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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA
CURSO DE MESTRADO
A PSICOLOGIA DE VIGOTSKI E O MATERIALISMO HISTRICO DIALTICO DE
MARX E ENGELS: RELAES ARQUEOLGICAS
FLORIANPOLIS 2006
SAMANTHA CARLA SABEL
A PSICOLOGIA DE VIGOTSKI E O MATERIALISMO HISTRICO DIALTICO DE
MARX E ENGELS: RELAES ARQUEOLGICAS
Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Psicologia, Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Curso de Mestrado, Centro de Filosofia e Cincias Humanas. Orientador: Prof. Dr. Kleber Prado Filho
FLORIANPOLIS 2006
TERMO DE APROVAO
SAMANTHA CARLA SABEL
A PSICOLOGIA DE VIGOTSKI E O MATERIALISMO HISTRICO DIALTICO DE
MARX E ENGELS: RELAES ARQUEOLGICAS
Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre no Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Curso de Mestrado, Centro de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, pela seguinte banca examinadora:
_________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Kleber Prado Filho Departamento de Psicologia, UFSC _________________________________________ Prof.a Dr.a Andra Vieira Zanella Departamento de Psicologia, UFSC _________________________________________ Prof. Dr. Angel Pino Departamento de Psicologia, Univali/Unicamp
Florianpolis, 21 de junho de 2006
Dedico esse trabalho e agradeo a todos que me acompanharam e deram suporte ao
meu percurso no mestrado: ao meu companheiro Leo, pela compreenso e apoio em todos os
momentos; aos meus pais e irmos, por acreditarem nos meus esforos; aos meus colegas,
pelas trocas intelectuais e afetivas; aos meus professores e ao meu orientador, pelas
mediaes fundamentais e dilogos inspiradores.
RESUMO
Este trabalho um estudo terico em que se buscou investigar a composio da psicologia
histrico-cultural de Vigotski nas suas vinculaes matriciais com o materialismo histrico
dialtico de Marx e Engels, atravs da anlise de textos selecionados. Tomou-se como aporte
terico-metodolgico para a anlise a arqueologia de discursos de Michel Foucault, uma vez
que se quis construir a reflexo proposta desde um lugar externo tradio exegtica do
marxismo. O olhar perspectivo do mtodo arqueolgico v as ligaes entre as formaes
discursivas no s por suas relaes de filiao, mas tambm pelas relaes de ruptura que
apresentam entre si. Atravs da leitura e anlise de dois conjuntos de textos selecionados - o
primeiro composto por um texto de Marx e Engels, e o segundo por trs textos de Vigotski -
procurou-se demonstrar como alguns enunciados presentes no discurso marxiano aparecem e
ganham relevos diferenciados nos escritos da psicologia histrico-cultural de Vigotski. Quer-
se contribuir com uma leitura que aproxima os escritos de Vigotski da matriz materialista
histrica dialtica, mas que ao mesmo tempo reconhece distncias que se estabelecem entre
os discursos do psiclogo russo e dos filsofos alemes.
Palavras-chave: psicologia de Vigotski; materialismo histrico dialtico; arqueologia de
discursos.
ABSTRACT
This work is a theoretical study which investigates the composition of Vygotskys historic-
cultural psychology, concerning its philosophical relations with Marx and Engels historic-
dialectical-materialism, through the analysis of selected texts. The theoretic-methodological
approach for the analysis is Michel Foucaults archaeology of discourses, once there was the
intention of constructing the discussion from a point of view that would be external to the
exegetic tradition of marxism. The perspectivist outlook of the archaeological method sees
the links between the discourses not only by their relations of filiation, but also by their
relations of rupture. Through the reading and analysis of two ensembles of selected texts - the
first composed of one text of Marx and Engels and the second composed of three texts of
Vygotsky weve tried to demonstrate how some of the enunciations present in Marx and
Engels discourse appear and gain different importance in Vygotskys writings. There is the
intention of contributing with a reading that brings together the Vygotskys writings and their
historic-dialectical-materialist philosophical matrix, but that at the same time recognizes
distances established between the discourses of the Russian psychologist and the German
philosophers.
Key words: Vygotskys psychology; historic-dialectical-materialism; archaeology of
discourses.
LISTA DE ILUSTRAES
Tabela 1 Resultado da busca por resumos de artigos......................................... 15 Tabela 2 Textos base para a leitura dos pressupostos epistemolgicos.............. 17
Figura 1 Reao mediada................................................................................... 103
SUMRIO
1. Problematizao .............................................................................................................. 9
1.1. Procedimentos metodolgicos preliminares............................................................ 15
2. Uma arqueologia dos discursos .................................................................................... 21
2.1. Epistemologia, relativismo e perspectivismo .......................................................... 22
2.2. Arqueologia, discurso e enunciado .......................................................................... 28
3. Condies de possibilidade para a emergncia dos textos em estudo....................... 35
3.1. Trajetria de um pensamento crtico no campo da filosofia do sculo XIX........ 36 3.1.1 Contexto de A ideologia alem............................................................................................................... 40
3.2 Trajetria de um pensamento crtico no campo da psicologia do sculo XX ...... 45 3.2.1 Contextos de O significado histrico da crise da psicologia (1927), Histria do
desenvolvimento das funes psquicas superiores (1931) e Pensamento e linguagem (1934)....................... 47
4. A ideologia alem: cincia e conscincia ..................................................................... 52
4.1. Cincia ........................................................................................................................ 53 4.1.1 Cincia e histria .................................................................................................................................... 53 4.1.2 Relaes de produo e de classe no capitalismo do sculo XIX:.......................................................... 55 4.1.3 Cincia ideolgica e prxis revolucionria ............................................................................................. 59
4.2. Conscincia................................................................................................................. 67 4.2.1 Trabalho e formao da conscincia: histria da humanizao .............................................................. 67 4.2.2 As formas coletivas possveis da conscincia: alienao e revoluo .................................................... 72
5. Vigotski: psicologia cientfica e singularidade do sujeito .......................................... 77
5.1. Psicologia cientfica ................................................................................................... 78 5.1.1 Escolas psicolgicas e psicologia geral .................................................................................................. 78 5.1.2. Crtica ao ecletismo e ao empirismo...................................................................................................... 82 5.1.3 Mtodo como critrio de cientificidade .................................................................................................. 84 5.1.4. Sentido dialtico da crise: idealismo x materialismo e a nova psicologia ............................................. 87
5.2. Singularidade do sujeito ........................................................................................... 94 5.2.1. Uma compreenso materialista da singularidade................................................................................... 94 5.2.2 Crtica ao dualismo nas psicologias........................................................................................................ 96 5.2.3. O natural e o cultural: relacionados dialeticamente ............................................................................... 98 5.2.4. Atividade mediada pelo instrumento: ferramenta e signo ................................................................... 104 5.2.5 A converso do social em singular na constituio do pensamento atravs da linguagem................... 107
6. Relaes arqueolgicas: de uma sociologia a uma psicologia social .......................116
6.1. Histria como mtodo e como objeto..................................................................... 117
6.2. Cincia como crtica e transformao da realidade ............................................. 119
6.3. A busca da especificidade do humano e a formao da conscincia................... 124
6.4. A relao da conscincia com a linguagem ........................................................... 127
7. Referncias bibliogrficas...........................................................................................130
8. Bibliografia complementar .........................................................................................134
9
1. PROBLEMATIZAO
O campo de conhecimentos da psicologia tem sido crescentemente marcado pela
reflexo crtica acerca dos saberes produzidos na prpria disciplina, bem como por uma
preocupao com os direcionamentos ticos e polticos dos fazeres profissionais.
Compartilhando destas preocupaes, o presente trabalho quer contribuir com a reflexo
sobre as teorias psicolgicas no seu nvel epistemolgico, pois entende-se que tal exerccio
indispensvel para aclarar os pressupostos que norteiam as prticas em psicologia.
Escolhida a epistemologia da psicologia como o terreno mais amplo de estudo,
elegeu-se o recorte temtico da psicologia histrico-cultural1 de Vigotski nas suas
vinculaes matriciais2 com o materialismo histrico dialtico de Marx e Engels, atravs da
anlise de textos selecionados. Tomou-se como aporte terico-metodolgico para a anlise, a
arqueologia de discursos de Michel Foucault, uma vez que se quis construir a reflexo
proposta desde um lugar externo tradio exegtica do marxismo. O olhar perspectivo do
mtodo arqueolgico v as ligaes entre as formaes discursivas3 no s por suas relaes
de filiao, mas tambm pelas relaes de ruptura - ou desnveis - que apresentam entre si.
Buscou-se identificar alguns dos pressupostos fundamentais da psicologia histrico-
cultural de Vigotski e investigar possveis relaes de aproximao e distanciamento com
referncia a uma de suas matrizes filosficas de maior expresso, que o materialismo
histrico dialtico a ser lido em Marx e Engels. A existncia desta vinculao matricial
1 Como apontaram Davis e Silva (2004), existem diferentes denominaes no Brasil para a escola psicolgica representada pelos trabalhos de Vigotski e colaboradores. Optou-se aqui pela denominao psicologia histrico-cultural, seguindo-se o uso feito por autores como Pino (2000a e b) e Zanella (1995), e porque se acredita que o escopo das anlises de Vigotski o estudo do ser humano como ser que se constitui cultural, atravs da histria. Tambm uma escolha precisou ser feita em relao grafia do nome do autor, que pode ser encontrada nas publicaes brasileiras em seis formas grficas diferentes (Vigotski, Vygotsky, Vygotski, Vigotsky, Vygotskii ou Vigotskii). Tal variao deve-se inexistncia, no alfabeto romano, de caracteres com que o nome do autor originalmente escrito, no alfabeto cirlico (
. Neste trabalho optou-se pela forma Vigotski, seguindo o uso empregado por tradutores do russo ao portugus como Paulo Bezerra, mas respeita-se a escolha de outras grafias. 2 A expresso vinculaes matriciais remete noo de matriz epistemolgica, que usada para falar de uma das provenincias filosficas da psicologia de Vigotski. 3 Formao discursiva o conceito usado por Foucault para designar o objeto do qual a anlise arqueolgica se ocupa (Foucault, 1969/1997, p.43), e ser discutido no captulo sobre o mtodo.
10
percebida pelas constantes referncias do prprio Vigotski em textos seus, bem como
reconhecida por vrios autores4 brasileiros e estrangeiros.
A escolha da psicologia histrico-cultural de Vigotski como objeto de estudo justifica-
se em funo dos estudos dessa abordagem no Brasil serem relativamente recentes, e de
fomentarem diferentes entendimentos quando no equvocos ou negligncias a respeito de
suas matrizes filosficas.
De acordo com Freitas (2002), o incio da circulao e estudo dos textos de Vigotski
no meio acadmico em nosso pas se deu principalmente atravs de educadores a partir do
final da dcada de 1970. Estes estudos expandiram-se durante a dcada de 1980 e vm
encontrando interesse crescente desde a dcada de 1990. H, portanto, no panorama
acadmico brasileiro, uma necessidade atual de discusso dos temas relacionados a esta
vertente.
Pino (2000a) traa um quadro histrico a respeito da difuso dos estudos da obra de
Vigotski no mundo, e aponta alguns motivos para que essa difuso tenha acontecido
tardiamente em relao poca em que a obra fora escrita:
Condies histricas adversas fizeram com que a obra de L.S. Vigotski permanecesse ignorada por vrias dcadas, fora e dentro da Unio Sovitica, da qual fazia parte a Bilo-Russia, sua terra natal. Se o fato de ser ignorada fora explica-se pela existncia da cortina de ferro, barreira divisria de dois mundos ideolgica e politicamente diferentes e opostos, o fato de ser ignorada dentro, mesmo tratando-se de um acadmico reconhecido pelos seus pares desde a sua primeira apario nos meios cientficos de Moscou, em 1924, revela o potencial desestabilizador de muitas de suas idias numa ordem poltica monoltica controlada pelo personalismo estalinista. (Pino, 2000a, p.9)
Com o recente lanamento da traduo espanhola das obras escolhidas de Vigotski5, e
com a crescente circulao desta e de outros textos do autor nas universidades brasileiras, o
contato com seus escritos passa hoje por uma franca expanso. No obstante, parece haver
grandes divergncias nas interpretaes produzidas a partir das leituras realizadas. Duarte
(2001a) afirma que
[...] o nmero crescente de publicaes sobre a teoria de Vigotski no tem, em nossa avaliao, significado um aprofundamento e um detalhamento nos estudos dos escritos desse autor. Atualmente muito se escreve sobre Vigotski, mas muito pouca ateno se d ao que o prprio Vigotski escreveu. (Duarte, 2001a, p.166)
4 So exemplos de trabalhos brasileiros que reconhecem esta vinculao matricial: Duarte (2001b), Molon (2003), Pino (2000a e b), Tuleski (2002) e Zanella (1995 e 2001). 5 As obras escolhidas de Vigotski so compostas de 06 tomos. Foram sistematizadas na edio russa na dcada de 1980, e traduzidas do russo para o espanhol na dcada de 1990.
11
O interesse crescente pelos escritos e contribuies de Vigotski no Brasil vem sendo
muitas vezes acompanhado por um descolamento da obra do autor de sua matriz
epistemolgica materialista histrica dialtica. H muitos pesquisadores que
ignoram/subestimam a relevncia desta filiao matricial, ou que associam a produo terica
do autor russo a epistemologias incompatveis com esta matriz.
Duarte (2001b), ao analisar leituras que se fazem de Vigotski na rea da pedagogia,
afirma ser freqente encontrar na literatura tentativas de aproximao da teoria vigotskiana
com aquela epistemologia por ele chamada interacionismo-construtivista, expresso em
que ambos os termos tm a origem de sua utilizao na mesma fonte, a obra de Piaget
(p.85). O interacionismo-construtivista tambm freqentemente chamado de scio-
interacionismo.
Pode-se concordar com Duarte quando afirma que esta aproximao representa uma
distoro na localizao epistemolgica de Vigotski, pois enquanto na obra deste fica ntida a
construo de uma abordagem social, histrica e dialtica do psiquismo humano, no scio-
interacionismo enfatiza-se um sujeito epistmico que interage com um meio social. Se para
Vigotski os sujeitos constituem-se atravs das relaes sociais, semiticas e histricas, para o
scio-interacionismo existe um sujeito cognoscente que, dotado de seu aparato biolgico, vai
assimilando o meio exterior num processo interativo. O conceito de interao, proveniente da
matriz discursiva do funcionalismo6, no contempla a idia central para Vigotski de
movimento dialtico conflitivo, e pressupe a separao entre sujeito e objeto que interagem,
concepo esta incompatvel com a noo vigotskiana de mtua constituio7. Para a viso
scio-interacionista, o desenvolvimento humano de um indivduo que progressivamente se
socializa; para Vigotski, de um ser social que dialeticamente se singulariza.
Ainda Duarte (2001a), ao defender uma leitura marxista da obra de Vigotski, aponta
trs situaes que denotam a distoro epistemolgica das idias do autor: a tentativa de
autores nacionais e internacionais de separar a teoria de Vigotski da teoria de Leontiev,
caracterizando a obra do primeiro como apoltica e a do segundo como pejorativamente
comprometida com o regime stalinista da URSS; a freqente substituio do que escreveu
Vigotski pelo que escreveram seus intrpretes e as tradues resumidas/censuradas de textos
vigotskianos; e o ecletismo nas interpretaes ps modernas e neoliberais da teoria
vigotskiana. O autor afirma que:
6 Cf. Figueiredo, L.C. Matrizes do pensamento psicolgico. 9 ed. Petrpolis: Vozes, 2002 7 Mtua constituio no sentido empregado por Zanella (1995), ao afirmar que na obra de Vigotski o homem tido como ser social, como sujeito histrico, produto do contexto social no qual se insere e, concomitantemente, produtor desse mesmo contexto (p.188).
12
[...] a despeito do nome de Vigotski ser atualmente bastante mencionado no meio educacional brasileiro, o fato que os escritos desse autor permanecem desconhecidos para a maioria dos educadores brasileiros, o que facilita a divulgao de interpretaes que procuram aproximar a teoria vigotskiana a iderios pedaggicos afinados com o lema aprender a aprender e ao universo ideolgico neoliberal e ps moderno. Tal aproximao facilitada antes de mais nada porque so retirados do pensamento vigotskiano seu carter marxista e sua radicalidade na crtica s psicologias incompatveis com a perspectiva marxista e socialista. (Duarte, 2001a, p.210)
Problematizando de uma outra forma esta mesma questo, Pino (2000a) acredita que:
[...] comete um grande equvoco aquele que pensa que, por existir uma certa coincidncia entre o comeo da difuso da obra de Vigotski nos anos 50 e os breves momentos de abertura ps-estalinista e entre sua plena difuso e o desmoronamento do imprio sovitico em 1991, deve ser esquecido o fundamento marxista de sua obra. (Pino, 2000a, pp.9-10)
Para mencionar dois estudos brasileiros bastante recentes que apontam tambm a
necessidade de se vincular a obra de Vigotski aos seus fundamentos marxistas, tem-se os
trabalhos de Davis e Silva (2004) e Freitas (2004).
No artigo Conceitos de Vigotski no Brasil: Produo divulgada nos Cadernos de
Pesquisa (2004), as autoras Claudia Davis e Flvia Gonalves da Silva analisam um conjunto
de 37 artigos, publicados no peridico Cadernos de Pesquisa revista da Fundao Carlos
Chagas no perodo compreendido entre os anos de 1971 a 2000, que de alguma forma
mencionavam ou utilizavam conceitos vigotskianos. Sua inteno era a de mapear a forma
como os conceitos deste autor vm sendo utilizados no Brasil, e entre muitas outras
consideraes, destacam-se as que seguem, pois apontam a pertinncia do estudo aqui
proposto:
Com exceo da concepo de homem e mundo adotada por Vigotski, todos os demais conceitos8 esto contidos e, em alguns casos, bem discutidos, nas trs primeiras obras9 de Vigotski publicadas no Brasil. J a concepo de homem, apesar de estar sinalizada em tais obras, pouco analisada, especialmente no que toca seu fundamento filosfico, algo que dificulta a real apropriao dos conceitos de Vigotski (p.647, grifo meu). [...] Duarte (1996, 2001) apontou, com pertinncia, a ausncia de aprofundamento terico dos conceitos vigotskianos, possibilitando leituras que afastam a obra de Vigotski do projeto de psicologia marxista, que ele e seus colaboradores elaboraram, e aproximando-a dos propsitos piagetianos. Ao distanciar os princpios do materialismo histrico dialtico da obra vigotskiana, corre-se o risco de banalizar alguns dos seus conceitos fundamentais. Especialmente no campo educacional, isto implica a elaborao no s de estratgias pedaggicas, mas de um projeto poltico. Pensar e agir tendo como guia o materialismo
8 Os demais conceitos a que se referem so os que foram identificados nos artigos: estudados linguagem, pensamento e linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, concepo de homem e de mundo e crtica a Piaget. 9 Quais sejam: A Formao Social da Mente; Pensamento e Linguagem; Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem, trs obras cujas primeiras publicaes brasileiras so amplamente avaliadas como possuidoras de distores importantes nas concepes de Vigotski, devido a alteraes editoriais de cunho ideolgico.
13
histrico dialtico vai contra o que est posto em nosso momento histrico, exigindo do pesquisador a apropriao de um conhecimento que no simples nem tampouco fcil de ser aplicado realidade, exigindo, entre outras coisas, superar o aparentemente percebido, tentando alcanar a essncia dos fatos. Para isso, cabe aprofundar a formao, estudando as obras de Marx, Leontiev e Luria, por exemplo (p.655-656, grifo meu). [...] O fato de 58,7% dos textos analisados no mencionarem o nome da psicologia de Vigotski sinaliza que o autor russo ainda no suficientemente conhecido, nem compreendido, por grande parte dos pesquisadores brasileiros. Isso vale no s para aqueles que pretendem desenvolver estudos fundamentados em Vigotski como, tambm, para aqueles que se vinculam a outras vertentes tericas. De fato, tanto para o avano cientfico como para se criticar uma teoria, necessrio o conhecimento de suas bases epistemolgicas. Da a importncia de se dar nome teoria ou identificar a qual escola ela est vinculada (p.651, grifo meu).
J Maria Teresa de Assuno Freitas, no artigo O pensamento de Vigotski nas
reunies da ANPEd (2004), faz anlise semelhante s autoras anteriores, porm seu material
de anlise so os textos publicados em forma de trabalhos nas reunies anuais da ANPEd
(Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao). A amostra foi de 87
textos, publicados entre os anos de 1998 a 2003 (em 06 reunies). D-se destaque s
seguintes passagens de sua anlise:
Vejo aqui, em relao a esses dois conjuntos de textos aos quais estou fazendo referncia, cumprir-se um dos receios expostos por mim doze anos atrs (Freitas, 1994): o modismo. [...] Assim, os trabalhos analisados permitem perceber que, de alguma forma, isso est hoje acontecendo com Vygotsky. Entretanto, possvel compreender que essa influncia do modismo no muito preocupante, uma vez que a soma dos percentuais referentes a esses textos (22,98%), representa o menor ndice encontrado. H tambm um grupo de 29 textos analisados (33,33%), dos quais fao a seguinte leitura. Os autores citam Vygotsky corretamente, apresentam no incio do texto sua inteno em trabalhar com suas idias e assumi-lo como um referencial terico. No entanto, ao chegarem ao tema do artigo ou na anlise dos dados apresentados, Vygotsky no mais aparece. Seus conceitos citados mantm-se desarticulados em relao aos dados analisados e ao todo do artigo. Talvez isso se d por carncia de uma maior fundamentao e de uma leitura mais extensiva e aprofundada. Ficam muito presos a apenas dois livros do autor: Pensamento e linguagem e Formao social da mente, sem um maior conhecimento de sua obra como um todo. Os conceitos do autor so vistos, pois, de uma forma fragmentada e isolados de seus fundamentos filosficos marxistas. Fica claro que na arquitetura do pensamento de um autor, certos conceitos fundamentais no podem ser especificados com base na leitura de apenas alguns de seus textos, mas que necessrio uma compreenso da obra em sua totalidade. Isto , compreender sua raiz epistemolgica, suas fases de elaborao, as condies de sua produo, o contexto scio-histrico-cultural em que foi gestada. perceptvel como se repetem os conceitos do autor sem que sejam estabelecidas as necessrias relaes entre eles e muitas vezes so apresentados desfocados das idias defendidas no texto. [...] Seus conceitos so usados descolados de seus fundamentos, de sua historicidade. Enfim, considero que talvez neste nvel de apropriao se encontram os autores que no conseguem demonstrar uma compreenso prpria dos conceitos ou da teoria, carecendo de um maior aprofundamento quanto s suas razes epistemolgicas. Foi gratificante encontrar entre os 87 trabalhos analisados, 38 textos (43,67%) que revelam uma apropriao consistente do pensamento de Vygotsky, demonstrando uma fundamentada compreenso de sua teoria ou at indo um pouco mais
14
alm, caminhando numa criativa expanso do uso de seus conceitos. (pp.119-120, grifos meus) [...] Nos cursos de graduao que formam professores e nos programas de ps-graduao das reas das cincias humanas, nos quais sua teoria tem sido estudada, importante a ateno para um trabalho em profundidade para que se atenuem os problemas das apropriaes superficiais ou desarticuladas. Educadores, especialistas em Vygotsky, podemos e devemos trabalhar neste nvel potencial do conhecimento para elev-lo, pelo esforo dos trabalhos em sala de aula e atravs de nossas pesquisas e publicaes, a um desenvolvimento real. Temos um compromisso nesse sentido (p.125, grifo meu).
Pode-se argumentar, quanto a estes dois recentes estudos, que devido restrio das
amostras neles usadas ficaram de fora alguns importantes trabalhos que de fato atendem aos
apelos de aprofundamento epistemolgico dos conceitos do autor. Com base apenas nos
artigos pesquisados pode-se ter a impresso de que o desconhecimento acerca da obra de
Vigotski seja maior do que realmente . A relao de autores que fazem uma apropriao
epistemologicamente consistente do pensamento de Vigotski totaliza apenas 43,67% da
amostra de Freitas (2004)10, por exemplo, poderia seguramente ser complementada por
trabalhos como os de Zanella (1995 e 2001) e Molon (2003) e outros, que se preocupam em
apresentar o contexto da psicologia russa da poca de Vigotski, bem como em explicitar a
pertinncia da psicologia deste autor a um projeto marxista de sociedade e de cincia.
Cabe ressaltar que notria a pluralidade e o conflito de leituras existentes no debate
brasileiro sobre as nuanas da teoria de Vigotski. Embora os comentadores tenham sido fonte
importante para a construo de toda esta pesquisa, desde a formulao do problema at a
construo das suas respostas, no se tem o objetivo de percorrer toda a pluralidade do
debate, nem de polemizar com estas divergncias, uma vez que na perspectiva arqueolgica
no existem padres de correo de leitura nem crivos para o procedimento interpretativo.
Mas, quer-se contribuir com uma leitura que aproxima Vigotski da matriz materialista
histrica dialtica, e que ao mesmo tempo reconhece algumas distncias que se estabelecem
entre os escritos do psiclogo russo e dos dois filsofos alemes.
A leitura de uma perspectiva arquelgica faz com que tais distncias no sejam
concebidas como contradies, erros ou incoerncias epistemolgicas, mas sim como
diferenas necessrias, resultantes de desnveis histricos, contextuais e discursivos. Existe
no procedimento arqueolgico a preocupao com um rigor de leitura, no sentido de remeter
os objetos em estudo sua dimenso constitutiva neste caso, de remeter o discurso de
Vigotski a um discurso anterior, do qual emerge, que o discurso do materialismo histrico
10 Que inclui textos de autores como Newton Duarte, Angel Pino e Silvana Tuleski.
15
dialtico , mas ao mesmo tempo h um despojamento da hermenutica como exerccio de
exegese da verdade.
1.1. Procedimentos metodolgicos
Alm da bibliografia consultada para a construo e contextualizao do problema,
realizou-se uma busca11 na base de peridicos IndexPsi Peridicos (www.bvs-psi.org.br), por
resumos de artigos que contivessem ao mesmo tempo as palavras Vigotski e epistemologia,
ou Vigotski e Marx, ou Vigotski e materialismo, ou ainda Vigotski e marxismo. Uma
outra busca, por artigos que contivessem a expresso psicologia histrico-cultural tambm
foi feita, no intuito de captar trabalhos que porventura tratassem da temtica mas no
contivessem as palavras primeiramente entradas. Tomou-se o cuidado de observar as seis
formas grficas conhecidas possveis para o nome do autor russo.
Os resultados da primeira busca esto relatados na tabela a seguir:
Palavras entradas*
Nmero de resultados
Autor(a), ttulo e ano
Vigotski e epistemologia
04 (quatro)
1) RIBAS JUNIOR,Rodolfo de Castro. Consideraes sobre os modelos de desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget e de Lev Semenovich Vygotsky. 1993; 2) MOSQUERA, Juan Jos Mourino; ISAIA, Silvia Maria de Aguiar. Vygotsky ou Piaget?: uma polmica de repercusses significativas. 1987; 3) FERREIRA, Maria Ceclia Iannuzzi. A escola de Vygotsky: uma nova matriz epistemolgica. 1998; 4) ZANELLA, Andra Vieira."A ideologia alem": resgatando os pressupostos epistemolgicos da abordagem histrico-cultural. 1995
Vigotski e Marx 0 (zero) -
Vigotski e materialismo
2 (dois)
1) FREITAS, Maria Teresa de Assuno. As apropriaes do pensamento de Vygotsky no Brasil: um tema em debate. 2000;
11 A ltima busca foi feita em fevereiro de 2005
16
2) PINO, A. Semitica e cognio na perspectiva histrico-cultural. 1995
Vigotski e marxismo
3 (trs)
1) FREITAS, Maria Teresa de Assuno. As apropriaes do pensamento de Vygotsky no Brasil: um tema em debate. 2000; 2) DUARTE, Newton. A escola de Vigotski e a educao escolar: algumas hipteses para uma leitura pedaggica da psicologia histrico-cultural. 1996; 3) SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A concepo de linguagem como instrumento: um questionamento sobre prticas discursivas e educao formal. 1995
* Com a opo todas as palavras
Tabela 1: Resultado da busca por resumos de artigos
Com a expresso psicologia histrico-cultural foram gerados 46 resumos de artigos
que, segundo o entendimento da pesquisadora, no tinham correlao direta com o tema
epistemolgico em foco neste trabalho, fazendo-se exceo a alguns mencionados na tabela
1, que reapareceram com esta expresso.
Dos artigos mencionados na Tabela 1 destaca-se A Ideologia Alem: Resgatando
os pressupostos epistemolgicos da abordagem histrico-cultural (Zanella, 1995) como o
trabalho cujo objeto mais se assemelha ao desta pesquisa. O artigo faz o exerccio de articular
trechos de Marx e Engels, retirados do texto A ideologia alem (1845), com alguns
pressupostos da psicologia histrico-cultural de Vigotski.
No presente estudo, atravs da leitura e anlise de dois conjuntos de textos
selecionados o primeiro composto por um texto de Marx e Engels, e o segundo por trs
textos de Vigotski procurou-se ilustrar como alguns enunciados12 presentes no discurso
marxiano aparecem e ganham relevos diferenciados nos escritos da psicologia histrico-
cultural de Vigotski.
A definio dos textos a serem utilizados na anlise passou por modificaes desde a
concepo do projeto da pesquisa, uma vez que se partiu inicialmente de uma proposta de
12 O conceito de enunciado e seu lugar na arqueologia trabalhado nas consideraes sobre o mtodo.
17
leitura bastante ampla, prevendo trs textos de cada autor, e decidiu-se finalmente por uma
leitura mais concentrada, de um texto-base de Marx e Engels e trs textos-base de Vigotski.
Houve o entendimento, durante a construo da pesquisa, de que tais textos j encerrariam
complexidade e profundidade necessrias para os objetivos da mesma. So eles:
Marx e Engels
Materialismo histrico dialtico
Vigotski Psicologia histrico-cultural
O significado histrico da crise da psicologia, 1927/1996
A ideologia alem (parte I), 1845/1980 Histria do desenvolvimento das funes psquicas superiores, 1930/1995
Pensamento e linguagem13, 1934/1993
Tabela 2: Textos base para a leitura analtica dos pressupostos epistemolgicos
Entende-se que tais textos possuem uma relevncia direta para a problemtica
epistemolgica porque abordam temas essencialmente relacionados a ela.
Com referncia aos textos representativos da psicologia histrico-cultural, buscou-se
abranger produes de Vigotski em diferentes momentos de seu trabalho, bem como enfocar
algumas das questes consideradas por comentadores especialistas como centrais no
desenvolvimento de sua teoria.
Rivire (1985), por exemplo, atribui ao texto O significado histrico da crise da
psicologia um papel central no desenvolvimento da teoria psicolgica de Vigotski. Para ele,
13 O livro Pensamento e Linguagem composto de captulos escritos em anos diferentes, sendo que somente alguns o foram no ano de 1934. A esse respeito, Vigotski afirma: Algunas partes del libro se han utilizado anteriormente en otros trabajos y han sido publicadas como apuntes para un curso (Captulo 5). Otros lo han sido en calidad de informes de investigacin o como prlogos de libros de los autores a cuya crtica estn dedicados (Captulos 2 y 4). Los restantes captulos, as como el libro en su conjunto, se publican por vez primera (Vigotski, 1934/1993, p.13) . No decorrer desta pesquisa, referir-se- ao trabalho como um todo, porm os enunciados utilizados na anlise sero privilegiadamente do ltimo captulo, o stimo, intitulado Pensamento e Palavra, e apontado por Vigotski como uma tentativa de unificar todos los resultados en una explicacin completa del proceso del pensamiento verbal (Vigotski, 1934/1993:p.12), no qual o autor retoma pontos mais detalhadamente trabalhados nos captulos anteriores.
18
[] podemos entender la concepcin psicolgica de Vygotski como un desarrollo a partir de los anlisis realizados en El sentido histrico de la crisis de la Psicologa, por lo que esta obra debe ocupar un lugar central en la exposicin de la teora misma. (Rivire, 1985, p.33)
Alm de expor a proposta terica de Vigotski, O significado histrico da crise da
psicologia versa sobre temas metodolgicos e epistemolgicos que o autor levou em conta
para a construo desta proposta. Trabalha diretamente com as noes de cincia e de
mtodo, que servem de fundamento para a sua teorizao.
J as formulaes de Histria do desenvolvimento das funes psquicas superiores e
de Pensamento e linguagem interessam a este trabalho pois, se no primeiro, Vigotski busca
estudar as funes psicolgicas superiores e a especificidade da psicologia do homem, no
segundo, trabalhar a importncia da linguagem na constituio destas funes
caracteristicamente humanas. Segundo Shuare (1990, p.68) em Pensamento e linguagem
Vygotski privilegiou a linguagem como sistema de signos mediatizador por excelncia das
funes psquicas. Este aspecto da reflexo terica de Vigotski um ponto central para a
discusso sobre como se d a transio de uma teoria do social para uma teoria do ser
humano singular socialmente constitudo. , portanto, essencial para a compreenso de como
o autor aborda o problema da constituio do sujeito.
Quanto s edies utilizadas, de Vigotski foram escolhidas as Obras Escogidas
espanholas, com exceo do texto O significado histrico da crise da psicologia, do qual se
utilizou a edio brasileira, j que aps uma leitura cuidadosa de ambas as edies (espanhola
e brasileira), no se constataram diferenas significativas de traduo.
Com relao ao texto selecionado de Marx e Engels, buscou-se orientao tambm na
leitura de comentadores especialistas. Houve a inteno de buscar a compreenso do
significado dos trs eixos presentes na prpria expresso materialismo histrico dialtico, e
para tanto, decidiu-se pelo texto A ideologia alem, tido por comentadores como Gianotti
(1978) e Gorender (1989) como o primeiro texto a expor claramente este trip terico-
metodolgico em Marx e Engels.
Tambm Freitag (1993) aponta, juntamente com os Manuscritos econmico-
filosficos (1844) e O capital (1867), de Marx, o texto A ideologia alem como um escrito de
base para compreender o pensamento de Marx e Engels, uma vez que concentra alguns
pontos primordiais de sua filosofia. A edio escolhida, no caso de A ideologia alem, foi da
editorial Presena, de Lisboa, Portugal.
Cabe ressaltar que embora a obra dos autores seja muito mais extensa do que os textos
selecionados, foi necessrio proceder um recorte em funo dos limites de prazo para o
19
desenvolvimento da pesquisa. No entanto, houve uma constante preocupao, durante o
perodo do mestrado, em tomar contato com o maior nmero possvel de textos dos autores
em anlise e dos comentadores especialistas, para que uma viso mais ampla das obras
pudesse ser construda. Assim, a bibliografia percorrida, com o auxlio e mediao de
professores, disciplinas e comentadores, bastante mais ampla14 do que os textos
mencionados na Tabela 2; porm apenas deles que se decidiu extrair os enunciados a serem
postos em relao na anlise arqueolgica proposta.
Um primeiro momento da pesquisa consistiu em buscar conhecer o contexto do qual
emergiram os quatro textos selecionados para anlise, para compreender o lugar que ocupam
na trajetria do pensamento dos autores. Um segundo momento comps-se da anlise
propriamente dita dos textos: separou-se neles enunciados relevantes discusso, agrupados
em torno de dois eixos temticos-conceituais ligados ao tema epistemolgico o eixo da
concepo de cincia e o eixo da concepo de sujeito. A ltima etapa compreendeu a busca
das relaes de aproximao e de distanciamento que podem ser estabelecidas entre os
enunciados analisados, da matriz materialista histrica dialtica e da psicologia histrico-
cultural de Vigotski.
Estes momentos da pesquisa no se deram como passos separados e independentes,
pelo contrrio: os trs exerccios de compreenso do contexto, dos enunciados sobre a
cincia e sobre o sujeito, e das relaes da psicologia de Vigotski com o materialismo
histrico dialtico de Marx e Engels estiveram presentes em todo o processo de composio
deste estudo.
Existe nesta pesquisa, portanto, o pressuposto compartilhado por outros autores de
que uma das matrizes filosficas fundamentais do pensamento de Vigotski o materialismo
histrico dialtico de Marx e Engels. Mas a noo de matriz aqui utilizada no sentido de
ilustrar no a origem de uma psicologia, mas uma de suas provenincias, com as quais
estabelece relaes constitutivas, de aproximao e de distanciamento, numa ligao no
linear nem continusta. Concorda-se com o pensamento de Molon (2003), quando afirma que
Considerando-se a complexidade do pensamento e a interdisciplinaridade dos problemas abordados pelo autor, no se pode pretender identificar Vygotsky com uma ou outra tradio filosfica ou com alguns tericos, mas entender como ele usou diferentes interlocutores na composio de sua construo terico-metodolgica. (Molon, 2003, p.135)
14 Bibliografia listada ao final do trabalho
20
O esforo que norteia a anlise e a discusso deste trabalho o de compreender, da
perspectiva arqueolgica, como a psicologia histrico-cultural de Vigotski pde ser
construda a partir de elementos do materialismo histrico dialtico de Marx e Engels.
21
2. UMA ARQUEOLOGIA DOS DISCURSOS
A obra, como individualidade que, supostamente, deve conservar sua fisionomia atravs dos tempos, no existe (s existe sua relao com cada um dos intrpretes), mas ela algo: ela determinada em cada relao, a significao que teve em seu tempo, por exemplo, pode ser objeto de discusses positivas. O que existe, em compensao, a matria da obra, mas essa matria no nada enquanto a relao no faz dela isso ou aquilo.
(Paul Veyne, 1995, p.179)
Para abordar as relaes entre pressupostos da psicologia histrico-cultural de
Vigotski e o materialismo histrico dialtico de Marx e Engels escolheu-se como olhar
metodolgico a perspectiva da arqueologia, a partir do trabalho de Michel Foucault, luz dos
apontamentos metodolgicos existentes em estudos como Arqueologia do saber (1969/1997)
e A ordem do discurso (1970/2004).
Os textos a serem analisados, quais sejam, os documentos da psicologia histrico-
cultural e do materialismo histrico dialtico selecionados, so tratados como discursos,
buscando-se estabelecer entre eles relaes a partir das ligaes possveis entre enunciados
presentes nas suas positividades. Este trabalho se insere, portanto, no mbito da pesquisa
histrica e arqueolgica em psicologia.
Nesta seo so trabalhados alguns conceitos-chave envolvidos na perspectiva
terico-metodolgica de Michel Foucault, tal como foram apropriados e adaptados para esta
pesquisa, de modo a servirem como ferramentas analticas dos textos.
22
2.1. Epistemologia, relativismo e perspectivismo
Ao se propor uma pesquisa histrica pautada num olhar arqueolgico, no se pode ter
a pretenso de acompanhar o percurso do objeto de estudo na totalidade de uma histria
geral/universal, linear e unitria: preciso considerar que existem desnveis histricos
intangveis, e que as linearidades so sempre construdas por quem narra a histria.
Uma histria da(s) psicologia(s) compatvel com esta abordagem narrada por dois
autores que se preocuparam com um resgate histrico diferente daquele tradicionalmente
ensinado nos cursos de graduao. Figueiredo e Santi (2002) no falam de uma histria que
comea com o marco arbitrrio da fundao do laboratrio de Leipzig; querem, ao invs,
apresentar algumas pr-condies para a emergncia da psicologia como uma disciplina
especfica no corpo das cincias.
No seu livro Psicologia: uma (nova) Introduo, colocam em evidncia uma pr-
condio bsica para este surgimento: a experincia da subjetividade privatizada. Tal
experincia, segundo os autores, construiu-se em situaes de crise na cultura, quando os
valores tradicionais e coletivos deixaram de ter fora de referncia para a soluo das
questes dos indivduos, e estes se perceberam tendo que construir referncias internas
para conduzir a prpria vida. O nascimento deste espao para a subjetividade privatizada
constatvel no surgimento de gneros literrios como a tragdia e o lirismo, em que o
sujeito dividido entre vontades incompatveis, ou entre sua vontade e os valores sociais; de
gneros artsticos, em que exaltada a particularidade de cada artista; da atribuio
conscincia e s intenes dos sujeitos maior valor do que os prprios atos e obras, nos
movimentos religiosos.
A transformao da imagem que o homem tinha de si mesmo foi acompanhada
pelas mudanas dos modos de produo material das sociedades ocidentais, que passaram do
modelo coletivista de sustento sociedade produzindo para o sustento da sociedade para o
mercantilista, em que a produo se volta aos interesses particulares. Este aspecto contribuiu
para construo de um sujeito que, de coletivo, passou a ser mais individual e privado.
A emergncia da subjetividade privatizada no mbito da vida de cada um, e sua
posterior experincia de crise decorrente do crescimento de mecanismos coercitivos do
sujeito como o aparelho estatal, a burocracia, as foras armadas e as relaes capitalistas,
formam um processo histrico que se inicia com o advento da modernidade e chega at o
23
sculo XIX, compondo duas pr condies para o surgimento de uma psicologia como
cincia:
Quando os homens passam pelas experincias de uma subjetividade privatizada e ao mesmo tempo percebem que no so to livres e to singulares quanto imaginavam, ficam perplexos. Pem-se a pensar acerca das causas e do significado de tudo que fazem, sentem e pensam sobre eles mesmos. Os tempos esto ficando maduros para uma psicologia cientfica (Figueiredo e Santi, 2002, pp.48-49)
A subjetividade se constituiu na modernidade como um problema prtico da vida
dos sujeitos, mas tambm como um problema terico no campo da filosofia. A discusso
filosfica passou a se ocupar de buscar mtodos seguros para a produo de verdades,
mtodos que pudessem alcanar uma objetividade no conhecimento das coisas e que
superassem a distoro subjetiva, do sujeito que conhece.
Em Matrizes do Pensamento Psicolgico, Figueiredo (2002) traa um panorama
desta discusso, cujos desdobramentos constituem uma outra pr-condio para a
emergncia da psicologia como cincia. Segundo o autor, a partir do sculo XVII acontece
uma ruptura nos modos de se produzir conhecimento: estabelece-se uma relao de busca do
conhecimento objetivo atravs da razo instrumental, ou seja, de uma razo que no mais
apenas contemplativa. Instaura-se, progressivamente, a necessidade de se acrescentar
observao uma mensurao experimental. Passa-se a buscar no experimento uma regio
segura de verdade para o conhecimento das coisas, e justifica-se a prtica cientfica pelo seu
carter de utilidade vida humana15.
Figueiredo (2002) elege o empirista Francis Bacon e o racionalista Ren Descartes
como figuras representativas desta nova era. Para o autor, ambos falam do desejo e do direito
de domnio da natureza em favor do homem. O primeiro estabelece como mtodo para isto a
experincia sensvel; o segundo, a razo/intuio pura.
Na tradio empirista, Bacon preocupa-se com as variveis subjetivas que podem
atrapalhar uma leitura objetiva da natureza. O homem, nesta empreitada, precisa conhecer-se
para dominar-se. necessrio haver uma disciplina do esprito e seguir um mtodo apoiado
fundamentalmente na experincia, pois para ele a razo deixada em total liberdade pode-se
tornar to especulativa e delirante que nada do que produza seja digno de crdito
(Figueiredo e Santi, 2002, p.31). Instaura-se, assim, a partir de Bacon, uma atitude
15 Figueiredo (2002) observa ainda que na contemporaneidade o instrumentalismo deixou de ser um meio de justificar a cincia e passou a ser uma determinao interna a ela: cincia e tecnologia fundiram-se e passaram a encarnar um mesmo projeto.
24
cautelosa e suspeitosa do homem para consigo mesmo (Figueiredo, 2002, p.15). J
Descartes, na tradio racionalista, no v valor em experimentos que no estejam
vinculados a alguma forma de razo. Ele privilegia a dvida metdica para controlar idias
ilusrias e chegar a certezas absolutas.
Na modernidade emergiram diferentes pensamentos filosficos que buscavam um
mtodo para o conhecimento, e que sustentariam mais tarde as cincias, entre elas, a
psicologia. A epistemologia passou ento a ser uma disciplina crucial, pois colocava em
questo os critrios para a produo de conhecimento com valor de verdade. No debate
moderno, esta questo gerou diferentes respostas e originou vertentes filosficas divergentes,
que privilegiavam ora critrios da experincia sensvel, ora da razo lgica.
Mas houve, no campo da filosofia, tambm quem se colocasse margem deste
debate epistemolgico e olhasse para a discusso da produo de verdades com um olhar
perspectivo, como fez Nietzsche. Para ele, no interessava e no era possvel garantir um
conhecimento puro, isolado das relaes de poder e da subjetividade de quem o produz.
Segundo Figueiredo (2002),
Tomando-se autores e movimentos intelectuais isoladamente no se encontraro facilmente exemplares que conjuguem a um s tempo as suspeitas diante das teorias e dos dados, da razo e da observao, alm das suspeitas generalizadas diante dos afetos e das motivaes. Esta conjugao reduziria o sujeito ao desespero e condenao como ilusria de qualquer pretenso ao conhecimento objetivo. O niilismo de Nietzsche ainda o que mais se aproxima deste limite (Figueiredo, 2002, p.18).
Segundo o autor, Nietzsche no foi a norma. A suspeita em relao a uma das
possveis fontes ou critrios de verdade costuma ser temperada pela absolvio das demais
(p.18). Assim, a fenda perspectivista que Nietzsche abriu e que continua aberta causa
bastante desconforto nos sujeitos modernos da razo que somos, desconforto este que buscou
ser resolvido, por exemplo, com os movimentos relativistas, caractersticos do sculo XX
entre tericos e metodlogos da cincia. Prado Filho (2006) caracteriza assim o relativismo:
O pensamento relativista, caracterstico do sculo passado, busca quebrar o primado da induo e da experimentao, levantando dvidas em termos da confiabilidade tanto do sujeito que conhece quanto das verdades por ele produzidas, enfatizando limites que contaminam a relao de conhecimento. O desencanto com a cincia clssica inaugurado por Nietzsche no final do sculo XIX ecoa ao longo do sculo XX, inspirando toda uma diversidade de relativismos, o que no quer dizer que as apropriaes de Nietzsche faam dele um relativista. A partir de ento, o conhecimento passa a ser tomado em seus limites, as verdades cientficas deixam de ter um carter absoluto e universal, tornando-se relativas. (Prado Filho, 2006, p.19)
25
Em meados do sculo XX, os relativistas buscaram formular uma flexibilizao dos
critrios de verdade para o conhecimento cientfico, em contraposio a um modelo
epistemolgico predominantemente positivista, que tinha regras metodolgicas muito rgidas
para a produo de conhecimentos com status de verdade. Entre eles, pode-se destacar Karl
Popper (2000), que nega o pressuposto da neutralidade do cientista, mas ainda se preocupa
com os processos de validao dos enunciados da cincia. Popper sugere que ao invs de a
cincia precisar replicar eternamente suas verdades para manter sua validade, basta que seus
enunciados estejam sujeitos a testes de falseabilidade e refutao. Sua preocupao com o
aspecto tcnico, e no poltico, da produo de verdades. Reconhece que no pode haver uma
objetividade absoluta, devido ao problema do salto indutivo16, mas acredita que o
conhecimento cientfico cumulativo e progride rumo a esta objetividade.
J Thomas Kuhn (2000), tambm pensador relativista, props uma anlise
epistemolgica que levasse em conta as dimenses sociais e polticas de produo de
verdades. A verdade tem para ele um carter de consenso entre os pares: o problema para se
chegar at ela muito mais de ordem social e poltica do que de ordem tcnica/metodolgica.
Mas, mesmo com este reconhecimento, acredita haver uma regio ainda que construda e
temporria de maior segurana para as verdades cientficas. Lana a noo de paradigma
para expressar a predominncia (ainda que temporria) de um determinado modo de se fazer
cincia, que tenha um consenso de mtodo e de objeto. Para Kuhn, a existncia de vrios
mtodos e objetos na mesma cincia significa que ela se situa numa regio pr-paradigmtica.
Seria necessrio, deste ponto de vista, que esta fase fosse superada por alguma configurao
mais estvel, com predominncia de um mtodo e objeto. Na concepo de Kuhn, a
psicologia estaria de seu nascimento at os dias de hoje nesta fase pr paradigmtica, dada a
sua vasta diversidade epistemolgica.
O perspectivismo, por sua vez, representado na filosofia por autores como
Nietzsche e Foucault, olha para os processos de produo de verdades como uma questo
social, histrica e poltica. Pergunta-se sobre quais as condies de possibilidade para que
determinados discursos recebam um status de maior valor de verdade, e no sobre quais os
caminhos tcnicos se deve percorrer para chegar a verdades. Para o perspectivismo,
diferentemente do relativismo, a cincia no uma verdade mais segura, ou um
conhecimento que mais se aproxima da verdade. Ela apenas mais uma produo humana;
16 Salto indutivo o problema cientfico da falibilidade da lgica indutiva: a partir de um experimento, estabelece-se uma verdade cientfica, que estendida lgica e progressivamente a todos os outros contextos de mesma natureza.
26
um discurso que opera sobre a vida e produz a realidade; que emerge por determinadas pr
condies histricas e polticas.
Os pensamentos de Nietzsche e Foucault apresentam, segundo Prado Filho (2006),
uma radical
[...] crtica ao conhecimento e ao sujeito cosgnoscente, que inviabiliza toda e qualquer epistemologia, por isso mesmo, possvel falar em uma contra-epistemologia: no h um projeto epistemolgico em Nietzsche e Foucault, apenas crtica. No se trata, na desconstruo nietzschiana, de propor reformas ao saber no sentido de aparar suas contradies e assim manter a primazia do sujeito e o culto verdade, mesmo ao custo de uma diminuio do seu poder de conhecer e do valor das verdades por ele produzidas, uma relativizao do conhecimento. No se trata de propor uma outra verdade, outro conjunto de regras e normas, ou de colocar condies para a existncia de verdades, mas de desmontar suas armaes, seus jogos, sua poltica. No se trata de salvar a cincia, mas, desconstru-la ento, no h cincia possvel para eles. (Prado Filho, 2006, p.24, grifo meu)
O perspectivismo como aporte terico-metodolgico d o sentido do estudo proposto
nesta pesquisa, que consiste em demarcar alguns enunciados nos discursos e estabelecer entre
eles relaes arqueolgicas, que incluem relaes de aproximao, mas tambm de desnveis.
No se est buscando no discurso de Vigotski confirmaes, refutaes, avanos ou
retrocessos cientficos com relao ao discurso de Marx e Engels. No se trata de um trabalho
de crtica interna tradio marxista, comprometida com fazer avanar a mesma descobrindo
nela mais verdades, mas de uma leitura a partir da exterioridade dos discursos, que perscruta
as suas positividades17 e estabelece relaes entre eles, a partir das superfcies que puderam
ser tocadas com as ferramentas metodolgicas.
Prado Filho (2006) assinala a diferena entre epistemologia e relativismo, de um lado,
e perspectivismo, de outro:
Esta uma das diferenas fundamentais entre relativismo e perspectivismo: um da ordem das reformas, enquanto o outro busca produzir uma ruptura radical, uma revoluo ao nvel do saber melhor seria, ento, caracterizar a desconstruo nietzschiana como pensamento perspectivista. O perspectivismo desmistifica o saber, desloca a anlise da verdade do pressuposto de uma razo essencial ao homem e natureza que tornaria possvel o conhecimento, para uma problematizao dos seus jogos e regimes de produo, que so histricos, transitrios, envolvem poder e esto sujeitos s disposies, apetites e limites daquele que conhece. Ele liga o pensamento ao olhar no de um sujeito mas, a visibilidades historicamente construdas, modos de ver, com os quais possvel pensar em um tempo. O olhar perspectivo no busca desvendar nem esgotar o objeto, ele aborda, tangencia, ilumina faces e arestas, aponta possibilidades. Ele no explica, mas descreve, percorre, interpreta, faz uma leitura. Nesse sentido, no tenta substituir uma verdade por outra melhor ou mais objetiva, mas coloca-se no jogo do discurso como visada histrica possvel entre outras. (Prado Filho, 2006, p.24)
17 A palavra positividade, na perspectiva da arqueologia, diferencia-se daquela do positivismo clssico, que acredita que a verdade reside e pode ser encontrada no objeto. Positividades, na arqueologia, referem-se a objetos construdos; objetos que a partir de certas condies de possibilidade histricas, sociais e polticas vieram a ganhar visibilidade e puderam constituir-se como objetos de discursos.
27
No possvel e no se quer, portanto, apontar uma leitura mais verdadeira dos
textos de Vigotski ao vincul-los arqueologicamente com o texto de Marx e Engels. No
perspectivismo entende-se que cabe fazer uma leitura, entre outras possveis, dos discursos
em jogo. E tal leitura sempre interpretativa, mas no no sentido de um sujeito-autor que l
os textos e atribui a eles significados a partir de sua essncia de autor que conhece, e nem no
sentido da hermenutica. Trata-se, sim, de uma posio de sujeito-pesquisador que vive num
determinado tempo e contexto, e que se vale de certas regras do conhecimento para apropriar-
se de seu objeto de estudo e pronunciar-se sobre ele.
28
2.2. Arqueologia, discurso e enunciado
A metfora define muito bem o mtodo: considerando que o saber histrico e que os discursos se acumulam em camadas, a arqueologia prope um corte transversal no campo discursivo, buscando mostrar os pontos de sustentao de um discurso, suas matrizes, suas condies de possibilidade, sua emergncia, seus monumentos e acontecimentos. [...] Tudo isso remete a uma anlise exterior aos discursos, que no se ocupa de suas estruturas lingsticas ou contedos, nem, tampouco, das suas representaes, significaes, sentidos ou mesmo, conceitos, mas, volta-se para os enunciados. Um enunciado, diferentemente de um conceito, deve ser tomado na sua raridade, em sua materialidade repetvel e em seu movimento, como enunciao, ato enunciativo, portanto, ao de poder.
(Prado Filho, 2006, p.28)
O objeto desta pesquisa textos de Vigotski e texto de Marx e Engels selecionados, e
suas possveis relaes arqueolgicas foi apropriado levando-se em conta um contexto de
discusses contemporneo, e a partir de algumas diretrizes metodolgicas, que podem ser
recolhidas nos j mencionados trabalhos arqueolgicos de Foucault.
A escolha deste mtodo se deu pela sua inscrio na crtica epistemologia moderna,
postura compartilhada nesta pesquisa, uma vez que a inteno aqui no de validar ou
invalidar a pertinncia de conceitos de uma psicologia a uma certa filosofia, nem de avaliar a
veracidade dos pensamentos analisados. O que se busca identificar em que aspectos a teoria
psicolgica estudada apresenta ligaes e em que aspectos apresenta rupturas com relao a
uma de suas matrizes filosficas de base.
No h como falar em um mtodo arqueolgico estruturado a priori, uma vez que
Foucault aponta ao pesquisador algumas orientaes metodolgicas, porm no
procedimentos especficos de forma pr-determinada. Tampouco se pode falar em um mtodo
arqueolgico nico, pois ele sempre ter suas feies configuradas de acordo com o objeto ao
qual aplicado.
Estudar a construo de uma teoria como formao discursiva, a partir da perspectiva
arqueolgica, significa no privilegiar um olhar para as continuidades existentes entre a teoria
e sua matriz filosfica, mas identificar primordialmente os pontos em que acontecem as
rupturas, em que emergem novos conceitos ou idias, que no necessariamente coincidem
com as articulaes originais da matriz. Foucault (1969/1997) diz, a respeito de unidades
discursivas como obra, ou teoria, que:
29
Essas formas prvias de continuidade, todas essas snteses que no problematizamos e que deixamos valer de pleno direito, preciso, pois, mant-las em suspenso. No se trata, claro, de recus-las definitivamente, mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos; mostrar que elas no se justificam por si mesmas, que so sempre o efeito de uma construo cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas [...] Trata-se, de fato, de arranc-las de sua quase-evidncia, de liberar os problemas que colocam; reconhecer que no so o lugar tranqilo a partir do qual outras questes podem ser levantadas (sobre sua estrutura, sua coerncia, sua sistematicidade, suas transformaes), mas que colocam por si mesmas todo um outro feixe de questes (Que so? Como defini-las ou limit-las? A que tipos distintos de leis podem obedecer? De que articulao so suscetveis? A que subconjuntos podem dar lugar? Que fenmenos especficos fazem aparecer no campo discursivo? (Foucault, 1969/1997, p.29)
A arqueologia ocupa-se, portanto, de fazer leituras de discursos, mas, segundo Veyne,
Foucault no revela um discurso misterioso, diferente daquele que todos ns temos ouvido: unicamente, ele nos convida a observarmos, com exatido, o que assim dito. Ora, essa observao prova que a zona do que dito apresenta preconceitos, reticncias, salincias e reentrncias inesperadas de que os locutores no esto, de maneira nenhuma, conscientes. Se se prefere, h, sob o discurso consciente, uma gramtica, determinada pelas praticas e gramticas vizinhas, que a observao atenta do discurso revela, se consentimos em retirar os amplos planejamentos que se chamam Cincia, Filosofia (Veyne, 1995, p. 160)
Com a investigao arqueolgica dos discursos Foucault busca fazer uma anlise que
no corresponde aos mtodos dos historiadores tradicionais da cincia, nem dos
epistemlogos. O mtodo arqueolgico lana s formaes discursivas (que so seu objeto)
preferencialmente o olhar das descontinuidades, pois entende que toda
linearidade/continuidade uma construo lgica, edificada por quem conta a histria, para
dar a ela um sentido.
Veyne (1995) ilustra ainda como Foucault se ope teleologia dos historiadores,
argumentando que o autor apia-se em quatro pressupostos para compreender a sucesso das
heterogeneidades histricas:
[...] que essa sucesso de heterogeneidades no traa um vetor de progresso; que o motor do caleidoscpio no a razo, o desejo ou a conscincia; que para fazer uma escolha racional, seria preciso no preferir, mas poder comparar e, portanto, agregar (segundo que taxa de converso?) atrativos e desvantagens heterogneas e medidas por nossa escala subjetiva de valores; e, sobretudo, que no se deve fabricar racionalismos racionalizadores e dissimular a heterogeneidade sob as reificaes (Veyne, 1995, p. 169)
Seguindo-se a tradio nietzschiana, todo sentido inventado, e interpretao de
interpretao. O olhar arqueolgico no quer fazer dos discursos analisados os enredos de
grandes histrias, em que acontecimentos solidarizam-se numa continuidade e conspiram
para o surgimento de eventos e situaes teleologicamente previstos. Quer, pelo contrrio,
l-los pelas suas descontinuidades:
30
A descontinuidade era o estigma da disperso temporal que o historiador se encarregava de suprimir da histria. Ela se tornou, agora, um dos elementos fundamentais da anlise histrica [...] Paradoxal noo de descontinuidade: , ao mesmo tempo, instrumento e objeto de pesquisa, delimita o campo de que o efeito, permite individualizar os domnios, mas s pode ser estabelecida atravs da comparao desses domnios. Enfim, no simplesmente um conceito presente no discurso do historiador, mas este, secretamente, a supe: de onde poderia ele falar, na verdade, seno a partir dessa ruptura que lhe oferece como objeto a histria e sua prpria histria? (Foucault, 1969/1997, p.10)
Foucault no acredita ser possvel ao pesquisador acessar a verdade dos fatos, nem
fazer uma leitura objetiva e unvoca de algum acontecimento ou discurso; para ele, apenas
possvel conhecer aquilo que o jogo histrico de lutas e afrontamentos nos permitiu conhecer:
os vestgios. E mesmo destes, o historiador/arquelogo s poder ter uma leitura datada e
localizada, limitada pelas possibilidades e formas de conhecer da sua poca.
J foi dito que no perspectivismo de Foucault encontramos uma contra-epistemologia;
nele, h uma crtica ao procedimento moderno de rastrear as verdadeiras origens de um
discurso historicamente produzido, e de encarcer-lo em ilhas de coerncia sob o crivo de
uma razo universal, isolando-o de contaminaes pelo poder ou pela subjetividade, e
tomando-o como verdade.
No trabalho intitulado Uma histria crtica da subjetividade no pensamento de Michel
Foucault, Prado Filho (2005a) aponta a existncia de trs trajetrias que se podem depreender
dos escritos de Foucault. As trajetrias arqueolgicas so as que interessam diretamente a
este trabalho, uma vez que nelas Foucault se ocupa das questes do sujeito do conhecimento,
e, portanto, debate criticamente com o campo da histria das idias. H ainda as trajetrias
genealgicas, onde o autor faz aluso mais direta ao sujeito-indivduo, no nos sentidos
liberal, psicolgico, autnomo ou antropolgico do termo, mas no sentido do sujeito como
corpo marcado e assujeitado s prticas de saber-poder; e as trajetrias ticas, onde trata dos
modos de subjetivao destes sujeitos, novamente, no como movimento de um sujeito
criador que se faz conforme decide, mas sim um trabalho sobre si mesmo no qual se
reconhece como sujeito de uma identidade, de uma moralidade ou mesmo sujeito de uma
sexualidade, de uma normatividade de ordem sexual (Prado Filho, 2005a, p.48), ou, como
aponta Moriconi (2005, p.124), a histria do sujeito como uma histria das operaes de
destaque de si.
O prprio Foucault, ao escrever A ordem do discurso (1970/2004), reconhece dois
conjuntos em que se poderiam agrupar as anlises que at ento (ano de 1970) havia feito:
[...]as anlises que me proponho fazer se dispem segundo dois conjuntos. De uma parte, o conjunto crtico, que pe em prtica o princpio da inverso: procurar cercar as formas da excluso, da limitao, da apropriao (do discurso) de que falava h pouco; mostrar como se
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formaram, para responder a que necessidades, como se modificaram e se deslocaram, que fora exerceram efetivamente, em que medida foram contornadas. De outra parte, o conjunto genealgicoque pe em prtica os trs outros princpios: como se formaram, atravs, apesar, ou com o apoio desses sistemas de coero, sries de discursos; qual foi a norma especfica de cada uma e quais foram suas condies de apario, de crescimento, de variao (Foucault, 1970/2004, pp. 60-61).
Foucault trata aqui de duas dimenses a serem analisadas, que podem ser traduzidas
por: discurso/saber como escopo do que ele chama de conjunto crtico dos estudos, e onde
estaria a trajetria arqueolgica; e prticas/poder como escopo no que ele chama conjunto
genealgico dos estudos. No entanto, estas dimenses se entrecruzam: as prticas formam-se
a partir de discursos, e os discursos mesmos so constitudos por prticas bem definidas.
Assim, Foucault lembra que
Na verdade, estas duas tarefas no so nunca inteiramente separveis; [...] Entre o empreendimento crtico e o empreendimento genealgico, a diferena no tanto de objeto ou de domnio mas, sim, de ponto de ataque, de perspectiva e de delimitao (Foucault, 1970/2004, p.66-67).
Mas a palavra discurso pode encerrar diversos sentidos, e, portanto, cabe explicitar
qual o sentido que ganha nesta concepo terico-metodolgica. Uma das caractersticas
principais a de que a anlise arqueolgica no se concentra no sujeito que enuncia o
discurso, mas naquilo mesmo que enunciado a partir dos lugares que se pode ocupar nas
regras de formao do discurso. Prado Filho (2006) a este respeito esclarece que:
O discurso no deve ser remetido, portanto, a um sujeito fundador que lhe atribui significado e atravs dele enuncia, mas materialidade histrica que lhe prpria, aos seus jogos e regras, suas polticas de produo de verdades, onde o sujeito troca de posio com o objeto. Ao deslocar a anlise da primazia do sujeito para ocupar-se do enunciado, a arqueologia submete o sujeito ao discurso, coloca-o como funo do enunciado, em ntimo contato com todo um domnio de objetos dispostos num campo discursivo, de forma que ele no ocupa mais o centro, mas, posies diversas das quais torna-se possvel falar de um objeto. (Prado Filho, 2006, p.32)
O mesmo autor ainda afirma, sobre o discurso, que ele no expresso da liberdade
de criao ao contrrio est sujeito a regras de produo e circulao, alm de inscrever-
se concretamente nas lutas polticas de uma sociedade. (Prado Filho, 2006, p.29). Esta
concepo de discurso , na verdade, a de Foucault (1970/2004) quando este diz supor que,
em toda sociedade,
[...] a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade (Foucault, 1970/2004, pp.8-9).
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Este controle exercido pelo que Foucault (1070/2004) denomina de verdadeiros
sistemas de coero na construo e no uso dos discursos. Os sistemas de coero do
discurso so feitos de alguns procedimentos. Os procedimentos de excluso referem-se s
aes de interditar o discurso (nem tudo pode ser dito em qualquer situao nem por qualquer
pessoa), separar e rejeitar os discursos invlidos como verdade (como por exemplo, o
discurso do louco) e operar deslocamentos histricos na vontade de saber, ou seja, separar o
conhecimento falso ou verdadeiro na busca da verdade, movimento tambm visvel nos
deslocamentos que Foucault aponta das diferentes epistemes18.
H, em segundo lugar, os procedimentos internos ao discurso, que vm para conjurar
o acaso da sua apario, o seu carter de acontecimento raro. So como um esforo por
alinhavar os discursos, de modo a dar a eles um carter de continuidade e de avano rumo a
uma verdade. Este tipo de procedimento representado pelo princpio do comentrio de um
discurso (que o faz falar para alm do seu acontecimento, e re-fala tambm daquilo que nele
j foi falado); pela funo-autor (que compele um agrupamento de escritos sob o nome de um
sujeito-autor); e pelo princpio da disciplina, que estabelece os domnios de objetos
pertinentes a um ramo do saber. Destes procedimentos internos, pode-se dizer que os dois
primeiros controlam o acaso do discurso formatando para ele uma identidade.
Por ltimo, tm-se os procedimentos de sujeio, que so aqueles que determinam as
condies para o funcionamento e o acesso ao discurso. So representados pelos rituais (que
definem os signos que devem acompanhar o discurso), pelas sociedades do discurso (grupos
definidores das suas regras de circulao) e pelas doutrinas (fiscalizar e questionar tanto o
enunciado falado quanto o sujeito que o fala, um atravs do outro, diferenciando a heresia e a
ortodoxia).
Foucault aponta estes sistemas de coero, presentes na forma tradicional de historiar
as idias, para denunciar uma aparente venerao ao discurso (logofilia) historicamente
presente nas sociedades ocidentais, mas que em ltima instncia encerra uma logofobia, ou
seja, um temor em relao ao que o discurso possa liberar, haja vista estes numerosos
18 Episteme o termo usado por Foucault em As Palavras e As Coisas (1966/1999) para designar configuraes que o saber adquire em diferentes tempos histricos no Ocidente, ao modo de uma histria da sucesso das formas de pensar e produzir conhecimento, bem como de validar ou no uma determinada forma de conhecer. Se a separao entre conhecimento falso e verdadeiro parece remontar Grcia antiga, Foucault identifica ainda, para falar sumariamente, a episteme moderna (sculos XIX-XX) como um tempo em que a cincia e o sujeito esto no centro da produo de verdades; a episteme clssica (sculos XVII-XVIII) como um tempo de disciplina do olhar investigador para classificar exaustivamente o objeto de estudo segundo regras pr-estabelecidas; e a episteme renascentista ou crist (sculos XIV-XVI) como a investigao da verdade atravs da exegese dos textos bblicos.
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princpios coercitivos e controladores que sobre ele so aplicados para dar-lhes a forma da
continuidade histrica.
Este o campo em que se insere a crtica presente na anlise arqueolgica: uma
anlise de discursos que no s descarta tais procedimentos coercitivos como contrape a eles
o que denominaremos aqui de contra-procedimentos: pela inverso se reconhece o discurso
como um jogo negativo de um recorte e de uma rarefao, deixando-se de consider-lo como
instncia fundamental e criadora. Pela descontinuidade, deixa-se de querer restituir essa
rarefao a um no dito fundamental que tudo alinhava para Foucault, o que podemos
encontrar nas origens no a identidade essencial das coisas, nem seu estado mais puro,
tampouco sua verdade. Nas origens est justamente o oposto disso: o disparate. Pela
especificidade, concebe-se o discurso no como um cmplice do conhecimento, mas como
uma violncia que fazemos s coisas, uma prtica que lhes impomos (e nas prticas
discursivas que est a regularidade do discurso). Por fim, o contra-procedimento da
exterioridade prope que no se busque um ncleo interior ao discurso, mas que a partir dele
mesmo se passe s suas condies externas de possibilidade (aquilo que d lugar srie
aleatria desse discurso e lhe fixa as fronteiras).
Foucault (1970/2004) d um exemplo de um empreendimento inscrito no campo do
que denominou conjunto crtico de estudos, que se pode entender por arqueolgico, e que
pode ilustrar a pertinncia deste mtodo para estudar as formaes histricas de uma
disciplina cientfica:
ainda nesta perspectiva crtica, mas em outro nvel, que se deveria fazer a anlise dos procedimentos de limitao dos discursos, dentre os quais designei h pouco o princpio do autor, o do comentrio e o da disciplina. Nesta perspectiva, se pode conceber um certo nmero de estudos. Penso, por exemplo, em uma anlise que versasse sobre a histria da medicina do sculo XVI ao sculo XIX. No se trataria de assinalar as descobertas feitas ou os conceitos elaborados, mas de detectar, na construo do discurso mdico mas tambm em toda a instituio que o sustenta, transmite e refora como funcionaram os princpios do autor, do comentrio e da disciplina [...]; conforme que modelo, afinal, a medicina procurou constituir-se como disciplina, apoiando-se primeiramente na histria natural, em seguida na anatomia e na biologia. (Foucault, 1970/2004, p.64)
Este caminho que Foucault prope para estudar a histria da medicina caberia bem
a uma histria da psicologia, resguardadas as devidas diferenas entre essas disciplinas (uma
delas a de que a psicologia ocupa um lugar de interstcio entre a biologia e as
humanidades). Os discursos psicolgicos cientficos foram gerados a partir da criao de um
espao nas cincias, e a partir de certas pr condies sociais e tambm filosficas. Tendo
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sido criado o espao, faltava ocup-lo: nesta ocupao entram as diferentes e conflitantes
matrizes epistemolgicas da psicologia.
dentro deste campo de anlises que se prope inserir o objeto de estudo
selecionado. No se trata, porm, de aplicar linearmente aos discursos analisados todos
aqueles contra-procedimentos propostos por Foucault, mas sim, de t-los como diretrizes para
o presente estudo.
Partindo-se de uma breve anlise das condies de possibilidade sociais e histricas
para a emergncia dos textos selecionados, procurou-se centralmente analisar os seus
enunciados e relacion-los arqueologicamente, no sentido de ver na matriz do materialismo
histrico dialtico de Marx e Engels uma condio de possibilidade para a emergncia da
psicologia histrico cultural de Vigotski, identificando alguns nveis e desnveis entre um
campo discursivo e outro. Tema histrico em psicologia: um sub-captulo de uma arqueologia
desta disciplina19.
19 Prado Filho (2005b) escreveu interessante artigo sobre uma arqueologia da psicologia, que percorre as emergncias de objetos e mtodos nesta disciplina cientfica, demonstrando a pluralidade que a habita, com pensamentos que se ligam e se distanciam, em uma linha de tempo cheia de relevos, que no tem origem certa nem caminha a um s destino.
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3. CONDIES DE POSSIBILIDADE PARA A
EMERGNCIA DOS TEXTOS EM ESTUDO
Para compreender o contexto de produo dos textos a serem analisados, necessrio
remeter-se s condies de possibilidade de suas emergncias, dito de outro modo, s
efervescncias sociais que aconteciam poca de sua escrita e que mantiveram, com ela,
estreitas relaes.
Para reconstruir estas condies, recorrer-se- a comentadores especialistas que
trazem informaes histricas e contextuais dos autores e dos seus escritos em estudo. Escapa
aos objetivos deste trabalho estudar as diferentes apropriaes que se fizeram de Marx e
Engels, Vigotski, e seus escritos, e neste sentido, o recurso aos comentadores neste captulo
se restringir obteno das informaes histricas e contextuais, tais como so por estes
apresentadas.
A inteno fornecer, a partir da leitura dos comentadores selecionados, subsdios
para organizar um breve quadro demarcador dos contextos em que emergem os discursos
selecionados para a anlise desta pesquisa.
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3.1. Trajetria de um pensamento crtico no campo da filosofia do sculo XIX
Marx havia ingressado, no ano de 1835, na Universidade de Bonn (Alemanha) no
intento de estudar Direito. Transferiu-se para a Universidade de Berlim em outubro 1836 para
continuar seus estudos jurdicos, e foi l que comeou a se interessar pela filosofia do direito.
Segundo Buey (2004):
A Faculdade de Direito de Berlim estava ento dominada pela lembrana da figura de Hegel, que havia morrido h apenas cinco anos. A opinio dominante na Universidade era que o pensamento de Hegel constitua a filosofia definitiva e seus principais discpulos se dedicavam, desde 1832, a editar as lies no publicadas do mestre e a desenvolver as implicas da sua doutrina nos diferentes campos (Buey, 2004, p.38).
A esta poca, portanto, Marx estava diretamente inserido no crculo de discusses de
seguidores de Hegel, numa atmosfera de reverncia ao mestre recm falecido.
Ainda segundo Buey (2004, p.41) o ano de 1837 parece ter sido marcado para Marx
por muita produo literria e romntica, com poemas dedicados aos sentimentos
contraditrios que a filosofia hegeliana lhe suscitava (de crtica e admirao), novelas
humorsticas e dramas. Em 1838, teria se afastado dos cursos universitrios e participado
mais de discusses sobre religio, poltica, histria e jornalismo, no Clube dos Doutores,
associao de universitrios ps graduados e mais velhos do que ele. Buey (2004) esclarece
que
[...]o Clube dos Doutores representava, antes de tudo, a liberdade crtica que no podia encontrar na Universidade, a discusso em torno da recuperao do verdadeiro cristianismo desfigurado pela mitologia, o protesto contra a religio oficial identificada com o Estado, a configurao de um liberalismo constitucional oposto ao absolutismo prussiano (Buey, 2004, p.40)
Foi nele que Marx conheceu tambm Bruno Bauer20, com quem, durante seus anos de
estudo em Berlim, manteve estreito contato, pois defenderia uma tese de doutoramento sob
sua orientao, no intuito de obter uma ctedra universitria.
Bruno Bauer, assim como outros autores, como David Strauss, Arnold Ruge, Moses
Hess, Max Stirner e Feuerbach, compunham um grupo de discusso crtica da filosofia de
Hegel, que veio a ser denominado de esquerda hegeliana, ou jovens hegelianos. Tratava-se
de um grupo de estudiosos que tecia crticas internas ao sistema filosfico de Hegel, seja com
20 Bruno Bauer viria a ser tambm um dos filsofos com quem Marx dialoga, pela via do distanciamento crtico, em A ideologia alem.
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referncia s suas acepes de religio, de poltica, de Estado ou outros aspectos. Buey
(2004) traz uma definio bastante completa deste movimento:
O que se chamou naqueles anos de esquerda hegeliana, adotando a analogia espacial da Conveno francesa, tinha o seu foco principal, embora no nico, na Universidade de Berlim. Os componentes desse crculo intelectual eram jovens universitrios filhos da burguesia bem-situada, e burgueses eles mesmos, na sua maioria insatisfeitos e frustrados pela poltica oficial prussiana. Propugnavam um racionalismo muito especulativo, romntico na forma, simultaneamente idealista e ilustrado, e contrapunham os ideais da Revoluo Francesa e a idealizao desta revoluo realidade do Estado prussiano. Sua meta era um humanismo de corao alemo e cabea francesa. Todos os componentes do grupo tinham a convico de estar vivendo uma poca de transio, o alvorecer de uma era completamente nova, habituados como estavam, por formao, a ler a histria com os olhos da dialtica hegeliana do progresso. Tinham a f no poder das idias e exaltavam a crtica do existente e a funo renovadora da teoria com a convico de que o pensamento predede a ao, assim como o relmpago ao trovo. Consideravam que o exerccio da filosofia tem bvias repercusses prticas (Buey, 2004, p.50).
Uma daz razes para a existncia deste movimento crtico a Hegel era o fato de que
sua filosofia, segundo Gianotti (1978, p. VII), se convertera numa espcie de ideologia
oficial. O princpio hegeliano de que o Estado moderno encarna os ideais da Moral mais
objetivos e manifesta a Razo no domnio da vida social era tomado como apoio direto ao
estado prussiano. E havia, poca, um crescente mal estar com os rumos do governo
prussiano monrquico na Alemanha, tido como autoritrio, censor da imprensa, atrasado e
medievalizante da cultura do pas.
A respeito do plano poltico deste grupo, tambm precisa a descrio de Buey
(2004):
[...]os jovens hegelianos estrearam propugnando uma leal oposio ao Estado prussiano.[...]Queriam realizar a idia hegeliana do Estado tico numa monarquia constitucional de corte liberal e se opunham conseqentemente ao Estado confessional e, por derivao, ao pietismo religioso dominante. Com esta bagagem de idias, vrios dos principais expoentes da esquerda hegeliana participaram do projeto jornalstico da Gazeta Renana, cujo primeiro nmero apareceu em 1841. Mas logo descobriram que suas idias renovadoras chocavam-se frontalmente com a poltica dos ministros de Frederico Guilherme IV em vrios planos: em razo da manuteno da censura imprensa, do carter confessional do Estado e das represlias governamentais contra os que eram considerados discpulos de Hegel na Universidade. Desta forma, o hegelianismo de esquerda passou rapidamente da crtica da religio oficializada no Estado prussiano crtica terica da religio em geral. Para os mais radicais, a crtica tinha de ser afirmao do atesmo. Entre estes, estavam Bauer e Marx. Ao se chocar com a realidade poltica, o liberalismo embrionrio das classes mdias se dividiu, em parte tambm por motivos geracionais: enquanto a burguesia bem-situada, buscando colocar-se politicamente, continuava a pensar, de maneira possibilista, em fazer oposio leal ao governo de Frederico Guilherme IV, os jovens hegelianos de esquerda se radicalizaram e proclamaram a oposio frontal do liberalismo ao romantismo coroado[...].Em dezembro de 1841, uma nova medida governamental sobre a censura iria consumar a diviso no liberalismo incipiente. [...]. Depois da expulso de Bruno Bauer da Universidade, cujos procedimentos se iniciaram naquele mesmo ano, a oposio leal se tornou impossvel para os jovens amigos do professor e a Gazeta Renana tomou definitivamente uma
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posio radical contra o absolutismo. De maneira sintomtica, os jovens da esquerda hegeliana passaram da defesa do liberalismo em abstrato defesa da democracia e, s vezes, afirmao do republicanismo. Tal o contexto no qual o jovem Marx, junto com outros amigos da esquerda hegeliana, como Arnold Ruge e Moses Hess, deixou de ser liberal para se tornar democrata radical. Um democrata radical no podia aceitar a oposio leal do liberalismo monarquia, quando, como ocorreu na Alemanha de 1841-1842, isto implicava no poder discutir nem a pessoa do soberano nem a religio, quando os debates parlamentares no eram pblicos, e as decises governamentais se tomavam, como era o caso, no segredo impune dos gabinetes. Um democrata radical, nas condies da Alemanha da poca, onde a res publica no era quase nada e o poder do monarca era quase tudo, tinha de ser algo mais do que liberal. O que poderia ser esse algo mais do que liberal ainda no estava claro na cabea dos jovens hegelianos, mas alguns, olhando para a Frana e a Inglaterra, j comeavam a falar de socialismo, de comunismo e de anarquismo. (Buey, 2004, pp.50-52)
Tem-se com esta rica descrio um retrato das dissidncias deste movimento poltico-
filosfico. Percebe-se que este grupo no era exatamente contra-hegeliano, mas que
congregava uma dissidncia heterognea contra determinada interpretao e aplicao
oficial do pensamento de Hegel.
J Marx, mesmo havendo participado ativamente deste grupo, afasta-se dele
progressivamente, na medida em que se autonomiza intelectualmente, vindo a posicionar-se,
j em A ideologia alem e particularmente neste trabalho contra todo o sistema hegeliano
e tambm contra seus antigos companheiros da esquerda hegeliana. Este seu trabalho
escrito em parceria com Engels viria, alguns anos depois, justamente como uma
contraposio quela hegemonia do hegelianismo no panorama cultural alemo, em termos
filosficos, morais e polticos.
Pode-se perceber os rumos da radicalizao da crtica de Marx ao contexto poltico da
Alemanha, que viria a ser complementada por seus subseqentes escritos (1842-1843) de
cunho jornalstico-denunciativo na Gazeta Renana. Nestes anos, ainda que j tivesse
concludo sua tese de doutoramento, teve de abandonar a carreira universitria em funo da
sua posio crtica radical ao governo. Tornou-se editor
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