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ALBERTO LUIZ MORGADO
A Visualidade Mstica da Montagem do Hamlet de Gordon Craig
no TAM
FLORIANPOLIS SANTA CATARINA
2018
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE ARTES - CEART
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEATRO PPGT
ALBERTO LUIZ MORGADO
A Visualidade Mstica da Montagem do Hamlet
de Gordon Craig no TAM
Trabalho apresentado banca examinadora como requisito para
obteno do ttulo de Mestre junto Universidade do Estado de
Santa Catarina.
Orientador: Professor-Doutor Paulo Cesar Balardim Borges
Co-Orientador: Professor-Doutor Almir Ribeiro Junior
FLORIANPOLIS-SANTA CATARINA
2018
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ALBERTO LUIZ MORGADO
A Visualidade Mstica da Montagem do Hamlet de Gordon Craig
no TAM
Trabalho apresentado como requisito parcial para obteno do grau de mestre no
curso de ps-graduao em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Banca Examinadora
Orientador: ________________________________________
Professor-Doutor Paulo Cesar Balardim Borges
Universidade do Estado de Santa Catarina
Co-orientador: ___________________________________
Professor-Doutor Almir Ribeiro Junior
Universidade de So Paulo
Membro: ____________________________________
Professor-Doutor Luiz Fernando Ramos
Universidade de So Paulo
Membro: _____________________________________
Professor-Doutor Jos Ronaldo Faleiro
Universidade do Estado de Santa Catarina
Florianpolis, 16 de maro de 2018.
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7
A arte viso ou
intuio. O artista
produz uma imagem ou
um fantasma: e quem
aprecia a arte volta o
olhar para o ponto que
o artista lhe indicou,
observa pela fenda que
este lhe abriu e
reproduz dentro de si
aquela imagem.
Benedetto Croce
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Dedico este trabalho minha filha,
razo de tudo.
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho s foi possvel graas ao empenho de algumas pessoas que pelo seu
interesse, dedicao e pacincia muito contriburam para a sua materializao.
Instituio Udesc, a pliade do seu corpo docente, direo administrao
q oportunizaram e viabilizaram este trabalho.
Ao meu orientador, pela pacincia e incentivo.
minha pequena musa-inspiradora, Sibelli.
Aos meus familiares pelo incentivo.
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RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo investigar a mise-en-scne de Gordon Craig (e
Stanislavski) para o espetculo teatral Hamlet no Teatro de Arte de Moscou nos anos de
1910-11. Para tanto, parte-se de uma anlise do ambiente artstico e histrico do final do
sculo XIX e do incio do sculo XX, o movimento Simbolista, e da influncia exercida
por Friedrich Nietzsche e Richard Wagner dentro da sua concepo cnica. Dentre os
importantes contributos de Craig para a cena teatral como os screens, assinala-se a sua
viso de mise-en-scne, o uso da iluminao e o conceito do ber-marionette. No campo
mtico, investigaremos a hiptese da preponderncia do deus Apolo sobre Dioniso,
deslocando o paradigma de Dioniso como divindade dominante do teatro e o seu reflexo
desse conceito na cena de Craig. Auxilia-nos no estudo, noes particulares de
movimento, imaginao, morte (impermanncia), conceitos-chave em seu primado
artstico. Este trabalho gravita em torno de quatro eixos: o primeiro a investigao da
mise-en-scne do Hamlet no TAM, quais as suas propostas, inovaes e influncias que
Craig e Stanislavski sofreram. No que toca ao mestre russo, estudamos qual ou quais as
circunstncias fizeram com que escolhesse Craig como encenador para esta produo, e
como foi essa relao. No segundo eixo, focamos na fora do misticismo na sua
personalidade, a fantasmagoria e quais suas repercusses na sua trajetria artstica e, em
especial, nesta produo para o Teatro de Arte de Moscou. Num terceiro alicerce,
abordaremos o conceito do ber-marionette e suas inflexes sobre esta produo teatral
levando em conta, tambm, o conceito de monodrama de Evreinov. No ltimo captulo,
estudamos uma possvel conjugao artstica entre o mstico e o esttico, uma unio.
Palavras-chave: Gordon Craig; Hamlet; misticismo; ber-marionette; mise-en-
scne
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15
ABSTRACT
This research aims to investigate the mise-en-scne of Gordon Craig (and
Stanislavski) for the Hamlet at the Moscow Art Theater. In this way, we start with a
description of the artistic and historical environment of the late nineteenth and early
twentieth centuries, the Symbolist movement, the influence exerted by Friedrich
Nietzsche and Richard Wagner within his scenic conception. Also, important
contributions to the theatrical scene as the screens, mise-en-scne, lighting and ber-
marionette idea. In the mythical field, we will attempt to demonstrate that for Craig there
is a preponderance of the god Apollo over Dionysus, displacing the paradigm of Dionysus
as the preponderant divinity of the theater and its reflection of that concept in the Craig
scene. It aids us in this work, particular notions of movement, imagination, death
(impermanence) and uncultured personality, key concepts in their artistic primacy. This
work revolves around a three axes, the first is the investigation of Hamlet's mise-en-scne
at TAM, what its proposals, innovations and influences that Craig and Stanislavski have
suffered. As far as the Russian master is concerned, we studied what, or the
circumstances, that led him to choose Craig as a set designer for this production, as was
the relationship between them. In the second axis, we focus on the strength of mysticism
in his personality, the phantasmagoria and what its repercussions in his artistic trajectory
and, especially, in this production for the Theater of Art of Moscow. On a third
foundation, we will approach the ber-marionette concept and its inflections on this
theatrical production, also taking into account the idea of Evreinov's monodrama. In the
last chapter we studied a feasible artistic combination between the mystic and the
aesthetic, a union.
Key-words: Gordon Craig; Hamlet; ber-marionette; mise-en-scne; mysticism.
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17
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1- Uma Helena de Craig ................................................................................................ 33
Figura 2- Rosencrantz e Guildenster......................................................................................... 35
Figura 3- Set .............................................................................................................................. 40
Figura 4-Ramyama .................................................................................................................... 42
Figura 5- A sombra ................................................................................................................... 43
Figura 6- Caravaggio ................................................................................................................ 44
Figura 7- Ante-proscnio de Dido and Aeneas ......................................................................... 46
Figura 8- Dido and Aeneas ....................................................................................................... 47
Figura 9- Figuras negras ........................................................................................................... 48
Figura 10- Interao espao e luz ............................................................................................. 50
Figura 11- O teatro grego .......................................................................................................... 52
Figura 12- Periactos .................................................................................................................. 53
Figura 13- Vil metal .................................................................................................................. 56
Figura 14- Das Kabinett............................................................................................................ 57
Figura 15- Set de Craig, figuras negras ..................................................................................... 58
Figura 16- A imobilidade .......................................................................................................... 60
Figura 17- O apartado ............................................................................................................... 62
Figura 18- As aparies ............................................................................................................ 65
Figura 19- O espectro................................................................................................................ 67
Figura 20: Craig como Hamlet ................................................................................................. 67
18
Figura 21- The Pretenders, o fantasma de Bishop Nicholas .................................................... 70
Figura 22- Set para The Tempest ............................................................................................... 73
Figura 23- Fantasma ................................................................................................................. 73
Figura 24- Bruxas ..................................................................................................................... 74
Figura 25- Espectro mimtico ................................................................................................... 75
Figura 26- Hamlet e Daemon ................................................................................................... 76
Figura 27- Os crculos ............................................................................................................... 79
Figura 28- Pentagrama circular ................................................................................................. 80
Figura 29- A paz dos crculos ................................................................................................... 81
Figura 30- Shite ......................................................................................................................... 92
Figura 31- ber-marionette ...................................................................................................... 92
Figura 32- O alm-do-homem .................................................................................................. 94
Figura 33- Futurismo russo ....................................................................................................... 97
Figura 34- Acis and Galatea, a geometria ................................................................................ 99
Figura 35- ber-marionette? .................................................................................................... 99
Figura 36- A corte ................................................................................................................... 101
Figura 37- A luta contra os elementos .................................................................................... 104
Figura 38- Um comeo ........................................................................................................... 119
Figura 39- E um comeo ......................................................................................................... 119
Figura 40- Elsinore? ................................................................................................................ 132
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SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................................................... 23
1 A VISUALIDADE CNICA: AS INOVAES DA MONTAGEM DE HAMLET.....29
1.1 Um ambiente simblico ..................................................................................................... 29
1.2 Literatura ............................................................................................................................. 31
1.3 O confronto ......................................................................................................................... 32
1.4 Miss D. ............................................................................................................................ 33
1.5 As tcnicas .......................................................................................................................... 34
1.6 Simbolismo ........................................................................................................................ 37
1.7 Screens ................................................................................................................................ 39
1.8 A luz cnica como viso espiritual ..................................................................................... 39
1.9 Influncias ........................................................................................................................... 41
1.10 O espao total .................................................................................................................... 43
1.11 A sombra como expresso ................................................................................................ 43
1.12 Dido and Aeneas ............................................................................................................... 45
1.13 O matiz ps-impressionista como pintura cnica ............................................................. 49
1.14 Quem precisa de Gordon Craig? ....................................................................................... 51
1.15 Mise-en-scne ................................................................................................................... 52
1.16 Estase: o silncio do movimento...................................................................................... 59
1.17 A Msica ........................................................................................................................... 62
1.18 A Solido de Hamlet ......................................................................................................... 62
1.19 A mscara.......................................................................................................................... 63
2 CRAIG: UM MSTICO REVOLUCIONRIO? ............................................................. 65
2.1 Fantasmagoria ..................................................................................................................... 65
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2.2 As coincidncias ................................................................................................................. 67
2.3 Necromancia ....................................................................................................................... 70
2.4 O pressuposto ...................................................................................................................... 72
2.5 As bruxas ............................................................................................................................ 74
2.6 O fantasma mimtico .......................................................................................................... 75
2.7 Daemon ............................................................................................................................... 76
2.8 Msica e poesia ................................................................................................................... 79
2.9 Os tons ................................................................................................................................ 82
2.10 Hipnose ............................................................................................................................. 83
2.11 A necessidade do trapaceiro.............................................................................................. 84
3 HAMLET COMO BER-MARIONETTE ......................................................................... 87
3.1 O dom da ubiquidade .......................................................................................................... 87
3.2 ber-marionette .................................................................................................................. 89
3.3 ber-marionette X Shite ..................................................................................................... 91
3.4 bermensch ........................................................................................................................ 93
3.5 Futurismo ............................................................................................................................ 97
3.6 A fogueira das vaidades.......... .......................................................................................... 103
3.7 A imaginao .................................................................................................................... 104
4 O ESTTICO E O MSTICO: A UNIO ....................................................................... 111
4.1 O belo ................................................................................................................................ 111
4.2 A turbidez.......................................................................................................................... 114
4.3 Teofania, antropofania e epifania ..................................................................................... 114
4.4 A conscincia compartilhada ............................................................................................ 115
4.5 Yeats e o mito ................................................................................................................... 115
4.6 Uma Nova Arte ................................................................................................................. 117
4.7 Arte como refgio ............................................................................................................. 118
21
CONCLUSES ..................................................................................................................... 121
REFERNCIAS .................................................................................................................... 133
22
23
INTRODUO
Hamlet uma obra clssica que devido a sua atualidade e fora dramtica se
tornou uma entidade teatral. A dimenso de Hamlet j h muito desbordou daquele
personagem criado por Shakespeare. Solido, dvidas, fraquezas, depresso e loucura, a
grandeza desta obra talvez seja a possibilidade de trazer cena toda essa dimenso
humana. Hamlet se transforma, se embrutece pouco a pouco, na tentativa de decifrar o
mistrio e o sentido da existncia, muitas vezes, por atos pusilnimes, atabalhoados e
covardes at. Hamlet uma obra em que o personagem principal um ser-humano. Na
tragdia da existncia ele se transfigura, a fora das circunstncias faz com que ele se
torne um assassino, veja fantasmas; O modo com o qual Hamlet vai tentando se esquivar
do que lhe incumbido, os atrasos, as ofensas a Oflia. O gnio de Shakespeare
transforma essa matria-prima, um homem a princpio comum, com seu medos, dvidas e
torna-as dramaticamente interessante.
Shakespeare talvez, conte no s com a nossa indulgncia, como tambm, com a
nossa cumplicidade. Hamlet e ns, por que no perdoar e entender esse estranho to
conhecido? E como entender o assassinato de Polnio como se fosse um inseto abjeto?
Tudo isso em funo de Hamlet ter visto um fantasma, o do pai? O que torna ainda mais
impressionante todo o universo e controvrsia em torno dessa obra.
O caminho de Hamlet no fcil: so dois crimes que deve vingar: o incesto da
me e o assassinato do pai. O primeiro um crime e um pecado que o enoja, o segundo
instiga Hamlet a agir, a se vingar. Esta misso , por conseguinte, uma tarefa colossal que
obrigar o jovem prncipe Hamlet a se questionar. E bom que assim faa, porque no
contexto da obra, a possibilidade de que ele sucumba com a prpria vida imensa e,
parafraseando o texto, por mais que ele possa ser um louco, h mtodo nessa loucura (Ato
II, Cena II). Da a procrastinao ser, tambm, um tema constante em Hamlet. Aps
saber, pelo espectro, que seu pai fora assassinado pelo rei Cludio, Hamlet d incio a um
processo de vingana que, de modo obsessivo, vai incessantemente protelando. Porm,
essa propenso em procrastinar significa tambm sinal de inteligncia, afinal de contas
ele est diante de um possvel regicdio impulsionado por um fantasma e o aodamento
temerrio em qualquer ocasio e o dio, um mau conselheiro. Mesmo assim, o assassinato
de Polnio indesculpvel, erro que o arrastar morte, ciente da mais que provvel
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vingana de Laertes. Inescusvel tambm a grosseria para com Oflia e outros atos um
tanto amalucados. Numa reunio de trabalho com Stanislavski, Craig afirmou que para se
ter a verdadeira compreenso da pea basta ler o ttulo: Hamlet, A Tragdia de Hamlet,
Prncipe da Dinamarca, i. e., nada mais existe, todos os outros personagens no existem,
so sombras, espectros, projees psicolgicas de Hamlet. Foi nessa hora que Stanislavski
engasgou. (SELENICK, 1982, p. 197). O presunoso prncipe Craig-Hamlet vai mais
longe, quando relembra:
Que noite eu tive ontem! Que noite! Sonhei ter conseguido o livro do futuro.
Um livro que todos conhecem! Um livro que ningum l, porque pensam que
sabem tudo sobre ele: Hamlet (SELENICK, 1982, p. 199, traduo nossa).
O momento histrico da montagem delicado, ousado at. A Rssia ardia:
sublevaes, violncia, a Revoluo de 1905 (prenncio da Revoluo de 1917) com a
agravante de ter sido a Rssia humilhada por uma derrota frente ao Japo, fato que alou
este pas condio de potncia. Estes podem ter sido alguns dos ingredientes que no
favoreciam uma montagem baseada no irreal, nos smbolos. Ou, ao contrrio, talvez, essa
montagem tenha sido um indicativo de elevao, na necessidade de se respirar ares mais
puros do que os ventos que sopravam da Europa central, repletos com o ar pestilento da
guerra. Ainda mais quando se leva em conta uma montagem que desvela a impureza
palaciana, a vilania de um rei usurpador e regicida e uma me pusilnime. No poderia o
pblico traar um paralelo, uma analogia entre o rei Cludio e o Czar Nicolau II?
Desta forma, o esforo de entender um pouco desse mecanismo, do momento
histrico em que est inserto, se existe e da possibilidade de uma real correlao entre a
histria factual e os movimentos artsticos, numa poca marcada por ismos:
Simbolismo, Futurismo, Cubismo etc, em que proliferam diversas reaes ao
Naturalismo, anima-nos tambm um possvel dilogo entre aquilo que Craig escreveu e a
sua produo grfica, que varivel e de alta qualidade. Estes trabalhos so, para ns,
documentos primrios que amalgam esta pesquisa e nos auxiliam para um melhor
entendimento de Craig, no s com relao a Hamlet, como tambm ao seu pensamento e
a sua obra artstica como um todo. No captulo 2 deste trabalho estudaremos a
proximidade de Craig com o iderio do movimento ps-impressionista.
So muitas as razes dessa produo teatral ter sido alada notoriedade. Uma
delas, talvez seja a tenso entre dois polos: o real e o simblico; no constante confronto
25
entre Stanislavski (e sua aguerrida defesa do seu mtodo) e Craig. Os dois so
realizadores que possuam concepes artsticas antagnicas, mas no inconciliveis.
Prova disso foi o resultado dialtico deste espetculo, no qual no prevaleceu a tese
realista, tampouco saiu vencedora a anttese simbolista, pois do confronto de ideias
resultou a obra; por mais que a concepo artstica tenha ficado a cargo de Craig, nem de
longe a sua concepo cnica foi hegemnica.
Outra possvel razo para que essa produo seja to cultuada seja o modo pelo
qual foi enfrentado o desafio de ter em cena um personagem-espectro; a existncia desse
personagem foi um forte indicativo de que Shakespeare no queria sua obra unicamente
adstrita aos cnones naturalistas-realistas. Neste trabalho, vrias razes favoreceram a
escolha da problemtica da mtica e mstica produo de Hamlet no Teatro de Arte de
Moscou; Hamlet, em si, uma obra extensamente estudada por pesquisadores de diversas
reas. No que toca a Craig, existem obras que aprofundaram o tema Craig-Hamlet, tais
como, Edward Gordon Craig por Denis Bablet; Gordon Craig's Moscow Hamlet: A
Reconstruction de Lauren Selenick; O dirio Index to the Story of My Days: Some
Memoirs of Edward Gordon Craig e Towards a New Theatre escritos por ele mesmo,
como tambm, Brian Arnott na obra Towards a New Theatre: Edward Gordon Craig and
Hamlet; Jean Benedetti com Stanislavski: His Life and Art; Outra importante referncia
Kaoru Osanai, um dos artistas responsveis pelo movimento New Theatre ou shingeki,
corrente artstica nipnica que estabeleceu uma ponte entre a arte do Oriente e o Ocidente
no Japo com o relato Gordon Craig's Production of Hamlet at the Moscow Art Theatre e
o artigo de David Tutaev: Gordon Craig Remembers Stanislavsky: A Great Nurse.
Assim, a estrutura deste trabalho est disposta do seguinte modo:
No primeiro captulo investigaremos o conturbado perodo histrico na Rssia e na
Europa e suas consequncias para a elaborao da pea. O confronto dialtico entre o
universo do TAM e as ideias de Stanislavski e qual a necessidade e/ou motivo que levou
Stanislavski a convidar Craig para esta produo. Perscrutaremos as diferenas entre as
abordagens desses mestres, o confronto entre o mstico/formal/visual de Craig e a busca
cnica de Stanislavski (tendo o ator como epicentro). Em seguida, analisaremos quais
foram os contributos de Craig para a mise-en-scne. Ainda, qual a importncia desta
montagem na trajetria de Craig e para a histria do teatro mundial. Abordamos tambm
personagens fundamentais para Craig: Herbert von Herkomer, por seus experimentos com
26
iluminao e sinestesia. Friedrich Nietzsche, principalmente pelo conceito de super-
homem. Schopenhauer, pelo conceito de vontade e o belo como fenmeno esttico e
Richard Wagner pelo desenvolvimento de uma arquitetura teatral acusmtica e
fantasmagoria. Sobre o fenmeno Isadora Duncan, teceremos consideraes sobre o seu
papel fundamental no encontro dela e Stanislavski e o consequente convite para Craig
encenar Hamlet, como tambm, a sua influncia no aprimoramento artstico de Craig.
No segundo captulo, averiguaremos a inclinao de Craig para acreditar em
foras e entes sobrenaturais e, a partir da, investigaremos a representao da
possibilidade de comunicao alm-mundo, tendo por veculo, a arte. Em seguida,
interrogaremos qual o manejo que ele fez do uso dos signos, dos arqutipos e da
fantasmagoria e sobre quais entidades msticas estiveram presentes na montagem de
Hamlet, provocando o dilogo desses elementos com a mise-en-scne. Ainda neste
captulo, e levando em considerao a fora do seu misticismo, tentaremos perceber de
que forma ele traduziu cenicamente esse misticismo; estudando o papel das sombras, o
jogo chiaroscuro, as manchas, frestas, o movimento dos atores e os screens, bem como a
iluminao cnica como correlativo espiritual. Abordaremos algumas coincidncias entre
a sua vida pessoal e a sua artstica, seus fantasmas pessoais e a plausvel influncia deles
na sua mise-en-scne. O subjacente encontro com seu verdadeiro pai no papel do espectro
de Hamlet-pai.
No terceiro captulo abordaremos a identificao Hamlet-Craig e as suas
consequncias. Entre elas, a possvel toxicidade dessa relao. Analisaremos esta
produo de Hamlet em face teoria do monodrama proposta pelo simbolista russo
Nikolai Evreinov. O conceito do ber-marionette, arcabouo da teoria da atuao de
Craig, mais de um sculo aps a publicao de The Actor and the ber-marionette,
continua sendo um desafio hermenutico. Neste sentido, provvel que resida a o que h
de mais fascinante no estudo de Craig, no s pela importncia do aparente absurdo em
propor a desumanizao e/ou despersonalizao do ator, com tambm, a existncia de um
vasto campo de estudos ainda a ser descoberto. O ber-marionette como projeo
psicolgica.
No ltimo captulo, examinaremos o contexto simblico da produo de Craig e de
Stanislavski para o TAM e de que forma Craig trouxe lume o irreal, atentando para o
27
modo com o qual ele lidou com as foras ocultas e suas representaes. Nessa
perspectiva, refletiremos sobre a possiblidade de uma aliana entre a esttica de Craig e o
teatro como experincia mstica, i. e., a tentativa de comungar o esttico ao mstico da
significao simblica atribuda aos elementos da cena, principalmente em seus aspectos
visuais.
Na concluso deste trabalho, apresentaremos um resumo das principais
observaes constatadas a partir da investigao das hipteses, enumerando as percepes
decorridas do percurso e traando apontamentos para a continuidade da pesquisa.
28
29
1 A VISUALIDADE CNICA: AS INOVAES DA MONTAGEM
HAMLET
1.1 Um ambiente simblico
O final do sculo XIX, a transio ao Modernismo e o fim do Romantismo no foi
uma natural e suave transformao; na filosofia, o pensamento metafsico da Europa
niilista foi aquele que promoveu a transformao de uma filosofia da teoria da retrica (e
lgica) para uma teoria da esttica. O niilismo que tem Friedrich Nietzsche (e seu
antecessor Schopenhauer) como corifeus, levou ao extremo esta viso ao propor que
somente como fenmeno esttico a existncia e o mundo se justificariam, i. e., o
Simbolismo como fenmeno esttico alado condio de ideologia. Na Inglaterra, o
trabalho de Nietzsche era revisto em algumas publicaes sofisticadas envolvidas em
novas tendncias da arte, como The Speaker e The Savoy e, ainda, figuras com Arthur
Symons formulavam noes em paralelo com os alemes. Gordon Craig subscreveu tais
teorias e tornou-se partcipe do movimento Arts and Crafts e junto a Hubert von
Herkomer, que com suas experimentaes ligadas luz e a mise-en-scne, foi decisivo na
expertise que Craig tinha desenvolvido e aparentemente nunca creditou de forma devida.
Os yellow nineties (como foi conhecida a dcada de 1890 pelos artistas britnicos)
foi a poca conhecida como da eterna transio, na qual, tudo era novo: art nouveau,
New Journalism etc. Esta transio deixava a era Vitoriana para trs e conduzia ao
Modernismo. Nesses anos noventa amarelos articulou-se na Inglaterra a noo da
vontade de poder (ou de potncia) que Nietzsche concebeu e desenvolveu,
transfigurando-se nos meios vanguardistas como vontade de estilo, de criar (ou de
design); concepes estticas que nortearam o aprimoramento cnico de Craig.
Na Alemanha, o poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) escreveu em 1898 dois
artigos em que propunha um drama mais concentrado, mais penetrante e no mesmo
ano, Johannes Schlaf (1862-1941), um dos pioneiros do naturalismo, escreveu Von
Intimen Theater, em que propugnava ser a essncia do teatro moderno uma passagem
para a ao interna, a psicologia dos personagens comeava a ter importncia e no s o
exterior, suas aes. No mesmo perodo, Sthphane Mallarm na Frana discordava de
Wagner quanto ao protagonismo da msica na sua obra-de-arte-total (sntese de vrias
30
formas de expresso artstica). Para o poeta, em suma, seria a poesia o verdadeiro
elemento unificador da obra de arte. Theodor de Wyzewa entendia que um drama lido
parecer s almas sensveis mais vivo do que o mesmo drama encenado num palco por
atores vivos" (1886, p. 102). Mesmo sendo um visionrio, Craig foi um produto da sua
poca, do seu momento histrico; sua viso pessimista e niilista, herana direta do
pensamento de Schopenhauer e da decadncia de Nietzsche. Neste singelo panorama
sobre os primrdios do Simbolismo no teatro (e em Craig) sugere-se que o criador do
ber-marionette no foi um homem de teatro isolado e hostil s ideias de seu tempo. A
sua inventividade e pensamento foram resultado de um mundo que efervescia,
principalmente no quartel final do sculo XIX e incio do sculo XX. O Simbolismo
eclodiu sufocado pelo positivismo, o Realismo, e pelo darwinismo naturalista. Em funo
da Realpolitik de Bismarck, a Europa tinha se tornado um barril de plvora, onde as
relaes de poder pelos Estados solapavam qualquer possibilidade de conduta moral.
Como toda expresso genuna de seu tempo, o Simbolismo subliminarmente se antecipou
s convulses sociais e aos grandes conflitos armados que aoitariam o velho continente.
Em contra-partida, muitos crticos entendiam o Simbolismo como uma fonte de fuga,
escapismo e obscuridade. No teatro, seus detratores o chamavam de teatro dos contos de
fada. Outros ainda, acusavam-no de covardia por sua reiterada recusa em enfrentar a
dura realidade daquele perodo; os simbolistas se defendiam: para eles no se tratava de
fuga da realidade, o Movimento reconhecia o que o real, porm era a sociedade
desconectada, que no queria, ou no entendia o significado deste Movimento. Notvel
documento artstico, o Manifesto Simbolista de Jean Moras trazia em seu bojo, como ele
mesmo disse, os fundamentos de uma teoria simbolista; nele contestou:
A acusao de obscuridade lanada contra tal esttica pelos leitores com
porretes na mo nada tem de surpreendente. Mas o que fazer? As Odes Pticas
de Pndaro, o Hamlet de Shakespeare, a Vida Nova de Dante, o Segundo Fausto
de Goethe e a Tentao de Santo Anto de Flaubert no so tambm ambguos?
(MORAS, 1886, p.1-2, traduo nossa).
O Simbolismo no atuava como denncia social, mas como escape de uma
realidade sufocante. No se recusava a enfrentar a realidade, quer o seu lugar na arte,
respirava outros ares e tinha a intuio como fonte de conhecimento, no s a razo.
A situao poltica russa-czarista no limiar do novo sculo XX se agravou, e
muito, no tabuleiro expansionista asitico. Neste cenrio, a Rssia sofreu um duro revs
31
ao se envolver num conflito armado diante do Imprio nipnico, num confronto em que o
Japo vencedor foi reconhecido como potncia militar. Essa foi a primeira grande guerra
do sculo XX (1904-1905). A partir da, Nicolau II desgastado e desacreditado pela
populao enfrenta diversas revoltas inclusive a dos marinheiros do encouraado
Potemkin, transformado em cone do cinema sob a direo de Sergei Eisenstein (1898-
1948), aluno de Vsevolod Meyerhold, o qual, por sua vez, aluno de Stanislavski (1863-
1938).
1.2 Literatura
Num paradoxo, Craig acreditava que Hamlet no poderia ser encenado. Para ele, a
literatura e os dramaturgos deveriam se manter distantes do teatro. plausvel que
pensasse dessa forma levando em conta que Shakespeare, Ibsen e Tchekov, por exemplo,
eram dramaturgos reconhecidos como autores de obras consideradas de alta literatura e,
por bastarem a si mesmas, auto-suficientes, seriam redundantes quando superpostas
cena. Para Craig, obras dessa estirpe, deveriam ser consideradas poemas dramticos (para
serem lidos), diferentemente do drama que deveria ser encenado (CRAIG, 1963, p. 160).
Da mesma forma, o teatro simbolista, imagtico por excelncia, no seria sincrtico com
a imensido de signos poderosos insertos nas grandes obras teatrais. Despojada da
literatura, a concepo de cena que Craig buscava tinha no encenador o novo dramaturgo;
o verdadeiro artista, mesmo no sendo um criador, seria necessariamente um meticuloso
regente em seu mister; comporia o espao cnico, daria forma na exata medida entre o
trabalho do ator (este necessariamente subordinado quele) e a luz, a msica, a mise-en-
scne, dando unicidade (de nico) e unidade (de uno) realizao teatral. A procura de
Craig por novos caminhos cnicos evidenciava a subordinao de todos os elementos da
cena a uma viso artstica nica. A do encenador-diretor, o nico rgisseur envolvido na
inteireza da produo teatral. Richard Wagner pensava da mesma forma, como podemos
constatar, quando disse, que
Uma pea teatral s pode ser bem concebida, bem construda, bem dialogada,
bem ensaiada e bem interpretada sob os auspcios de um nico homem que
tenha o mesmo gosto, o mesmo julgamento, a mesma mente, o mesmo corao
e a mesma opinio (WAGNER, 1871-72, p. 473).
Por mais que a abordagem wagneriana recaia sobre a fora da msica, esta no a
nica fonte de inspirao para Craig. Patrick LeBoeuf (2014, p. 404) entende ser outro o
32
motivo de no se encenar Hamlet, para LeBoeuf, Craig entendia que Hamlet seria
montado por algum tempo ainda, mas o teatro no deveria repousar para sempre sobre
uma obra dramtica e, sim, performar obras que seriam de sua prpria arte. Sua matria-
prima seriam os prprios elementos da cena. (CRAIG, 2009, p. 75-6).
1.3 O confronto
Em Minha Vida na Arte, livro-sntese de sua obra artstica, Stanislavski escreveu
num tom sombrio: -A veio uma nova desgraa! (1989, p. 464); imprevistos
aconteceram e nem por isso tirou o brilho dessa produo ousada, mesmo assim, deve-se
reconhecer que o confronto entre ambos existiu, como, por exemplo, nos ensaios,
Stanislavski lia algumas cenas para Craig de diversas formas, com diferentes modos de
interpretao: a russa realista, a declamatria, a moderna e etc. Craig implicava e no
gostava de nada. Porm, ponderou Stanislavski que Craig desejava, como ele, a perfeio.
O ingls rejeitava e protestava contra o convencionalismo, da mesma forma contra a
naturalidade e contra a simplicidade que privava da poesia a interpretao
(STANISLAVSKI, 1989, p. 465).
Nos arranjos preliminares de Hamlet no TAM a presena de Craig em Moscou
obliterou tudo o que tinha sido feito antes, seja na mise-en-scne de Vladimir Egorov
que fora designado pelo Board do TAM para executar um plano B caso Craig falhasse-
seja no que Stanislavski tinha pr-ensaiado, o que se tornou, em certa medida, intil.
Porm, nem tudo o que Craig sugeriu foi incorporado cena, principalmente no que toca
ao modo de atuao dos atores do TAM. Estes, por sua vez, no conseguiram se
desvencilhar daquela interpretao calcada na interioridade, na sutileza psicolgica, longa
manus da tcnica de Stanislavski. Porm, quando da abordagem dos fantasmas,
Stanislvaski se viu numa situao, no mnimo incmoda, para que pudesse viabilizar
cenicamente o espectro-sombra (Hamlet-pai). Afirma Laurence Selenick (1982, p. 40)
que os atores do TAM, nas cenas que continham aspectos anti-naturalistas, eram
orientados por Stanislavski a fazer uso da experincia interna e o ator que fizesse o
espectro deveria salientar as habilidades comuns dos atores, i. e., no se exigia
virtuosismo ou aptides especiais. E era tudo isso que Craig no queria. Quando a pea
requeria o uso do irreal, Stanislaviski, por mais que fosse um mestre consumado, parece
que ficou num beco sem sada. Esta situao veio muito a calhar para a abordagem de
Craig, no s pelo fato de o espectro ocupar uma posio proeminente dentro da obra,
33
como tambm, pelo fato de que h uma imposio de Shakespeare quando requer do
idealizador o manejo de um fantasma dentro da pea, simplesmente por que existe um
personagem-fantasma e isso dificilmente pode ser ignorado. Num dos interregnos dos
ensaios, de volta Inglaterra, numa espcie de devaneio, Craig escreveu para Stanislavski
dizendo que no queria nenhuma posio definitiva (no TAM), que estava disposio e
que Stanislavski poderia contar com ele como um mdico da famlia que poderia ser
chamado na hora da doena. (SELENICK, 1981, p. 31). Essa audcia de Craig pode ser
verificada tambm no trabalho de David Tutaev: Gordon Craig Remembers Stanislavsky:
A Great Nurse.
1.4 Miss D.
Stanislavski, na sua obra Minha Vida na Arte, trabalho-sntese de sua trajetria
artstica e humana, discorre acerca de seus trabalhos, sua tcnica e consideraes
estticas. Enfim, uma vida na arte. Um de seus captulos tinha como ttulo: Duncan e
Craig. Nele, incluiu ambos no mesmo patamar. Da pode-se ter uma ideia do respeito e
considerao que o mestre russo tinha por Isadora Duncan. A coregrafa e bailarina
estadudinense foi personagem indispensvel para a realizao de Hamlet no TAM. Miss
D, como Craig rubricava as cartas endereadas a ela, foi sem sombra de dvida a fora
propulsora desse encontro antolgico. Dotada de inteligncia e ousadia, foi protagonista
dentro e fora da arte. Dentre as suas influncias, destaca-se a Grcia antiga (na figura 1
abaixo, Duncan na Acrpolis, Atenas em 1920). Inclusive foi acusada de se apropriar da
cultura grega para se auto-promover. Ela se defendeu asseverando que era instintiva essa
influncia e fora baseada em aspectos polticos e religiosos e no somente na esttica
grega. Sua persona oscilava entre ser uma sacerdotisa e uma revolucionria. Entre
1904 e 1907 percorreu vrios pases, entre eles, Grcia, Russia, Alemanha e
Escandinvia, perodo em que trabalhou com Craig e Stanislavski.
Figura 1: Uma Helena de Craig
34
Fonte: Internet, acesso em 02/11/2017, disponvel em https://theredlist.com/wiki-2-24-525-770-943-view-1910s-3-
profile-isadora-duncan.html
O encontro de Craig com Isadora Duncan em 1905 foi decisivo para ele, aquilo
que faltava para atingir um novo patamar de entendimento para a sua Arte. Nascida nos
Estados Unidos da Amrica do Norte, Duncan teve que enfrentar o fato de que o ballet
estadunidense no tinha qualquer reconhecimento artstico naquela poca na Europa;
danava quase sempre sozinha, sem sandlias ou sapatilhas; sua arte desnuda chamou a
ateno -e tambm chacota, nos centros culturais europeus. Ela foi para Craig, aquilo que
ele entendeu como expresso direta da imaginao; o contato com a arte de Isadora fez
com que entendesse o que a Verdade e -por consequncia, na lgica de Craig- o Belo.
Duncan, com a graa do seu movimento, a pausa e o silncio majestoso, tornava a fala e o
som desnecessrios. Depois, em suas memrias, Craig disse que ela tinha entendido
muito bem o silncio dele (CRAIG, 1957, p. 262). Consagrada, afianou Craig junto a
Stanislavski (e direo do TAM); usou inclusive mtodos de persuaso no-
convencionais a favor do seu amado, uma ao arriscada, diga-se de passagem, tratando-
se de Craig, no pelo seu talento artstico, que inequvoco, mas, sobretudo pelo seu
temperamento irascvel, fonte perene de problemas.
O ano de 1908 foi excepcional para Craig, estava ele em contato para arrendar o
Anfiteatro Goldoni em Florena para ali concretizar um antigo sonho: uma escola. Nesse
nterim, duas propostas estavam sendo entabuladas: fora convidado por Max Reinhardt
(para encenar King Lear em Berlim); simultaneamente, houve uma indicao de que ele
seria convidado a encenar Macbeth em Londres, uma proposta vinda do poderoso Herbert
Beerbohm Tree. E, se no bastasse, um telegrama de Isadora transmitindo o convite para
dirigir Peer Gynt (Ibsen) no Teatro de Arte de Moscou (TAM); a partir deste momento
at a assinatura do contrato de para Craig dirigir Hamlet no faltaram alguns ingredientes,
35
indigestos at, tendo Craig protagonizado momentos constrangedores, meses de tratativas
em que no faltaram oportunidades onde Craig teria sido ora atrevido, ora um amador
maquiavlico (SELENICK, 1982, p. 14, traduo nossa).
1.5 As tcnicas
Em suas memrias, Stanislavski reconheceu e agradeceu a atitude eminentemente
artstica da direo (Board) do Teatro de Arte de Moscou pela escolha de Craig pois este
impulsionaria o TAM depositando novos fermentos espirituais (STANISLAVSKI,
1903, p. 453). Ele, um mestre consumado abriu as portas do seu teatro Craig (e sua
ideias), to diferentes das suas.
Figura 2: Rosencrantz e Guildenstern
Fonte: Selenick, 1982, p. 163. Disponvel tambm pela internet, no endereo
https://www.questia.com/read/28404431/gordon-craig-s-moscow-hamlet-a-reconstruction, acesso em
02/01/2018
Na figura 2 acima, pode-se ter uma ideia da atuao dos atores sob a batuta de
Stanislavski. O renomado mestre entendeu que a sua tcnica tinha atingido determinado
patamar e estaria apta a enfrentar as peas do repertrio clssico. As dissonncias entre
ele e Craig no foram o bastante para ofuscar a excelncia do resultado final. Os ensaios
tiveram incio em maro de 1909, evento que muito municiou a imprensa da poca, o que
acabou por bem documentar o projeto desde o incio. Os dois mestres analisaram linha a
linha, cena a cena, todo o texto. Inclua-se a conversaes acerca da iluminao, som e
marcao de atores. Assumindo seu perfil de designer, Craig logo se imiscuiu na
montagem de uma rplica do palco, onde atores e atrizes eram meticulosamente
estudados, suas posies, o movimento, linhas, profundidade. Os trabalhos foram
36
divididos, Craig como encenador e Stanislavski e Sulerzhitsky (Suler) na direo dos
atores. Craig no facilitou as coisas, de forma infantil se recusava a assistir aos ensaios
dos atores porque nada poderia modificar, somente exigiu que presenciasse o produto
final do trabalho.
A tcnica de Stanislavski baseada no realismo, na absoro completa do ator pelo
seu personagem, como tambm, na interioridade, a emoo que independe da vontade,
enfim, na ascenso do psicologismo e da Memria Emotiva. Nesse estgio da sua
concepo cnica -tendo sempre os atores como protagonistas- e de posse desse
manancial, Stanislavski entendeu que a sua tcnica poderia alar novos voos, como o
repertrio clssico. Os encontros entre ele e Craig foram pontuados por tentativas, cada
qual sua maneira, de influenciar o projeto. As dissonncias no foram poucas, uma
relao conflituosa em que no faltaram combinaes, desentendimentos, aproximaes
que culminaram num Hamlet histrico. Sntese dialtica de dois gnios da cena teatral, o
resultado foi um trabalho seminal que evolucionou o teatro moderno; impactou e criou
uma rede de discusses apaixonadas, sejam daqueles que defendem uma abordagem
realista, sejam outros que advogam um enfoque que tem como matria-prima o smbolo.
Em seu enfoque, Craig queria que os atores pouco se movimentassem, deixando que o
poder da poesia flusse do texto, inclusive seus sentimentos; entendia que o excesso de
movimento seria redundante, seja pela fora do texto, seja pela fora dramtica da pea de
Shakespeare. Stanislavski se contrapunha, seus atores deveriam acompanhar o palpvel
da emoo sugerida pelo texto. Para Craig, o texto de per si j caracterizava, demonstrava
o estado emocional que deveria nortear a atuao, sendo desnecessrio acrescentar outros
estados psicolgicos. O embate maior, como no poderia deixar de ser, ocorreu no que
toca performance de Hamlet. Para Stanislavski ele era um cruzadista, um soldado, ora
voluntarioso, ora inerte. Para Craig, Hamlet era um conceito, um princpio espiritual em
luta contra tudo e todos. Porm, ambos tinham o mesmo escopo no que toca unidade na
concepo cnica. Para Craig, os arranjos espaciais de cada cena eram um correlativo do
estado psicolgico de Hamlet, uma extenso dos seus pensamentos, plataforma para a
progresso dramtica em que ora retesava, ora transformava. Nesse nterim, detratores de
Stanislavski o acusavam de ter abolida a imaginao em favor da Memria Emotiva e de
todo o suporte que a sua tcnica enseja. Crticas injustas, pois Stanislavski juntamente a
Franois Delsarte, mile Jaques-Dalcroze e Gordon Craig tem em comum serem
considerados os pioneiros na pesquisa do universo do ator, no s pela originalidade das
37
suas ideias, mas, sobretudo, pelo distanciamento de um histrionismo que imperou at o
final do sculo XIX. O mestre russo poderia ser acusado por vrios motivos, menos de
que ele seria um inimigo da imaginao dos atores.
Para Craig, o uso das convenes, de uma artificialidade elevada e austera a
marca da atuao de seus atores, sempre subjacente mise-en-scne e ao encenador. Pesa
sobre Craig, o fato de ter sido muito pouco posto prova o que ele pretendia, seja para
seus atores, seja para a sua concepo cnica. Nem mesmo no Hamlet do TAM, no que
toca tcnica de atores, poderia ser considerado o que ele, efetivamente, queria. A
msica, na tcnica de Craig, tem uma importncia capital no desenvolvimento de seus
atores, esta que um dos pilares do Simbolismo e, por certo, o elemento mais marcante
dessa corrente artstica. O uso sistemtico da msica tem ntima ligao com o fato de
qu, para Craig, o ator deveria trabalhar com o vetor de fora para dentro e no o
contrrio, como defendia Stanislavski, e que a interpretao seria o resultado direto do
senso de observao e a habilidade em traduzir suas percepes num padro simblico de
movimento. No Hamlet em Moscou, Craig defendia a ideia de que os atores deveriam se
apropriar do tom de toda a mise-en-scne e desenvolver os seus personagens a partir
deste conceito, como tambm, por meio da sua voz e do seu movimento. Craig ainda
observava que os atores deveriam representar e interpretar e, por ltimo, criar. Isto
significaria o retorno ao estilo. Craig defendia que, inicialmente deveriam atores e atrizes,
abdicar de todo histrionismo convencional-imitativo e toda a sua energia deveria estar a
servio da viso artstica do encenador, o nico absolutamente livre para criar. Craig
pleiteia generosidade por parte dos atores e atrizes, deixar de lado suas personas em prol
de algo maior, a obra em seu conjunto, assimilar a ideia de serem instrumentos, unidades
de algo maior, em favor da arte.
1.6 Simbolismo
Movimento ligado ao teatro, literatura e s artes plsticas, surgiu no final do
sculo XIX; Movido por ideais romnticos, deitou razes na literatura, no teatro e nas
artes plsticas. Na Frana, a partir de 1881, poetas, pintores, dramaturgos e escritores em
geral so influenciados pelo misticismo advindo do orientalismo nas artes, filosofia e
religies daquela, poca, longnqua regio. O Movimento simbolista era eminentemente
individualista. Cercado de uma secular espiritualidade, foi considerado decadente,
refratrio lgica e razo. O Transcendentalismo foi outro elemento distintivo dessa
manifestao artstica, focando no imaginrio e na fantasia, valendo-se muito mais da
38
intuio do que a lgica e da razo, desenvolveu-se principalmente em solo estadunidense
nos primrdios do sculo XIX; o Transcendentalismo no se inscreveu como movimento
artstico e, sim, como filosofia do ser, no propriamente uma filosofia ontolgica, mas
como ideias e abordagens conectadas ao transcendentalismo kantiano, uma espcie de
hiperrealidade instintiva. Diferentemente, o Realismo, ao qual Stanislavski pertencia, foi,
por sua vez, uma reao ao Romantismo, este que tinha seu arcabouo no real, primando
pela excelncia de um perfeito mimetismo, em ilustrar fielmente a realidade. Sob o manto
da poltica russa do perodo do incio do sculo XX, sua abordagem tinha como objetivo
reproduzir com especial esmero a realidade do povo, sem falsear, sem mistificar.
A noo de musicalidade era uma caracterstica marcante do Simbolismo e da sua
esttica. Fundamental no Simbolismo foi a sugesto e no a declarao formal, direta ou
explcita; o importante era sugerir por meio das palavras e das ideias, sem nomear
objetivamente os fenmenos do ser-no-mundo, a sua realidade. A base da cena a que
Craig visava era visceralmente oposta cena realista, entendia ser essa corrente artstica
com o grmen da Revolta (sic), a traidora da imaginao; para ele, os realistas instigavam
e idolatravam a fealdade, falseando a realidade (CRAIG, 1913, p. 90, traduo nossa).
Para Craig, um smbolo um sinal visvel de uma ideia (apud EYNAT-
CONFINO, 1987, p. 192). Este conceito de smbolo sugere ter sofrido influncia direta de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o qual afirma que o
Simbolismo transforma o fenmeno em ideia, a ideia numa imagem, de tal
modo que a ideia permanece sempre infinitamente eficaz e inacessvel e, ainda
que pronunciada em todas as lnguas, fica todavia inexprimvel. (GOETHE,
Maximen und Reflectinem, 2015).
O movimento simbolista foi uma reao ao Naturalismo, considerado uma exacerbao
do Realismo. Naquele, o darwinianismo sugeria contornos eugnicos, a fora da
hereditariedade e a teoria evolucionista (e a seleo natural) eram seus pilares. Darwin,
Hippolyte Taine, Auguste Comte e principalmente mile Zola foram seus nomes
proeminentes. O romance Germinal de Zola foi considerado o manifesto literrio do
Naturalismo, seu autor mergulhou profundamente no universo em que se inseriu a
narrativa, Zola passou um perodo de dois meses vivendo entre os mineiros; coexistiu,
sentiu na carne a sua realidade. Vis interessante no movimento naturalista, alm da
seleo natural, o ertico e a violncia serem considerados elementos naturais e atvicos
39
da experincia humana, da sua constante presena em toda temtica naturalista. No
teatro, o naturalismo exerceu mudanas marcantes, com o surgimento do diretor, do
cengrafo e do figurinista. At ento, o prprio ator escolhia suas roupas, um nico
cenrio era usado para diversas montagens, e no estava definida a posio do diretor
como coordenador de todas as funes, havia, no mximo, um diretor de palco.
No mbito teatral, W. B. Yeats e Gordon Craig so os grandes pensadores do
movimento simbolista. Para Craig, o ofcio do ator estaria estreitamente ligado a uma
permanente interpretao imaginativa, sua fonte estaria no submerso, na alma, e deve ser
revelado e forjado por meio de smbolos que teriam a aptido de revelar sem ostentar,
uma via direta com a alma. A convocao seria pelos sentidos e no atravs deles.
Profundamente mstico, Willian Butler Yeats, poeta-dramaturgo irlands, critica o
realismo, pois este perdia-se nas externalidades, em escritas pictricas, em pinturas de
palavras, na opinio, na declamao, ou como j se disse, construir em tijolo e massa e
coloc-los dentro de uma capa de livro. Yeats admirava a dignidade, a vastido da cena
proposta por Craig, como tambm reescreveu algumas de suas peas devido influncia
de Craig, entre elas: The Hour-Glass e The Deliverer. Para Yeats, as escritas simblicas
eram mais fortes que metforas, porque estas no tinham o poder de emocionar, no eram
profundas o bastante para comover, quando no eram smbolos. Fez uso frequente,
tambm, de elementos de evocao, da sugesto prpria do simbolismo.
1.7 Screens
Craig influenciou sobremaneira a cena: a inveno dos screens, crans ou biombos
matizados de forma neutra que, com sua mobilidade, seriam usados numa cena
representacional no-realista e anti-naturalista. Os cenrios teatrais, na poca de Craig,
sugeriam, ou tentavam ilustrar a representao, exigindo muita boa vontade dos
espectadores, sugerindo simulacros da vida real, a representao naturalista-realista pouco
acrescentava no plano artstico, tampouco se exigia do pblico, exceto aceitar como
verdadeiro teles onde se pintavam castelos, montanhas e vales. Instigando o espao
cnico, criando volumes, valorizando a profundidade, a tridimensionalidade, os biombos
de Craig alam a mise-en-scne a um novo patamar; com os screens, Craig entendia ter
descoberto uma das Unidades do Drama Grego. Estas eram as diretrizes ou regras
bsicas para a composio de uma tragdia desenvolvidas por Aristteles, para ele, estes
eram os elementos fundamentais para se compor uma obra dramtica. Na Unidade de
40
Tempo, Aristteles entendia que uma representao teatral deveria desenvolver-se em um
curto espao de tempo, no mais que vinte e quatro horas, ponderava que as
apresentaes baseadas no tempo real capturavam a ateno da plateia, presentificando as
sensaes, tornando-as mais verossmeis. J com relao Unidade de Lugar, as
representaes deveriam se desenvolver num nico cenrio, evitando-se assim, que o
pblico se distrasse e perdesse o foco da ao. Os biombos de Craig teriam a aptido da
continuidade cnica; com eles, no se notaria uma ruptura de uma cena outra; haveria
ento, harmonia e suavidade, como tambm, um sentido de variao. No vis da
praticidade, no se pode esquecer o elemento espao-tempo, pois era prpria da
maquinaria poca de Craig que determinados cenrios demandavam at vinte minutos
para serem trocados, muitas vezes necessitando de um intervalo para sua troca que,
mitigariam o fluxo dramtico e/ou causariam um distanciamento e/ou dficit de ateno
dos espectadores, em detrimento da prpria ao dramtica, fato que no aconteceria com
o manuseio dos screens.
1.8 A luz cnica como viso espiritual
A concepo cnica de Gordon Craig era simples, despojada e eficiente; para ele, a
cena naturalista impunha a tarefa de transformar a cena numa infinidade de objetos
cnicos que pretensamente evocariam o real, transformando, s vezes, o palco numa
espcie de museu. Para Craig era primordial suprimir o que havia de obsoleto na mise-en-
scne. O naturalismo, facsimile da natureza, sugeria um desdm para com a imaginao,
refratava-a, subestimava a capacidade criativa do espectador; neste contexto, restringia-se
o espao para a inveno, para a poesia. Na nsia pela autenticidade, o Naturalismo tendia
a copiar, a replicar, diminuindo assim, um possvel contedo simblico. Designer por
excelncia, Craig desenvolveu uma arquitetura que insinuava um prolongamento, um
continuum espacial; luz, linhas, cores em coeso e harmonia com o espao cnico: um
ambiente simblico. A iluminao cnica de Craig teve com a produo de Dido and
Aeneas um salto de qualidade at chegar ao znite da sua concepo artstica: Hamlet.
Sntese do seu impacto, Scott Palmer anota a respeito da revolucionria iluminao em
Dido and Aeneas (maio de 1900) sob a direo de Craig:
[...] Por inexistir as luzes da ribalta, os atores pareciam menos artificiais. As
telas laterais iluminadas de Herkomer, fixadas a dois ou mais metros frente do
pano de fundo, tinham alcanado uma tal profundidade de cor que Craig jamais
tinha visto antes; pois s tinha conhecimento das telas pintadas que eram
41
usadas em cenas de pantomima. Decidiu que, qual fosse o motivo, usaria telas
tambm, com luzes laterais de diferentes cores. O resto da sua iluminao viria
por cima do proscnio (PALMER, 2012, pp. 2-3, traduo nossa).
Figura 3 : Set
Fonte: Internet, acesso em 05/02/2018, disponvel no endereo
https://progenytheatre.blogs.lincoln.ac.uk/2013/02/07/artistic-influences/
Na figura 3 acima, outro set desenhado por Craig, nota-se a preocupao com a
verticalidade, a perpectiva, a profundidade da cena. A iluminao de Craig, sob a
influncia de Herkomer, ao qual fazemos meno abaixo, fez uso de iluminao lateral,
subtraiu as luzes de ribalta, como tambm, fez uso da gaze (light gauzes) com efeito
similar ao tule, gerando excelentes efeitos de transparncia e dotada de grande
sensibilidade luz.
1.9 Influncias
Hubert von Herkomer foi um multitalentoso artista: pintor, compositor, msico,
diretor teatral e tambm um dos pioneiros na direo de cinema; alemo, de origem
bastante humilde se fixou em Bushey, interior da Inglaterra, onde possua um estdio. A
privao material que ele e sua famlia passaram repercutiu manifestamente em sua
concepo artstica, tornando-se um ferrenho defensor do realismo; sua obra tem a marca
do humanismo; em 1907 tornou-se cavaleiro por Edward VII. Craig frequentou
assiduamente seus cursos e experimentos e por mais que tenham abordagens artsticas
42
diferentes -Craig era um ps-impressionista- a sua influncia foi inegvel. Nos seus
trabalhos posteriores, principalmente Dido and Aeneas, Craig evoluiu substancialmente
tanto quanto cenografia, como tambm, na iluminao.
Outro nome proeminente no estudo da cena foi o suo Adolphe Appia. Ele e Craig
fizeram parte do New Stagecraft Movement, entretanto, nunca trabalharam juntos e o
contato pessoal foi quase nenhum, exceto, ocasionalmente por cartas nas quais teciam
consideraes recprocas sobre suas concepes artsticas. Craig se concentrava no
impacto visual da sua mise-en-scne enquanto Appia investigava o equilbrio entre a
tridimensionalidade do corpo do ator e a antinomia deste com o cenrio bidimensional.
Para Appia, o ator era o elemento proeminente da sua abordagem artstica. Em Craig, o
ator era um componente, uma unidade pictrica subserviente que deveria ser substituda
pela metfora do ber-marionette. Concordavam no fundamento de que a plasticidade e a
luz andavam lado-a-lado, foi o que se convencionou chamar Teoria da Plasticidade.
Ambos foram sinnimo de alto design, tecnologia e modernidade na cena teatral. Appia
tinha uma viso parecida com a de Craig no que toca ao Simbolismo onde, por meio da
msica, o corpo humano vivo se desfazia do acidente da personalidade e tornava-se um
instrumento para a expresso. As produes opersticas e teatrais contemporneas -
principalmente nas peras de Richard Wagner- so caudatrias da contundncia
expressiva de Appia.
Na formulao de Craig, havia uma tentativa de reelaborar o conceito wagneriano
de teatro como obra de arte total (gesamtkunstwerk), abordagem bem conhecida que
estabelece a fuso da msica, da cenografia, da iluminao, da dana, da pintura e da
representao dramtica. Em Da Arte do Teatro (1963) Craig formulou uma associao
entre sinestesia (uma espcie de cruzamento sensorial) e a gesamtkunstwerk. No
entanto, a concepo de Craig no se confundia com a de Wagner, pois fundamentava-se
na integrao dos elementos que compunham a cena, i. e., luz, linhas, palavras, gestos,
smbolos, mise-en-scne etc., e no a incorporao de diferentes modos de produo
artsticas. Para Richard Wagner a arte um ato vital, expresso do ser, da mesma forma
que o ser expresso da natureza. Arte que se revela no impulso que instiga a vida para a
arte. Indicativo em que emerge o inconsciente, primado simbolista (apud SYMONS,
1907, p. 233).
43
A luz cnica na concepo de Craig sofreu influncia tambm do Wayang (ou
Wajang), uma forma de representao de formas animadas encontradas no sudeste
asitico, em especial, na Indonsia. um teatro de sombras com bonecos (figura 4
abaixo); em seu repertrio encontramos tesouros do cnone hindu como o Mahabharata e
o Ramayana e tambm textos com abordagens fundadas no mito. O manipulador
(Dalang) um artista e uma autoridade espiritual. No Wayang kulit (espcie de Wayang
com figuras produzidas em couro) tradicionalmente o espetculo comea s nove da noite
e termina s cinco da manh. Anota Sangga Sarana Persada que as histrias tem ndole
moral: a honestidade e a verdade contra o mal, como tambm, escolher de acordo com
suas crenas e a purificao da alma (1997-2000). Para Sruti Bala, o interesse de Craig
neste tipo de teatro estava adstrito tecnologia desta arte (BALA, 2012, p. 93).
Figura 4: Ramayama
Fonte: Internet, disponvel em https://creators.vice.com/en_us/article/z4qeza/traditional-indonesian-theatrical-
wear-for-the-3d-printed-age, acesso em 09/12/2017. Foto de Rebecca Marshall sob licena de Attribution-
ShareAlike 2.0 Generic.
1.10 O espao total
Craig planejou uma performance da Paixo de So Mateus de Bach sob a gide
fascista. Christopher Innes (1998, p. 137) entende que foi mais por oportunismo do que
por engajamento, porm Craig mais do que simpatizou com os Movimentos totalitrios;
certa feita, portou uma mensagem de Goebbels a Erwin Piscator e em busca de patrocnio
encontrou-se com Mussolini, momento de tristeza por no ter Il Duce reconhecido-o
https://creators.vice.com/en_us/article/z4qeza/traditional-indonesian-theatrical-wear-for-the-3d-printed-agehttps://creators.vice.com/en_us/article/z4qeza/traditional-indonesian-theatrical-wear-for-the-3d-printed-age
44
imediatamente... Para Olga Taxidou, Mussolini criaria um grande imprio que inspiraria
um grande teatro e Craig, o seu nome maior (TAXIDOU, 1991, p. 169).
1.11 A sombra como expresso
Em 1876, em Bayreuth, templo artstico de Richard Wagner, devido a um
problema tcnico durante a pera Rheingold o pblico foi imerso na escurido. Um clima
de desorientao circundou a plateia; nesse momento, Wagner percebeu a potncia do
lgubre como fora expressiva tal e qual a luz. Neste contexto, o jogo luz-sombra tornou-
se eloquente. A partir dessa influncia, Craig (como Herkomer) no se intimidou mais em
mergulhar seus atores na escurido, esta, como ideia, conceito que atingiu envergadura
com o expressionismo, que pode ser facilmente percebido quando assistimos o filme-
referncia deste movimento: O Gabinete do Doutor Calegari (Das Kabinett von Dr.
Caligari, Alemanha, 1919), direo de Robert Wiene, considerado um dos filmes
clssicos do cinema expressionista, ao lado de Nosferatu (1922) e Fausto (1926).
Na montagem de Hamlet, os mantos dourados do rei e da rainha pendiam desde os
ombros cobrindo quase toda a largura do palco, uma metfora para o poder e a riqueza.
Apontou Stanislavski que esse fato produzia um mar dourado com ondas douradas e a
luz empregada por Craig era embaada, enevoada, dando um efeito extraordinariamente
sinistro, pois o manto s brilhava parcialmente, disse ele: Imaginem o ouro coberto por
um tule negro (STANISLAVSKI, 1989, p. 459). Em Hamlet, a baixa luminosidade, sob
Craig, adquire expresso, a sua debilidade cria uma metfora da fragilidade, fraqueza da
corte, mesmo com todo o seu ouro.
Figura 5: A sombra
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Fonte: Internet, acesso em 09/12/2017, disponvel em https://archive.org/details/cu31924026417984
Craig absorveu e potencializou o conceito das sombras, fez com que o lgubre se
tornarasse uma grandeza. Na figura 5 acima, um estudo sobre os screens para o Hamlet
que Craig produziu em 1912. Nele, a insero das sombras ostensiva, dominadora
(CRAIG, 1913, p. 84). Uma espcie de tenebrismo, um spero contraste entre luz e
sombra. O chiaroscuro, o contraste entre luz e sombra exigem conhecimentos de
perspectiva, dos efeitos que a luz provoca nas superfcies, no matiz. reas lgubres
valorizam o estudo cromtico, a composio. Na pintura, Georges de La Tour, Rembrandt
e sobretudo, Caravaggio, so os grandes expoentes no uso das sombras, e talvez tenham
influenciado Craig.Abaixo, figura 6, uma obra-prima de Caravaggio retratando a priso
de Cristo. Stanislavski reconhece em que Craig,
Seu talento e gosto artstico encontravam expresso na combinao de ngulos
e linhas e na maneira de iluminar as salincias arquitetnicas com manchas e
raios luminosos (1989, p. 456).
Figura 6: Caravaggio
Fonte: Internet, acesso em 05/01/2018, disponvel no endereo https://www.nationalgallery.ie/taking-
christ-michelangelo-merisi-da-caravaggio
Craig em seu ousado projeto Scene, preconizou que a voz e a figura dos atores
poderiam ser substitudas pela luz, sombra, movimentos inumanos e... o silncio.
(INNES, 1998, p. 181). No Hamlet aps o solilquio ser ou no ser, Craig situou
https://pt.wikipedia.org/wiki/Georges_de_La_Tour
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Hamlet atrs de um tule e atrs dele uma enorme sombra se projetava. Os screens laterais
se moviam em volta dele e com ele, se projetavam sombras de diversos tamanhos, ora
dialogando, ora perseguindo Hamlet (INNES, 1998, p. 152, traduo nossa).
1.12 Dido and Aeneas
A temtica clssica grega-romana um tema recorrente em Craig. Entre as suas
primeiras produes Craig trabalhou com o mito em Dido and Aeneas de Henry Purcell
(1899-1900), Acis and Galatea de Handel (1902), depois, a History of Dioclesian tambm
de Purcell. No programa da pera Dido and Aeneas, Craig escreveu: no que se refere
aos detalhes, fui particularmente cuidadoso em ser descuidado, seu foco repousa na
concepo cnica, os detalhes eram inteis. O que atraia Craig ao drama grego sugere no
terem sido a singular maneira que o povo helnico retratava a realidade humana. Para ele,
os Gregos conseguiram captar uma pequena parcela do segredo do movimento; nesse
sentido, o uso imaginativo de como eles integravam a natureza com a cena, o movimento
do coro com o pblico e o movimento do sol sobre a arquitetura que movia os
espectadores. O movimento despontava atravs do olhar, ou ainda, o movimento se
desenvolvia concomitante ao olhar: a beleza incomparvel de se assistir um espetculo
que se desenvolve ao ar livre, o enredo, a narrativa move-se com a luz, as nuvens, enfim,
com a natureza (CRAIG, 1913, p. 8). Um simples feixe de luz, uma fresta, um
ngulo arquitetnico poderia ser um smbolo em si mesmo ou revelaria ou indicaria,
tornaria algo expressivo em particular. Os efeitos de luz e sombra valorizavam a
percepo do espao. A no-uniformidade da luz, a baixa intensidade luminosa amainava
os sentidos. Em sentido contrrio, a maior intensidade. Nesta poca, foram de grande
valia para o teatro a criao dos spotlights; passveis de regular o foco da luz, bem como
os obturadores, o direcionamento e a instalao distncia. No final do sculo XIX a luz
eltrica j era comum nos teatros, as luzes de ribalta e das gambiarras se utilizavam desse
recurso. Afirma Innes (1998, p. 22) que Craig, no incio de sua carreira, entendia a bi-
dimensionalidade dos sets como falsos, porm, a luz a gs, devido a sua suavidade,
desfocava o que se via, criando uma iluso que Craig muito apreciava, reforando a
perspectiva (trompe-l'oeil) e dando profundidade a cena. Afirma Innes que quando se
tornou comum nos teatros luz eltrica, Craig manteve muito do que ele aprendeu com
Henry Irving, seu padastro e renomado ator e empresrio teatral (INNES, 1998, p. 22). Na
figura abaixo, um croqui da revolucionria produo da pera Dido and Aeneas de Henry
Purcell. O engenho de Craig na posio dos holofotes, os diferentes planos, os degraus
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em que os atores, atrizes e cantores contracenavam; o lugar da orquestra, sugere uma
influncia da inveno e, tambm, um incipiente aperfeioamento do fosso da orquestra
do Bayreuth Festspielhaus (Teatro do Festival de Bayreuth) de Richard Wagner. Com o
fosso, a ateno do pblico direcionada totalmente para o que acontece em cena, por
mais que a msica esteja presente. Note na figura 7 abaixo em que o projetor G se
esquiva de iluminar os msicos, na inteno de faz-los imperceptveis, ou pelo menos
diminuir o foco neles; inclusive, sugere haver na figura um anteparo entre o pblico e a
orquestra. Outra inovao de Wagner foi a ruptura da estrutura semicircular da plateia,
hierarquizada. Em Bayreuth, a plateia inclinada para todos; generosa, democrtica e
eficaz na fruio artstica.
Figura 7: Ante-proscnio de Dido and Aeneas
Fonte: Internet, acesso em10/12/2017, disponvel em https://www.questia.com/read/1G1-198849225/herkomer-s-
legacy-to-craig-and-the-new-stagecraft
Sob Craig, a luz saa de lugar nenhum, circundava a cena num leitmotiv com
sutis mudanas, criava um qu de infinito com sua perspectiva; uma aura propicia para a
cena dos signos. Da apresentao de Dido and Aeneas, marco da iluminao cnica
moderna encenada por Craig, comentou-se:
Sob o efeito dessa luz, o fundo da cena torna-se profundamente azul,
aparentemente quase translcido, por onde o verde e o prpura criam uma
harmonia de grande encantamento. (PALMER, 2012, p. 2-3, traduo nossa).
Enid Rose (2011, p. 101) pontua que a cena de Craig para o Hamlet do TAM
possuia uma grandiosa simplicidade, a ao se irradiava sobre toda a cena; um lugar que
deixava a impresso do inefvel, algo difcil de descrever devido sua fora e beleza, um
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lugar que flutua alm do espao-tempo, pura abstrao. Para Rose, sentia-se a presena de
um trabalho original e que o elemento espiritual exortava o todo e cada uma de suas
partes. Da percebia-se a forma que o autor que dar a obra de arte do futuro, conceito que
Craig buscava incessantemente. Craig percrutava na prpria natureza, no movimento dos
animais, dos astros, elementos que pudessem de alguma forma contribuir para aquilo que
deveria ser til sua esttica. Em paralelo, num aparente paradoxo, procurava um mtodo
cientfico para se atingir a Beleza. Mesmo sendo um artista simbolista, no se esquivava
em usar elementos ligados ao real, sob o rigor do que se poderia mensurar, verificar
cientificamente. Para ele, a Beleza no significava somente harmonia, proporo ou
simetria mas, sobretudo, unidade; unidade de expresso, isto , estilo. Um design por
smbolos.
Figura 08: Dido and Aeneas
Fonte: Internet, acesso em 22/11/2017, disponvel no endereo https://www.questia.com/read/1G1-
198849225/herkomer-s-legacy-to-craig-and-the-new-stagecraft
Na figura 9, acima, um sketch de Craig para o terceiro ato de Dido and Aeneas;
aponta Richard William Pick para o evidente minimalismo, o jogo e o equilbrio entre luz
e sombra contra o pano de fundo e a ausncia de luzes da ribalta. A preocupao na
plasticidade da mise-en-scne. No entanto, convm sublinhar que Craig no se
influenciou pelo realismo da cena de Herkomer e, sim, pelos seus truques de luz.
Outrossim, Craig fez uso da silhouette como fora estrutural efetiva (Pick, 2008).
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Figura 09: Figuras negras
Fonte: Internet, acesso em 18/08/2017, disponvel em https://www.nypl.org/blog/2014/11/14/cranach-press-
hamlet
Outro exemplo da fora do lgubre, as figuras negras (acima) so um bom
exemplo; so esculturas talhadas em madeira em tamanho reduzido (e gravuras tambm),
no tm serventia como modelo para figurinos, mas como estudo de tridimensionalidade,
dos perfis e dos movimentos dos atores. Estas estruturas so a prpria sombra e quando
se incide a luz nelas, tem o efeito de produzir sombras nas sombras.
1.13 O matiz ps-impressionista como pintura cnica
Nota Barnard Hewitt, no artigo Gordon Craig and Post-Impressionism (2009, p.
75) que Craig reconheceu ser debitrio de inmeros pintores como Giotto, Rembrandt e
Michelangelo, porm nenhuma meno fez aos pintores ps-impressionistas. Para o
pesquisador, Craig inconscientemente absorveu e desenvolveu algumas caractersticas
dessa corrente artstica. Entre os pintores dessa corrente, Paul Czanne, por exemplo, fez
uso de simplificaes geomtricas como o cilindro, cones e esferas; por sua vez, Craig
com seus biombos de diferentes tamanhos, imprimiu volume e profundidade sua cena.
Ainda, Czanne foi um arguto observador dos elementos da natureza; desenvolveu um
conceito baseado na viso binocular, que muito desenvolveu o seu trompe loeil, a
perspectiva. A viso com os dois olhos, de forma autnoma, porm simultaneamente, o
que d a impresso ou sensao de espacialidade, profundidade no campo visual. Craig
instigou o espao cnico, valorizando a profundidade espacial, a tridimensionalidade,
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alijando o dcor bi-dimensional, o chapado do teatro naturalista-realista. A terceira
dimenso de Craig buscava o infinito, seja por elementos que exortavam a verticalidade,
ou ainda, pelo inteligente uso da perspectiva, nas sombras alongadas e na iluminao que
aprofundava o espao cnico que agregava e potencializava novos elementos que ora
dialogavam, ora comentavam e/ou ainda, contraditavam a cena. Czanne entendia que a
troca da luz e das formas evanescia a fora dos objetos. Em Hamlet, Craig com o uso da
diminuio da intensidade luz, propositalmente criou um ambiente envolto em mistrio,
de contornos no precisos, de silhouettes indefinidas, numa aura prpria para um
ambiente simblico.
O ps-impressionismo nasceu por entender o impressionismo ultrapassado.
Mesmo assim, sorveu das pesquisas dos impressionistas. Neste sentido, a nova vanguarda
se destacou por ampliar o estudo cromtico e a composio, intelectualizaram a
composio propondo um novo modelo de representao. Outro ponto de contato com a
percepo artstica de Craig foi o antinaturalismo de Gauguin baseado na conveno, no
artificial. Desde a sua permanncia na Martinica, o pintor comeou a usar cores anlogas,
artificiais, no representacionais. Como tambm experimentos com a sinestesia, conceito
que Craig investigou desde o tempo em que assistia aos cursos de Herbert von Herkomer.
Craig preconizava uma nobre artificialidade, seja na mise-en-scne, na luz, no
movimento, na articulao de todos os elementos insertos na cena, inclusive os atores,
transformando-os, maximizando-os no conceito de super-marionete.
Uma corrente ps-impressionista que sugeriu, tambm, um contato com a
concepo esttica de Craig eram os chamados nabis, para eles a imagem s havia razo
de ser se existisse um estilo, este que somente pode exprimir uma identidade, marca
indelvel, pessoal e intransfervel de cada artista. Os nabis exploravam o manancial puro
da arte, no entendiam ser necessrio explicar os seus conceitos, diziam que as fontes
deveriam dizer por si mesmas, como a matria-prima da cena de Craig, os elementos da
cena bastam a si mesmos e somente eles os formadores da sua concepo cnica, banindo,
principalmente, a literatura e os dramaturgos, daquilo que ele entendia como arte.
No Simbolismo, seu mote era a percepo do invisvel. Os nabis procuravam
a beleza encontrada na natureza, aproveitaram o misterioso e o mstico mesmo nos
assuntos mundanos, diferente, portanto da concepo de Craig, circunscrita cena teatral.
Figura 10: Interao espao e luz
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Fonte: Internet, acesso em 10/12/2017, disponvel em https://vimeo.com/35090396
1.14 Quem precisa de Gordon Craig?
A partir de 1908, Stanislavski se limitou a dirigir duas peas por temporada, porm
o sucesso da produo de O Pssaro Azul de Maeterlinck, cnone do teatro simbolista, foi
um indicativo para Stanislavski de que novos horizontes poderiam ser abordados na sua
busca por uma tcnica que pudesse abarcar vrias modalidades de textos e estilos
dramticos, ir alm dos limites do realismo-psicolgico; as possibilidades daquilo que
emanava do no-visvel, porm sensvel, uma realidade que poderia ser desenvolvida por
outras formas que no a realista. Para o mestre russo,
O simbolismo, o impressionismo e todos os outros refinados ismos em artes
pertencem supra-conscincia, que comea onde termina o ultra-natural. Mas
s quando a vida espiritual e fsica do artista em cena desenvolve-se
naturalmente, normalmente, pelas leis da sua prpria natureza, o
supraconsciente sai dos seus esconderijos. A mnima violncia contra a
natureza, e o supraconsciente esconde-se nas entranhas da alma, protegendo-se
da grosseira anarquia muscular (STANISLAVSKI, 1989, p. 299).
No captulo A Linha do Simbolismo e do Impressionismo da obra supra-citada,
Stanislavski reconheceu que o repertrio teatral simbolista estava acima da fora de seus
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atores. Para interpretar obras de cunho simblico deveria ir alm, i. e., familiarizar os
atores profundamente com o papel e com o drama escrito,
interpretar e deixar-se impregnar do seu contedo espiritual, cristaliz-la, polir
o cristal obtido, encontrar para ele uma forma artstica clara que sintetiza toda a
essncia multifactica e complexa da obra (STANISLAVSKI, 1989, p. 299).
Estas consideraes encontraram guarida no iderio simbolista, e em Craig, em
especial. Quando Stanislavski acima citou a grosseria muscular, recordamos que Craig
propugnava um movimento que fosse resultado de um rgido controle mental; o crebro
emanava comandos criteriosos e precisos para que o movimento se tornasse expresso.
No claustro da imaginao, o irracional, aquilo que est alm da razo e do Entendimento,
no se tentaria explicar os fenmenos do mundo sensvel. recorrente na obra de Craig a
busca pelo imemorial, o uno-primordial, um xtase de quem se encontraria como que
transportado para fora de si e do mundo sensvel, por efeito de exaltao mstica ou de
sentimentos muito intensos. Para ele,
o xtase um caminho primevo em que cada homem livre e a sua vontade a
sua lei. Seu desejo o que direciona eterna mudana, e o mundo inteiro
deveria querer se deslocar neste caminho que j foi to impetuosamente
exaltado pelos antigos profetas e mestres; deveramos ns readquirir, uma vez
mais, essa exaltao que um dia se chamou xtase (CRAIG, 1963, p. 60).
Mesmo Stanislavski, em sua fase madura, reconheceu que havia um novo
momento na cena teatral. Em Minha Vida na Arte preconizou que chegou a hora do
irreal no teatro", dever-se-ia encontrar uma maneira de representar a vida "no como ela
acontece na realidade, mas como a sentimos vagamente nos nossos sonhos, vises e
momentos de elevao espiritual" (STANISLAVSKI, 1989, p. 258). Deve-se admitir,
quando se trata de Gordon Craig, que na sua concepo de cena, atores e atrizes tinham
pouca ou nenhuma liberdade de ao; o mestre da cena, seu idealizador-mor sempre foi o
diretor, o encenador. Inclusive Craig pretendia em Hamlet relativizar a fala dos atores,
alis qualquer elemento cnico que pudesse ser uma via de contato com o intelecto, que
pudesse alijar o foco da experincia sensorial desta montagem, Craig queria evadir o
intelecto da cena. No somente uma experincia visual. Esta faculdade, a viso, seria
apenas uma porta de entrada, um trio para a verdadeira percepo. Sua abordagem
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cnica repousava na reunio de diversos componentes da cena. O visvel em cena para ele
eram os signos, um padro fundado em smbolos. Os atores eram componentes da cena,
partes de um todo.
1.15 Mise-en-scne
A proposta cnica de Craig guarda um aparente paradoxo: simples nos seus
elementos e grandiosa no arranjo, espetacular, remetia ao teatro grego e romano e ao
cinquecento, provvel influncia, tambm, de Marcus Vitruvius Pollio, mais conhecido
pelo desenho de Leonardo da Vinci, O Homem Vitruviano; considerado como o
primeiro arquiteto, Vitruvius autor do tratado De architectura (Sobre Arquitetura) que
contm valiosos estudos sobre a arquitetura grega antiga, inclusive teatral, como na figura
11 abaixo.
Figura 11: teatro grego
Fonte: internet, acesso em 22/12/2017, disponvel no endereo
https://archive.org/stream/vitruviustenbook00vitruoft#page/n185/mode/2up
Foi ele tambm quem nomeou Agatharchus (sculo V a. c.) como o inventor da
pintura-cnica. Vitruvius foi quem primeiro descreveu os periactos triangulares,
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