvidas, para o bem ou para o mal, pelo establishment, novas
certamente serão produzidas. Afinal, é próprio da dinâmica das sociedades se fazer e
43 “Ai daqueles que nas suas camas maquinam a iniquidade e planejam o mal! Quando raia o dia, põem-no por obra, pois está no poder da sua mão. E cobiçam campos, e os arrebatam, e casas, e as tomam; assim fazem violência a um homem e à sua casa, a uma pessoa e a sua herança” (BÍBLIA SAGRADA, 2011, Miqueias 2. 1-2).
132
se refazer. Ou, como disse meu irmão certa vez, em uma poética carta familiar: “É
incrível a força de prosseguir que tem a vida” (JAIME, 2016, p. 402).
6 GUISA DE CONCLUSÃO
Ao trabalhar com relações raciais sobre Um Negro Protestante, foi possível
avaliar o que representou ser A Ovelha Negra no Rebanho do Senhor para a área de
conhecimento sociológico e o que representara para a população negra e para outras
etnias o avanço de um jovem que, apesar dos percalços sofrido, reencontra o
caminho. Dessa forma, este trabalho não pode ser considerado tendencioso nem tão
pouco responsável pela deformação da verdade. Com ele, encontrei resposta e
confirmação ao romper com o isolamento psicossocial e histórico, municiado da razão
e da crítica. Essas reações imediatas dentro deste estudo acadêmico inovador
poderão estimular uns e, por outro lado, incomodar outros.
Reservei esta espécie de conclusão para tocar num ponto que acredito ser
crucial na minha dissertação: a opção nem sempre fácil de usar minhas próprias
experiências para relatar o viver de um negro na extrema periferia de São Paulo,
desde a sua infância até a idade adulta. Reconheço que não é tarefa fácil. Pelo
contrário, ela é desafiadora pois envolve recuperar e expor momentos difíceis, e até
dolorosos, de etapas de uma jornada que é preferível esquecê-la, deixá-la esquecida
nas dobras do passado. Gostaria, porém, de dar destaque nestas páginas finais ou
conclusivas a alguns pontos:
1º- Tecnicamente, ao optar pela autobiografia, não estava fugindo das técnicas
de pesquisas consagradas tanto pela Sociologia, como pela Antropologia. Refiro-me
à “história de vida”, que permite aos cientistas sociais penetrar nos caminhos das
tramas sociais de uma comunidade, de um viver individual e coletivo. Espero que
minha dissertação, através de meus depoimentos pessoais, revele tais tramas sociais
2º- Não fui original em adotar tal recurso analítico e interpretativo. O Professor
Florestan Fernandes, embora um pouco disfarçadamente, relata, em seus clássicos
textos dedicados à questão racial brasileira, suas experiências de vida de menino
133
pobre, sem expectativas de ascender socialmente, em seu convívio com garotos
negros do bairro do Bexiga. Porém, o modelo mais bem-acabado que me inspirou
fortemente foi a vida do Professor José de Souza Martins por ele narrada em seu
belíssimo e comovente livro Uma Arqueologia da Memória Social. A Autobiografia de
um Moleque de Fábrica, citado nas Referências. Por que esse fascínio por esse
notável sociólogo? Porque eu percebi vários pontos de aproximação entre as
experiências dele e minha trajetória de vida, ambos mergulhados na pobreza, olhando
o mundo sem esperança, mas pleno de expectativas.
3º- Finalmente, a minha história de vida, a minha autobiografia, além de olhar
as minhas lutas, como lutas de um negro pobre à busca de canais de ascensão social,
pretende deixar registrado, na produção acadêmica dedicada à questão racial
brasileira, a persistência da desigualdade étnica no Brasil em pleno Século XXI.
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ANEXO 1
O Mundo em Que Renasci
(Composição de Arlindo Cruz e Rogê com participação de Marcelo D2)
136
[Marcelo D2]
Aquele que habita no esconderijo do altíssimo
À sombra do onipotente descansará
Direi do Senhor
Ele é meu Deus, meu refúgio, a minha fortaleza
e nele confiarei
Porque Ele te livrará do laço do passarinheiro
E da peste perniciosa
Não terás medo do terror da noite
Nem da certa que voa de dia
Toda peste que anda na escuridão
E nem da mortandade que assombra o meio-dia
1000 cairão ao teu lado,
10000 à tua direita mas não chegarão a ti!
[Arlindo Cruz]
Eu nasci na rua, me criei na rua
Mal iluminado pela luz da lua
Mal alimentado, bem descriminado
Tudo de errado eu vi acontecer
Quase sem sorrir, aos poucos cresci
Tive muita chance para me perder
Daqui e dali eu sobrevivi
Mas tudo mudou, eu conheci você
Você
Quando eu estava sozinho, quem me carregava?
Você
As pegadas na areia era você quem dava
Meu Deus, valeu por jamais me deixar cair
Pela paz que me deu, pela fé que me faz sentir
Em você, é você
É você
Meu leão de Judá que me ajuda a viver
É você
Soberano maior, toda força e poder
137
Meu Deus, valeu até cada segundo que sofri
Pra valer muito mais pelo mundo em que renasci
ANEXO 2
Artigo publicado na Revista Mackenzie com funcionários do Instituto e alunos
agraciados por bolsa de estudos integral.
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