A Psicanalise Lacaniana Como Teoria Social

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    Vladimir Safatle graduado (1994) e mestrado(1997) em Filosofia pela USP, doutorado pelaUniversidade de Paris VIII (2002), com o orientadorAlain Badiou. Foi professor visitante dasUniversidades de Paris VII e Paris VIII, alm deresponsvel de seminrio no "Collge Internationalde Philosophie" (Paris). Desenvolve pesquisas nasreas de: epistemologia da psicanlise,desdobramentos da tradio dialtica hegeliana nafilosofia do sculo XX e filosofia da msica. um doscoordenadores da International Society ofPsychoanalysis and Philosophy. autor de "A paixo

    do negativo: Lacan e a dialtica" (Unesp, 2006), "Lacan" (Publifolha, 2007) e "Cinismo e falnciada crtica" (Boitempo, 2008) entre outros.

    Conexo Lacaniana: Todos me ouvem? Muito bem, vamos abrir nossa conferncia de

    encerramento deste quarto curso da Conexo Lacaniana Psicanlise e cultura Freud e Lacan,

    nosso conferencista ser Vladimir Safatle, professor do departamento de Filosofia da Universidade

    de So Paulo, doutor em Filosofia pela Universidade Paris VIII. Dr. Vladimir autor de diversos

    livros, entre eles A paixo do negativo Lacan e a dialtica (Unesp, 2006), Lacan (Publifolha,

    2007), "Cinismo e a falncia da critica (Boitempo, 2008). organizador de Um limite tenso:

    Lacan entre a filosofia e a psicanlise (Unesp, 2003), co-organizador de O tempo, o objeto e o

    avesso - Ensaios de filosofia e psicanlise (Autntica, 2004). Em nome do Dr. Mrcio Peter e daConexo Lacaniana gostaramos de agradec-lo por estar conosco, uma honra t-lo conosco. O

    senhor est com a palavra.

    Vladimir Safatle:Gostaria de agradecer o convite, esse convite me deixa bastante feliz porque

    vai me permitir discutir umas questes que para mim so bastante importantes. Eu havia

    entendido que esse seria muito mais um espao de conversa por isso eu no vou apresentar um

    texto preparado, que como eu normalmente fao. Quer dizer, eu no vou ler nenhuma

    conferncia, no nego que falar de improviso uma coisa que eu particularmente no gosto

    muito, mas de qualquer maneira acho que podemos conseguir ter um bom resultado.

    www.marciopeter.com.br

    NCLEO MRCIO PETER DE ENSINO - CONEXO LACANIANA

    CURSO ONLINE 2008/2 - "PSICANLISE E CULTURA FREUD E LACAN"

    Vdeo-Conferncia com VLADIMIR SAFATLE

    A PSICANLISE LACANIANA COMO TEORIA SOCIAL

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    Na verdade eu sugeri este tema - A Psicanlise Lacaniana como teoria social - por trs

    razes. A primeira delas faz parte das minhas pesquisas atuais, tentar insistir na idia de que a

    psicanlise, enquanto no s uma prtica clnica que nasceu no comeo do sculo XX, mas

    tambm como uma experincia intelectual que mobilizou clnicos, tericos, a prpria literatura,

    filsofos, socilogos.

    A psicanlise enquanto experincia maior do cenrio intelectual do sculo XX foi marcada

    por uma tentativa de desvincular a insistncia do paralelismo entre o mental e o orgnico para

    expor o carter complexo e absolutamente fundamental do paralelismo entre o mental e social.

    Gostaria de iniciar a partir dessa idia. A psicanlise traz o regime de reflexo onde o que

    fundamental no exatamente o paralelismo entre o mental e o orgnico, mas o paralelismo

    entre mental e social. No se trata, na verdade, de ignorar a existncia do paralelismo mental e

    orgnico, mas a partir do momento, como todos vocs sabem, que a psicanlise enveredou por

    uma prtica clnica absolutamente desmedicalizada e fundamentalmente vinculada capacidade

    de reorientao da conduta mediante a palavra. Estava muito claro que havia como pressuposto

    fundamental a existncia de um paralelismo extremamente complexo e muito decisivo entre

    mental e aquilo que organiza nossa vida social, aquilo que d forma e estabelece as condies deestruturao da nossa vida social. Dito isso, eu diria que este paralelismo, ele foi colocado de

    maneira muito evidente, talvez o psicanalista que compreendesse da maneira mais evidente tenha

    sido, de fato, Jacques Lacan.

    Desde o incio, e quando eu digo desde o incio, eu digo desde a tese de doutorado de

    1932 sobre Da psicose paranica e sua relaes com a personalidade estava muito claro para

    Lacan a insistncia de expor alguma coisa como a gnese social da personalidade enquanto base

    para compreenso das ditas patologias mentais. Por mais que esta estratgia tenha ganhado

    novas inflexes no perodo da longa experincia intelectual do Lacan no comeo dos anos 30 at

    sua morte, no comeo dos anos 80, inegvel que este princpio, me parece que foi conservado

    em toda sua extenso.Parece-me que esse princpio de base que aparece j na tese de doutorado, ou seja, tentar

    compreender a partir da gnese social do que o Lacan naquele momento chamava de

    personalidade, o fundamento das ditas patologias mentais, parece-me que este princpio vai ser

    conservado. Lacan vai abandonar a idia de personalidade como um conceito por demais

    psicolgico, mas ns poderemos dizer que a gnese social da subjetividade, a gnese social do

    sujeito, enquanto categoria clnica, vai ser fundamental, vai ser o fundamento, da compreenso do

    que ns costumamos chamar de patologias mentais.

    Eu diria que no por outra razo que o uso do conceito de inconsciente anterior da

    trajetria do Lacan bastante peculiar. Vocs sabem que at mais ou menos 1953, Lacan

    simplesmente no utiliza o conceito de inconsciente. Ele v o conceito de inconsciente como umconceito suprfluo, como um conceito demasiadamente psicolgico. H vrios textos do final dos

    anos 40 onde isso fica bastante claro, Proposies sobre a causalidade psquica, por exemplo ,

    um texto dessa natureza.

    Vocs sabem que na verdade Lacan s vai realmente absorver o conceito de inconsciente

    atravs de uma espcie de mediao fornecida pelo Lvi-Strauss. O conceito de inconsciente do

    Lacan fundamentalmente um conceito que s pode mesmo ser compreendido atravs desta

    mediao pelo Lvi-Strauss. E o que significa isso? Isso significa que a grande colaborao do

    Lvi-Strauss para a noo de inconsciente insistir, e em ltima instncia, que o inconsciente

    um fato social. O inconsciente no um fato individual, ligado particularidade das vivncias de

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    um sujeito, nessa particularidade da histria subjetiva do desejo do sujeito. O inconsciente

    fundamentalmente um fato social ligado s estruturas scio-simblicas, que no s organizam a

    vida social como tambm determinam previamente as possibilidades do pensar, e da experincia

    de todo e qualquer sujeito.

    Neste sentido o que interessante que atravs desta leitura do Lvi-Strauss o Lacanento pde desenvolver esta idia de inconsciente como a ordem estrutural da linguagem. Como

    ns sabemos que a ordem estrutural da linguagem o nome que os estruturalistas davam para

    aquilo que fornece o fundamento da vida social, ento fica muito claro que no fundo se tratava

    simplesmente de absorver novas elaboraes no campo das cincias humanas, ento a

    perspectiva, que era essa perspectiva que j estava deste o incio, e que ns devemos nos

    perguntar sobre os processos que permitem a gnese social da subjetividade, daquilo enquanto

    condio para compreenso do que ns falamos de patologias mentais.

    Eu voltaria a Lvi-Strauss para a gente insistir, por exemplo, nesse texto cannico

    Introduo obra do Marcel Mauss, o Lvi-Strauss falava muito claramente na idia de que: o

    que so patologias mentais? A partir do momento que voc admite que o inconsciente nada mais

    e nada menos do que a estrutura social que organiza previamente as condies de possibilidadesde qualquer experincia possvel. As patologias mentais so posies subjetivas de insero social.

    Nesta idia de Lvi-Strauss, ela me parece que a base para uma idia fundamental do Lacan de

    transformar as patologias mentais, as nosografias mentais, em posies subjetivas, posies do

    desejo do sujeito em relao quilo que Lacan chama neste momento de Grande Outro, essa

    maneira com que o Lacan trouxe do interior de uma situao clnica consideraes sobre o

    funcionamento da ordem estrutural da linguagem.

    Dito assim me parece que a partir desta perspectiva, ns podemos compreender mais

    claramente, por exemplo, o que significa patologias mentais no interior da psicanlise. E essa me

    parece ser uma questo bastante interessante porque, vocs sabem isso melhor do que eu, a

    psicanlise normalmente criticada por ser uma espcie de prtica arcaica no sentido de que tudose passa como se ela no tivesse levado em conta toda a elaborao e o refinamento das

    determinaes classificatrias prprias como, por exemplo, dos DSM (Diagnostic and Statistical

    Manual).

    Com este modo de trabalhar no mais com essas grandes categorias como histeria, como

    neurose, como neurose-obsessiva, psicose, mas com categorias muito mais precisas, como os

    transtornos, como as disfunes, enfim, coisas desta natureza. Ento uma destas questes

    bastante interessantes h de se perguntar o que exatamente uma categoria como a histeria? O

    que significa exatamente uma categoria como a neurose? O que neurose, por exemplo, qual o

    seu fundamento? O fundamento uma certa disposio orgnica ou neuronal ou h algum outro

    modo de compreenso, do que est em jogo no final da clnica psicanaltica.

    Parece que esta insistncia no paralelismo entre mental e social permite compreender

    muito claramente como que as categorias so no fundo descries de modos de insero social.

    S que como o dispositivo de insero social para a psicanlise nada mais do que o desejo e os

    seus processos de socializao, e por outro lado, como o que chamamos de social trata a

    psicanlise, principalmente a lacaniana, marcada pelo menos nesse ponto, por uma estratgia

    estruturalista de colocar a linguagem no centro da vida social.

    O que ns chamamos de social uma estrutura na qual a linguagem tem seu papel

    fundamental, ento esta questo pode ser retraduzida como uma questo que diz respeito ao

    modo de relao. So modos de relao, entre desejo e linguagem, ou so modos de relao entre

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    desejo e, de uma forma ou de outra, aquilo que fornece o fundamento da vida social no sentido

    mais amplo. Dito isso me parece ento que fica para a psicanlise uma obrigao maior, eu diria

    que uma obrigao que em larga medida saiu do espectro da produo analtica e que estava

    presente de maneira bastante forte desde os textos freudianos.

    Essa obrigao fornecer a partir do desenvolvimento das novas consideraes da nossavida social, o quadro preciso de anlise da relao entre sujeito e sociedade. Por que eu insisto

    nesse aspecto? Porque me parece que este um elemento constitutivo do projeto freudiano. Quer

    dizer, um dado muito interessante porque vrios psicanalistas durante todo o sculo XX e

    mesmo entre ns, expuseram de uma maneira ou de outra o seu desconforto com esta espcie de

    psicanlise aplicada, esta maneira com que a psicanlise exigia a todo momento uma reflexo

    sobre o lao social, uma reflexo sobre o vnculo social, sobre a natureza do vnculo social, como

    condio isso um dado importante como condio para compreenso da eficcia da sua

    clnica e no como exerccio subsidirio ou um exerccio suplementar, mas como elemento

    fundamental na compreenso da eficcia da sua clnica.

    Volto a insistir isso est presente desde Freud, ou seja, os textos dito sociolgicos

    freudianos, Totem e Tabu, Moiss e o monotesmo, O mal-estar da civilizao, O futuro deuma iluso. No so textos exteriores reflexo nica. Ter um s texto onde categorias clnicas

    muitas vezes aparecem primeiro, por exemplo, o conceito de supereu, os elementos fundamentais

    do conceito de supereu apareceram inicialmente em Totem e Tabu, antes de aparecer em

    qualquer texto clnico. O que no de se estranhar, o conceito de supereu nada mais do que, de

    certa maneira, o resultado de um processo de socializao das pulses a partir de um modo de

    organizao da civilizao onde, civilizao e represso convergem na temtica fundamental no

    Mal-estar da civilizao.

    Neste sentido o que eu insistiria no fato de que esta abordagem, tpica do projeto

    freudiano, esta peculiaridade de Freud, ou seja, essa peculiaridade de um clnico, de algum que

    trata das ditas doenas mentais, ser obrigado a todo momento, a construir uma larga produosobre a natureza do vnculo social, fornecendo mesmo, como dizia Lvi-Strauss, os mesmos mitos

    fundamentais para a compreenso desta maneira muito prpria das sociedades ocidentais de

    conjugar processos civilizatrios e sentimentos de culpa.

    Este tipo de operao, que inclusive aparece nos textos de Lacan, eu gostaria de falar

    onde eu vejo que isso aparece. Parece-me que depois de Lacan houve uma certa averso a esta

    obrigao prpria da psicanlise, uma averso que acabou transmutando de uma maneira ou de

    outra em uma operao na qual tudo que no era vinculado clnica era colocado sob a alcunha

    extremamente conservadora de psicanlise aplicada. Ou seja, um pouco como se tratasse de uma

    maneira ou de outra, de usar os esquemas explicativos da teoria da sexualidade, da teoria do

    complexo de dipo para dar conta dos fatos da cultura, que est longe de ser o caso que, est

    longe de ser aquilo que me parece o cerne dessa operao psicanaltica e reflexo sobre o vnculosocial.

    No caso Lacan, e a um dado bastante interessante porque na maneira que ele faz essa

    articulao da psicanlise e teoria social, uma maneira mediada fundamentalmente pela filosofia.

    Por que pela filosofia? Porque o dispositivo fundamental de compreenso desta relao psicanlise

    e teoria social fornecido ao Lacan como aquilo que na poca do Lacan se compreendia como a

    Dialtica do Senhor e o Escravo. muito interessante perceber a incidncia deste esquema porque

    na verdade um esquema de estruturas e reconhecimento e de relaes intersubjetivas que so

    fundamentalmente relaes de dominao e servido.

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    impressionante perceber como este esquema ele aparece em vrios momentos da obra

    de Lacan at os primeiros anos da dcada de 70, o que demonstra que no correto uma certa

    leitura que diz, de uma maneira ou de outra, toda a influncia ou todos emprstimos que o Lacan

    faz da filosofia hegeliana so estritamente vinculados a um determinado momento que deveria ir

    at mais ou menos meados dos anos 50.

    Tudo isso me parece uma leitura muito equivocada que vai totalmente contra os textos,

    por exemplo, percebam como a Dialtica do Senhor e do Escravo um dispositivo fundamental

    para se compreender um seminrio como o O avesso da psicanlise. Basta ler o seminrio,

    vocs vo perceber como as temticas sobre a Dialtica do Senhor e do Escravo aparecem mais

    de uma vez de maneira insistente, ou mesmo, por exemplo, a Teoria dos quatro discursos.

    sempre bom lembrar que o chamado Discours du matre; matreera o termo que na poca se

    traduzia a idia do herrna dialtica do Senhor e do Escravo.

    Por que eu insisto neste aspecto? Porque se trata da importao de um esquema de

    compreenso dos modos de organizao dos laos sociais. E o que este esquema nos diz? Eu

    lembraria que como Lacan se aproveita desse raciocnio dos escravos est presente na forma

    como ele compreende a relao no s entre os pequenos outros, o Outro, o sujeito e o grandeOutro; entre o Eu e essa imagem, entre o beb e a me, que o que ele diz em vrios momentos.

    O que esta dialtica nos mostra? Primeiro, que toda e qualquer relao intersubjetiva,

    uma relao baseada na experincia de dominao e servido. Quer dizer, no h uma relao

    intersubjetiva que seja simtrica. Este um dado muito importante, porque no interior da

    psicanlise, principalmente da psicanlise prpria da escola inglesa, da teoria das relaes de

    objeto, insistiu-se constantemente, na seguinte idia: existe uma experincia inicial, entre o beb

    e a me, por exemplo, uma experincia dita de intersubjetividade primria, onde tanto um quanto

    outro tm uma dependncia mtua. Essa dependncia mtua ela deve ser de uma certa forma

    rompida, para que o processo de maturao se desenvolva. No entanto, o fato dessa dependncia

    mtua aparecer como uma primeira experincia de, digamos, social do sujeito.Ou seja, como se houvesse uma espcie de intersubjetividade primria nas bases das

    experincias sociais, que permite uma subjetividade primria ligada idia de amor. A relao de

    amor entre o beb e a me permite no s as seguranas do processo de maturao, ele se sabe

    amado, por isso ele pode entrar num processo de maturao, onde abrir mo de certas situaes

    fundamental, mas permite tambm, garantir que o vnculo social pode ser pensado, pode

    tendencialmente se desenvolver em direo recuperao desse solo de intersubjetividade

    primria. Este solo de mtua dependncia, mas agora a mtua dependncia marcada pela

    autonomia do sujeito, e por a vai.

    No existe este esquema no interior da psicanlise lacaniana, por qu? Porque para Lacan,

    desde o incio, a relao entre o sujeito uma relao marcada pelas idias de dominao eservido. E o dispositivo, atravs do qual, essa idia de dominao e servido so implementados,

    a noo de fantasma. Quer dizer, atravs da idia de fantasma, o sujeito procura submeter o

    outro condio de objeto do meu desejo.

    Esse jogo de submisso cruzada atravs da relao entre me e beb, que faz a mediao

    da relao que para Lacan, desde o incio a noo de fantasma e dos objetos fantasmticos, seja a

    me, seja a tentativa de imaginarizao da posio da criana que a me procura fazer. Isto

    demonstra para Lacan que, por exemplo, no existe algo como a intersubjetividade primria. No

    havendo algo como a intersubjetividade primria, ento a experincia social fundamental que a

    primeira, a experincia do conflito. E a relao entre me e beb, desde o incio uma relao

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    conflituosa. E esta experincia do conflito que instaura o vnculo social. Ou seja, o vnculo social

    desde o incio uma experincia marcada pela irredutibilidade da noo de conflito.

    Toda questo, o que um dado muito interessante, que, eu diria que esse um

    elemento fundamental, por exemplo, na crtica lacaniana, a tentativa de transformao da

    intersubjetividade em paradigma de tentativa de racionalidade da clnica e todas as crticas queLacan faz noo de intersubjetividade.

    Bem, eu diria que a base dessa crtica a compreenso de que instaura a vida social a

    idia de irredutibilidade da noo de conflito, da noo de acordo, da noo de conflito. Esse um

    ponto; o segundo ponto que tambm bastante interessante Lacan vai retomar essas

    consideraes sobre a teoria social, no por acaso, no final dos anos 60, ou seja, no momento de

    efervescncia social da Frana, devido a maio de 1968. Ele retoma tentando sistematizar algo que

    em alguns outros seminrios apareceu de maneira relativamente dispersa, uma situao aqui,

    outra situao ali.

    A partir do seminrio XVI - De um Outro ao Outro - o elemento fundamental na

    elaborao lacaniana a tematizao da relao entre psicanlise e teoria marxista. Isso meparece uma coisa que vale a pena ser retomada, tem alguns lacanianos que retomaram isso mas

    me parece que uma rea muito interessante a ser desenvolvida a. Por qu? Porque no fundo a

    maneira como Lacan se aproxima do Marx, uma maneira bastante peculiar por duas razes:

    primeiro porque ela no fundo um desdobramento das suas leituras do Hegel. Ou seja, h uma

    continuidade entre as leituras que Lacan j fez do Hegel e do Marx. Em suma, o Marx lacaniano

    um Marx muito hegeliano. Muito mais hegeliano do que era o Marx em circulao no final dos anos

    60.

    Por que ele muito hegeliano? Porque ele lido a partir dos problemas da dominao do

    senhor dos escravos. S que a o Marx aparece permitindo ao Lacan repensar Marx de uma

    maneira mais clara as questes vinculadas idia de trabalho, e por a vai.

    Mas o dado que eu gostaria de insistir, que atravs dessa passagem de direo a Marx.

    Qual a importncia da passagem em direo a Marx? A passagem em direo a Marx permite,

    me parece, ao Lacan, posicionar claramente quais so as conseqncias, que segundo ele

    prprio, o nico conceito que ele criou; o nico fato, a nica noo por ele criada, que a idia

    de objeto a.

    Todos vocs j conhecem um pouco, ou j ouviram falar dessa idia do objeto acomo o

    mais de gozar, de uma maneira de que o Lacan teria da partir da idia marxista de mais valia.

    Reconstituir a idia de objeto a, eu s insistiria num aspecto; eu terminaria um pouco por aqui

    para que a gente tivesse mais tempo para discusso.

    Quer dizer, por que em um determinado momento, Lacan se v obrigado a recorrer a umateoria social, como a teoria marxista, a economia poltica marxista, para dar conta, ou para

    definir mais claramente esse, que segundo ele mesmo, era o nico conceito por ele criado. Parece-

    me que essa estratgia, ela extremamente sintomtica e muito importante; muito importante

    por qu? Porque no fundo, no fundo, bem, se entrar mais nas questes, da natureza desta leitura,

    que depois, se for o caso, eu poderia entrar com mais calma, eu gostaria s de expor de uma

    maneira como eu compreendo, o que est por trs dessa articulao entre o Lacan e o Marx. O

    que est por trs basicamente o seguinte: tudo se passa, como se Lacan falasse mais ou menos

    a seguinte coisa: da mesma maneira com que a sociedade organiza a sua vida econmica, e

    determina a configurao da sua vida econmica, o sujeito organiza a sua relao ao desejo, ao

    objeto de seu desejo.

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    Se o objeto causa do seu desejo estruturalmente similar a essa noo fundamental do

    Marx, que permite o desenvolvimento do funcionamento da vida econmica, se o objeto causa de

    desejo similar quilo que fornece o fundamento da vida econmica de uma sociedade, ento

    significa que uma relao profunda de paralelismo que nos permite colocar a seguinte questo:

    em que a maneira com que ns constitumos a nossa relao ao desejo dependente da maneira

    com que ns enquanto agentes scio-econmico nos deixamos determinar por um certo modo deconfigurao da sociedade capitalista?

    Ou seja, isto me parece um dado bastante interessante e at certo ponto ainda h muito a

    ser explorado, que no s isso poderia, no s esta perspectiva demonstra o profundo vnculo

    entre clnica e a teoria social, no caso a psicanlise, mas tambm nos permite colocar a seguinte

    questo: at que ponto uma modificao estrutural, a relao do sujeito com objetos de seu

    desejo no implica ou no exige uma modificao estrutural, na relao, na maneira com que o

    sujeito se vincula quilo que fornece o fundamento da vida scio-econmica da qual ele faz parte.

    Ou seja, at que ponto pode uma clnica, um progresso analtico, um progresso interior numa

    situao analtica ser independente de uma reconfigurao dos modos de insero social do

    sujeito.Eu insistiria muito neste aspecto, que me parece, eu terminaria um pouco por aqui, que

    me parece que uma das coisas mais interessantes de Lacan neste sentido, e tambm talvez mais

    problemticas, seja exatamente o fato dele ter sido o psicanalista que mais vinculou final de

    anlise e reinsero institucional daqueles que passaram por final de anlise. Por isso que, o

    problema da escola de analistas, ou seja, dessa instituio composta por aqueles que passaram

    por final de anlise, se transforma em uma questo no simplesmente institucional, mas uma

    questo interna clnica, interna ao processo analtico.

    A idia me parece bastante clara, por que que ela interna ao processo analtico?

    Porque impossvel pensar finais de anlise sem pensar o problema, bem, mas qual o tipo de

    vnculo scio-institucional que aqueles que passam por um final de anlise criam? E no poroutra razo, que a partir de um certo momento, o problema desse vnculo pensado sobre a figura

    da escola se transforma numa questo clnica para o Lacan, ou seja, o objeto de teorizao, o

    objeto profundo de teorizao, como talvez nenhum outro psicanalista tenha teorizado. Muitos

    poucos psicanalistas fizeram esse vnculo e nenhum teorizou de maneira to extensiva esta

    questo.

    Ento isto simplesmente demonstra o qu? Que h no interior da experincia lacaniana

    uma postura muito grande neste tipo de vnculo entre o impacto que a cura pode produzir, e a

    modificao no modo de insero social do sujeito. Porque a cura indissocivel desta

    modificao, seja atravs da reconstituio de vnculos sob a figura da escola e atravs desta

    reconstituio de vnculos sociais fortemente mediados pela linguagem, que o aparto

    fundamental de toda e qualquer verdadeira produo artstica e da porque, talvez, seja uma dasrazes pelas quais tambm esse recurso a dar seja uma constante to forte no interior do

    pensamento lacaniano.

    Bem, mas eu paro por aqui para que a gente possa discutir, tem um tempo maior de

    discusso.

    Cone x o Lacan i an a:Muito obrigada, professor, vamos para as perguntas agora. Eu gostaria de

    pedir que vocs fizessem as perguntas em ordem, e ns vamos estar marcando a ordem das

    perguntas, e colocando para o professor Safatle, obrigada.

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    P e r g u n t a ( R J ) : Estamos s voltas com as novas configuraes dos sintomas, novos sintomas, oua-sintomas?Vladimir Safatle: Ok, esta pergunta uma pergunta interessante, talvez ela explique porque apsicanlise nunca precisou e que nunca quis ser, at onde eu consigo enxergar, umasintomatologia. No por outra razo, que a estrutura nosogrfica psicanalistas so muitoflexveis em relao quilo que ns podemos chamar de sintomatologia. Por que, por exemplo, nspodemos conservar categorias como a histeria, mesmo admitindo que os sintomas histricosatuais no so exatamente idnticos tais como os sintomas histricos que apareceram para oFreud?

    Porque, em ltima anlise, enquanto posies subjetivas em relao ao desejo, mas nosentido de modo de insero social no processo de socializao do desejo. Estas categorias elasso quase como, por um lado dramatizaes existenciais, e por outro, posies lgicas, que sorelativamente independentes no que diz respeito a uma estrutura bastante determinada desintomas.

    Ento, me parece que a grande vantagem voc tem uma certa flexibilidade em relao aossintomas porque voc admite que novas configuraes sociais impem novas formas de produosintomtica por parte dos sujeitos. Bem, esta foi uma questo muito boa.

    P e r g u n t a ( S P ) : Voc acredita que ainda estamos vivendo sob a dige do discurso capitalista oualguma outra estrutura est se configurando?

    Vladimir Safatle: Essa pergunta uma pergunta boa, mas que exige um esclarecimento sobreque o significa exatamente discurso capitalista. Eu digo isso, porque, tem uma maneira decompreender que prpria do interior do lacanismo, uma das figuras dos quatro, no dos cincodiscursos, e voc tem uma maneira mais rpida de compreender o discurso capitalista. Eu diriaque a maneira lacaniana uma maneira bastante interessante de compreender o que o

    capitalismo, que primeiro, um dado muito importante, nem sempre lembrado, quer dizer, ocapitalismo uma forma de discurso; um modo de funcionamento de discurso. Ou seja, h ummodo de funcionamento disso que fornece o fundamento do vnculo social, que prprialinguagem, que tpico do capitalismo. Agora, qual o modo de funcionamento do capitalismoenquanto discurso? Qual a caracterstica do capitalismo como discurso?

    Parece-me que uma das questes mais importantes do Lacan, que o capitalismo umtipo de discurso, e a eu desenvolveria alguma coisa que eu tentei desenvolver no ltimo livro queescrevi que se chama Cinismo e a falncia da crtica, o capitalismo uma forma de discurso, quecontrariamente ao discurso do mestre, onde uma posio de comando claramente posta eclaramente defendida, o capitalismo uma forma de discurso, que pode de uma certa forma exporaquilo que sua impostura, digamos assim, sem que a sua capacidade de mobilizao sejacolocada em xeque.

    O capitalismo tem como o modo de funcionamento uma certa forma de legitimao, que uma legitimao em constante crise de legitimizao. Por exemplo, pegue por exemplo um dadoque estrutural do capitalismo como forma de vida, o capitalismo no s um modo de trocaseconmicas, o capitalismo no s uma maneira de funcionamento da vida econmica. Ocapitalismo uma forma de vida, que ns j tnhamos entendido isto muito claramente que MaxWeber ao insistir que o capitalismo impe um certo modo de disposio de conduta, de disposiotica de conduta, que lhe fundamental.

    O capitalismo como forma de vida, ele se desenvolve concomitantemente a um fato, que um fato fundamental para a psicanlise, no qual a todo momento a psicanlise se confronta, que a idia do declnio da autoridade paterna. No por outra razo que o desenvolvimento, no

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    momento em que o capitalismo se desenvolve, com toda sua fora, quer dizer, meados do sculoXIX at hoje, um momento em que a temtica do declnio da autoridade paterna entra eaparece. E ela vai ser uma constante a todo momento. O interessante que, por um lado, voctem este tipo de colocao que afirma: bem o que o capitalismo faz, ele retira os vnculostradicionais, ele problematiza os vnculos tradicionais, e ao problematizar os vnculos tradicionais,

    ele faz ento com que todas as autoridades vinculadas tradio sejam colocadas em xeque; epor outro lado, ele abre um risco, que um risco daquilo que podemos chamar de uma situaode anomia, de anomia social, vinda exatamente devido fragilizao daquilo que tradicionalmentefuncionava como esteio da vida social.

    Um dos dispositivos fundamentais dessa fragilizao o dito declnio da autoridadepaterna. E a psicanlise, de uma forma ou de outra, um discurso, uma prtica clnica quenasce exatamente desse que um de seus grandes sintomas. Para Lacan, atravs da idia dodeclnio da imago paterna, esse um dos primeiros dos grandes sintomas da psicanlise, que seconsidera que a psicanlise lida. Agora, o que interessante nesse processo todo? No que afigura do pai entra em declnio, e com isso voc tem uma situao na qual o sujeito no sabe maiscomo se orientar. O que interessante que voc tem uma situao, na qual mesmo em declnio,

    mesmo em regime de completa fragilizao, as figuras imaginrias do pai continuam toameaadoras quanto anteriormente. Ento, o que faz com que os sujeitos vivam numa situaobastante interessante, voc tem uma fragilizao social, mas uma conservao, do ponto de vistaimaginrio, de figuras que j no tm mais nenhum tipo de indicao na vida emprica do sujeito.Ento, por qu? Porque essa a grande caracterstica do capitalismo, ou seja, um tipo dediscurso que pode funcionar em crise de legitimidade. Ou s funciona em crise de legitimidade.

    P e r g u n t a ( R J ) : Esta tese da economia estar ligada economia psquica tem sido fortementedesenvolvida por Melman, o que acha?

    Vladimir Safatle: Sim. Eu acho que de fato uma perspectiva que deve ser mais aprofundada,acho que algo que faz todo o sentido no interior de algumas elaboraes do ltimo Lacan. E me

    parece que h todo um trabalho a ser desenvolvido a partir desse tipo de paralelismo, que comoeu havia insistido desde o incio, me parece que na verdade um setor dessa idia de que overdadeiro paralelismo, com o qual psicanlise trabalha, entre, digamos, mental e social.

    P e r g u n t a ( C E) : Prof. Safatle, j que estamos falando de novos sintomas, novas configuraessociais dos sintomas... Aproveito para perguntar sobre a posio do analista diante disso. Osenhor concorda que nessa mutao cultural que vivemos, no mais possvel s intervenessimblicas? O analista no seria convidado a intervir em outros registros, como o imaginrio?

    Vladimir Safatle: Bem, sobre essas questes de modo de atuao do analista, eu no me vejocomo a pessoa mais indicada a responder, porque na verdade eu sou muito mais um interessadodo que realmente algum que desenvolva alguma coisa nesse sentido. O que eu sei eu recebomuito mais dos meus amigos analistas, aos quais eu sou infinitamente grato. Mas, s uma questoque a sua colocao pressupe, essa distino entre uma coisa a interveno simblica atravsda palavra, outra coisa a interveno atravs do ato.

    No me parece que essa categoria do ato seja uma categoria ligada ao imaginrio, aomenos por Lacan. Muito pelo contrrio, me parece que essa categoria do ato muito mais umacategoria que est para alm do imaginrio. E eu insisto nesse aspecto porque por um lado, o que a palavra, no interior da metapsicologia lacaniana? A palavra nunca uma descrio de umestado, a palavra sempre um ato. A palavra que interpreta sempre . No por outra razo queLacan sempre utilizar algumas estruturas tpicas de ato e fala para expor esse poder performativoda palavra que interpreta. Ou seja, a verdadeira palavra sempre um ato, porque ela nunca um

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    dispositivo constatativo, ela nunca constata uma situao, mas ela sempre um dispositivoperformativo, ou seja, ela produz uma nova situao.

    P e r g u n t a ( R J ) : Achei muito interessante esta idia do declnio da funo paterna embora o paiimaginrio possa estar mantido. De que forma isto poderia estar relacionado ao supereu tirnico?

    Vladimir Safatle: Bem, a maneira como eu compreendo essas discusses sobre o supereu emLacan mais ou menos da seguinte forma. Eu havia tentado desenvolver isso nesse ltimo livroque eu escrevi, num captulo que se chama Para uma crtica da economia libidinal, em que aidia basicamente a seguinte: todos vocs sabem da enorme diferena que existe da teoria dosupereu no Lacan e da teoria do supereu no Freud. A teoria do supereu no Freud no s umainstncia de observao moral, uma internalizao de uma instncia de observao moral, dessainstncia que em larga medida marca com o selo da culpabilidade toda a exigncia de satisfaopulsional. Enquanto h uma verdadeira inverso quando Lacan fala: No, a verdadeira juno dosupereu no renuncie ao gozo, mas Goza!.

    Essa inverso significa que voc j no vai ter mais essa noo entre exigncia deconformao lei e renncia pulsional. Por que isso ocorre? Eu diria que isso ocorre exatamenteporque h dois momentos sociais muito distintos. O momento em que o Freud pensa e o momentoem que o Lacan pensa. Grosso modo, eu diria que basicamente uma diferena to grandequanto a diferena, por exemplo, do capitalismo como sociedade de produo e do capitalismocomo sociedade de consumo.

    Eu tenderia a dizer mais ou menos o seguinte: Freud compreendeu qual o custo de si deuma sociedade de produo como o capitalismo. Por que eu digo isso? Porque por exemplo sevocs forem ao Max Weber e essa idia de que ns nunca compreenderemos o que o capitalismose ns no nos perguntarmos sobre como se constituem as disposies individuais de conduta queaceitam as injunes do capitalismo como as injunes racionais. Ento, ele chega concluso deque o capitalismo tem como base uma tica protestante do trabalho, marcada pelo afetismo,marcada pela renncia ao gozo, porque ao renunciar ao gozo eu sou obrigado a poupar, eu sou

    obrigado a no consumir os frutos do meu trabalho, e por isso eu posso explicar essa disposiopsicolgica que permitiu um processo como, por exemplo, a acumulao primitiva, tofundamental para o desenvolvimento do capitalismo.

    Basta vocs lembrarem as figuras clssicas dos milionrios do final do sculo XIX,Rockefeller e Cecil Rhodes, eram pessoas absolutamente espartanas, para quem o dispndio eravisto como algo inaceitvel, s era possvel devido a uma tica protestante. A idia de que vocinternaliza um princpio de renncia ao gozo, como um elemento fundamental de socializao, ouseja, como um elemento fundamental de constituio de um sujeito, como um sujeito no interiorde um certo vnculo social mediado pelo trabalho.

    Essa idia, eu diria estruturalmente semelhante quilo que o Freud descreve quando vaifalar do supereu, ou seja, essa exigncia de uma renncia cada vez mais irracional, a exigncia desatisfao pulsional, como um processo determinante de um modo de insero social, dereconhecimento de si como sujeito. Bem, o que interessante que com a modificao dasociedade de produo, da sociedade do consumo, com o fato de que hoje, cada vez mais nsestamos longe dos processos produtivos e nossa sociedade uma sociedade fundamentalmenteuma sociedade do consumo, ou seja, uma sociedade atravs da qual o consumo e as exignciasprprias do consumo que permitem a insero social.

    Com esse tipo de modificao, muda-se radicalmente esse dispositivo que era o grandedispositivo de mediao estabelecido entre a cultura e o supereu e como dizia um crtico, umsocilogo conservador, Daniel Bell, que dizia basicamente o seguinte: o que destruiu a ticaprotestante do trabalho foi o carto de crdito, porque antes do carto de crdito voc tinha que

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    poupar para consumir, hoje voc pode satisfazer todos os seus desejos imediatamente e depoisDeus nos acuda.

    A idia por trs disso era que voc tem um processo hoje de exigncia social, de umaespcie de desenvolvimento do Eu e das suas expectativas de diferenciao, expectativas essasque so a mola de funcionamento da sociedade de consumo e do desdobramento cada vez maisinfinito nas identidades propostas pela sociedade contempornea, das miscigenaes propostaspela sociedade do consumo. Nesse contexto, o dispositivo de mediao que surge e que modificaisso radicalmente. Dessa forma o supereu se modifica radicalmente.

    Em que o Lacan insistia? Lacan insistia que esse modo de insero, na verdade um modode insero atravs do qual eu j no internalizo a figura ideal do pai, mas eu internalizo a figuraideal desse pai senhor do gozo, tal como ele aparece em Totem e Tabu, mas que seja a figuraideal daqueles que exigem satisfao irrestrita. Nesse sentido, e ele muito interessante, como ostipos sociais ideais j no so mais tipos baseados numa espcie de capacidade de auto-controlesereno, so tipos ideais dessa exigncia, dessa injuno de uma gratificao irrestrita. Talvez nssejamos a primeira sociedade, tal como ns sabemos, onde essas figuras se transformaram emtipos ideais de conduta. Quais sero as conseqncias disso? Isso uma outra questo.

    P e r g u n t a ( S P :Voc descreve funo e figura paternas. Pode explanar um pouco mais isso? Qualestaria em "declnio" considerando o pai como uma metfora, como um acontecimento prprio

    posibilidade de produo de significao e sentido.

    Vladimir Safatle: Essa pergunta uma boa pergunta. De fato, h uma diferena muito claraentre funo e figura.

    A maneira como eu compreendo basicamente a seguinte: de fato h uma diferena muito clara,no lacanismo, no ponto de vista da psicanlise lacaniana entre funo paterna e figura paterna, ouseja, funo paterna o pai emprico. Qual a idia fundamental no Lacan? Esse um dado muitointeressante que aparece nos dados familiares de 1938, onde ele fala basicamente o seguinte: As

    sociedades modernas ocidentais tm uma caracterstica que elas fazem convergir na mesma figuraduas funes distintas.

    Na figura do pai a funo simblica daquele que aparece como o ideal, como aquele queaparece como o ideal de conduta a ser seguido, que permite um processo de formao e umafuno imaginria de rival na posse do objeto paterno. Ele chega mesmo a dizer que para evitaressa sobreposio que em algumas sociedades essas funes so disjuntas, ou seja, a funosimblica, de ideal do Eu, fornecida por uma outra figura que no o pai, o irmo da me, umacoisa assim, e que permite que o pai tenha uma funo muito menor e retire um pouco os ndicesde rivalidade, ou seja, altera os ndices de rivalidade e no coloca em questo tambm a funosimblica.

    Exatamente por sobrepor essa duas que voc tem essa situao tipicamente neurtica de

    eu me identificar com aquele que em ltima instncia tambm , em vrios contextos, o meurival. Em que Lacan insiste? Insiste na seguinte idia, me parece, com o declnio da figura paternaabre-se a possibilidade de que a funo paterna possa ser conservada. Porque o declnio da figurapaterna significa o qu? Significa que nenhum pai emprico pode realizar a funo paterna.

    um pouco a idia do Lacan, nessa famosa frase de Lacan, de que o verdadeiro pai umpai morto. Nenhum pai emprico est altura da funo paterna, mas esse no estar alturapermite que a funo paterna aparea como uma espcie de pura funo que no pode seranunciada por ningum. Por ela no poder ser anunciada por ningum, sem que seja naimpostura. Como ningum pode falar em nome do pai, ento ningum pode determinar qual omodo a se conduzir, qual o modo de se desejar a partir da funo paterna.

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    O que a funo paterna simplesmente faz expor no interior do vnculo social umainadequao fundamental entre o que da ordem do desejo e o que da ordem dos objetosempricos. Desvincular a uma funo desprovida de anunciador significa reconhecer que meudesejo ou algo de fundamental do meu desejo se satisfaz l onde nenhum objeto emprico podeser anunciado, l onde nenhum pai emprico pode ento realizar, e s como nenhum pai emprico

    pode realizar a funo, como no pode falar a funo, ou seja, ento ele no pode determinar afuno, ele no pode ento agir conforme o pai sem ser isso. s um dado que me parecebastante astuto, que significa, basta dizer, bem, com isso abre-se uma possibilidade dereconhecimento de algo fundamental na ordem do desejo humano, que no desejo humano huma dimenso fundamental sua na qual ele se satisfaz l aonde nenhum objeto emprico pode serenunciado e determinado.

    P e r g u n t a ( S P ) : No discurso do analista o objeto 'a' est no lugar do agente, como desejo doinconsciente e almeja-se como produto o 'significante mestre', o saber do analisando. No discursocapitalista o objeto 'a' que est nesse lugar como um 'mais-de-gozar'. Pelo processo datransferncia no transcorrer da anlise esse 'mais-de-gozar' autoritrio e alienante ir se

    transformar no desvelamento do desejo do inconsciente'. Voc acha que isso uma forma deconcretizao do desejo de Freud expresso pelo "Wu ES war, soll Ich werden"?

    Vladimir Safatle: Se eu estou entendendo, voc est dizendo que pelo fato do objeto aestar nolugar do agente no discurso do analista... De certa forma eu concordaria com o que voc estquerendo dizer, mas diria, isso relativamente trivial no sentido de que se trata de expor comoprocesso de subjetivao na clnica, o processo expresso nesta frase do Freud Wo ES war, soll Ichwerden, o processo de subjetivao na clnica est fundamentalmente vinculado a umamodificao na posio do objeto a, quer dizer, o objeto asai de uma determinada posio ondeele o fundamento do discurso para ele aparecer numa posio na qual ele uma espcie defundamento indeterminado, ou seja, no sentido de que ele no aparece mais como um objetotipicamente ligado a uma estrutura que seria o prprio imaginrio, mas ele aparece como um

    resto inapreensvel pelo discurso. Bem, o que significa subjetivar isso? Significa reconhecer-se londe me confronto com o objeto, que no pode ser absorvido no interior de uma lgica no vnculoimaginrio do discurso. No sei se era isso que voc tinha em mente, talvez eu possacomplementar.

    P e r g u n t a ( S P ) : A individualizao exagerada, a depresso, anorexia, as drogas adies, seriamsintomas do declnio da funo paterna, aonde o sujeito quer "gozar a qualquer preo?

    Vladimir Safatle: Veja, ateno s em um aspecto, at onde eu consiga lembrar Lacan no falaem declnio da funo paterna, ele fala em declnio da imago paterna, a funo no declina, esse um dado interessante, ao contrrio, a funo se fortalece quando a imago declina, a funo spode realmente aparecer l onde a imago declina.

    P e r g u n t a ( S C) : Interessante como a linguagem da natureza joga o ser humano do consumo paraa sobrevivncia. E a figura paterna retorna, ao menos temporariamente, na figura dasautoridades.Vladimir Safatle:Joo, voc pode me explicar um pouco melhor essa sua colocao, o que voctem em mente?

    P e r g u n t a ( S C) : Refiro-me experincia que estamos passando em Santa Catarina. Sou de SC.H uma esperana da populao atingida com relao figura da autoridade, espcie de figura

    paterna.

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    Vladimir Safatle: Essa pergunta, Joo, ou esse comentrio, eu no saberia muito que dizer, voctalvez tenha condio de falar muito mais do que eu porque eu estou longe da e no tenhonenhuma idia do tipo de discurso que circula. Talvez voc tenha muito mais condies de analisarou de ter uma posio a respeito do que eu aqui a distncia.

    P e r g u n t a ( S C) : Em algumas regies o comportamento me lembra o filme Guerra do Fogo, emque a figura da autoridade mais importante do que as explicaes cientificas para o fenmenometereolgico, feito pelo prprio homem em sua busca pelo consumo, alterando a natureza.

    Vladimir Safatle: Interessante, valeria a pena fazer uma espcie de psicologia das catstrofes ever o tipo de discurso que aparece em situaes de catstrofe.

    P e r g u n t a ( S C) : Professor, foi acentuado o impacto do social sobre a patologia e, vice-versa, oimpacto da cura para a insero social, mas, onde est exatamente a diferena com a cura na

    proposta "clssica", ou seja, desde Freud em que o enfoque j sobre o discurso e no sobre oorgnico, a cura no levava sempre insero social sem a qual o homem no pode viver emnome da sua prpria fragilidade? Como entender que capitalismo s se faz valer nas "crises delegitimidade" se ele vigora desde a revoluo industrial? Qual, afinal, o fundamento da suaadaptabilidade para alm da idia do GOZE?

    Vladimir Safatle:Desde Freud em que o enfoque j sobre o discurso e no sobre o orgnico, acura no levava sempre insero social sem a qual o homem no pode viver em nome da suaprpria fragilidade? Sim, mas h uma questo bastante ambgua no Freud que por exemplo, sevoc pergunta o que uma situao ideal para o Freud, estou tentando lembrar esta frase famosa- voc diminui a presso do supereu sobre o eu, recompe as condies de trabalho e recompeas condies de amor - todo mundo sabe que isso esta longe de ser pouco, mas eu diria oseguinte, me parece que h uma idia muito interessante que fica muito clara, talvez muito maisclara quando ns passamos em direo ao Lacan que o mais ou menos seguinte, se perguntemsobre o que acontece com a pulso de morte no final de anlise tal como Freud imagina.

    At onde eu consigo enxergar, me parece que a pulso de morte sempre aparece para oFreud como alguma coisa que bloqueia o processo analtico, seja atravs de reao teraputicanegativa, seja atravs de uma compulso de repetio que coloca sempre em xeque os processosde rememorizao, de verbalizao, de simbolizao, que so prprios da clinica freudiana. Notexto Anlise terminvel e anlise interminvel, Freud chega a reconhecer de fato que umaespcie de limite a esses modos de subjetivao, mas ele nunca responde uma questo sobre,afinal de contas, h um outro modo de integrao da pulso de morte que nos permita pens-lapara alm destas figuras dos processos que bloqueiam o progresso analtico.

    Digo isso porque me parece que para o Lacan, os sinais se invertem, a pulso de morte uma condio para o progresso analtico, seja porque ela uma condio para o sujeito se livrardas amarras do outro, ento h uma dissoluo do eu que aparece inclusive no interior destesdesdobramentos mais ulteriores como o caso da destituio subjetiva, ento h uma dissoluodo outro que s pode ser feita atravs da pulso de morte, ou seja, uma funo da pulso demorte no interior processo analtico, e por outro lado, como toda a pulso virtualmente pulsode morte como o prprio Lacan fala, ento, a idia de viver a pulso como aparece no seminrioXI est na verdade vinculado aos estilos da pulso de morte. Isto tem muita relao, eu diria, comaquilo que ns poderamos chamar sobre o que significa insero social como resultado de umprocesso, a prpria cura.

    Se quisermos utilizar esse termo devemos falar a cura indissocivel de um processoatravs do qual eu sou capaz de pensar vnculos sociais que tem como sua base pulsional, noexatamente a pulso de vida, que para o Lacan uma iluso narcisista, diga-se de passagem, com

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    esta sua tendncia construo de unidades cada vez mais amplas e cada vez maiores, mas dpara se pensar vnculos sociais agora tendo como com sua base pulsional a pulso de morte, que

    j no mais pensada como um instinto de destruio, mas pensada como uma outra figurafundamental da dinmica pulsional.

    E eu diria inclusive, fazendo um parntese, que esta questo foi o que animou, talvez,uma das recuperaes mais interessantes a meu ver da teoria lacaniana para o campo da reflexosocial que foi essa empreendida pelo o Alain Badiou e posteriormente pelo Slavoj iek, isso quesignifica no que eles transformaram - s um parnteses, mas um parntese interessante -como que eles transformaram Lacan no terico da revoluo, como eles conseguiram fazer isso?

    Eles simplesmente fizeram, eles fizeram o seguinte dispositivo: sendo toda a pulsovirtualmente pulso de morte e sendo esta pulso de morte um processo fundamental ondedestruio e criao se articulam conjuntamente, isso fica muito claro quando Lacan vai pensar asublimao a partir da idia de pulso de morte, ento toda a questo : os sujeitos, damodernidade, so animados por uma pulso onde destruio e construo se articulamconjuntamente e no por outra razo que toda a histria do sculo XX foi uma histria todamarcada pela paixo por aquilo que Badiou chamava de paixo pelo real, ou seja, uma crena no

    potencial desruptvel enquanto condio para a reconstruo de vnculos sociais.

    Ento a houve essa transformao do Lacan em terico da revoluo social. Eu diria queh algo de interessante nesta idia e que h algo nesta idia que deveria ser de fato maistrabalhado.

    Essa s uma primeira parte da sua pergunta, a segunda Como entender quecapitalismo s se faz valer nas "crises de legitimidade" se ele vigora desde a revoluo industrial?

    Essa uma bela questo, mas a questo na verdade, a resposta seria o que vigora desdea revoluo industrial o mesmo capitalismo? No deveramos ser obrigado a fazer uns testes dedescrio no s das fases do capitalismo, no s das fases no sentido do bem, antes voc tinhaum capitalismo monopolista industrial e hoje voc tem um capitalismo financeiro e por a vai. Mas

    a descrio das formas de vida ligadas ao capitalismo, as formas de vida que o capitalismoproduziu nos anos do revoluo industrial so as mesmas que ele precisa hoje produzir nomomento onde estamos numa situao onde mercado financeiro e sociedade de consumo so oselementos fundamentais, e se a resposta for no, ou seja, o capitalismo produz formas de vidadistintas porque no h uma unidade fundamental entre isso que voc diz que vigora desde aRevoluo Industrial, ento talvez fique mais claro para ns porque s a partir de um determinadomomento, uma certa configurao do discurso social sobre a gide do capitalismo se modificou.Minha idia seria basicamente essa, o que vigora desde o capitalismo industrial no o mesmocapitalismo, no so as mesmas formas de vida, no o mesmo modo de funcionamento.

    E Qual, afinal, o fundamento da sua adaptabilidade para alm da idia do GOZE?Bem,eu vou dizer que a maneira de eu responder como eu compreendo o que significa esta idia degozo aplicado teoria social. Eu acho interessante porque ela nasceu no interior da teoria social,Lacan quando vai utilizar a noo de gozo ele toma de emprstimo, na verdade, do Bataille, doRoger Caillois, do College de Sociologie, ento ele no de fato tenha desenvolvido neste conceitode gozo no interior material da festa.

    Ns podemos dizer h fatos sociais totais, esses fatos sociais so fatos onde o sujeito jno age a partir de um clculo utilitarista, da maximizao do prazer e afastamento do desprazer,na verdade eles agem a partir de algo que est para alm do princpio do prazer, do afastamentodo desprazer. Bataille dizia que ns podemos muito bem ver isso na festa, no erotismo e nosagrado. Pra isso ele desenvolveu o termo de gozo. O que o gozo? esse dispositivo decompreenso de modos de interao social no utilitarista, que no se submetem mais ao clculoutilitarista de prazer ou desprazer.

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    Lacan se apropria disso e deixa muito claro, tanto que os exemplos que Lacan usa so osexemplos do Bataille, como por exemplo o seminrio VII, que a prtica tribal onde eu tenho quedar alguma coisa a essa tribo e essa tribo tem que dar outra coisa para mim e eu tenho que dar edestruir e neste processo, um processo no qual as duas pilhas so comparadas e aquele queconsegue destruir mais tem a supremacia.

    Ento, o que significa a idia do gozo? A idia do gozo uma idia muito interessante quesignifica o modo de ao social que j no se pauta pelo clculo utilitarista do prazer e dodesprazer, mas que flerta continuamente com a retrica da transgresso.

    E tem um dado interessante tambm que o gozo um termo que aparece no vocabulriojurdico para dizer exatamente o contrrio, o usufruto dos bens aos quais eu sou proprietrio. Oque trazer este conceito para o interior das sociedades capitalistas? Isto significa dizer que associedades capitalistas elas flertam continuamente com a transgresso, elas flertamcontinuamente com ao que a princpio parece colocar em xeque os limites e o modo de orientaode clculo prprio ao eu, ento elas flertam continuamente com uma situao de anomia, meparece que essa a idia e uma idia muito forte para entender as sociedades capitalistas atuaise entender o impacto destas sociedades no interior da vida psquica do sujeito.

    Cone x o La c an i a n a : Peo para encerrarmos as questes. Adoraramos seguir, mas devemosencerrar por aqui, e ler - aos que no o fizeram - os textos do Safatle, Zizek, Badiou. Um mapada ideologia uma referncia dessas idias que aqui ele articula.

    Vladimir Safatle: Se eu estou entendendo, esto pedindo para encerrar, ento ok, muitoobrigado por tudo e espero que vocs tenham gostado.

    Cone x o Lacan i an a: Muito bem, mais uma vez gostaria de agradecer ao prof. Vladimir em nomedo dr. Mrcio Peter e em nome de toda a Conexo Lacaniana, agradecemos sua valorosaconferncia e sua entusiasmada disposio em acolher nossos interminveis questionamentos, foium privilgio t-lo aqui conosco, muito obrigada, professor.

    (Vrios agradecimentos)

    ( R J ) : Boa noite a todos e aproveito para agradecer equipe da Conexo Lacaniana pelo cursosempre muito bom, neste evento que encerra as atividades. Abraos, Adelina

    ( S P ) : Parabns, Prof. Safatle. Achei formidveis suas articulaes com o social. Esclareceu-nosmuitas coisas, ainda no pude fazer questes. Abraos, obrigada! Abraos a todos, Carlaespecialmente!, ao dr. Marcio Peter.

    ( S P ) : tima escolha para finalizar o curso!

    Ncleo Mrcio Peter de Ensino - Conexo LacanianaCurso OnLine "Psicanlise e Cultura Freud e Lacan"

    Conferncia 30/11/08 | Moderao: Carla Audi