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Universidade Federal do Rio de JaneiroMuseu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
AGENCIAMENTOS COLETIVOS,TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS E CAPTURAS
UMA ETNOGRAFIA DE MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS
Ana Claudia Cruz da Silva
Rio de Janeiro, 2004
Universidade Federal do Rio de JaneiroMuseu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
AGENCIAMENTOS COLETIVOS,TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS E CAPTURAS
UMA ETNOGRAFIA DE MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS
Ana Claudia Cruz da Silva
Tese de Doutorado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação emAntropologia Social do Museu Nacional daUniversidade Federal do Rio de Janeiro
Marcio GoldmanOrientador
Rio de Janeiro, 2004
FOLHA DE APROVAÇÃO
ANA CLAUDIA CRUZ DA SILVA
AGENCIAMENTOS COLETIVOS,TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS E CAPTURAS
UMA ETNOGRAFIA DE MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS
Tese de Doutorado em Antropologia Social apresentadaao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Socialdo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio deJaneiro
Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2004.
_________________________________________________Marcio Goldman
(Doutor, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu NacionalUniversidade Federal do Rio de Janeiro)
_________________________________________________Giralda Seyferth
(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu NacionalUniversidade Federal do Rio de Janeiro)
__________________________________________________Antonádia Borges
(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu NacionalUniversidade Federal do Rio de Janeiro)
__________________________________________________Olívia Maria Gomes da Cunha
(Doutora, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
__________________________________________________Miriam Furtado Hartung
(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social –Universidade Federal de Santa Catarina)
Resumo
A partir da premissa de que tudo o que existe é feito de "encontros", o objetivo principaldeste trabalho é descrever os encontros que constituíram e constituem os blocos afro da cidadede Ilhéus, no sul da Bahia. Estes blocos são definidos por seus membros a partir do fato dedesfilarem no carnaval utilizando elementos oriundos do que é por eles vivido como "culturanegra", e da finalidade de preservar e divulgar esta última. Desde o surgimento do primeiro blocoafro nos anos 70 na cidade de Salvador, a literatura especializada tem tratado o temaconcentrando a atenção e a análise no caráter étnico desses grupos. O principal resultado daintensa pesquisa etnográfica junto aos blocos afro de Ilhéus, que serviu de base para estetrabalho, indicou, entretanto que, além dos desejos de afirmação e diferenciação, quecorresponderiam a investimentos no que em geral é considerado étnico, os mais diferentesencontros estão articulados a desejos conectados a outras concepções de vida e do que possamser blocos afro – desejos igualmente constitutivos das experiências dos que deles participam.
Abstract
This dissertation is based on the premise that everything that exists is the result ofencounters. The main goal of this work is to describe the encounters that have been constitutingthe Afro-Brazilian carnival parade groups (blocos) in the city of Ilheus (Southern Bahia, Brazil).The participation of these blocos in the carnival parade is connected to what their membersexperience as “black culture”. Thus, the necessity to preserve and publicize “black culture” playsan important role in the definition of the blocos, according to their members. Since the first blocoin the city of Salvador was created in the 1970s, the specialized bibliography about this subjecthas emphasized the ethnic aspect of the blocos. However, the intensive ethnographic research onwhich this dissertation is based has indicated that there are other relevant aspects in addition tothe desire for affirmation and differentiation that is generally associated with ethnicity. Differentencounters are related to desires connected to various definitions of life in general and of theblocos in particular. These desires are constitutive dimensions of participants’ experiences in theblocos.
Agradecimentos
“E é tão bonito quando a gente entendeque a gente é tanta gente onde quer que a gente vá.”
(Gonzaguinha, “Caminhos do Coração (Pessoa=Pessoas)”)
Uma tese é fundamentalmente o resultado de diversos encontros felizes com
pessoas que participaram em momentos e com intensidades diferentes do processo, desde o
primeiro desejo de realizá-la. Quero agradecer aqui aos responsáveis por alguns desses
encontros.
Agradeço muito aos meus pais o apoio incondicional e permanente que sempre me
deram. Se não foi fácil concluir este trabalho, certamente foi muito mais difícil para eles
criar as condições para que eu chegasse ao seu final. Tenho muito orgulho de ser sua filha.
Também agradeço aos meus irmãos pelo carinho, pela amizade e pelo apoio.
É claro que todo o conteúdo deste trabalho é de minha inteira responsabilidade,
principalmente os erros. No entanto, depois de acompanhar meu processo de formação
durante tanto tempo, já que foi meu professor ainda na graduação, orientou minha
monografia de conclusão de curso, minha dissertação de mestrado e esta tese, não posso
deixar de responsabilizar Marcio Goldman por ter feito da antropologia minha profissão e
um prazer. Agradeço por sua sempre competente e dedicada orientação – inteligência e
solidariedade são algumas de suas qualidades –, pelo apoio das mais diferentes formas,
pelas trocas de idéias e pela amizade.
Aos professores Giralda Seyferth e José Sérgio Leite Lopes agradeço pelo
acompanhamento do trabalho como membros das bancas de qualificação ao longo do curso
e também pelas críticas e sugestões. Agradeço também aos demais professores do PPGAS
e aos funcionários da Secretaria, sempre muito prestativos. A Isabel, a Carla e a Cristina,
da biblioteca, meu agradecimento especial pela disponibilidade e pelos sorrisos. Também
agradeço ao PPGAS os financiamentos concedidos para a pesquisa de campo.
Agradeço aos professores Giralda Seyferth, Antonádia Borges, Olívia Maria Gomes
da Cunha e Miriam Furtado Hartung, membros da banca examinadora, por sua disposição
em participar dela e pelos comentários, críticas e sugestões ao trabalho, os quais espero
saber aproveitar da melhor maneira possível. Também agradeço aos professores José
Sérgio Leite Lopes e Osmundo Araújo Pinho por aceitarem o convite para suplentes da
banca.
Agradeço ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) a concessão da bolsa de
doutorado por todo o período do curso, o que permitiu dedicar-me exclusivamente a ele.
Sou especialmente grata a todos os membros dos blocos afro de Ilhéus, tanto aos
que ainda hoje estão presentes na luta quanto aos que já passaram por ela. Agradeço,
especialmente, aos seus dirigentes. Durante a pesquisa, tive mais contato com alguns do
que com outros, mas todos foram importantes e contribuíram muito para a realização deste
trabalho. As informações prestadas, sua disponibilidade para a pesquisa e, sobretudo, seu
empenho em levar cada um dos grupos adiante, apesar de todas as dificuldades, merecem
minha gratidão e minha admiração.
Além dos membros dos grupos afro-culturais, várias outras pessoas dispuseram-se a
me ajudar durante a pesquisa, concedendo-me entrevistas, informações ou materiais –
nesse último item, cito especialmente Dino Rocha. Agradeço também aos responsáveis
pelo Centro de Documentação e pela biblioteca da Universidade Estadual de Santa Cruz.
Agradeço também a outras pessoas que foram de grande importância para a
pesquisa, tanto pelas informações que prestaram como membros e/ou simpatizantes do
Movimento Negro Unificado de Ilhéus, quanto pela amizade, pelas conversas e pelos bons
momentos que passamos juntos. Muito obrigada a Moacir Pinho e Bernadete, Edson
Vieira, Eduardo (Morcegão) e Alexandre. Ainda no item “bons momentos”, quero deixar
registrado o prazer gerado pelos encontros muito felizes com os grupos Viola de Bolso
(Eunápolis), ArteManha (Caravelas) e CEL (Alcobaça).
Ao meu amigo Jamilton Santana, agradeço pelas informações, pela “assistência de
pesquisa”, pelo apoio, pelas conversas... Agradeço, enfim, por ter estado por perto e por ter
me dado sua amizade e seu carinho, aos quais quero retribuir sempre.
Sou muito grata à “família Dilazenze” pelo amparo, pelo carinho e pelo que me foi
ensinado, e não só para pesquisa, mas, principalmente, pelo que aprendi para a vida. Como
não posso nomear a cada um, agradeço a todos através de Ilza Rodrigues: suporte dessa
família e do Dilazenze. O título religioso de “Mãe” Ilza revela o que é para quem tem a
honra de conviver com ela.
As crianças são um componente especial da fórmula que faz ser tão bom estar no
Dilazenze. Refiro-me não só às crianças da família, mas também àquelas do Projeto
Batukerê. Agradeço especialmente a Indira Santos e a Pâmela Rodrigues pelos deliciosos
momentos que elas, seus primos e amigos me proporcionaram.
Na grande família Dilazenze, há duas pessoas a quem quero agradecer de maneira
muito especial. A Sonilda Santos, muito obrigada por sua amizade, mas também pelos
maravilhosos almoços (sua comida é espetacular!), pelas boas risadas e por todo o carinho.
A Marinho Rodrigues é difícil agradecer... Parte desta tese é fruto do diálogo com ele e de
seu saber, o qual compartilhou comigo com tanta generosidade. Agradeço sua confiança e
sua disponibilidade, assim como sua perseverança no trabalho, a dedicação ao movimento
que lhe permitiu ter um fantástico acervo em casa, e acima de tudo, sua amizade. A ambos,
toda a minha gratidão e amizade. Sempre.
Aos amigos do PPGAS; aos amigos antigos e aos mais recentes; àqueles que
acompanharam de longe e aos que viveram de perto o início, o final, uma pequena parte ou
todo esse processo, meu muito obrigada. Obrigada pela torcida e pelos muitos encontros
felizes, nos quais partilhamos alegrias, esperanças, prazeres, mas também tristezas,
frustrações, angústias (mesmo esses são felizes simplesmente porque foi possível partilhá-
los). A Almir Barbio, Ana Cláudia Marques, Ana Paula Rogers, André Bernardo, Cecília
Mello, Cristiane Bernardo, David Rogers, Eduardo Oliveira, Eliza Costa, Fernanda Pinto,
Fernando Rabossi, Francisco Vieira, Geisa Souza (difícil agradecer por tanto), Gilberto
Estrela, João Ribeiro, Jorge Villela, Kátia Tracy, Marilene Mizumoto, Marta Lago, Tomas
Martin Ossowicki, Paulo Fraga, Ricardo Costa, Antônio Rafael, Rogéria Martins, Sérgio
Oliveira, Sílvia Nogueira (e César), Waldéris Alves (que tão gentilmente ajudou na
revisão) Vincenzo Cambria e Vinícius Claro, meu carinho e amizade.
Índice
Introdução ......................................................................................................................... 09
Encontros 1 - Movimentos Negros e a Invenção do Bloco Afro ..................................... 28Por que ‘re-africanização’? ........................................................................................ 32Ventos de lá ................................................................................................................. 36
Os movimentos de independência africanos .......................................................... 40Os movimentos negros norte-americanos .............................................................. 46O reggae e o rastafarianismo .................................................................................. 50A contracultura ....................................................................................................... 55
Ventos de cá ................................................................................................................ 61Os afoxés ................................................................................................................ 61O candomblé ........................................................................................................... 64Os ‘blocos de índio’ ................................................................................................ 68A economia ............................................................................................................. 77Movimentos negros políticos e intelectuais ........................................................... 82Os espaços negros ................................................................................................... 85
Os blocos afro de Salvador .......................................................................................... 87Ilê Aiyê .................................................................................................................. 88Malê Debalê .......................................................................................................... 91Olodum .................................................................................................................. 92Ara Ketu ................................................................................................................ 93Muzenza ..................................................................... .......................................... 94
Encontros 2 - Sobre Histórias, Números, Cores e Gente de Ilhéus .............................. 97Histórias de Ilhéus .................................................................................................... 102
Histórias de Ilhéus – economia cacaueira .......................................................... 114Histórias de Ilhéus – população e cor ................................................................ 119
Números .................................................................................................................... 133Cor e território .......................................................................................................... 137
Encontros 3 - Movimentos Negros em Ilhéus ................................................................ 155O Movimento Afro-Cultural de Ilhéus ....................................................................... 158O início ...................................................................................................................... 168
O Lê-guê Depá .................................................................................................... 169O Miny Kongo .................................................................................................... 173Lê-guê Depá ou Miny Kongo? ............................................................................ 177
Um pouco do Carnaval em Ilhéus ............................................................................. 180Mário Gusmão ........................................................................................................... 188África e black power também em Ilhéus .................................................................... 196
Encontros 4 - Singularização, Territórios Existenciais, Territórios Negros ................ 200Bloco afro como território negro .............................................................................. 207Blocos afro e religiosidade ........................................................................................ 212
Bloco afro e candomblé ...................................................................................... 212Bloco afro e outras religiões ............................................................................... 224
Bloco afro e subjetividade negra ............................................................................... 238A dança afro ........................................................................................................ 239A roupa afro ........................................................................................................ 248A Noite da Beleza Negra ..................................................................................... 262Músicas e temas .................................................................................................. 271Nomes ................................................................................................................. 278
Carnaval .................................................................................................................... 279Blocos afro e blocos de trio ................................................................................. 287Horário de desfile dos blocos .............................................................................. 292
Bloco afro e racismo .................................................................................................. 296Os “bons tempos” da USINA .............................................................................. 303A Caminhada Cultural ......................................................................................... 306O Caso John ........................................................................................................ 320
O Conselho de Entidades Afro-Culturais .................................................................. 326O Memorial ......................................................................................................... 340
Encontros 5 - Bloco Afro: Capturas ............................................................................... 350Bloco afro: “forma associativa”................................................................................ 353
Bloco afro e família ............................................................................................. 356Bloco afro e trabalhos sociais ............................................................................. 362Os “trabalhos sociais” do Dilazenze ................................................................... 366
O Projeto Batukerê .................................................................................................... 375Batukerê e governo municipal ............................................................................ 384Concepções do Batukerê ..................................................................................... 394O Projeto Batukerê na mídia ............................................................................... 399O Batukerê para o Dilazenze ............................................................................... 401
Bloco afro: ‘forma’ grupo artístico e ‘forma’ empresa ............................................ 406Bloco afro como ‘trabalho’ ....................................................................................... 408
Conclusão ........................................................................................................................ 421
Anexos ............................................................................................................................. 446
Bibliografia ...................................................................................................................... 463
9
Introdução
“É preciso saber fazer os encontros que lhe convêm.”1
(Deleuze 1978)
“A vida é a arte do encontro”2. Mais do que isso, a vida, o mundo e tudo o que
existe nele se constituem no encontro. Como diz Rolnik, “(...) o mundo (...) [é] uma
construção permanente, efeito exatamente do encontro, que não é neutro, pois neste
encontro ambos se constituem, é no encontro que se produz a realidade (...).” (1992b:03).
No encontro não existe aquele que afeta e o que é afetado: alguma coisa acontece em
ambos (ou nos vários) elementos envolvidos. Esta é a idéia que guia este trabalho: o que há
são encontros, o que constitui um ser é seu encontro com outro ser, que também está aí se
constituindo.
Assim, a proposta deste trabalho é descrever o que Guattari chama de
“heterogênese constitutiva”3 ou “heterogênese de componentes existenciais” (Rolnik
1992b) do “movimento afro-cultural” de Ilhéus, cidade situada no litoral sul do Estado da
Bahia. Trata-se de apresentar como se dá a construção de sua existência através dos
diferentes encontros, que também podem ser definidos como agenciamentos de fluxos, que
constituíram e continuam a constituir esse movimento, o qual passo a descrever
sumariamente como objeto empírico desta pesquisa.
1 Todas as citações oriundas de publicações estrangeiras que constam deste trabalho foram traduzidas pormim a fim de facilitar a leitura.2 Vinícius de Moraes e Baden Powell, em “Samba da Bênção”.3 Agradeço à Cecília Mello a ‘inspiração’ para o uso do conceito, presente em Mello 2003.
10
O que é definido emicamente por “movimento afro-cultural de Ilhéus” é o conjunto
de entidades que têm por objetivo a “preservação da cultura negra”, como consta da quase
totalidade de seus estatutos, sendo sua principal atividade desfilar no carnaval utilizando
elementos oriundos do que se denomina “cultura afro-brasileira”. Esse conjunto de
entidades é formado atualmente por doze “blocos afro”, um “afoxé”, um grupo de
maculelê e um grupo de capoeira que desfila como “levada”4, organizados numa entidade
de representação chamada Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus (CEAC).
Ainda que haja outros grupos na cidade constituídos segundo o mesmo objetivo, a
participação no CEAC e, conseqüentemente, no desfile do carnaval (somente os blocos
afro filiados ao Conselho recebem recursos e participam do desfile), garante que apenas
esses grupos sejam concebidos como parte do movimento afro-cultural. Este é considerado
o setor mais expressivo e abrangente do movimento negro da cidade, também integrado
por grupos auto-definidos como de atuação mais “política”, como o Movimento Negro
Unificado e o UNEGRO; por grupos religiosos, como a pastoral afro e a ALUFÁ-GÊ,
ambas da Igreja Católica, representantes do Candomblé e de Igrejas Protestantes; por
representantes de grupos de capoeira e por ex-membros de blocos afro que continuam a ser
percebidos (e a se perceber) na cidade como membros do movimento.
Embora o afoxé e os grupos de maculelê e de capoeira sejam integrantes do
movimento afro-cultural, sua participação costuma ser bastante pontual: no carnaval e nas
eleições para a diretoria do CEAC. O dia-a-dia do movimento é produzido pelos blocos
afro, que constituem, portanto, o interesse central desta pesquisa.
Em comparação a outros grupos culturais percebidos como de origem afro-
brasileira, como os afoxés e os grupos de capoeira, os blocos afro são um fenômeno
relativamente recente, o primeiro tendo sido ‘inventado’ em meados da década de 70, num
4 Os significados desses termos serão apresentados no primeiro capítulo.
11
bairro periférico e majoritariamente negro da cidade de Salvador. Não obstante sua
semelhança aos afoxés, donde vieram alguns dos elementos inicialmente utilizados – tais
como a maioria dos instrumentos e o ritmo ijexá –, o primeiro bloco afro, o Ilê Aiyê do
bairro da Liberdade, foi concebido como algo inteiramente novo: “um bloco original”,
como consta de seu primeiro cartaz de divulgação (Agier 2000:72). Descrevê-lo como um
bloco de carnaval com motivos africanos pode parecer banal atualmente, mas o primeiro
desfile do ‘Ilê’ provocou uma pequena revolução no carnaval soteropolitano de 1975, o
que foi constatado por Gomes (1989) em sua pesquisa com jornais da época. A cidade já
experimentava um clima de ‘afirmação de negritude’ com grupos de dança inspirados no
candomblé ou na black music, com estilos musicais como o reggae fazendo sucesso em
bares alternativos da periferia. Porém, o desfile do Ilê Aiyê impunha uma diferença que
não passava só por uma forma de música, ou por uma forma de se vestir ou de dançar, mas
por tudo isso e pela afirmação de que haveria uma outra maneira de viver o mundo, a qual
seria específica da população negra. Diferenciar a ‘população negra’ da ‘população’ já foi,
em si, uma revolução no país da ‘democracia racial’, do ‘povo brasileiro’. Além disso,
diversos grupos de pessoas acompanharam a proposta do Ilê e fundaram muitos outros
blocos afro.
Para Antônio Risério, a criação do Ilê Aiyê foi responsável, ao lado da reativação
do Afoxé Filhos de Gandhi e da criação dos novos afoxés, por uma pequena revolução na
própria cidade de Salvador, ao menos em suas periferias e para a população negra mais
jovem, que viveu o momento que foi consagrado por esse autor como o de
“reafricanização” do carnaval e da vida (1981:19).
O trabalho de Risério é pioneiro na análise da especificidade daquele momento e da
importância das novas entidades no processo de “reafricanização”. Porém, grande parte de
seu mérito está na bem sucedida tentativa de apontar as variáveis, os caminhos, ou para
12
falar a partir da proposta deste trabalho, os encontros que produziram a emergência do Ilê
Aiyê, dos demais blocos afro e afoxés então existentes e de uma nova visão de mundo que
surgia. A partir de seu trabalho, muitos outros autores, de diferentes áreas do
conhecimento, têm se dedicado ao estudo dos blocos afro, de alguns de seus elementos,
como a música, ou de pensá-los como exemplos de teorias sobre racismo e combate ao
racismo, de identidade, de etnicidade, ou de tudo ao mesmo tempo.
Como seria de se esperar, a literatura a respeito dos blocos afro tem na cidade de
Salvador seu foco principal5. Além de ser o berço do movimento, ainda hoje é na capital
baiana que os blocos apresentam maior importância e visibilidade. Contudo, apesar do
número bastante expressivo de entidades existente na cidade, a quase totalidade dos
trabalhos refere-se aos chamados “cinco maiores” – Ilê Aiyê, Olodum, Ara Ketu, Muzenza
e Malê Debalê – e, dentre eles, o Ilê Aiyê e o Olodum, sem dúvida alguma, são os que
recebem mais atenção dos pesquisadores. Frank Ribard (1999) apresenta, assim, um
diferencial interessante por trabalhar com depoimentos e informações de grupos bem
menos conhecidos, mas suas principais conclusões têm os grupos maiores como
referências da argumentação.
As implicações da quase exclusividade dos investimentos em pesquisa junto aos
grandes blocos são, entre outras, a generalização e, como conseqüência, uma certa
distorção de várias das características atribuídas aos blocos afro. Os discursos dos mais
destacados dirigentes de blocos afro, como Vovô – do Ilê Aiyê – e João Jorge – do Olodum
– são usados em referência a quaisquer blocos, na verdade, ao bloco afro como ‘categoria
sociológica’. O que se sabe sobre blocos afro é o que foi escrito sobre esses blocos. É
evidente que não se trata de dizer que os discursos em si mesmos sejam falsos, mas que há
diferentes realidades que não podem ser recobertas pelas experiências das duas mais
5 O trabalho de Machado (1996) sobre o primeiro bloco afro da cidade do Rio de Janeiro, o Agbara Dudu, éuma exceção.
13
importantes entidades do país. A partir dessa constatação, a realização de minha pesquisa
na cidade de Ilhéus, no interior baiano, oferece uma perspectiva diferente. A ‘novidade’ de
um trabalho assim reside, em primeiro lugar, na conclusão de que há outras motivações
para a fundação de um bloco afro e que este pode apresentar características diversas
daquelas atribuídas aos grandes blocos no discurso de seus dirigentes ou de pesquisadores;
em segundo lugar, a comparação entre trabalhos realizados com os grupos afro mais
famosos de Salvador e aquele realizado com blocos pequenos e distantes da capital baiana
e da mídia, como é o caso de Ilhéus, permite relativizar afirmações a respeito dos primeiros
a partir das práticas dos segundos, nesse caso, mostrando mais semelhanças do que as que
se deixam notar nos discursos de dirigentes e pesquisadores.
Há alguns temas recorrentes em torno dos quais gira a maior parte dos trabalhos
sobre blocos afro. Talvez porque um ritmo novo, o ‘samba-reggae’, tenha sido inventado
pelos blocos afro; ou porque sua música – é claro que me refiro aos grandes blocos – tenha
ultrapassado a função de ser tocada somente nos ensaios e no desfile e tenha se tornado
‘comercial’; ou porque a ‘letra’ da música seja uma forma de discurso que fornece
definições a respeito dos blocos afro, o fato é que a música é um desses temas. Alguns
trabalhos são propriamente de teoria musical e enfocam o ritmo ‘samba-reggae’, em geral
buscando suas origens; outros mostram a trajetória dos blocos sob a perspectiva de seu
sucesso comercial, gravação de discos, shows, principais cantores e compositores etc.; há
também aqueles que privilegiam a música dos blocos afro no contexto da diáspora e da
globalização e, finalmente, aqueles que trabalham a música, enquanto melodia, mas
sobretudo a partir de suas letras, como discurso étnico. Na verdade, esta última
14
característica está presente na quase totalidade das obras, mesmo naquelas cujos interesses
estão voltados para aspectos técnicos ou históricos da música dos blocos afro6.
Um outro tema bastante trabalhado em relação aos blocos afro é a prática educativa
destes, seja como educação formal ou informal. Alguns poucos blocos afro possuem ou
possuíram projetos de educação formal, como a Escola Criativa do Olodum (que não mais
atua dessa forma) e a Escola Mãe Hilda, do Ilê Aiyê, entretanto, as oficinas oferecidas
pelos blocos às crianças de suas comunidades e o trabalho cotidiano dessas entidades
através de projetos sociais também são percebidos como práticas educativas. A
especificidade dessas práticas não está contida apenas no conteúdo e na forma de
transmissão do conhecimento, mas em objetivos mais amplos que estão relacionados com
‘formação de identidade’, ‘consciência negra’, ‘afirmação de negritude’ etc. 7.
A abordagem que concebe os blocos afro como ‘empresas’ ou enfoca seu poder de
gerar recursos e renda não apresenta uma quantidade tão grande de estudos quanto as
anteriores, mas seu impacto sobre a literatura especializada é substantivo. Os trabalhos de
Dantas (1994 e 1996)8 e de Fischer (1993) são bastante citados para caracterizar o Olodum
que, além de ser seu objeto de pesquisa, sem sombra de dúvida é o bloco afro que melhor
pode ser pensado sob essa perspectiva. Nunes (1997) e Schaeber (1999), entre outros,
também são exemplos desse enfoque, que não deixa de estar vinculado à afirmação de
negritude e de identidade negra.
Esses diferentes enfoques têm em comum a concepção de que o motivo de
constituição de um bloco afro, assim como dos caminhos que ele segue, necessariamente
passa pelo desejo de ‘afirmar’ ou ‘produzir’ uma ‘identidade negra’. Na verdade, além de
6 Sobre música e blocos afro, ver, entre outros: Agier 1997; Armstrong 2001; Béhague 2000; Cambria 2002;Carvalho 1993; Crook 1993; Dunn 2001; Godi 1997, 1999 e 2001; Guerreiro 1998, 1999 e 2000; Lima 1997,1998 e 2001; Moura 1987; Nunes 1998; Pinho 1997; Schaeber 1998 e Stokes 1997.7 Sobre educação e blocos afro, ver Andrade 1997; Carvalho 1994; Galiza 1995; Guimarães 1995; Silva 1991e 1995; Silva 1997; Siqueira 1996 e Vários 1998.
15
estar nas abordagens acima resumidas, este tema, em si mesmo, é discutido, praticamente,
na totalidade dos trabalhos sobre blocos afro, sendo a ênfase no caráter étnico o que acaba
por definir a categoria9. Ainda que esses estudos apontem elementos de
constituição/definição do bloco que poderiam ser qualificados, entre outros termos, como
de caráter econômico, político, associativo, lúdico etc., o que é denominado étnico, sem
dúvida alguma, sobrepõe-se aos demais, sobrecodificando-os, ou seja, fazendo com que os
desejos, as percepções, assim como os movimentos dos grupos afro sejam observados
exclusivamente por esse prisma.
É claro que há um conteúdo étnico presente na fala do dirigente ou membro do
bloco ou na crítica de outros setores do movimento negro ou de qualquer outro ator social
que interaja com o grupo afro. Contudo, o fato do caráter étnico sobrepor-se
freqüentemente enquanto discurso a outros aspectos, não significa que ele seja sempre a
principal motivação dos agentes sociais para as práticas que constituem o movimento em
seu cotidiano. E essa sobreposição do “étnico”, ou da “identidade étnica” ou da
“etnicidade” está presente principalmente na concepção dos pesquisadores, que acabam
por superdimensionar esse aspecto em detrimento dos demais.
O problema do tipo de abordagem que concebe a vida de um grupo ou das pessoas
unicamente ou principalmente a partir do viés étnico está nas análises resultantes dele, ou
seja, na ‘explicação’ que, em geral, se segue à etnografia. Em primeiro lugar, nem sempre
o destaque dado ao aspecto étnico é positivo, pois várias análises encaminham-se no
sentido de reclamar sua ausência em determinado grupo ou de considerar incongruência do
grupo/movimento quando suas ações apontam em outras direções. Em segundo lugar, ao
reconhecer mas desprezar outros elementos e planos de uma dada relação em favor do
8 Ver também Vários 1999 – trata-se de um debate sobre o carnaval de Salvador que conta com as presençasde Dantas e de João Jorge Rodrigues, presidente do Olodum, entre outros.
16
étnico, a análise perde em capacidade explicativa, dado que a questão a ser colocada será
sempre a respeito de “maior” ou “menor” “consciência negra”, ou seja, maior ou menor
semelhança em relação a um determinado modelo de ação social, o que torna as ações que
fogem ao ‘padrão’ – que pretende determinar como os blocos afro deveriam ser –,
ininteligíveis.
Dar inteligibilidade às ‘relações raciais’ no Brasil tem sido a grande preocupação
dos estudiosos, tanto brasileiros quanto estrangeiros, que têm se dedicado ao tema desde o
início do século passado. A partir do momento que se toma como ‘dado’ que as relações
raciais no Brasil são distintas de outras também tomadas como ‘dados’ – e está-se falando
especificamente dos Estados Unidos e, anteriormente ao apartheid, da África do Sul –, e
estas são concebidas como o que deveria ser, o que ocorre no Brasil parece ‘estranho’,
ininteligível e precisa ser explicado. É o que buscaram fazer Gilberto Freyre e sua tese de
‘democracia racial’ em função da formação do povo brasileiro; os pesquisadores do Projeto
Unesco e a argumentação de que a discriminação seria antes social do que racial; e até
pesquisadores mais recentes como Michael Hanchard e sua ‘constatação’ da “inabilidade
dos militantes afro-brasileiros para mobilizar as pessoas sobre a base da identidade racial”,
assim como da “inabilidade dos brasileiros de identificarem modelos de violência e
discriminação que são racialmente específicos” (1994:06), conseqüências de desigualdades
políticas e culturais brasileiras que “têm impedido o desenvolvimento de modos afro-
brasileiros racialmente específicos de consciência e mobilização.” (:05).
Embora não faça parte da proposta deste trabalho aprofundar as discussões
presentes na literatura sobre relações raciais no Brasil, não é possível pensar sobre grupos
constituídos a partir de uma organização concebida também como racial, como é o caso
dos blocos afro, sem tocar nessas questões. Assim, ainda que indiretamente, a contribuição
9 Entre os muitos trabalhos sobre o assunto, estão Agier 1992, 2000 e 2001; Almeida 2000; Godi 1991;Guerreiro 1994 e 1998; Morales 1990 e 1991; Moura e Agier 2000; Nascimento 1994; Olivieri-Godet 2001;
17
que esta pesquisa pretende dar à discussão passa, primeiramente, por dar inteligibilidade às
ações dos grupos afro, apresentando motivações e desejos que não estão vinculados à
questão étnica, que não estão relacionados a ter ou não ter ‘consciência negra’. Em
segundo lugar, uma das conclusões deste trabalho reside na idéia de que o racismo
praticado no Brasil e aquele existente em outros lugares têm mais semelhanças do que
diferenças. Esta afirmação baseia-se na concepção de racismo como um mecanismo de
“inclusão diferenciada” (Hardt e Negri 2001:213) próprio do capitalismo e não como uma
relação de alteridade.
Voltando aos temas abordados nos trabalhos sobre blocos afro, há de se destacar as
monografias sobre o assunto. Dissertações de mestrado, teses de doutorado e trabalhos
extensos de pesquisa, geralmente restritos a um único bloco10, são as principais fontes que
fornecem elementos para pensar os grupos afro sob perspectivas não exclusivamente
étnicas. Descrições do cotidiano dos grupos ou reconstruções de suas histórias de fundação
diminuem a importância da ‘identidade étnica’ como razão de ser dos blocos afro. No
entanto, na maioria desses trabalhos, introduções e conclusões cuidam de reintroduzir a
temática e ‘reverenciá-la’.
Os trabalhos de Agier (2000) e Ribard (1999) são alguns dos mais importantes
como produtos de extensas e profundas pesquisas11. O primeiro apresenta um grande
investimento etnográfico junto ao Ilê Aiyê, mostrando-o sob diferentes dimensões,
enquanto o segundo constitui um trabalho de caráter sociológico que pretende entender o
“carnaval afro-baiano” a partir da articulação de seu lado ‘festivo’ com os contextos
econômicos, sociais e políticos que regem as relações sociais. Do ponto de vista do objeto
de pesquisa, o presente trabalho inclui-se nesse mesmo grupo ao buscar descrever o
Ribard 1999; Santos 2000; Siqueira 1993 e 1996; Souza 2001; Veiga 1991 e 1997.10 Como já observado antes, o trabalho de Ribard (1999) é uma exceção, pois oferece um panorama de todo omovimento dos blocos afro na cidade de Salvador, embora seja nítida sua maior aproximação de blocosconsiderados grandes, como o Ilê Aiyê.
18
movimento afro-cultural de Ilhéus sob diferentes aspectos, aproximando-se de Agier a
partir do investimento etnográfico e de Ribard na proposta de abarcar a totalidade do
movimento, apesar de ter um dos blocos afro ilheenses como objeto privilegiado da
investigação12.
Porém, de uma perspectiva teórico-metodológica, uma distinção fundamental se
coloca entre o meu trabalho e a grande maioria dos outros sobre o mesmo tema: trata-se da
recusa do conceito de ‘identidade’ – seja ‘étnica’, ‘negra’ ou ‘cultural’ – como categoria
analítica. Pensar o mundo e tudo o que existe como produção de encontros que não cessam
de acontecer, em permanente construção, tal como afirmo nas primeiras linhas deste
trabalho, impede o uso do conceito de identidade, pois este sempre vai necessitar, ainda
que sejam feitas todas as ressalvas, de uma realidade anteriormente dada que provoque
uma ‘identificação’, mesmo que momentânea13. Não se trata de negar que o termo é
largamente utilizado nos meios militante e cultural. Por isso mesmo, é preciso pensá-lo
como mais um elemento da etnografia, quando for o caso, e não como algo capaz de tornar
inteligível uma realidade. Pelo contrário, categorias como identidade e etnicidade
“obscurece[m] mais do que revela[m]”, pois “sobrecodifica[m] multiplicidades”
(Ossowicki 2003), isto é, fazem a vida, produzida permanentemente nos mais variados
encontros, ser percebida pelo olhar do buraco de uma fechadura14.
11 Destaque-se também Nunes 1997; Santos 2000 e Veiga 1991.12 O investimento aprofundado junto ao Grupo Cultural Dilazenze foi uma opção interessante e necessária:primeiramente, trata-se do bloco afro de Ilhéus de melhor estrutura organizacional, o que o torna mais ativodo que os demais; em segundo lugar, seu presidente possui um excelente conhecimento sobre toda a trajetóriado movimento, além do melhor (mesmo único) acervo de documentos, inclusive a respeito de outros blocos;por fim, por ter sido o Dilazenze também o foco da minha pesquisa de mestrado, muitas das questõespresentes neste trabalho nasceram daquele momento de observação e do diálogo com seus membros.13 Mesmo “em situação”, segundo defendem autores como Cunha (1986) e Okamura (1981), os conceitos deetnicidade e de identidade não deixam de produzir reificação de posições, fronteiras e rotulações, pois elesserão sempre o resultado de um movimento de privilégio de uma identificação em detrimento de outra e,portanto, de sua exclusão. Como bem lembra Malik (1996), a etnicidade (o que vale também para aidentidade) é pré-determinada por uma conjuntura dada histórica, espacial e socialmente. Assim, utilizar oconceito de etnicidade em relação a um grupo social significa, de imediato, promover sua identificação e,conseqüentemente, seu controle a partir de um quadro referencial de relações de poder já dado.14 Discutir os conceitos de identidade e etnicidade não é o objetivo deste trabalho, que mereceria, como temacontecido, páginas e páginas de reflexão, tamanha é a importância dessas categorias para a antropologia e,
19
É claro que o adjetivo ‘afro’ que acompanha e qualifica o termo ‘bloco’ não é à toa.
Ele indica que sua constituição tem por objetivo uma diferenciação baseada em elementos
que são concebidos, percebidos e experimentados como oriundos de uma ‘cultura’ de
origem africana. Contudo, a atribuição de uma ‘identidade negra’ a um desses grupos – e
de tudo o que vem a ela vinculado, como formas de ser, de pensar e de sentir – impede a
percepção do que constitui essa diferenciação e de que elementos importam para construí-
la. Além disso, uma vez que o bloco afro é assim definido, suas outras características ou
dimensões são ignoradas ou adequadas à formulação identitária, seja para corroborá-la ou
para ‘denunciá-la’ ausente. Vê-se, assim, que o conceito apresenta-se insuficiente para
descrever este fenômeno social.
À
Este trabalho apresenta uma continuidade com minha dissertação de mestrado
(Silva 1998)15, cujo objeto empírico também é o movimento afro-cultural de Ilhéus.
Porém, no início da pesquisa, meu interesse no movimento era indireto: os blocos afro de
Ilhéus ocupavam um lugar que poderia ser de outros grupos em situação semelhante, pois
meu objetivo era refletir sobre o uso do conceito de cidadania, tão em voga em obras
acadêmicas assim como na mídia, em discursos políticos, entre agências internacionais e
organizações não-governamentais, governo etc. Especificamente o Grupo Cultural
Dilazenze apresentava um perfil bastante interessante para a pesquisa em função dos
trabalhos comunitários que desenvolvia e de ter, ao contrário dos grandes grupos afro de
Salvador, pouco contato com o discurso dominante sobre o conceito que seria investigado.
especificamente, para formulações a respeito dos blocos afro. A literatura sobre o assunto é muito extensa ehá inúmeras correntes teóricas. Para uma visão geral das teorias de etnicidade, ver, por exemplo, Banks 1996;Jenkins 1996 e 1997 e Poutignat e Streiff-Fenart 1998. Para críticas às noções de identidade e/ou etnicidade,ver, entre outros, Handler 1994; Herzfeld 1996; Ossowicki 2003 e Viveiros de Castro 1999.15 Note-se que naquela ocasião, optei por usar nomes fictícios a fim de evitar possíveis constrangimentosentre as pessoas com as quais trabalhei. Neste novo trabalho, o uso de nomes próprios é restrito, mas aspessoas são facilmente identificadas a partir de cargos ou relações junto aos grupos afro. Assim, os leitores
20
No entanto, a pesquisa de campo fez perceber que seria mais profícuo tratar o
conceito de cidadania indiretamente, não o movimento. Logo ficou claro que o termo não
estava presente no discurso dos membros do Dilazenze, mas o que era entendido como
‘cidadania’ era perceptível em suas práticas. Assim, ao invés de investigar como ele era
concebido, melhor seria saber como era vivido. Isso foi possível porque o conceito de
cidadania está em constante interação com os atores sociais, dando significado a práticas
distintas que, no caso do movimento afro-cultural de Ilhéus, podiam ser identificadas com
outras categorias, como “trabalho social”, “trabalho comunitário”, “militância” etc. (Silva
1998)16.
Uma das motivações para dar prosseguimento ao trabalho no doutorado junto ao
mesmo objeto empírico da pesquisa anterior foi a possibilidade de um aprofundamento
etnográfico que seria difícil num novo campo. Além disso, aquele primeiro contato com o
movimento afro-cultural de Ilhéus e com a literatura especializada sobre o assunto mostrou
que haveria coisas diferentes a dizer a partir de uma pesquisa etnográfica relativamente
intensa. Assim, elementos encontrados no campo naquela ocasião e não aproveitados na
dissertação de mestrado foram retomados, aprofundados e reelaborados neste novo
trabalho. Isso permite, então, contabilizar como parte deste os cerca de três meses
dedicados ao campo durante o mestrado, somando quase dezoito meses de investigação
etnográfica entre os anos de 1997 e 200117.
especialmente interessados que forem buscar na dissertação de mestrado as referências feitas aqui vão sedefrontar com outros nomes, mas, como geralmente acontece, não será nada difícil descobrir quem são.16 A continuidade da pesquisa ao longo dos anos seguintes mostrou que a relação existente hoje entre osgrupos afro – e não apenas o Dilazenze – e o uso do termo cidadania sofreu mudanças: o conceito estápresente nos discursos de seus dirigentes e em seus projetos. Naquele primeiro momento da pesquisa, estamudança estaria tendo início através do que chamei de “processo de cidadanização”, conforme se verá noquarto capítulo deste trabalho.17 E, graças ao uso da telefonia e por ter feito amigos no campo, mantive contato e, evidentemente, recebiinformações sobre o movimento afro-cultural de Ilhéus ao longo de todo este período e mesmo depois dele.Além disso, é preciso dizer, tive o privilégio – e para muitos, e algumas vezes para mim mesma, o problema– de dividir o campo com meu próprio orientador. Embora abordando temas diferentes, nossas pesquisas emmomentos alternados no campo proporcionaram a troca de informações e idéias que permitiu umacompanhamento do movimento por todo o período da pesquisa, ainda quando longe de Ilhéus. Essa situação
21
A pesquisa foi realizada, quase que totalmente, junto aos dirigentes dos blocos afro.
E esta foi antes uma imposição empírica do que uma questão de opção metodológica,
sendo, assim, parte da própria etnografia. Ao contrário do que se costuma imaginar, é
restrito o número de componentes que vive o bloco afro ao longo do ano. Apesar de sua
capacidade de aglutinar uma grande quantidade de pessoas em torno de objetivos comuns,
estes se constituem em eventos, os quais são organizados por quem dirige o bloco afro e
freqüentados por vizinhos, simpatizantes, amigos de amigos... Ao menos em Ilhéus18, a
idéia de ‘pertencimento’ a um bloco afro só costuma ser manifesta no carnaval,
especialmente em caso de vitória do bloco, ou nos casos de críticas internas, quando há
alguém que não está “se comportando” como membro daquele bloco. Ao longo do ano,
quem pensa sobre os blocos afro são seus dirigentes, são eles que os fazem funcionar, os
produzem. E foi nesse funcionamento que a pesquisa esteve interessada.
À
A leitura do índice deste trabalho já o revela algo diferente. Ao invés de capítulos, o
termo adotado para denominar cada uma de suas partes é encontros. É evidente que se trata
de um ‘floreio’, mas que tem por objetivo realçar e ser coerente com a proposta deste
trabalho de descrever os encontros que produziram e produzem o movimento afro-cultural
de Ilhéus. Assim, cada uma dessas partes corresponde a apresentações desses encontros,
agrupados a partir de grandes recortes, os quais descreverei sucintamente. Antes, porém, é
preciso explicitar melhor o que significa a opção pelo uso de termos como encontros ou
agenciamentos de fluxos, como consta do início desta apresentação, e quais são suas
implicações para a análise.
sui generis, por estar baseada em solidariedade e em cumplicidade, certamente contribuiu para oenriquecimento da pesquisa e a melhor compreensão de alguns aspectos que se apresentaram no campo.18 Agier (2000) ressalta a identificação dos moradores do Curuzu, no bairro da Liberdade, com o Ilê Aiyê,afirmando que há um sentimento de fazer parte de uma mesma “família simbólica”, de que existe aí uma“identidade coletiva” (:87).
22
Em “Carta a Réda Bensmaïa, sobre Espinosa”, Deleuze (1992) diz que Espinosa
escreve a “Ética” nas três formas de conhecimento: como conceito (segundo gênero do
conhecimento e diz respeito a “novas maneiras de pensar”), como afecto (primeiro gênero
do conhecimento e refere-se a “novas maneiras de sentir”) e também como percepto
(terceiro gênero do conhecimento e provoca “novas maneiras de ver e ouvir”) (:203-4).
Segundo o autor, “é por essa razão que rigorosamente todo mundo é capaz de ler Espinosa,
e de extrair dele grandes emoções, ou de renovar completamente sua percepção, mesmo
entendendo mal os conceitos espinosianos” (205). Apropriar-me da idéia de encontros
como orientação metodológica deste trabalho é como usar a ‘licença’ que Deleuze dá para
o entendimento que não-filósofos possam ter de Espinosa em relação a ele mesmo. Isso
significa que certamente não compreendo com precisão o que Deleuze expõe a respeito do
conceito de ‘encontros’ – que é de Espinosa – no curso que deu sobre este autor, onde
encontrei a idéia (ver Deleuze 1978). O conceito é muito mais complexo do que o uso que
proponho dele. Mas posso dizer que descobri-lo provocou emoções e, principalmente, deu-
me a sensação, mais do que a certeza, de que ele seria útil para pensar e organizar o
material resultante das pesquisas de campo e bibliográfica. O simples entendimento de que
tudo o que existe se constitui a partir do encontro, de que cada encontro transforma os
corpos, compõe ou decompõe, e até mesmo produz um novo corpo19, parecia encaixar-se
com Antônio Risério e a idéia de que o que ele chamou de reafricanização do carnaval –
tema do primeiro dos próximos Encontros – é resultado da ‘mistura’, de “coisas [que] vão
se mesclando (...) da qual um terceiro sentido ou elemento deve ser extraído.” (1981:32-3).
A organização desta tese nasce, assim, de encontros entre mim, o movimento afro-cultural
19 “Então, num amor feliz, num amor de alegria, o que se passa? Você compõe um máximo de relações comum máximo de relações do outro, corporal, perceptivo, todos os tipos de natureza. Certamente corporal, sim,por que não; mas perceptivo também: ah bom... escuta-se a música! De uma certa maneira, não se pára deinventar. Quando eu falo do terceiro indivíduo que os outros dois não são mais do que partes, isso não querdizer que esse terceiro indivíduo pré-existisse, é sempre ao compor minhas relações com outras relações, e é
23
de Ilhéus, Antônio Risério, o carnaval de Salvador da década de 70 descrito por ele,
Deleuze, Espinosa, meu orientador que me apresentou o texto de Deleuze... e muitos outros
elementos, pois cada um desses ‘corpos’ também é resultado de muitos e diferentes
agenciamentos.
Em muitos momentos deste trabalho, o termo ‘encontros’ será substituído pelo de
agenciamentos, tal como no parágrafo acima. Trata-se de um conceito amplamente
empregado por Deleuze e Guattari que também diz respeito à idéia de composição e
decomposição dos seres. Diz Guattari em seu “Glossário de Esquizoanálise” (1986), que
agenciamento é uma “noção mais ampla do que aquela de estrutura, sistema, forma,
processo etc. Um agenciamento comporta componentes heterogêneos, tanto quanto de
ordem biológica, social, maquínica, gnoseológica, imaginária.” (:287). Ou seja, uma coisa,
qualquer coisa, é produzida pelo e no entrecruzamento de componentes muito diversos, aí
incluídos sujeitos, matérias, idéias, climas, representações, linguagens, semióticas... tudo o
que entra em jogo na composição de algo. Agenciamentos são as conexões entre os
elementos que participam da constituição de alguma coisa20.
Ao defender que a noção de agenciamentos coletivos deveria ser utilizada para falar
sobre processos políticos, Guattari deseja, através dela, recusar a oposição bipolar entre
classes sociais em favor da multiplicidade (“os agenciamentos coletivos não são ambíguos:
eles são múltiplos”) dos grupos sociais. E, mais do que isso, mostrar que eles não cabem
em definições que seguem apenas parâmetros sexuais, políticos, etários, nacionalistas etc.
sob tal modelo, sob tal aspecto que eu invento esse terceiro indivíduo que o outro e eu mesmo não seremosmais do que partes, sub-indivíduos.” (Deleuze 1981).20 Talvez a seguinte passagem de Deleuze e Guattari torne a noção mais clara: “Uma menina tem um faz-pipi? O menino diz sim, e não é por analogia, nem para conjurar o medo da castração. As meninas têmevidentemente um faz-pipi, pois elas fazem pipi efetivamente: funcionamento maquínico mais do que funçãoorgânica. Simplesmente, o mesmo material não tem as mesmas conexões, as mesmas relações de movimentoe repouso, não entra no mesmo agenciamento no menino e na menina (uma menina não faz pipi de pé nempara longe). Uma locomotiva tem um faz-pipi? Sim, num outro agenciamento maquínico ainda. As cadeirasnão o têm: mas é porque os elementos da cadeira não puderam tomar esse material em suas relações, oudecompuseram a relação o bastante para que ela desse uma coisa totalmente diferente, um bastão de cadeirapor exemplo.” (1996:41).
24
Como agenciamentos que são, “eles podem surgir de um prazer muito imediato, por
exemplo aquele de estar junto, e também de preocupações mais políticas, sociais, (...).”
(1986:149). O uso dos conceitos de agenciamentos e de encontros neste trabalho tem esse
mesmo propósito: mostrar que os blocos afro, sendo agenciamentos coletivos, não podem
ser definidos por critérios apenas étnicos; que seus desejos, produtos ou produtores de seus
encontros, inventam diferentes maneiras de ser. Alguns desses desejos, desses encontros,
dessas ‘maneiras de ser’ dos blocos afro de Ilhéus é o que este trabalho pretende
apresentar.
Os três primeiros capítulos, ou Encontros, formam uma primeira parte da tese,
concebida a partir da descrição dos elementos que em agenciamento produziram o
surgimento do movimento afro-cultural de Ilhéus, ou mais exatamente dos primeiros
blocos afro da cidade.
A descrição do surgimento do movimento afro-cultural de Ilhéus deve,
necessariamente, começar por apresentar como nasceu o primeiro bloco afro, o Ilê Aiyê.
Encontros 1 é, então, dedicado a mostrar como se deram os encontros em Salvador que vão
provocar outros encontros em Ilhéus, os quais constituirão seu movimento afro-cultural. O
Ilê Aiyê é resultado e constituinte dos agenciamentos que promoveram o (res)surgimento
de uma série de fenômenos que acabaram por configurar a estética, o comportamento, a
música, as idéias que compuseram o que veio a ser chamado de reafricanização do
carnaval, de Salvador e da vida de parcela da juventude negra.
Os fluxos gerados em Salvador e que produziram tantas mudanças também
atingiram Ilhéus e, a partir das conexões com fluxos que passavam pela cidade, produziram
seu movimento afro-cultural. Encontros 2 e 3 têm por objetivo ‘relatar’ como se
processaram esses encontros de fluxos. A divisão entre os capítulos é meramente uma
questão de organização da apresentação, pois não se trata de pensá-los isoladamente.
25
Assim, a Encontros 2 cabe a descrição de fluxos de economia, de história, de números e
outros que entraram em agenciamento com tantos outros que participaram do surgimento
dos primeiros blocos afro e continuam a produzir o movimento, compõem sua concepção
de mundo. O capítulo seguinte apresenta, então, fluxos que costumam ser mais diretamente
relacionados aos agenciamentos que geraram os primeiros blocos afro ilheenses. Eles
podem ser chamados de culturais, religiosos, midiáticos, musicais; alguns já passavam por
Ilhéus, enquanto outros foram ‘levados’ para lá por pessoas que viveram o que acontecia
em Salvador. Partindo da configuração que tem o movimento hoje chega-se aos primeiros
blocos afro e deles à capital baiana. A própria exposição desta genealogia já permite
perceber que elementos, que conexões foram importantes para a constituição dos blocos
afro em Ilhéus.
Os dois outros capítulos compõem a segunda parte deste trabalho, cujo objetivo
pode ser definido como o de descrever o funcionamento do movimento dos blocos afro em
Ilhéus a partir dos desejos de diferir, incluir e ser incluído e dos agenciamentos produzidos
por eles, que geram modos de existência, concepções de mundo correspondentes.
O objetivo do quarto capítulo é descrever o bloco afro como ‘território negro’,
entendido como território existencial, onde são produzidos modos de vida singulares,
desejos de diferir do mundo tal como ele existe – com suas relações de opressão – através
de elementos remetidos ao que se denomina ‘cultura negra’ e das diversas atividades
promovidas pelo bloco, especialmente aquelas que objetivam a preparação para o carnaval
e o próprio desfile, no qual mais se expressa seu desejo de singularizar-se. Parte de
Encontros 4 é, então, constituído pela apresentação dos agenciamentos de fluxos que
promovem essa singularização, que possibilitam a invenção de um outro modo de
existência, chamado de ‘negro’; porém, é justamente a partir do que o singulariza, sua
26
condição de grupo racialmente organizado, que torna possível a ação da maioria sobre o
bloco afro através da prática do racismo – questão também abordada no capítulo.
Contudo, ao mesmo tempo em que experimenta processos de singularização,
desejos de diferir, os blocos afro encontram-se com o capitalismo, que também constitui
um modo de existência que gera desejos de incluir e de ser incluído em seu sistema, desejo
de ser igual. A partir de tais desejos, o capitalismo transforma as atividades de
singularização dos blocos afro em algo facilmente reconhecível por ele: trabalho, que pode
ser ‘social’ ou ‘artístico’.
Se o processo de singularização do bloco afro representa sua entrada numa linha de
fuga, isto é, numa forma de escapar do modo de existência atual produzido pelo
capitalismo produzindo um território existencial distinto, a transformação de suas
atividades em trabalho, elemento próprio do sistema capitalista, trata-se, do meu ponto de
vista, de sua captura. O objetivo de Encontros 5 é descrever, então, como se dá essa
captura, que ocorre através de agenciamentos produzidos tanto pela ‘forma-ong’, a partir
do desejo de incluir através dos trabalhos sociais, quanto pela ‘forma-empresa’ e o desejo
de ser incluído através de trabalhos artísticos.
Porém, é preciso observar que a adequação do bloco afro à forma-ong através do
desejo de incluir é atualmente uma das maneiras mais usuais de defini-lo, ainda que seja
pela ausência de tal adequação. Isso ocorre porque tanto os blocos quanto os demais atores
sociais estão sendo afetados pela onguização, que aqui significa uma determinada
concepção de mundo, a qual tem a idéia de ‘inclusão’ como fundamento. Por outro lado,
inclusão também é o melhor mecanismo de expansão e de realização do capitalismo, que
dá forma ao mundo em que vivemos. Se o desejo de singularização que criou o bloco afro
relaciona-se com a proposta da invenção de um outro mundo, o desejo de ‘incluir’
relaciona-se com a idéia de aceitação do mundo tal como ele existe. Refletir sobre as
27
implicações resultantes da afetação do bloco afro pela forma-ong em relação com seu
desejo de singularidade é o tema da conclusão deste trabalho.
28
Encontros 1
MOVIMENTOS NEGROSE A INVENÇÃO DO BLOCO AFRO
“Um batuque mais que um bloco é o nosso estilo de vida.”(Reyzinho, “Bodas de Prata”).
“— Era negão prá cá, negão prá lá, todo mundo queria sernegão”.
“— A gente começou a ver todo mundo se vestir estilo afro:cabelo, bata, gorro”.
“— Um virava para o outro e cantava: ‘Eu sou negão, eu sounegão. Meu coração é a Liberdade’”.
“— Essa música virou febre aqui na Bahia”.
O diálogo acima é parte de uma conversa na casa do presidente do Grupo Cultural
Dilazenze, bloco afro de Ilhéus. Ele e um colaborador do bloco estavam me apresentando
a famosa música de Gerônimo, de título obscuro: “Macuxi Muita Onda”, mais conhecida
como “Eu sou Negão”, gravada em 1986 (Guerreiro 2000:21). Enquanto ouvíamos a
música repetidamente – o LP não estava nas melhores condições, além do mais, parte da
letra é indecifrável, tal como o título, e parte é falada –, eles me contavam que Gerônimo
teria composto a música enquanto presenciava um dos encontros mais famosos e mais
comuns do carnaval baiano, o encontro do bloco afro – no caso, o Ilê Aiyê – com o trio
29
elétrico. A parte falada reproduz um diálogo hipotético entre os cantores dessas entidades.
Toda a narração do encontro enfatiza a postura de assumir-se como ‘negro’ e elogia a
‘resistência’ pela ‘cultura’. É o ‘negro’ do bloco afro enfrentando o ‘branco’ do trio
elétrico. Guerreiro reproduz uma declaração de Gerônimo sobre a música, na qual ele diz
que “o que estava em jogo naquele momento era a luta pelo respeito às manifestações
negras. E a gente não queria isso só no carnaval, não” (2000:22).
A composição de “Eu sou Negão” e sua repercussão junto à juventude negra
baiana são, ao lado da explosão midiática do Grupo Cultural Olodum em 1987, uma
espécie de auge, resultado, mas também parte constituinte de um momento muito especial,
cujo início costuma ser datado em meados da década de 70, com o surgimento do primeiro
bloco afro, o Ilê Aiyê. A partir de então, organizações formadas por motivações de caráter
racial foram ganhando cada vez mais visibilidade e o movimento negro começou a se
fortalecer em Salvador: ao mesmo tempo em que a seção baiana do Movimento Negro
Unificado Contra a Discriminação Racial, o atual MNU, era fundada em 1978, acontecia
também o que Risério (1981) chamou de reafricanização do carnaval de Salvador, com o
surgimento dos blocos afro e dos novos afoxés. Esse também foi o grande momento de
divulgação do reggae e do aparecimento de grupos seguidores do rastafarianismo, sem
falar dos grupos de teatro, de dança e grupos de estudo que tinham a questão negra como
temática motivadora para sua constituição.
A idéia de movimento negro, ou melhor, de movimentos negros presente neste
trabalho é a de pessoas – sujeitos – que se organizam a partir do desejo de mover-se, de
sair de uma determinada situação em busca de outra, enfim, de desterritorializar-se por
uma linha de fuga sobretudo, mas não exclusivamente, étnica. Sendo assim, ao falar de
movimentos negros não se está falando de algo estático, mas de alguma coisa que se
constitui pela e na movimentação – ou, para usar uma palavra cara aos movimentos
30
políticos de modo geral, na mobilização, em seu sentido pleno: ‘fazer mover-se’ em
função de um objetivo. Tratam-se de subjetividades que vão sendo afetadas por outras
subjetividades em movimentos constantes. Parece-me que a maneira mais interessante,
porque mais clara, de visualizar, de perceber o que se passa é através da idéia de fluxos,
que é palavra-movimento. Fluxos que passam, que afetam, que geram novas
subjetividades, que geram outros fluxos, que passam, que afetam e assim por diante.
A partir do argumento acima, pode-se dizer que o surgimento dos novos
movimentos negros em Salvador se deu no encontro de fluxos produzidos pelos mais
diferentes movimentos, fossem em Salvador, no Brasil ou no mundo. Eram fluxos gerados
pelos movimentos produzidos pelo candomblé, pelo samba, pelos antigos afoxés e pelos
blocos de índio ou pelas organizações de jovens buscando formas alternativas de lazer na
periferia. Fluxos gerados pelos movimentos de subjetividades afetadas pelas condições
socioeconômicas e de discriminação racial que agiam sobre a população negra da cidade.
Havia outros fluxos que, como pólens, foram levados para a capital baiana pelos ventos
que vinham de centros urbanos que experimentavam um tempo de intensa efervescência
‘política’ e ‘cultural’1, com ênfase para os bailes de soul music do Rio de Janeiro e dos
grupos políticos negros de São Paulo. Fluxos que atravessaram o Atlântico, cuja origem
está nas lutas de independência dos países africanos, e que favoreceram um reforço na
divulgação do Pan-Africanismo naquele momento; ou que passaram pelos movimentos de
‘libertação’ dos ‘negros’ e de ‘poder negro’ (black power) que ocorriam nos Estados
Unidos, na produção e divulgação internacional do reggae jamaicano e de seus ídolos,
como Bob Marley, Jimmy Cliff, Peter Tosh...
Ventos de lá que traziam consigo uma multiplicidade de idéias, de símbolos, de
desejos... fluxos que se encontraram com ventos de cá que sopravam outros fluxos, novos
31
tipos de desejos. Alguns originados no, então recente, processo de industrialização e de
urbanização de Salvador, incluída aí a região do Recôncavo Baiano2; outros desejos
vinham de um clima diferente que se instalava no país no momento em que se dava o
início da abertura democrática; e, na mesma esteira, novos desejos – desejos de diferença
– que propiciaram o surgimento de organizações que ficaram conhecidas como os novos
movimentos sociais, entre eles, os movimentos negros.
O primeiro autor a relacionar as origens, as influências, os encontros que poderiam
explicar o que estava acontecendo com o carnaval e com a vida em geral de uma parcela
significativa da juventude negra de Salvador no final dos anos 70 e início dos 80 foi
Antônio Risério com seu Carnaval Ijexá: notas sobre afoxés e blocos do novo carnaval
afrobaiano, de 1981. Sua obra é tão fundamental que não há trabalho sobre o mesmo tema
que não parta de suas premissas, de suas informações – mesmo quando elas são apenas
‘opinativas’, pois Risério, como ele mesmo explica, nunca teve “a intenção de ser
sistemático, rigoroso, objetivo, compreensivo, abrangente ou definitivo” (:11) – e que não
siga suas indicações, suas pistas, que alguns autores chegam mesmo a dar status de ‘dados
sociológicos’.
Dado que este trabalho pretende descrever os encontros que tornaram possível o
movimento dos blocos afro em Ilhéus, que têm conexões diretas com o movimento de
Salvador, o qual foi primeiramente analisado por Risério, cujas informações e pistas são
muito valiosas para a compreensão daquele momento e do movimento, este autor será
também a base para a minha empreitada. É preciso, porém, deixar bem claro o que
significa o estatuto de ‘base’ aqui concedido a Risério: trata-se de trabalhar sua obra como
1 As aspas simples indicam que esses termos não têm um sentido único, já dado. Eles serão alvo de reflexãoem vários momentos deste trabalho.2 Diversos autores iniciam sua descrição do período que virá a ser o auge do movimento negro em Salvadora partir da grande mudança econômica vivida pela cidade nos anos 50 e 60 com a industrialização e,principalmente, com a implantação do Pólo Petroquímico de Camaçari, atribuindo a esta mudança uma
32
‘guia’, como ‘fonte de inspiração’, mas com a possibilidade de acrescentar novos
elementos ou de discordar daqueles indicados por ele. A proposta deste primeiro ‘relato de
encontros’ é, então, a partir das informações e sugestões de Risério3, complementadas
pelas de outros autores, mostrar como se deram os encontros em Salvador que vão
provocar outros encontros em Ilhéus, os quais constituirão seu movimento afro-cultural.
Para tanto, este Encontros 1 está dividido em quatro partes. Na primeira, o objetivo é
entender o que Risério denomina ‘reafricanização’, do que se está falando ao usar o termo;
nas segunda e terceira partes, a idéia é apresentar quais foram esses fluxos que se
encontraram e deram origem ao processo de reafricanização e ao movimento negro dos
blocos afro em Salvador. Na história do movimento, são cinco aqueles considerados os
maiores blocos da capital baiana, cujas influências são claramente percebidas nos blocos
afro de Ilhéus. Por isso, a última parte consiste de um resumo sobre cada um deles.
Por que ‘re-africanização’?
O próprio título de Carnaval Ijexá: notas sobre afoxés e blocos do novo carnaval
afrobaiano traz algumas questões: por que novo carnaval? Ele se diferencia de outros em
quê? Por que afrobaiano? E, logo na apresentação do livro, aparece o termo
“reafricanização” referindo-se ao processo durante o qual surgiram os blocos afro e os
novos afoxés. Para um leigo em ‘carnaval baiano’ vem a pergunta: se o período
constituído entre o fim dos anos 70 e início dos 80 foi de ‘re-africanização’, quando e
como o carnaval foi africanizado pela primeira vez?
É o próprio Risério quem explica: a presença maciça dos afoxés e dos blocos afro
nas ruas de Salvador no carnaval o fez “lembrar uma antiga afirmação de Nina Rodrigues,
expectativa de mobilidade social até então inexistente entre os negros pobres e, até mesmo, a criação de umaclasse média negra em Salvador. Este tema será objeto de discussão ainda neste capítulo.3 Haja vista que a única obra de Antônio Risério sobre o assunto é Carnaval Ijexá... , de 1981, doravante ascitações a ele serão feitas apenas com seu nome e o número da página referida.
33
de que ‘a festa brasileira é ocasião de verdadeiras práticas africanas’” (:16). Nina
Rodrigues, em Os Africanos no Brasil, de 1905, está se referindo aos carnavais da última
década do século XIX e dos primeiros anos do XX, quando “clubes carnavalescos
organizados por alguns africanos, negros e crioulos ou mestiços” (apud Risério:17)
desfilavam pelas ruas de Salvador como os préstitos da elite branca. As primeiras notícias
sobre estes últimos são de meados da década de 80, enquanto os préstitos organizados por
‘afro-brasileiros’ só aparecem na imprensa a partir de 1895 (Vieira Filho 1997:41-2).
Além de Risério, vários outros autores comentam sobre os famosos clubes africanos, tais
como o Embaixada Africana, o Pândegos d’África, o Chegada Africana e o Filhos de
África, entre outros, que se apresentavam como cortejos reais, luxuosamente trajados e
faziam referência direta à África, não apenas através da ‘realeza’, mas também com
pessoas fantasiadas de ‘Guerreiros Zulu’, armas e trajes ‘tribais’4.
Fry et alli (1988) recorrem a Nina Rodrigues para mostrar que esses clubes
expressavam diferentes ‘Áfricas’: uns exibiam uma “África nobre, com seus faraós e reis
abissínios”, era a África “apenas como ‘tradição’ ou ‘lembrança’”; outros, como o
Pândegos d’África, utilizavam danças e cantigas do candomblé, ou seja, “práticas
africanas” que eram ‘atualizadas’ no Brasil (:261). Segundo Nina Rodrigues, estes últimos
seriam representantes da “África inculta que veio ao Brasil escravizada” (apud Fry et alli
1988:261). Vieira Filho argumenta que a apresentação de uma “África civilizada e culta”
seria uma “estratégia” dos clubes negros para “reforçar a auto-estima e o valor positivo
das raízes africanas (...) conhecida hoje como auto-afirmação”. Em nota de rodapé, ele diz
que “essa estratégia foi reutilizada nas décadas de 1970 e 80 pelos movimenos negros”
4 Ver, entre outros, Fry et alli (1988:251), onde há a descrição de um préstito do Pândegos d’Áfricareproduzida de Manoel Querino 1955; Moura (2001:165) relata o conteúdo de um ‘manifesto’ enviado peloclube Embaixada Africana à polícia de Salvador; o mesmo manifesto está transcrito em Vieira Filho(1997:45-6), onde também há uma descrição jornalística do carnaval de 1899 do mesmo clube, cujo tema foi
34
(1997:50). Sem dúvida alguma, ‘auto-estima’, valorização das ‘raízes africanas’ e ‘auto-
afirmação’ fazem parte do vocabulário e das práticas dos movimentos negros recentes.
Contudo, ainda que sem “perder a dimensão da africanidade”, o próprio autor ressalta o
desejo desses grupos de fazerem uso de “uma nova forma de expressão, aceita pela
sociedade” (:54). E neste ponto eles estão bem mais próximos da Frente Negra Brasileira,
movimento negro dos anos 30, do que dos movimentos negros das décadas de 70 e 80:
enquanto a primeira valorizava o ‘ser negro’, mostrando-o capaz de adaptar-se às
exigências da sociedade, de tornar-se um ‘igual’, os últimos buscavam a igualdade pela
valorização da diferença. Mas este assunto será retomado adiante.
Além dos clubes negros, havia também os batuques, cuja ocorrência era mais
visível na periferia da cidade. Nas reproduções de notícias jornalísticas dos primeiros anos
do século XX, retiradas de Nina Rodrigues (1905) e que constam do artigo de Fry et alli
(1988:253-255), o termo “batuque” sempre vem adjetivado de “africanizado” ou
“africano” e está relacionado com o candomblé. Os batuques e o uso de “costumes
africanos” foram proibidos em 1905, e, a cada carnaval, os editais de proibição eram
publicados, até 1913 (:256). É claro que a proibição não significou a extinção dos
batuques, mas a retirada dos grandes clubes africanos da cena principal do carnaval baiano
deu ‘fim’ ao primeiro período de africanização do carnaval.
Por volta de 1920, segundo Guerreiro (2000:71), os afoxés, que já existiam desde o
século XIX mas que também enfrentaram a proibição das ‘manifestações africanas’,
voltaram a aparecer – embora nunca tenham desaparecido por completo – no cenário do
carnaval, porém agora incorporando novos elementos e assemelhando-se, na estrutura do
desfile, aos préstitos dos clubes negros proibidos na década anterior. Conhecidos como
“candomblés de rua”, os afoxés resistiram por todo o século XX, com momentos de
o Egito (:49-50); Guerreiro (2000:69-70) dedica um pequeno capítulo ao tema (“Os Clubes Negros”) e
35
expansão e de retração, ou de “fluxo” e “refluxo”, como diz Risério (:17). Apesar da
presença dos afoxés no carnaval, é preciso ressaltar que a prática de “costumes africanos”
permaneceu proibida e só em 1938 as casas de candomblé puderam voltar a realizar
cerimônias públicas, desde que pedissem autorização à polícia. A licença só deixou de ser
obrigatória em 1976 (Morales 1988:268).
No capítulo que dedica ao Afoxé Filhos de Gandhi, Risério (:52-54) reproduz uma
informação de Raul Giovanni Lody retirada da coleção ‘Cadernos de Folclore’ sobre o
quase desaparecimento dos afoxés a partir de 1929. O surgimento do Filhos de Gandhi em
1949, teria ocorrido, então, num momento de revitalização dos afoxés, que vieram a sofrer
um novo período de esmorecimento até o “renascimento” do próprio Filhos de Gandhi,
cujo resgate é atribuído a Gilberto Gil na segunda metade da década de 70. Risério
considera o “renascimento” desse afoxé como o “segundo momento-chave de
reafricanização do carnaval baiano” (:53). O primeiro seria a fundação do Bloco Afro Ilê
Aiyê (:38) e o terceiro, a fundação do Afoxé Badauê (:63), chamado por ele de ‘novo’
afoxé5. Assim, a presença de “verdadeiras tribos afrobaianas” desfilando pelo circuito
carnavalesco, com “pessoas exibindo trancinhas variadas e caprichosas, vestindo panos e
batas, torsos e turbantes, colares e búzios, ao som dos atabaques e de cantigas bainagôs”
fez Risério (:16) aproximar esse momento daquele descrito por Nina Rodrigues em 1905.
Depois da ausência de grupos carnavalescos mais identificados com a questão negra
durante vários anos, a emergência dos blocos afro e dos novos afoxés, além da presença
marcante do Filhos de Gandhi nas ruas, vieram modificar o carnaval, torná-lo outro,
reafricanizado, por isso “novo carnaval afrobaiano”, como consta do subtítulo.
A percepção de Risério de que o nascimento ou o re-nascimento dessas entidades
foram “momentos-chave” desse período que ele chamou de reafricanização do carnaval,
Santos 1997, sobre ‘batuques’ e ‘sambas’ do carnaval baiano do séc. XIX.
36
não deve deixar perder de vista que os [res]surgimentos desses grupos tanto são produtos
quanto produtores de novos desejos, de novas formas de perceber o mundo que não se
restringem aos dias da festa carnavalesca, como tão bem o diz Risério:
“Desse modo, a ‘reafricanização’ de que falo não é simplesmentecarnavalesca. Trata-se de um processo bem mais geral: o da‘reafricanização’ da vida baiana (e brasileira, evidentemente; aparticularização vai por conta da perspectiva regional aqui adotada).‘Reafricanização’ que está tendo, no carnaval, seu clímax, suaexpressão mais densa e colorida, mas que de modo algum se resumeaí” (:19).
Seguem-se, então, alguns dos movimentos produtores dos fluxos que, ao se
encontrarem, reafricanizaram a vida do país, de Salvador e, conseqüentemente, de Ilhéus.
Ventos de lá
O título acima refere-se a movimentos externos ao Brasil, ocorridos entre as
décadas de 60 e 70, que produziram fluxos que, em maior ou menor grau, entraram em
agenciamentos com outros produzidos aqui e ajudaram a transformar desejos e práticas de
uma parcela da população negra brasileira, especialmente na cidade de Salvador. Tendo-se
em mente que a percepção da importância desses movimentos é a posteriori e dada em
função dos produtos dos encontros, não é rentável tratá-los isoladamente, como
acontecimentos em si. Contudo, com o objetivo de apresentar melhor a argumentação, a
opção foi por destacá-los dos movimentos internos – os ‘ventos de cá’, título
absolutamente previsível da próxima seção – sem deixar de observar as relações cabíveis.
Nos anos 70, a influência africana sobre os movimentos negros brasileiros foi
intensa. Tal afirmação soa de modo estranho a partir da ótica de que, no limite, qualquer
manifestação negra nas Américas é de origem africana, nascida da diáspora. Como ‘raiz’,
ainda que de práticas culturais consideradas americanas, como o samba, o reggae ou o
jazz, ou como ‘tradição’, ‘lembrança’, o continente africano sempre esteve presente, mas
5 A emergência dos blocos afro e dos ‘novos’ afoxés será descrita adiante.
37
sempre enquanto passado (perdão pelo trocadilho), seja como passado longínquo, na
origem de tudo, ou como passado mítico. Em relação ao primeiro caso, observe-se, por
exemplo, a construção do mito de formação do povo brasileiro a partir das ‘três raças’: o
‘índio’ estava aqui, era o ‘dono da terra’; o branco veio da Europa ‘civilizada’ para
‘desenvolver’ o lugar; e o ‘negro’ veio da África para ‘contribuir’ com seu trabalho e seus
costumes6. Já o ‘passado mítico’ aparece nas referências do candomblé e de outros
símbolos de religiões afro-brasileiras.
Mesmo para ser negada, a África estava lá, quando, por exemplo, nos elogios da
imprensa baiana aos préstitos dos clubes negros nos carnavais do final do século XIX e do
início do XX, que se distanciavam dos ‘batuques africanos’, como já observado na seção
anterior, para falar de uma África de reis e rainhas, uma ‘África nobre’ (Nina Rodrigues,
1905). Segundo Pinto (1995), a postura do movimento negro antes da década de 70 era a
de valorizar a África e seus habitantes como ancestrais do povo brasileiro, mas criticando
suas guerras, sua não aceitação do modo de vida ocidental. O colonialismo também não
era alvo de críticas e parecia “ser encarado como algo natural” (:118). Dessa forma, a
África ‘primitiva’ e idealizada era valorizada, enquanto a África vivida era depreciada.
Porém, na década de 70, a influência africana sobre os movimentos negros
brasileiros vem das notícias que chegam de uma África real, do presente. O interesse dos
movimentos negros pelo continente africano ‘contemporâneo’ é fruto de uma conjunção
de fatores, melhor dizendo, de encontros de fluxos que mudaram o foco através do qual
esse era visto: fluxos da popularização e do avanço tecnológico dos meios de
comunicação, especialmente da TV; fluxos da Guerra Fria; fluxos dos movimentos negros
norte-americanos; fluxos da soul music e do reggae; fluxos dos interesses comerciais do
6 Versão bastante simplificada e resumida de um senso comum construído ao longo do século XX porgoverno e intelectuais, mas ainda presente em livros didáticos e mais ou menos reproduzida nascomemorações dos 500 anos do ‘Descobrimento do Brasil’, em 2000.
38
Estado Brasileiro e, principalmente, mas sem esgotar todas as possibilidades, fluxos
produzidos pela própria mudança de definição dos movimentos nesse período.
Nos anos 70, como já observado anteriormente, diferentes grupos sociais que não
podiam ser contemplados pelas lutas travadas na esfera das relações de produção nem pela
política stricto senso – já que eram excluídos delas –, organizaram-se com base em suas
especificidades. Esses grupos caracterizavam-se por um modo de atuação distinto dos
sindicatos, justificado pela identificação de formas de opressão – “a guerra, a poluição, o
machismo, o racismo” (Santos 1997:258) – que não passavam pelas questões trabalhistas e
foram chamados pela sociologia de novos movimentos sociais (o movimento sindical era o
‘velho’ movimento social). Entre as novas organizações estavam aquelas formadas a partir
do objetivo comum de promover uma melhor qualidade de vida para a população negra,
embora pudessem diferir radicalmente nas concepções e estratégias de atuação7. Contra a
proposta integracionista da maior parte dos movimentos negros conhecidos até então, era
preciso investir na diferença para mostrar que o problema do ‘negro’ era diferente do
problema do ‘operário’, ou seja, que não se tratava de uma questão de classe, mas de
racismo; que não bastaria ‘educar’ ‘o negro’ para inseri-lo na ‘sociedade brasileira’, tal
como defendiam a Frente Negra Brasileira, os chamados ‘clubes de negros’ ou até mesmo
o Teatro Experimental do Negro8, embora este último tivesse um discurso bastante
combativo contra o racismo e Abdias Nascimento, seu idealizador, tenha se tornado um
dos maiores nomes na luta contra a discriminação racial no Brasil. Assim, para denunciar
que a ‘democracia racial’ era um ‘mito’, que a condição de ser negro – assim como de ser
7 Refiro-me às entidades chamadas ‘culturalistas’ e as ditas ‘políticas’, sendo ambos os termos usados comodefinição ou como acusação por militantes e estudiosos.8 “Esse movimento [Frente Negra Brasileira], transformado em partido político em 1936 e interditado no anoseguinte, como todos os outros partidos políticos do país pela ditadura de Getúlio Vargas, e todos os demaismovimentos negros que apareceram e desapareceram entre 1945 e 1970 (por ex.: Primeira ConvençãoNacional do Negro, Teatro Experimental do Negro) estavam preocupados em dar ao negro uma novaimagem, semelhante àquela proposta pela ideologia de ‘democracia racial’. Todos escolheram a escola e a
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mulher, índio, homossexual, deficiente físico ou mental... – trazia problemas muito
específicos e, portanto, exigia também direitos específicos, dever-se-ia dar visibilidade à
população negra, encoberta pela idéia de mestiçagem e pela política de formação de um
‘povo brasileiro’9. Tal visibilidade só poderia ser estabelecida através da noção de
diferença da população negra frente à população brasileira.
Fazendo uma síntese das leituras de intelectuais e militantes negros a respeito dos
rumos da luta anti-racista no Brasil nos anos 70, Cunha (2000) explica a argumentação de
Lélia González – antropóloga, intelectual e militante negra das mais ativas – de que a
noção de “cultura negra”, justamente porque se contrapondo à de “cultura popular”, seria
o melhor lugar para marcar essa diferença e abrigar a tamanha diversidade de
organizações e movimentos negros no Brasil, pois
“Nesse momento, a idéia de ‘diferença’ tem um status ontológico, aoser explicada como um conjunto diversificado de elementos cultural ehistoricamente determinados pela origem e pelas vicissitudes dapresença negra nas Américas. E se há um lugar que lhe éprivilegiado, é no plano da cultura” (Cunha 2000:339).
Assim, tomando a ‘cultura negra’ como “referencial coletivo” (:339) cujos
‘elementos’ são dados por uma ‘origem’ comum e pelas experiências de um povo – o
africano – pelas ‘Américas’ a partir de um mesmo processo – a diáspora forçada pela
escravidão –, fica fácil entender porque o interesse pela África e pelo que pudesse ser
entendido como de origem africana se fez tão presente nos movimentos negros brasileiros
nos anos 70 e 80. Nesse contexto, a “cultura negra” era “resistência contra a opressão”
(:339) e estratégia de “mobilização negra” (:340). Esse mesmo movimento de valorização
da África e da experiência comum da diáspora teve como corolário ou como inspiração,
educação como campo de batalha. Pensavam eles que o racismo, filho da ignorância, terminaria graças àtolerância proporcionada pela educação” (Munanga 1999:97).9 Ver, entre outros, Munanga (1999), especialmente o Capítulo V, em que o autor discute a tese de DarcyRibeiro sobre a formação de uma ‘etnia nacional’. Note-se ainda que, embora trinta anos tenham se passadodesde o início desse processo, a maior parte dos argumentos contra a adoção de políticas de cotas atualmente
40
talvez tudo ao mesmo tempo, o reforço de uma idéia pan-africanista e as influências dos
movimentos negros norte-americanos, do reggae jamaicano e das lutas pela independência
dos países africanos.
Os movimentos de independência africanos
Tal como anunciado páginas atrás, a obra de Risério é o principal ‘guia’ de
apresentação desses primeiros encontros. Para ele, os movimentos e as conquistas de
independência dos países africanos, especialmente das ex-colônias portuguesas da África
Negra – Guiné-Bissau (1974), Moçambique e Angola (1975) – tiveram um lugar
importantíssimo no processo de reafricanização da juventude negra de Salvador. A vitória
dos movimentos guerrilheiros para a população negra brasileira era motivo de orgulho e
provocou “um verdadeiro boom (...) de entidades e grupos voltados para a celebração da
África Negra” (:37), o que é refletido nas fantasias, nas músicas, nos temas apresentados
pelos blocos afro nos desfiles de carnaval. Nas quatro páginas que dedica ao assunto,
Risério aponta diferentes elementos que ajudaram a produzir a enorme repercussão que
esses movimentos de independência africanos tiveram junto aos movimentos negros
brasileiros: o pan-africanismo, a política externa do governo brasileiro, os movimentos de
esquerda...
O movimento pan-africanista não era exatamente uma novidade. Em 1900, Du
Bois, americano conhecido como o “pai do pan-africanismo contemporâneo”, foi
secretário do Primeiro Congresso Pan-africano, realizado em Londres (Munanga 1988:36).
Dos anos 20 aos 60, organizou cinco congressos pan-africanos na França, na Inglaterra e
nos Estados Unidos (Silva 2001:20). Enquanto movimento que pretendia aglutinar as
nações do continente africano contra o poder colonial ocidental, ele não foi bem sucedido.
continua baseada na invisibilidade da população negra, ou seja, na alegada dificuldade de se definir ‘quem énegro’ no Brasil.
41
No entanto, sua importância não pode ser menosprezada, principalmente no que diz
respeito a formulações de conceitos como ‘negritude’ – sobre o qual Munanga diz que o
pan-africanismo é seu predecessor (1988:35) – e ‘consciência negra’, ambos fundamentais
para a constituição dos movimentos negros contemporâneos. Seu legado foi o de colocar a
‘cultura africana’ como centro de convergência, posto que é origem, dos povos da
diáspora, promovendo a solidariedade entre eles e a descoberta de uma história comum.
Como diz Silva, “da relação entre consciência negra e pan-africanismo poderíamos
ressaltar a importância dada à cultura africana como forma de promover o auto-
conhecimento e a auto-estima” (2001:36). E é a esse ‘pan-africanismo’ que Risério se
refere. Trata-se de um sentimento, por parte da população negra de Salvador, de relação
com a África como origem, como “raiz-afro-mãe” – expressão que ele toma emprestada
do Afoxé Badauê (:37) – e de solidariedade entre ‘os negros’ do mundo. Este sentimento
fez com que fosse muito importante para os ‘negros’ brasileiros tanto a luta por
independência dos ‘negros’ africanos quanto a luta contra a discriminação racial dos
‘negros’ norte-americanos.
É preciso atentar que o sentimento de solidariedade que mudava o olhar dos
movimentos negros brasileiros em relação à África, afetando a subjetividade de parte da
população negra soteropolitana (e brasileira) e favorecendo o processo de reafricanização
do carnaval e da vida em geral, era fruto do trabalho desses movimentos em torno da
noção de cultura negra enquanto estratégia de mobilização, tal como exposto acima, mas
também de uma série de outros fatores que, por sua vez, também provocavam maior
atenção ao continente africano, promoviam a solidariedade da população negra às questões
africanas e contribuíam para o desejo das pessoas de se mobilizarem para viver sua
‘cultura negra’.
42
Um desses outros fatores foi a política externa brasileira, especialmente do
Governo Geisel (1974-1979): “seja como for, a política externa brasileira permitiu que
fosse mais intensa e mais ampla, entre nós, a repercussão das revoluções africanas”
(Risério:36). Na página anterior a essa colocação, o autor comenta sobre sua satisfação em
relação à postura do governo brasileiro de reconhecimento das declarações de
independência dos países africanos de imediato, além de haver condenado a política do
apartheid na África do Sul e rejeitado “a interferência das potências imperialistas nos
assuntos internos das novas nações socialistas africanas” (:35).
Segundo Santos (2000), já no Governo Jânio Quadros o país começou a estabelecer
uma relação intensa com os países africanos, quando alguns ainda eram colônias
portuguesas mas já estavam em curso as lutas por independência. O Brasil colocava-se
como liderança desses frente às grandes potências com o argumento de ser “o maior
exemplo de integração e coexistência racial ‘conhecido através da História’” (:27). Risério
também observou que “a política externa de Geisel está[va] mais próxima da política
externa de Jânio Quadros, que condecorou Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul,
e do projeto de João Goulart, do que da política externa de Castelo Branco” (:35)10. Como
comprovação dessa tendência do governo Geisel, observe-se que em 1974 foi criado um
“Programa de Cooperação Cultural entre o Brasil e os países africanos visando o
‘desenvolvimento dos estudos afro-brasileiros’”, a partir de um convênio estabelecido
entre o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Educação, o Governo do
10 Com o intuito de situar o leitor que ignore história do Brasil em relação às colocações de Santos e deRisério, eis um pequeno resumo: Jânio Quadros foi eleito presidente do país em 1960, com o apoio dadireita, e teve João Goulart como seu vice, apoiado pelo PTB e pelo PSB, então partidos representantes daesquerda. O governo de Jânio durou apenas sete meses, mas nesse período ele reatou relações com a UniãoSoviética (‘desobedecendo’ as orientações dos Estados Unidos) e, como já observou Risério, condecorouChe Guevara, um dos líderes da Revolução Socialista de Cuba. Com a renúncia de Jânio, João Goulartassumiu o governo em 1961 e aí permaneceu até 1964, quando as Forças Armadas tomaram o poder egovernaram sob um regime de ditadura militar até 1985. O marechal Castelo Branco foi o primeiropresidente militar (1964-1967) e o general João Figueiredo, o último (1979-1985). O período do governo
43
Estado da Bahia, a Universidade Federal da Bahia e a Prefeitura Municipal de Salvador
(Santos 2000:128).
Menos entusiasmado do que Risério – que critica a “esquerda brasileira” por sua
desconfiança nas intenções economicamente desinteressadas do governo militar, embora
admitindo que o comércio poderia ser uma motivação (:35) –, Santos mostra que a relação
do governo com os países africanos recém-independentes estava inserida num projeto
mais amplo, de forma alguma exclusiva do governo Geisel, de investimento na imagem do
Brasil como uma democracia racial. Longe de pretender estabelecer uma relação de
subordinação, é preciso não esquecer que questões econômicas, especialmente com o
continente africano, passavam pela afirmação de tal imagem: “apresentar a si mesmo
como uma nação racialmente misturada [“mixed-race”] facilitou os esforços do Brasil para
forjar laços políticos e econômicos com países africanos recentemente independentes”
(1998:120).
As observações de Santos sobre a imagem de nação racialmente democrática que o
governo brasileiro fazia questão de transmitir remetem a um outro desses elementos, ou
fluxos, que nos encontros entre si e com outros produziram novas subjetividades, que
geraram um maior interesse pela África e o sentimento de solidariedade com os povos
africanos em luta, assim como o desencadeamento do processo que Risério denominou
reafricanização. Trata-se da própria postura do governo brasileiro, assim como do governo
baiano, que desde os anos 50, e ainda mais explicitamente nos 60 e 70, investem esforços
na produção de uma ‘cultura afro-brasileira’ que, desde que abrigada no domínio do
folclore, é importante na produção de uma ‘cultura nacional’, de uma ‘cultura brasileira’,
Ernesto Geisel (1974-1979) ficou conhecido como de ‘distensão’ do regime militar. Já o seguinte, deFigueiredo, foi o da ‘abertura democrática’.
44
que reflita a nação ‘misturada’ e sem ‘preconceitos raciais’11. Em função da organização
proposta para este capítulo que divide os ‘ventos de lá’ e os ‘ventos de cá’, este tema será
melhor trabalhado na próxima seção. No momento, importa registrar que o interesse de
diferentes governos na construção de uma ‘cultura afro-brasileira’ contribuiu para dar um
novo lugar à África de maneira semelhante aos movimentos negros brasileiros e sua
aposta de mobilização em torno da ‘cultura negra’. Além disso, seguindo o espírito deste
trabalho e observando os grupos ‘afro-culturais’ do período posterior aos anos 70, é
plausível imaginar que uns e outros investimentos tenham se afetado mutuamente, ainda
que os resultados esperados fossem opostos.
Se, como ressalta Risério, a postura do governo Geisel de reconhecer as
declarações de independência das ex-colônias portuguesas contribuiu para que a
repercussão desses acontecimentos fosse “mais intensa e mais ampla entre nós” (:36),
pode-se dizer o mesmo dos movimentos de esquerda brasileiros. Voltando a Santos (1998)
e à política externa brasileira em relação à África, o autor diz que as mudanças do governo
Castelo Branco em comparação ao de João Goulart “podem ser vistas na restauração do
tratamento privilegiado dado a Portugal e na leitura do governo militar de que acontecia
uma infiltração do comunismo internacional no continente africano” (:52). De fato esta
leitura estava correta. Os movimentos guerrilheiros das ex-colônias tinham uma orientação
socialista: em meados da década de 60, Cuba chegou a enviar soldados para o Congo,
tendo Che Guevara à frente e, após a independência, Angola e Moçambique contaram com
a ajuda de países do bloco socialista para resistirem aos grupos contra-revolucionários,
tanto internos aos países quanto organizados pela África do Sul e que eram apoiados pelos
Estados Unidos (Silva 2001:27) – era a Guerra Fria em curso. Baseados no ideal do
11 As elites brasileiras pregam a ausência de racismo no país desde a independência, como argumenta Flory(1977), cuja tese será explicitada no próximo capítulo. Na verdade, negar qualquer tipo de ‘problema racial’,
45
socialismo internacional, no “combate planetário contra os imperialismos” (Jean Ziégler
apud Risério:36), os movimentos de esquerda brasileiros acompanhavam de perto os
movimentos revolucionários africanos. E a partir dos objetivos de ‘conscientização’, de
‘mobilização’, de ‘politização’ dos grupos culturais negros12, militantes e intelectuais
buscavam inserir-se neles e levavam informações e leituras sobre os movimentos
africanos. Os movimentos ‘culturais’, por sua vez, trabalhavam essas informações,
transformavam-nas em nomes de entidades, em cores dos blocos afro, em temas de desfile,
em seminários, em comemorações13, em músicas e ‘africanizavam’, ou ‘re-africanizavam’,
para seguir Risério, a cidade de Salvador. Mais uma vez, tal como foi dito acima a respeito
das construções das noções de ‘cultura afro-brasileira’ e ‘cultura negra’, tem-se governo e
movimentos negros (‘culturais’ e ‘políticos’) com objetivos opostos e resultados
semelhantes, além de influências mútuas.
Como diz Silva: “Ao seguir uma linha que dava respostas à radicalização colonial,
alguns países acabaram por se tornar referências importantes, não só no processo de
descolonização africana, como também para a organização política dos negros da
diáspora.” (2001:26). Tal referência é bastante explícita na fala de João Jorge, líder do
Olodum, que diz que os movimentos negros culturais não buscavam uma África mítica,
imaginada, nem originada em apenas uma parte do continente:
“nós viemos de diferentes lugares e, então, absorvemos as idéias deKwame Nkrumah [líder na independência de Gana], Sekou Toure[presidente da Guiné], Amílcar Cabral [poeta e líder daindependência de Guiné-Bissau], Agostinho Neto [também líder na
conceber a nação como ‘misturada’, foi um recurso utilizado pelas elites latino-americanas de modo geral(ver, p. ex., Cunha 1991:14 sobre a Jamaica).12 Mas não exclusivamente destes, como observa Cunha (2000:337-8): “É importante ressaltar que as críticasdo que se concebia como ‘culturalismo’, ao lado do que se imaginava caracterizar a cultura política dasrelações entre as classes dominantes e as classes populares – a cooptação –, não penetraram exclusivamentenos domínios da militância negra. Ao contrário, fizeram parte de uma espécie de ethos político que percorriavários movimentos sociais e grupos de esquerda no mesmo período. A ‘politização’, por exemplo, que sedava num momento de distensão do regime militar, era vista como objetivo principal num momento dereorganização popular, diante da dispersão provocada pela censura e pelo terror”.13 Agier (2000:123-4) informa, por exemplo, que o Ilê Aiyê, ainda que não regularmente, costumacomemorar a Independência de Angola em 11 de novembro.
46
luta pela independência de Angola], Samora Machel [revolucionário eprimeiro presidente de Moçambique independente], Cheikh AntaDiop [historiador que defendia a tese da origem negra dos egípcios], eFranz Fanon [um dos principais formuladores das teoriasanticolonialistas e contra o racismo], e nós tentamos tirar essas idéiasdas salas de aula e das bibliotecas e compartilhá-las com quem temsido abusado pela polícia muitas vezes” (citado por Armstrong2001:187-8).
Os movimentos negros norte-americanos
Tal como influenciaram os movimentos negros brasileiros, as lutas por
independência que resultaram nas revoluções das ex-colônias portuguesas da década de
70, assim como a luta contra o apartheid na África do Sul, também agiram sobre os
movimentos por direitos civis nos Estados Unidos que, por sua vez, tiveram uma forte
influência sobre a juventude negra brasileira. O desenvolvimento dos meios de
comunicação, especialmente a popularização da TV nos anos 60, permitiu que as notícias
sobre as lutas dos movimentos negros norte-americanos chegassem à população negra
brasileira nas grandes cidades. Risério diz que
“As notícias sobre a movimentação da juventude negra norte-americana chegavam de forma distorcida e fragmentada na Bahia.Mas não pode haver dúvida alguma de que era grande a curiosidade emaior ainda o fascínio em relação ao fato dos negros estarem seorganizando nos EUA, chegando mesmo a extremoscinematográficos, digamos assim, com os panteras negrasatravessando guetos em tiroteio com a polícia” (:34).
Assim, o assassinato de Malcom X, em 1965, e de Martin Luther King em 1968; a
organização do grupo guerrilheiro Panteras Negras, no final da década de 60 e início de
70, e especialmente o movimento que ficou conhecido como Black Power – menos uma
organização do que uma postura diante da ‘sociedade’ norte-americana –, repercutiram
sobremaneira no Brasil. Foi pela TV que o Brasil viu dois atletas negros americanos
erguerem os pulsos cerrados cobertos por luvas pretas – símbolo do Black Power – quando
eram condecorados nas Olimpíadas do México, em 1968 (Silva 2001:32 e Risério:23).
Também foi através da TV que chegou ao Brasil uma ‘imagem’ de como se vestia e se
47
comportava, de qual era a música do ‘negro’ adepto do Black Power: Risério comenta
sobre a “intensa influência” dos Jackson Five sobre o “comportamento da juventude negra
baiana” através de seu seriado semanal (:28). O grupo Jackson Five era só mais um
representante da soul music, que Risério define como “música feita por negros, dentro da
tradição musical negra norte-americana, comentando aspectos da vida negra e celebrando
o ser negro e a beleza negra, dirigida a um público essencialmente negro” (:29). Mas a
soul music chegava ao Brasil também por outras vias, sendo James Brown seu maior
ídolo.
Invariavelmente, a entrada da soul music no Brasil no início dos anos 70,
inicialmente no Rio de Janeiro, depois outras grandes cidades como São Paulo, Campinas
e Salvador, é incluída como um momento importante na ‘história’ do movimento negro
brasileiro. Sua importância na argumentação varia se a discussão subjacente à ‘introdução’
for direcionada aos movimentos de caráter ‘mais’ político ou ‘mais’ cultural e também
quanto ao lugar do objeto a ser discutido – Rio/São Paulo ou Salvador, mas a descrição do
movimento black, como se costuma dizer, não muda muito de enfoque de um autor para
outro: a música, a estética e o caráter comercial são os aspectos ressaltados.
A soul music chegou ao Brasil pelos bairros do subúrbio da Zona Norte do Rio de
Janeiro. Os grandes bailes de ‘disco soul club’ eram organizados por ‘equipes’ e reuniam
milhares de jovens negros nos ginásios de clubes sociais ou esportivos – Risério fala de 5
a 10 mil (:30) e Hanchard cita de 3 a 10 mil pessoas (2001:136). O movimento de
realização desses bailes ficou conhecido como Black Rio e provocou uma grande polêmica
entre intelectuais e militantes do movimento negro da época. Risério, por exemplo, cita a
antropóloga Lélia Gonzalez como sendo uma dessas pessoas que condenavam o
movimento por sua “alienação” e por ser uma “imitação terceiromundista da juventude
negra dos EUA” (:30). Crítica esperada de uma esquerda que vivia sob uma ditadura
48
militar apoiada pelos Estados Unidos em plena Guerra Fria, além de ter por orientação
política a concepção de ‘vanguarda’, muito presente nos movimentos e partidos de
esquerda, que consistia – ou infelizmente ainda consiste – na auto-atribuição do dever e da
capacidade de ‘guiar’ a ‘massa’. Assim, um movimento de massa que, como frisa Mitchell
(1985:108), “tem tons políticos, embora não o seja exatamente”, que não fosse coordenado
pela vanguarda de esquerda, só poderia mesmo ser criticado por ela. O movimento Black
Rio era acusado de ser muito ‘comercial’, principalmente em função da participação de
alguns de seus precursores na produção de discos comerciais e na organização de shows,
quanto mais se estes acontecessem na Zona Sul do Rio de Janeiro e estivessem
direcionados a uma classe média branca, o que fez o movimento ser incorporado à
indústria do entretenimento e do turismo (Hanchard 2001:140).
A ‘falta de autenticidade’ do Black Soul era uma outra acusação contra o
movimento. Como já referido acima, era comum tratá-lo como ‘imitação’ do movimento
negro norte-americano, em bastante evidência no início dos anos 70, e isso ocorria por
parte da esquerda e da direita brasileiras. Além de não ter o movimento sob seu controle, a
primeira o criticava porque estava empenhada em unir os diversos movimentos negros
brasileiros emergentes a partir de uma origem comum, baseada na ‘cultura afro-brasileira’;
a segunda continuava preocupada em solidificar a idéia de uma ‘cultura brasileira’, de uma
‘nação’ – esforço muito acentuado durante a ditadura militar – para o que era necessário
reforçar a imagem do Brasil como democracia racial. Por sua importância na formulação
desse ‘mito’, é bastante emblemático um artigo de Gilberto Freyre ‘alertando’ para o
perigo que um movimento como esse provocava, a saber: “introduzir, num Brasil que
cresce plena e fraternalmente moreno – o que parece provocar ciúmes nas nações que
também são birraciais ou trirraciais –, o mito da negritude, (...) que às vezes traz a ‘luta de
49
classes’ como instrumento da guerra civil”14. Hanchard informa que, embora não seja
possível comprovar, os primeiros organizadores de bailes de soul music no Rio contam
que eram vigiados pelo SNI (Serviço Nacional de Inteligência) (:139).
Apesar das críticas, era preciso reconhecer a importância do movimento, ainda que
esta fosse dada por sua possível conseqüência: os bailes possibilitavam a reunião de
pessoas negras que propunham uma estética negra, uma dança negra, uma música negra, o
que poderia vir a se transformar em ‘consciência negra’. Em artigo de 1982, Lélia
Gonzalez admite a relevância do movimento por sua “aglutinação de negros” (:32), que
também é destacada por Mitchell: “[o Black Soul] é um sinal de conflitos raciais trazidos à
superfície. Além disso, sua visibilidade tem ajudado a formar o desenvolvimento da
consciência política de outros. (...) Expressa sentimentos de assertividade racial de forma
difusa.” (:109). Hanchard segue esta mesma linha afirmando que o melhor do movimento
Black Soul foi provocar a reação das elites brancas e a “valorização de formas de auto-
expressão e identificação que eram anteriormente reprimidas ou negadas tanto por brancos
quanto por não-brancos no Brasil” (2001:142).
Apesar de estar quase sempre em oposição aos críticos do movimento, Risério
parece concordar que se tratava de um “modismo imposto pelos meios eletrônicos de
comunicação de massa, veiculando conteúdos ideológicos caros ao imperialismo norte-
americano”. Contudo, assim como para os autores citados acima, também para Risério o
importante foi que, num primeiro momento, o movimento permitiu “a identificação do
preto brasileiro com o preto norte-americano (...) no terreno da negritude”. Foi uma
maneira do “preto brasileiro” tornar-se “mais negro” (:31). Mas, a partir daí, Risério
diferencia-se dos demais, pois ele destaca o que seria a conseqüência boa do movimento
black soul: o que era de ‘fora’, mas era ‘negro’, fez a passagem para o que era ‘negro’ de
14 Artigo publicado em 15 de maio de 1977, no jornal Diário de Pernambuco citado por Hanchard 2001:138.
50
‘dentro’, ou seja, o interesse pela negritude norte-americana fez com que a população
negra brasileira também viesse a se interessar pela cultura afro-brasileira, especialmente
na Bahia, onde se deu “a passagem do soul ao ijexá, do black ao afro” (:31). Os dançarinos
de destaque dos blocos afro e afoxés começaram nos salões de soul music. A palavra de
ordem black is beautiful e a extrema valorização de uma estética black foram de suma
importância para outras transformações estéticas de auto-afirmação negra que ocorreriam
a partir do reggae e dos blocos afro. Aliás, na primeira música apresentada pelo Ilê Aiyê,
em seu primeiro desfile, essa influência pôde ser muito bem percebida: “somos crioulo
doido, somos bem legal / temos cabelo duro, somos black pau”15.
O reggae e o rastafarianismo
Além da soul music associada ao black power, também o reggae produziu
agenciamentos com tudo o mais que estava acontecendo em Salvador e teve uma
participação efetiva no processo de reafricanização. O reggae, de ‘origem’ jamaicana, tem
de ser entendido como um movimento que é mais do que musical porque também é
associado a uma estética, a uma imagem, a um comportamento, a uma visão de mundo, a
uma postura política, a uma religião.
O rastafarianismo, movimento étnico-político-religioso fundamentado numa leitura
étnica da Bíblia e que tem o reggae como principal forma de divulgação, prega o retorno à
África, utiliza símbolos de origem africana – como a bandeira da Etiópia – e protesta
15 “Que bloco é esse?”, de Paulinho Camafeu. Aproveito o ensejo para fazer duas observações. A primeira éque a expressão ‘cabelo duro’, que nesta composição é símbolo de ‘negritude’, também foi utilizada pelocompositor em um outro grande sucesso seu, a música “Fricote”, mais conhecida como “Nega do CabeloDuro” e que indignou o movimento negro na ocasião, “que via ali uma manifestação de racismo” (Guerreiro2000:141). A outra observação diz respeito a especulações sobre a expressão ‘black pau’, grafada destaforma no encarte do disco. Não há dúvidas de que se trata de uma corruptela da expressão ‘black power’.Risério reproduz a música com a grafia “bleque pau” (:134). E Agier (2000:121), o segue, mas propõe uma‘explicação’: o autor informa em nota que a expressão Black Power é escrita em português como épronunciada, ou seja, “bleque pau”, porém, de acordo com suas conclusões, esta ‘transformação” lingüística
51
contra as condições de opressão em que vivem as populações negras da diáspora, lutando
pela sua libertação através da destruição da ‘Babilônia’ – “termo usado como referência
aos instrumentos de dominação através do qual o “branco” impede a consciência dos
povos negros dominados” (Cunha 1993:23), ‘o sistema’ capitalista16. Como sintetiza
Cunha:
“Ainda que buscando valores na África, a ‘cultura negra’ expressa nafala do rasta também é produto de uma multiplicidade de expressõesculturais oriunda dos guetos e das ruas dos grandes centros urbanos.É a expressão político-cultural de um exílio” [pois] “a Jamaica, e porextensão o Ocidente, não são vistos como pátria, mas exílio”(1993:09;25) 17.
Segundo Godi (2001:212), o desenvolvimento dos meios de comunicação e de um
“mercado cultural eletrônico” foram fundamentais para o surgimento do reggae. O
processo pode ser sucintamente descrito da seguinte forma: as novas tecnologias de
comunicação promoveram a chegada da programação de rádio do sul dos Estados Unidos,
mais especificamente da “música popular afro-americana”, a soul music, à Jamaica. Da
sua fusão com o rock steady, que por sua vez já era uma fusão de ritmos ‘afro-caribenhos’
com música afro-americana (Pinho 1997), nasceu o reggae, apropriado pelo movimento
rastafari como sua principal forma de divulgação18. Até 1962, a Jamaica era uma colônia
inglesa, o que favoreceu a entrada do reggae e do rastafarianismo em Londres,
considerado o ponto de partida para a sua difusão, especialmente pelos países da ‘diáspora
negra’.
seria proposital, pois a palavra ‘pau’ introduziria “uma ambigüidade sobre o sentido da expressão: ‘pau’ étanto o ‘pênis’ (em português) quanto o ‘poder’ (power)”.16 “A redenção dizia respeito à interpretação da África como sendo a ‘pátria mãe’ e a Etiópia como ‘paraísoancestral’ às quais se referiam os textos bíblicos. Sob este prisma havia a negação da cidadania americanaem troca de um reconhecimento religioso e histórico da ancestralidade africana. Identificar-se como‘africano’ era reconhecer essa filiação e rejeitar os conceitos de ‘inferioridade’ e ‘atraso mental’ imputadosaos escravos e seus descendentes” (Cunha 1991:18, sobre as idéias de Marcos Garvey, líder negro precursorda doutrina rastafari).17 Sobre rastafarianismo e reggae no Brasil, especialmente em Salvador, ver principalmente Cunha (1991 e1993), também Godi (2001) e Pinho (2001), entre outros; e Silva (1995) sobre São Luís/MA, considerada acapital do reggae no Brasil.18 Para uma versão bem mais aprofundada, ver Cunha 1991, capítulo I.
52
“Ainda que se misturando às realidades culturais, políticas ereligiosas desses novos contextos, o reggae e os temas rastafari serãoveiculados através de formas de comunicação visual e um discursoétnico, ambos reforçando a idéia de uma unidade histórica, política ecultural de toda a diáspora em torno da África e da Etiópia” (Cunha1993:11).
Dessa forma, o movimento rastafari e o reggae compunham o cenário do qual também
faziam parte as lutas pela descolonização no continente africano e pelos direitos civis nos
Estados Unidos. Esses movimentos geraram fluxos que produziram novas visões de
mundo e solidariedade entre as populações negras, sem perder de vista que eles próprios
foram se constituindo no encontro desses fluxos. Cunha assinala essas interferências
mútuas, esse entrecruzamento de fluxos:
“A influência dos movimentos pelos direitos civis e a luta contra oracismo repercutiu na Jamaica. Entre eles, principalmente apropaganda em torno da reafirmação de novos padrões de beleza e asreivindicações em torno da liberdade de organização e poder político.O movimento Black Power jamaicano começava a dar os seusprimeiros passos tentando resgatar, ao mesmo tempo, as experiênciasde Garvey. (...) A África e tudo que a simboliza deixa de fazer parteapenas do imaginário rastafari e garveyista. Não só na dimensãoestética, com os “penteados afros” e as roupas com estamparias emotivos africanos, como também há um crescente interesse pelahistória e os acontecimentos políticos do continente africano. De certaforma, a exaltação da África e as principais bandeiras levantadas porGarvey são retomadas, só que ao invés de sustentadas por umalinguagem bíblica, é o marxismo que dá o tom” (1991:34-5).
É importante notar também que o rastafarianismo e o reggae não chegam,
necessariamente, ‘em pacote’. Cunha (1991:31) atribui à “potencialidade estética” do
movimento rastafari a adoção deste ou daquele elemento: cabelos dreadlocks, roupas nas
cores vermelho, verde, amarelo e preto19, objetos que simbolizem a África, a Bandeira da
Etiópia, e, principalmente após sua morte, a foto de Bob Marley. E, obviamente, a
apropriação apenas do reggae, exclusivamente ou combinado com cabelos, cores, fotos.
Tudo depende do encontro.
19 “O uso dessas cores tem como inspiração a bandeira da Unidade Africana, idealizada por Marcus Garvey:o vermelho representa o sangue dos ‘mártires negros’, o preto a ‘cor da pele do povo africano’ e o verde avegetação e as ‘obras da criação’. Assim como, o uso das cores verde, vermelha e amarela representam as
53
Risério refere-se ao reggae por seu “parentesco estrutural” (este é o agenciamento
que ele privilegia) com o ijexá, ritmo originado no candomblé e utilizado, principalmente,
pelos afoxés (:115). Essa relação, existente ou não em termos de teoria musical, será
objeto de análise de vários trabalhos, especialmente quando o assunto em questão for o
‘samba-reggae’ – termo ainda inexistente quando Risério escreveu Carnaval Ijexá...
(1981) e consagrado anos depois como o ritmo próprio dos blocos afro20. Naquela ocasião,
Risério denominou essa ‘mistura’ como “afro-reggae ou reggae-ijexá” (:115). Contudo,
dado que se trata de um movimento, não foi apenas musicalmente que o reggae entrou no
mundo ‘afro’ das décadas de 70 e 80 em Salvador. Como diz ainda Risério:
“Também os compositores dos novos afoxés e blocos afro sentiramesse nexo existente entre o reggae e o ijexá, para além do fato dereconhecerem, nos crioulos jamaicanos à la Bob Marley e Peter Tosh,com suas tranças enormes e seus não menores morrões de maconha,as imagens vivas da emergência geral de uma nova negritude” (:115).
Aliás, vale lembrar que o reggae não participou dessa “emergência geral de uma
nova negritude” como ‘coadjuvante’. A denúncia do racismo sofrido pela população negra
e a valorização do continente africano eram propostas muito semelhantes às de outros
movimentos que participaram da composição daquele momento de reafricanização do
carnaval e da cidade. E elas começaram a chegar antes mesmo da fundação do Ilê Aiyê. A
primeira gravação de reggae no Brasil foi de Caetano Veloso ainda em 1972 (Pinho
2001:195). Neste mesmo ano, um primeiro disco foi gravado inteiramente com músicas no
estilo21. Além disso, segundo Godi (2001:215), Jimmy Cliff esteve pela primeira vez no
país em 1968. Nas décadas de 70 e 80, o reggae afirma-se na composição dessa
‘negritude’: a circulação cada vez maior de discos ou fitas cassete, a inauguração do
‘primeiro bar de reggae’, o Bar do Reggae em Salvador, mais precisamente no Pelourinho,
cores da bandeira da Etiópia (Barret1977:143 apud Cunha 1991:32).20 Ver, principalmente, Guerreiro (2000) e a resenha crítica deste trabalho de Luedy seguida da réplica deGuerreiro (Luedy e Guerreiro, 2000); ver também Cambria (2002), Godi (1997 e 2001).21 Segundo Pinho, foi o disco Reggae da Saudade, de Jorge Alfredo e Chico Evangelista (2001:195).
54
em 1978 (Pinho 1997:182-3), a vinda de Bob Marley em 1980 ao Rio de Janeiro e sua
declaração de que “samba e reggae são a mesma coisa, eles têm o mesmo sentimento de
raízes africanas” (Vidigal 1996 apud Pinho 2001:195) e seu retorno a Salvador em 1981;
ainda em 1980, Jimmy Cliff e Peter Tosh no Brasil; a fundação do Bloco Afro Muzenza,
em 1981, conhecido como o bloco do reggae... São fluxos se encontrando e criando planos
de consistência de onde ‘emerge’ essa ‘nova negritude’ de que fala Risério.
O rastafarianismo é aparentemente paradoxal: baseado no cristianismo, religião
símbolo da posição hegemônica de um mundo branco e capitalista, ele gerou a si mesmo e
a seus elementos, em conjunto ou separadamente, como símbolos ‘anti-ocidentais’, ou
‘anti-imperialistas’, como linhas de fuga da opressão racial, política e econômica, capazes
de, num determinado agenciamento, criar novas possibilidades de movimentos. Cunha
chama a atenção para esse aparente paradoxo ao assinalar que se trata de “um movimento
que surge a partir da inversão de símbolos religiosos que são concebidos como artifícios
de dominação política, de submissão racial e de omissão histórica”. A luta não consiste na
invenção de novos símbolos, mas na “reinvenção” destes; não se recusa a Bíblia, mas sua
leitura é outra; é preciso voltar à África, especialmente à Etiópia, mas para isso não há
outra forma senão usando os “instrumentos privilegiados pelo Sistema como eficazes
propagadores de suas idéias”. O objetivo é a “destruição” da Babilônia, o que só é possível
através da ‘conscientização’ dos ‘negros’ com as armas que ela mesma utiliza: as
inovações tecnológicas de comunicação, a “mass-media” (1991:13).
Desse mesmo ponto de vista, ou seja, de construção de uma perspectiva alternativa
à “modernidade ocidental” produzida por dentro, Pinho entende o reggae como um
elemento da ‘contracultura’ criada pela experiência da diáspora africana (2001:197). Seu
argumento baseia-se na idéia de “Atlântico Negro” de Paul Gilroy (2001). Segundo a
síntese formulada por Pinho (1997:195), o Atlântico Negro seria um “espaço formado
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pelos fluxos culturais e econômicos entre África, Caribe, América e Europa, como uma
entidade analítica complexa e dinâmica”. Gilroy sugere a imagem do navio em movimento
pelo Atlântico para o entendimento de sua proposta:
“A imagem do navio – um sistema vivo, microcultural emicropolítico em movimento – é particularmente importante porrazões históricas (...). Os navios imediatamente concentram a atençãona Middle Passage [passagem do meio], nos vários projetos deretorno redentor para uma terra natal africana, na circulação de idéiase ativistas, bem como no movimento de artefatos culturais e políticoschaves: panfletos, livros, registros fonográficos e coros” (2001:38).
Em sua argumentação, os fluxos ‘levados’ pelo ‘navio’ são produtos da escravidão
e das demandas dos descendentes de escravos por ela geradas, uma e outras imanentes à
‘modernidade’, pois essas demandas nascem da própria nova condição de cidadãos, e não
mais de escravos, produzindo uma leitura crítica da ‘modernidade’ e buscando alternativas
que gerem “melhores formas possíveis de existência social e política” (:99). A expressão
artística em geral, mas a música especificamente, é a forma por excelência de fazer essa
crítica, pois recusa a separação entre cultura e política estabelecida pelo ‘Ocidente’ e
carrega os “desejos utópicos” de novas relações sociais entre os descendentes da diáspora
e o mundo que a produziu. Pinho argumenta, então, que o reggae seria um ponto de
“articulação simbólica desta contracultura”, atravessando o Atlântico e propondo, em
conjunção com elementos locais, novas relações entre o “Ocidente e seus outros”, os
“afro-descendentes”, que ocupam “um lugar privilegiado entre as alteridades construídas
pela modernidade” (2001:197).
A contracultura
Como produto da diáspora africana e com capacidade de subverter a ordem
imposta pela ‘cultura ocidental’, Pinho (1997 e 2001) e Gilroy (2001) concebem o reggae
como contracultura. Porém, há também de se pensar sobre o encontro do reggae e de
parcela da juventude negra baiana com a ‘contracultura hegemônica’, se é possível usar o
56
termo para designar os movimentos de parcelas de juventude americana e européia que
promoveram o que ficou conhecido como ‘revolução cultural’ nos anos 60.
O movimento hippie, o maior representante da contracultura, guardaria
similaridades com o rastafarianismo na sua recusa ao capitalismo e no uso da música
associada à rebelião social (Godi 2001:209-10). O rock, no primeiro caso, e o reggae no
segundo, não nasceram atrelados a esses movimentos, mas foram associados a eles. E não
é difícil perceber a idéia de contestação contra o sistema capitalista, da “recusa
contracultural, utopia jovem underground, aos padrões da vida ocidental-tecnocrática”,
como diz Risério (:23), como um forte elemento de aproximação e de influência mútua
entre eles, sendo a música eletrônica também um fator fundamental na relação. Como
ressalta Godi (1997:93), Eric Clapton gravou Bob Marley e os Rolling Stones estavam nos
LPs de Peter Tosh.
No meio desses encontros, estava também a juventude negra baiana. Na visão de
Risério, o movimento de contracultura levou a “juventude brancomestiça”
economicamente privilegiada a buscar junto à “juventude negromestiça” pobre discursos e
costumes de oposição à ordem social vigente. E é claro que o encontro produziu mudanças
também na juventude negra, especialmente através de informações às quais ela não tinha
acesso (: 23).
Em Salvador, o candomblé acabou por exercer um papel importante nesse
movimento. A religião ‘exótica’ afro-brasileira atraía “colunáveis”, como ressalta Silveira
(1988:195), mas uma matéria jornalística de 1971, em parte reproduzida por Santos
(2000:172), afirma que a mesma busca por alternativas ao modelo de vida concebido
como ‘ocidental’ que levava “americanos e europeus” à “Índia, chamados pela concepção
oriental do mundo”, fazia com que brasileiros procurassem pelo candomblé, “religião de
origem africana, a qual oferece um universo primitivo e fantástico” (Revista Veja, n.161,
57
06/10/1971). Música, estética, linguagem, informação, drogas... produtos novos a cada
novo encontro.
À
A próxima seção de descrição desses ‘primeiros encontros’ terá por conteúdo,
conforme anunciado, os fluxos que circulavam por aqui e que a partir de seus encontros
com outros fluxos produziram o movimento negro na capital baiana nas décadas de 70 e
80. Antes de prosseguir, entretanto, é preciso reiterar que ‘vir de lá’ ou ‘estar por aqui’ são
qualificações superficiais que visam exclusivamente propor uma forma de organização da
exposição, a qual poderia vir a adquirir diversas outras orientações.
Como espero já ter demonstrado, a concepção epistemológica deste trabalho – que
consiste na idéia de que o que há é produção de fluxos que entram em agenciamento e
produzem novos fluxos e assim a vida social se produz – não admite um ‘antes’ e um
‘depois’, um ‘de fora’ e um ‘de dentro’, um ‘global’ e um ‘local’. Nesse sentido, citar o
reggae ou a soul music como fenômenos culturais/musicais/políticos originados na
Jamaica ou nos Estados Unidos – portanto, lá – e trazidos para o Brasil como se fossem
‘peças’ que pudessem ser modificadas, retrabalhadas, influenciadas por fluxos produzidos
aqui, não conseguiria expressar o processo de mistura22, a idéia do encontro. Ainda que
fosse possível – o que não é – determinar o primeiro disco de reggae ou de soul que entrou
no país ou a primeira pessoa que ouviu o estilo fora do país – no caso do reggae, alguns
autores sustentam que ele foi trazido por Gilberto Gil e Caetano Veloso que o teriam
ouvido enquanto estavam no exílio, em Londres –, não se poderia garantir que a ‘vida’
desses movimentos começou no Brasil nesse instante. Um cabelo diferente, uma camiseta
de tal cor, um toque de improviso num instrumento, uma especulação, uma notícia... Antes
58
mesmo do que seria o primeiro contato, um disco ou uma música ou uma idéia ‘de fora’
poderiam estar conectados com esse suposto ‘de dentro’, produzido com e por outros ‘de
fora’ e ‘de dentro’.
Assim, embora separando os fluxos trazidos pelos ‘ventos de lá’ dos ‘ventos de
cá’, a proposta deste trabalho se distingue muito da de Sansone (1997). Analisando o funk
nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador, ele pretende mostrar que fenômenos musicais
de origem anglo-saxônica, aí incluídos o reggae e a soul music – da qual o funk é uma
espécie de sucessor –, não são simplesmente reproduzidos e sofrem influências de
aspectos locais (:221). Sansone entende que nos “países do terceiro mundo”, na “periferia
da cultura juvenil globalizada”, essas manifestações culturais entendidas como a
“realidade juvenil e musical anglo-saxônica” (:219) são reconstruções locais de fenômenos
globais. Eles têm uma origem – anglo-saxônica – e são reinterpretados pelas culturas
locais, sendo um dos fatores importantes dessas ‘reinterpretações’ as possibilidades
econômicas de cada lugar. Assim, Sansone afirma que as cidades do Rio e de Salvador,
por não poderem consumir, por exemplo, reggae e hip-hop da mesma forma que Nova
Iorque, Londres ou Amsterdam, “mantêm uma posição periférica também com relação ao
‘Atlântico Negro’ e ao centro emissor da maioria dos símbolos e mercadorias dentro dos
fluxos globais associados à cultura negra internacional”, ou seja, “o mundo anglófono”
(:236). O autor ainda aponta, com base nos mesmos argumentos, que haveria, também,
uma hierarquização entre Rio de Janeiro e Salvador: a primeira cidade, por ter um maior
poder aquisitivo e maior contato com os centros produtores, teria uma “subcultura juvenil”
“menos local” do que a segunda (:237).
22 Segundo a Química, mistura não seria o melhor termo, sendo mais apropriado falar de reação química:quando uma substância entra em contato com outra e afinidades existentes entre si fazem com que esteencontro as transforme num novo produto.
59
O processo de ‘globalização’ no que diz respeito ao seu aspecto ‘cultural’ é tido
como inegável. No mesmo artigo trabalhado acima, Sansone, por exemplo, refere-se a
“uma indubitável globalização do universo da cultura juvenil” (:221), e ele está longe de
ser o único a defender essa concepção. Pinho (2001) também valoriza o aspecto cultural
entendendo a globalização como uma “complexificação das relações entre o Ocidente e
seus Outros” (:197)23. Abordar com profundidade a questão, comparando as perspectivas
existentes em torno do conceito de globalização, poderia ser um exercício interessante,
mas exaustivo e que, em minha proposta, já teria um final dado antecipadamente: a
refutação do conceito, pois este pressupõe sempre dicotomias que não se sustentam, como
local/global, ocidente/outros, centro/periferia etc. Pinho, por exemplo, diz que os “afro-
descendentes ocupam um lugar privilegiado entre as alteridades construídas pela
modernidade” na relação entre o “Ocidente e seus Outros” (:197). Mas, seriam mesmo os
afro-descendentes de Londres os ‘outros’ do Ocidente24? Já Sansone diria que eles são os
produtores do ‘global’, que ocupam o ‘centro’, enquanto os afro-descendentes baianos, por
exemplo, seriam os produtores do ‘local’, na ‘periferia’. Sansone explica essa ‘diferença’
de ‘outros’ pela hierarquização do ‘Atlântico Negro’, como já assinalado. Além disso, sua
‘unidade de análise’ também é diversa: a música negra da juventude anglo-saxônica é um
todo em relação a diversos outros – no Brasil, ele analisa ‘baianos’ e ‘cariocas’ como
‘outros’ distintos, o que faz pensar que haveria, então, vários ‘outros’. Por outro lado, ele
mesmo diz que “ser rastafari hoje não é a mesma coisa em Kingston, Londres ou
Salvador” (:237), mas, pensando em rastafarianismo e Kingston e Londres, qual das
cidades é o centro e qual é a periferia?
23 Apenas como um exemplo a mais entre tantos possíveis, ver Perrone e Dunn (2001), uma coletânea deartigos sobre música no Brasil e sua relação com o que seria um contexto global, da qual o artigo citado dePinho é parte.24 Dicotomias como ocidente/oriente, tradicional/moderno e tantas outras são recusadas da mesma forma.
60
A dicotomia local/global, ou qualquer outra que lhe faça as vezes, é falsa porque
para que ela exista é necessário imaginar um lugar que produza uma homogeneização que,
por sua vez, atingirá um outro lugar, natural e anteriormente heterogêneo àquele. Negri e
Hardt chamam a atenção para o fato de que
“as diferenças de localidade não são preexistentes nem naturais, masefeitos de um regime de produção. Da mesma forma, a globalidadenão deveria ser entendida em termos de homogeneização cultural,política ou econômica. A globalização, assim como a ‘localização’,deve ser entendida, em vez disso, como regime de produção deidentidade e diferença, ou de homogeneização e heterogeneização”(2001:64).
Então, globalidade ou localidade são produzidas de acordo com o momento, com o que é
privilegiado.
O que está sendo defendido aqui é que o agenciamento de fluxos sempre provoca
novas configurações. É claro que por razões econômicas, políticas e, principalmente,
históricas – que possibilitam as anteriores – há fluxos hegemônicos que podem
sobrecodificar outros, mas há aqueles que escapam da sobrecodificação, fazendo com que
saia algo realmente novo daí. Parece possível especular que o reggae que chegou a
Londres por imigrantes jamaicanos e que daí foi difundido para outras cidades tenha
sofrido ‘modificações locais’ mesmo em Nova Iorque; assim como o hip-hop
novaiorquino não deve funcionar da mesma forma em Londres – as apropriações são
sempre diferentes.
No capítulo que relaciona o movimento Black Rio com os blocos afro e os novos
afoxés, Risério termina ressaltando que não se trata de um antes e um depois, que “essas
coisas vão se mesclando, se superpondo, numa mistura total”. O último trecho desse
capítulo é também a idéia que guia este trabalho, pois, como ele diz: “Primeiro o fubá,
depois o dendê, mas sem esquecer a nega baiana que sabe mexer. E que não pára de mexer
que é para não embolar” (:33).
61
Ventos de cá
Tal como já foi mais do que frisado, a separação entre fluxos de lá e fluxos de cá
tem apenas a intenção de facilitar a exposição, pois cada um dos fluxos apresentados já é
em si mesmo uma mistura de vários outros que não respeitaram separação alguma. Além
disso, a própria apresentação da seção anterior mostrou que, mesmo quando o elemento é
considerado ‘de fora’, ele só tem sentido neste trabalho pelas conexões que foi capaz de
fazer e que geraram outros fluxos cujos encontros produziram os blocos afro e a
reafricanização do carnaval de Salvador. Dessa forma, os movimentos de independência
dos países africanos ou a soul music foram expostos como ‘vindos de fora’, mas já na sua
apresentação foi preciso dizer o que foi gerado a partir de sua chegada, melhor dizendo, de
seus primeiros encontros. Cabe fazer a mesma advertência para esta seção, haja vista que
os fluxos daqui, que se referem àqueles produzidos no Brasil ou em Salvador ou no Rio de
Janeiro... também foram gerados por outros vindos de fora, cujas conexões serão
explicitadas à medida que se fizerem necessárias.
Os afoxés
Logo na introdução de Carnaval Ijexá..., Risério explica que a palavra ‘afoxé’
significa “enunciação que faz (alguma coisa) acontecer”, “a fala que faz”,
“encantamento”, “palavra eficaz, operante”. Ele diz, a partir da conclusão de um outro
autor, que a palavra passou a designar os grupos “afrocarnavalescos” porque, por
rivalidade, eles trocavam “afoxês (no sentido de fórmula mágica) entre si” (:12). Vieira
Filho diz que as informações sobre o significado do termo são muito distintas, no entanto,
o que parece ser consenso entre vários estudiosos é que os afoxés teriam origem comum
aos maracatus de Recife/PE, sendo ambas as manifestações derivadas dos antigos desfiles
62
dos Reis Congos, uma mistura de elementos ‘africanos’ e ‘católicos’ (1997:51-2; ver
também Risério:55).
Em seu estudo sobre o carnaval baiano no período de 1880 a 1930, Vieira Filho
chama a atenção para o pouco valor atribuído ao afoxé, pois nem a imprensa fazia
registros de seus desfiles (1997:50). Os clubes uniformizados negros, como já observado
no início deste capítulo, foram bastante registrados pelos jornais. Outra diferença entre os
clubes e os afoxés é que enquanto os primeiros agregavam um grande número de pessoas
em seus préstitos, os afoxés não desfilavam com mais de cem (:53). Há diferenças também
em “seus temas e suas intenções”. Para Vieira Filho, os clubes uniformizados negros
procuravam combater o “racismo científico” mostrando sua “capacidade para a
civilização”, através da apresentação de temas e personagens africanos. Tratava-se de
mostrar uma África ‘civilizada’, que tinha uma ‘história’, enquanto os afoxés queriam
“levar ao público as festas do candomblé” (:55).
Apesar da perseguição aos cultos e práticas afro-brasileiros, os afoxés, assim como
os terreiros de candomblé, resistiram por todo o século XX, com momentos de maior e de
menor visibilidade, sendo o Filhos de Gandhi o protagonista de dois desses momentos de
maior evidência dos afoxés no carnaval de Salvador. Fundado em 1949 por um grupo de
cerca de 40 estivadores, alguns ligados ao candomblé, o Filhos de Gandhi tornou-se o
mais famoso afoxé da cidade. A adoção do nome ‘Gandhi’ reflete tanto a posição
privilegiada naquela época dos trabalhadores do porto em relação a informações sobre o
que acontecia no mundo – o líder indiano Mahatma Gandhi fora assassinado em 1948 –
quanto sua situação desfavorável na sociedade baiana (e brasileira), pois, segundo
depoimentos de alguns dos organizadores, a idéia era mostrar que se tratava de um grupo
pacífico para evitar a repressão policial, afinal, eram estivadores, ligados ao movimento
sindical – vistos como ‘comunistas’ –, negros e, muitos deles, adeptos do candomblé. Para
63
tanto, fizeram de Gandhi, o “precursor da paz”, seu símbolo; adotaram o uso exclusivo de
roupas brancas (cor de Oxalá, mas também cor da paz); e proibiram mulheres e bebida no
desfile (Guerreiro 2000:73; Morales 1988:269). Vê-se novamente em ação o encontro
inimaginável entre fluxos tão díspares quanto aqueles gerados pelo candomblé e aqueles
gerados pela luta de um pacifista hindu contra a dominação britânica imposta sobre a
Índia.
Segundo Morales (1991), o Filhos de Gandhi não surgiu como um afoxé. Era um
bloco de estivadores, assim como havia blocos carnavalescos ligados a outras categorias
profissionais, como o Filhos do Mar, formado por marinheiros, o Filhos do Porto, por
doqueiros, e o Filhos do Fogo, da corporação de bombeiros (:77). Mas, dado o grande
número de homens vinculados ao candomblé, a associação com a religião e a conseqüente
adoção do formato de afoxé não demorou a acontecer. Michel Agier, antropólogo francês
que realizou anos de pesquisa junto ao bloco afro Ilê Aiyê25, também assume o termo
‘reafricanização’ para qualificar o carnaval dos anos 70 e 80, porém, diferentemente de
Risério, ele propõe outros três momentos-chaves para o processo. O primeiro é justamente
o surgimento do Filhos de Gandhi (2000:49). Tanto Agier quanto Morales destacam a
postura do grupo de aversão ao conflito, social ou racial, e de valorização da população
negra, de suas ‘práticas’, de sua religião, mas em tom extremamente pacífico. E isso num
momento em que o discurso da ‘democracia racial’ e da ‘integração’ do ‘negro’ à ‘nação
brasileira’ estava em evidência.
Quase nada é dito sobre afoxés no período entre o nascimento do Filhos de Gandhi
e sua revitalização em 1976. Outros afoxés são citados, mas não se estabelece quando nem
por quanto tempo eles estiveram em atividade. Na ‘história do carnaval baiano’
reproduzida pela maior parte dos autores, a década de 60 é dedicada aos blocos de índio,
64
assunto que também será tratado adiante. O que consta desses trabalhos é que no final dos
anos 60 havia poucos afoxés desfilando e que o Filhos de Gandhi já quase não existia.
Morales chega a dizer que ele passou por um período de recesso entre 1972 e 1976
(1988:270), ano em que voltou a desfilar e que foi para Risério o segundo momento-chave
do processo de reafricanização do carnaval. Além do próprio sucesso vivido novamente
pelo Filhos de Gandhi, que contou com a presença altamente midiática de Gilberto Gil por
seis anos, outros afoxés surgiram a partir de então. Risério denomina-os ‘novos afoxés’,
sendo o Badauê, fundado em 1978, o mais famoso deles. Sua emergência representou para
Risério o terceiro momento-chave do processo de reafricanização: “A criação do Badauê,
depois do nascimento do Ilê Aiyê e do renascimento do Filhos de Gandhi, tornou
irreversível o processo de reafricanização do carnaval da Bahia” (1981:63). A diferença
desses ‘novos afoxés’ para os antigos está principalmente na relação de seus componentes
com os terreiros de candomblé. Embora sempre haja uma mãe ou pai-de-santo para
‘proteger’ o grupo e realizar os ‘trabalhos’ necessários, ele não pertence a uma casa de
candomblé, tampouco seus componentes são necessariamente adeptos da religião, o que
gera outras diferenças nos cânticos, que não são de candomblé, nas danças e na
indumentária (:65). Nesse novo formato, afoxés e blocos afro se confundem.
O candomblé
A relação do candomblé com o processo de reafricanização do carnaval de
Salvador ultrapassa em muito a ‘re-existência’ dos afoxés ou o surgimento dos ‘novos
afoxés’. Além de fornecer o ritmo – o ijexá é um dos mais executados pelos blocos afro –
e um bom número dos percussionistas, também temas, coreografias e indumentárias
utilizados pelos blocos são inspirados na religião. E, mesmo que o vínculo a um terreiro de
25 Vários artigos resultaram deste trabalho, alguns dos quais serão utilizados aqui. Sua obra de maior fôlegosobre o tema é Anthropologie du Carnaval. La ville, la fête et l’Afrique à Bahia, de 2000.
65
candomblé não seja percebido como absolutamente necessário, como constituinte da
definição de bloco afro, uma grande parcela deles mantém uma proximidade com algum
terreiro. E isso certamente se deve, entre outras coisas, à relação estreita do Ilê Aiyê –
considerado o primeiro bloco afro de Salvador e que, num certo sentido, definiu o que
seria um ‘bloco afro’ – com uma casa de candomblé, o Ilê Axé Jitolu, cuja mãe-de-santo é
mãe carnal de um dos fundadores e presidente do bloco. Essa ‘relação estreita’ não se
resume ao ‘parentesco’; é muito mais profunda e tem implicações diretas sobre a
existência do Ilê Aiyê26. Outros blocos observam uma postura mais distanciada em relação
ao candomblé, mas nunca é indiferente. Em geral, cada grupo tem devoção a um orixá
especial, às vezes concebido como seu patrono, seu protetor, ou é o orixá da mãe-de-santo
ou do presidente do bloco. Só para citar os principais blocos de Salvador, no Ilê Aiyê,
homenageia-se Omolu, orixá maior do terreiro de Mãe Hilda (Agier 2000:143); Olodum é
“termo diminutivo de Olodumaré” (Guerreiro 2000:43); o Ara Ketu tem Oxóssi por
protetor (:33); o Malê Debalê é devotado a Oxum (:40)27.
Em seu livro A Trama dos Tambores (2000), Goli Guerreiro tem por objeto a
música afro-baiana, passando por suas influências e chegando até o cenário atual. Nesse
percurso, a autora apresenta diferentes personagens que participaram da composição dessa
história, contando um pouco da trajetória de alguns deles. Entre os percussionistas, o
relato do aprendizado através do candomblé é uma constante, seja por experiência própria,
seja por um mestre vinculado à religião. A título de ilustração, o depoimento de Bira Reis,
fundador da primeira escola de percussão de Salvador, é exemplar: “Eu mesmo sou
autodidata. Berimbau eu aprendi olhando o jogo de capoeira; atabaque eu ia pro
26 Assunto que será abordado mais detalhadamente adiante.27 Em entrevista a Ribard, o presidente do Malê Debalê diz que “Nós estamos situados numa área onde hágrandes terreiros, como Oba Falomi que é o terreiro que a entidade freqüenta e Oxum que está ao lado doMalê, nas águas da Lagoa de Abaeté. Ela é a grande protetora do bloco com outros orixás que velam pornós” (1999:407).
66
candomblé olhar ou então conhecia um cara que era do candomblé. Em Salvador, a coisa é
assim” (Guerreiro 2000:113).
A coreografia dos blocos afro em seus desfiles é muito inspirada nas danças dos
orixás. Não são imitações destas, mas há muitos elementos das danças praticadas no
interior dos terreiros compondo as apresentações dos blocos. Guerreiro informa que o
Malê Debalê “estiliza todo ano um ritual de candomblé” (:251) na avenida. Na mesma
conversa que deu início a este ‘relato de encontros’, na casa do presidente do Dilazenze,
de Ilhéus, ele informou que as famosas coreografias que viraram uma espécie de ‘marca
registrada’ das bandas de axé music nasceram nos ensaios nas quadras dos blocos afro. De
fato, não é difícil perceber traços das danças dos orixás nas coreografias das músicas
‘afro-pop’ baianas mais badaladas. Definindo a axé music como “o encontro da música
dos blocos de trio com a música dos blocos afro”, como um “estilo mestiço”, Guerreiro
também informa que as coreografias das bandas de axé são resultado dessa mistura
(2000:133-4).
Como diz Risério, o processo de reafricanização não se restringiu ao carnaval e
tomou conta da cidade de Salvador nos anos 70 e 80. Nesse período, ou mesmo anterior a
ele, surgiram inúmeros grupos de teatro, de dança ou grupos folclóricos cuja temática
principal era o candomblé. Estes grupos eram reflexo da força e representatividade
adquirida por essa religião depois de décadas de perseguição. Risério faz referência ao
reconhecimento no país inteiro da importância de terreiros como o Casa Branca do
Engenho Velho e o Axé Opô Afonjá, além de ialorixás como Mãe Menininha do Gantois e
Olga de Alaketu (:20), que têm, nesse momento, projeção nacional e até internacional:
Mãe Menininha posa para uma propaganda de máquina de escrever e Olga de Alaketu é a
presidente de honra da delegação brasileira no Festival de Arte Negra de Lagos, na
Nigéria (Silveira 1988:195).
67
Para além de sua ampla disseminação na capital baiana (Risério diz que “a Bahia
tem três vezes mais terreiros de candomblé do que igrejas católicas” (:22) e Silveira
informa que no final dos anos 80 havia cerca de 1.500 terreiros registrados na Federação
do Culto Afro-Brasileiro contra 100 existentes na década de 40 (1988:194)), o candomblé
ultrapassou os limites do religioso e passou a ocupar um espaço muito maior na vida da
cidade, chegando mesmo a fazer parte da composição de sua estética e assumindo o
estatuto de signo de ‘baianidade’. A mudança de ‘prática de origem africana perseguida
pela polícia’ para ‘símbolo da Bahia’ foi fruto de um grande investimento estatal que teve
início nos anos 50, como demonstra Santos (2000). Nesse momento de industrialização do
estado baiano, a aposta no turismo cultural passou a fazer parte da estratégia de
desenvolvimento: “O candomblé (...) passava a se constituir em um símbolo, por
excelência, da baianidade. Junto com a capoeira e a culinária, ele foi incorporado pela
mídia, por órgãos públicos, empresas privadas como uma das marcas registradas da
Bahia” (:78). O governo federal, com o intuito de construir uma ‘cultura nacional’, como
já observado, também investia na cultura ‘negra’. Em 1952, por exemplo, representantes
do então presidente Juscelino Kubitschek compareceram ao Ilê Axé Opô Afonjá pelas
comemorações do cinqüentenário de Mãe Senhora (:68).
Entre os anos 60 e 70, a indústria de turismo da Bahia apresentava o estado como
uma ‘nação’ em ‘aspectos culturais’, tendo o candomblé um lugar central nessa
concepção: cartazes, filmes, folhetos usavam imagens de filhas-de-santo incorporadas por
seus orixás, além da distribuição ao turista do calendário litúrgico dos terreiros. Mas é
importante destacar que toda essa mistura de candomblé, culinária, capoeira, “herança
africana”... tudo isso deveria resultar em um “jeito baiano” (:96-7), não em ‘negritude’ ou
‘africanidade’. O enfoque é sempre na mistura, o que seria ‘negro’ é concebido como
68
‘afro-brasileiro’, pois a proposta é a ‘construção’ de uma ‘nação’, de um ‘povo’, o que faz
com que o elemento ‘afro’ só possa ser visto como herança misturada a outras heranças.
A visibilidade alcançada pelo candomblé nos anos 70 em Salvador é tão
expressiva, que Santos (2000) dedica todo um capítulo de sua tese de doutoramento à
análise da relação entre esta religião e o poder público na Bahia (“O Candomblé como
‘imagem-força’ do estado”). Ele informa, por exemplo, que em 1972, o então governador
Antônio Carlos Magalhães criou a Bahiatursa, órgão de turismo do estado, que incentivava
a transformação do candomblé em atração turística (:147-8) e, segundo Silveira, a empresa
estatal chegou “a financiar certos candomblés para tornar suas cerimônias mais
espetaculares” (1988:195). Segundo Risério, à Bahiatursa, vinculada à Secretaria de
Indústria e Comércio, cabia promover “a faixa lucrativa da cultura”, “aquelas
manifestações de cultura (dos folguedos tradicionais ao artesanato) que podem gerar
dividendos”, enquanto a “cultura elitista” ficava a cargo da Fundação Cultural, pertencente
à Secretaria de Educação e Cultura (:91).
Outro exemplo é um fato ocorrido em 1975, quando cerca de 80 filhas e mães-de-
santo foram ao Palácio de Ondina agradecer a Antônio Carlos Magalhães o “apoio à
preservação das religiões de origem africana” (Santos 2000:166). ACM conserva até hoje
uma relação estreita com as principais lideranças dos terreiros de candomblé da Bahia, o
que em muitas situações – especialmente nos anos 70, mas não exclusivamente – foi/é
motivo de conflito entre representantes da religião e o movimento negro chamado político.
Os ‘blocos de índio’
Na maior parte das narrativas que se propõem a contar uma história do carnaval
‘afro-baiano’, os blocos de índio desempenham um papel de suma importância. Surgidos
na década de 60, eles são considerados os antecessores dos blocos afro. Tal relação, quase
69
filiativa desses últimos para com os primeiros, advém de três fatores que, penso, são de
diferentes níveis. O primeiro deles refere-se ao público que ambos atingiam: jovens pobres
negros moradores da periferia de Salvador. O segundo fator diz respeito à sucessão
cronológica que é dita existir entre eles, já que os blocos de índio surgiram na década de
60 e os blocos afro são da década seguinte, ocorrendo, então, uma relação inversamente
proporcional: à medida que os últimos crescem, os primeiros tendem a desaparecer, o que
faz com que, aparentemente, haja uma migração dos participantes dos blocos de índio para
os blocos afro. De fato, a trajetória de algumas lideranças dos primeiros blocos afro passa
pelos blocos de índio e corrobora ambos os fatores descritos acima. Contudo, o terceiro
fator que identifico na literatura sobre o carnaval afro-baiano que relaciona esses
movimentos está situado num nível diferente dos anteriores. Enquanto estes referem-se a
constatações observadas nas formações desses grupos, o terceiro fator está condicionado a
uma conclusão daí advinda, a de que os blocos de índio teriam uma intenção de
organização ‘étnica’, assim como os blocos afro, o que permite que logo surja entre uns e
outros uma linha de filiação. “De índio a negro, ou o reverso” é o título eloqüente de uma
artigo de Antônio Godi (1991), o qual expressa uma espécie de síntese da proposta
interpretativa de vários autores, a saber: ao revestir-se de ‘índio’, os negros pobres de
Salvador buscavam uma diferenciação, uma singularidade étnica, que posteriormente
serviria de base para a afirmação da ‘identidade’ propriamente negra nos blocos afro, a
partir de uma ‘tomada de consciência’. Para ele, enquanto nos blocos de índio haveria uma
“assunção travestida” de “uma singularidade étnica”, nos blocos afro, ela seria “explícita”
(:51).
Risério localiza os blocos de índio de Salvador num momento anterior ao processo
de reafricanização do carnaval. Antes dos blocos afro e dos novos afoxés, era aí que “as
pessoas pobres de Salvador, quase que exclusivamente de ascendência negroafricana,
70
brincavam seus carnavais com fantasias e motivos inspirados nos índios norte-
americanos”. Que se trata da apropriação de um produto “da chamada cultura de massa”,
Risério não tem dúvidas. Mas sua crônica encaminha-se no sentido de responder “por que,
entre a enxurrada de elementos culturais estrangeiros aqui aportados, a escolha foi recair
justamente sobre os índios da América do Norte”, “os eternos derrotados do imaginário
hollywoodiano”. Identificação do negro pobre baiano com o índio conquistado do oeste
americano a partir do reconhecimento de realidades de marginalização “econômica, social,
política e culturalmente” (:67) semelhantes é sua resposta. E essa identificação não estaria
presente apenas na indumentária e nos nomes adotados pelos grupos, mas também no
comportamento, na postura diante da sociedade ‘branca’. Assim, a ‘violência’ atribuída
aos blocos de índio28 – que Risério considera “sociologizável” pois representaria “rebeldia
social” de “caráter classista” (:68) – seria inspirada, para não dizer espelhada, na reação
dos índios aos brancos ‘desbravadores’ do oeste americano. Contudo, tanto a violência
quanto os próprios blocos de índio eram reduzidos à medida que crescia “o processo de
autoconscientização dos negros” (:69). Este é o conteúdo básico utilizado pela maior parte
dos autores que abordam o tema.
Para Agier (2000:51), o surgimento dos blocos de índio constitui a segunda etapa
do processo de reafricanização do carnaval que se consolidará na década de 70, sendo a
primeira etapa a fundação do Filhos de Gandhi em 1949 e a terceira e última, a criação dos
blocos afro, em 1974. A importância dos blocos de índio para esse processo reside no fato
de ter aí sido formado um espaço ocupado por jovens negros em busca de uma
diferenciação frente à sociedade nacional. Em seu trabalho conjunto com a antropóloga
Maria Rosário de Carvalho (1994) a idéia fica mais clara. A partir de uma nova conjuntura
28 Sobre os blocos de índio, diz Gomes (1989:177): “Eles serão os personagens mais constantes a figurar nascolunas policiais relacionadas ao carnaval durante toda a década de 70, nas quais se exige a ação imediatados poderes públicos e de órgãos de segurança.”
71
sócio-política estabelecida nos anos 60 e 70, trabalhada também aqui páginas atrás, tanto
‘índios’ quanto ‘negros’ passariam a buscar a obtenção de direitos que lhes eram negados
enquanto cidadãos brasileiros através da afirmação de sua diferença. Os autores defendem
que os “índios (...) têm uma certa vantagem sobre os negros” (:114) porque “encarnaram
muito cedo e perfeitamente a figura do outro étnico” (:110), ao passo que os ‘negros’
foram ‘integrados’ à sociedade brasileira e colocados numa posição inferior, fazendo com
que fosse necessário “dar um novo sentido a uma diferença racial já construída pela
história nacional” através da produção de “uma diferença cultural” (:110-1). O
“empréstimo” da imagem do ‘índio’, o “outro étnico” por excelência, permitiria ao jovem
negro em meados dos anos 60 “impor um espaço próprio e uma diferença evidente no
cenário do carnaval” (:115). Mais tarde, já com a formação dos blocos afro, a juventude
negra vai “progressivamente recusar aos blocos de índio (...) a representação de uma
alteridade étnica” (Agier 2000:51).
Ribard (1999) segue pelo mesmo caminho considerando que a apropriação que os
jovens negros fazem da imagem do ‘índio’ ocorreria pela ‘identificação’ dos primeiros
com o segundo por sua condição compartilhada de minorias étnicas buscando alcançar
reconhecimento diante da sociedade nacional, tal como também afirmam Agier e Carvalho
(1994). Nesse sentido, o autor pensa o ‘índio’ como uma “figura de transição na dinâmica
mais ampla da africanização (ou de reafricanização) do carnaval” (:187-8). E o fato do
modelo de inspiração ser o índio norte-americano dar-se-ia porque “ambos têm em comum
a resistência e a luta de um povo contra o opressor” (:188) e o índio representaria ainda a
“coragem e mesmo a não submissão que lhe conduz ao sacrifício de sua vida pela
liberdade de seu povo” (:190). Seguindo a ‘fórmula’, Ribard conclui que os blocos de
índio seriam uma “etapa, um tempo ‘pré-político’ da constituição do movimento afro-
baiano, anterior a toda formulação de um projeto claro de mobilização étnica”, que
72
naquele momento ainda era “inconsciente”, “instintivo” (:191). O posterior declínio dos
blocos de índio – em 1995, ano em que realizou sua pesquisa, Ribard encontrou apenas
dois blocos desfilando no carnaval de Salvador – é explicado, então, em função da
transferência de componentes para os blocos afro, pois esses movimentos constituiriam
“dois momentos diferentes e sucessivos da tomada de consciência identitária e étnica do
movimento afro-baiano” (:257).
Guerreiro (2000:83) recorre à idéia do carnaval como o “mundo da metáfora”, para
também afirmar, como Risério, que os jovens negros buscavam na representação por
“outro grupo étnico também oprimido, porém temido” inverter, metaforicamente, a
situação de exclusão vivida por eles no dia-a-dia, “ou seja, o negro se disfarça de índio
para manifestar sua força no espaço do carnaval”. Discurso semelhante é assumido por
Morales, para quem os blocos de índio dos anos 60 eram um “movimento de reação à
discriminação (...) nos quais a questão étnica se apresentava simbolicamente através da
identificação do negro com o índio colonizado em luta com seus dominadores” (1991:76).
Os primeiros blocos de índio de Salvador da década de 60 nasceram no interior de
escolas de samba, utilizando o samba como ritmo e a formação das baterias das escolas.
Guerreiro considera-os uma reatualização dos blocos de índio que desfilavam na capital
baiana em fins do século XIX e início do XX, porém, segundo a autora, naquela época as
inspirações eram “os aborígenes do Brasil” e os “índios do México” (2000:85). Tal como
os clubes negros e os afoxés, esses blocos também foram proibidos em 1905. Já Godi
(1991) apresenta uma versão que, embora não seja excludente em relação à de Guerreiro29,
29 A autora não fornece referências para sua versão, que não é abordada por nenhum dos outros autoresconsultados. Quando afirmo que as versões não são excludentes é porque, apesar da origem diferente, épossível que houvesse uma memória dos antigos blocos que fez com que a qualificação ‘bloco de índio’pudesse codificar um outro modelo. Além disso, é sabido que grupos carnavalescos chamados de ‘blocos deíndio’, ainda que muito diferentes daqueles conhecidos em Salvador, são comuns em municípios do interiordo estado da Bahia, o que pode ter feito o termo permanecer de alguma forma presente por todo o tempo.
73
parece mais plausível e dá pistas interessantes para refletir sobre a ‘identificação étnica’
atribuída aos blocos de índio.
O Bloco Carnavalesco Caciques do Garcia foi o primeiro bloco de índio de
Salvador, fundado entre 1966 e 1967 por membros da Escola de Samba Juventude do
Garcia. Seu primeiro presidente, que também pertencia à diretoria da escola de samba na
ocasião, contou a Godi que o bloco nasceu “baseado” no bloco Cacique de Ramos, da
cidade do Rio de Janeiro (1991:53), que alguns componentes da escola haviam conhecido.
Inicialmente, a proposta de formação do bloco tinha um caráter de lazer em relação à
escola, vista como trabalho, responsabilidade. Isso é o que pode ser deduzido do
depoimento do ex-presidente do bloco, reproduzido por Godi: “a finalidade nossa era
compensar aquele dinheiro que se gastava na escola, porque na escola de samba o
camarada gastava para desfilar e não brincava muito”. Ele conta ainda que em 1969, ano
em que o bloco foi oficializado, a fantasia foi mesmo copiada do Cacique de Ramos e que
a proposta de oficialização do bloco se deu em decorrência de a Juventude do Garcia ter se
tornado hors concurs e ter, por isso, ficado de fora da competição daquele ano (:53-4).
O segundo bloco de índio de Salvador foi o Bloco Carnavalesco Apaches do
Tororó, fundado por ex-diretores da Escola de Samba Filhos do Tororó em 1969. O
Apaches acabou se tornando o mais famoso bloco de índio da cidade e, segundo Godi, a
intenção era “fazer frente ao Caciques do Garcia, celebrando uma rivalidade entre os
bairros vizinhos, Tororó e Garcia, que existia desde as batucadas e que persistira ainda no
mundo das escolas de samba” (1991:54). Se a motivação para a fundação do Apaches era
rivalizar com o Caciques do Garcia, então, aquele deveria poder ser comparável a este, o
que implicava produzir semelhanças e, é claro, ser melhor do que o rival nelas. Assim, o
74
nome ‘Apaches’ nasce da necessidade de ser ‘nome de índio’30 e este era, sem dúvida, o
grupo indígena mais conhecido, fosse pela TV, embora ainda não tão popularizada na
década de 60, fosse pelo cinema – onde predominavam os ‘faraoestes americanos’ – ou
pelas revistas em quadrinhos.
Apesar das explicações do fundador do Caciques do Garcia de que a idéia do bloco
em Salvador foi inspirada no Cacique de Ramos do Rio de Janeiro e do fundador do
Apaches de que este nasceu como uma reação ao anterior, Godi não parece satisfeito e
pergunta “por que bloco de índio?”, não sem primeiro mostrar um certo espanto, assim
como Risério, com o fato de que jovens negros de Salvador tenham se “identificado
exatamente com aqueles que eram sempre colocados como os vilões, os selvagens e que
sempre acabavam vencidos pela gloriosa cavalaria americana.” (:57). De fato, se a
conclusão é de que há ‘identificação’ e, mais do que isso, ‘identificação étnica’, então é
mesmo necessário buscar explicações para além do que é dito pelos fundadores dos blocos
a fim de que se entenda por que alguém se identificaria com aqueles que eram vistos muito
mais como ‘vilões’, como ‘maus’, até como ‘fracos’ ou ‘perdedores’ do que como
‘injustiçados’, ‘oprimidos’ ou ‘heróis’.
Inicialmente, Godi chama a atenção para a presença marcante que a temática
indígena sempre teve nas manifestações negras no Brasil, com ênfase na figura do
caboclo. Além disso, “as fantasias de índio [brasileiro ou norte-americano] têm sido parte
da tradição do carnaval” (1991:60). Em seguida, o autor passa a mostrar como a imagem
do índio norte-americano era fortemente representada na Bahia dos anos 60 através dos
filmes de faraoeste e que “as camadas negras do final da década de sessenta se fascinavam
por estes dramas épicos, em que o Bem e o Mal se defrontavam e as injustiças eram
30 Depoimento de Agildo Oliveira, um dos fundadores do Apaches: “o nome surgiu espontaneamente, semligação nenhuma com tribo americana ou outro indígena qualquer, não houve isso, e sim, se tinha oCaciques, então pensamos em Apaches, que são figuras fortes entre os indígenas (...)” (Godi 1991:56).
75
sempre resolvidas a bala e sangue.” (:61). Mas por que as “camadas negras (...) se
fascinavam” com esses filmes, e não também as ‘brancas’? Afinal, dada a desigualdade
econômica existente entre populações negra e branca, ainda que os cinemas na década de
60 fossem mais populares do que são hoje, certamente eram mais freqüentados pelas
‘camadas brancas’, que também eram as principais consumidoras de TV e de gibis.
Por fim, Godi relaciona a forma como os jovens negros dos blocos de índio eram
tratados pela polícia com o tratamento dispensado aos índios norte-americanos pelas
“tropas da cavalaria americana”, ou seja, ambos os grupos recebiam a mesma violência,
pois seriam vistos como “estrangeiros” (:64), índios tanto lá como aqui. Não seria
necessária a experiência de campo junto ao movimento negro de Ilhéus para saber que, via
de regra, o tratamento que alguns policiais conferem a jovens negros, seja nessa cidade,
em Salvador, no Rio de Janeiro ou em tantas outras cidades brasileiras, é de muita
violência, com ou sem trajes imitando índios norte-americanos.
Aliás, a violência é uma das características mais ressaltadas quando o assunto é
bloco de índio. Risério diz que a palavra “índio” passou a ser usada como gíria de classe
média para ser referir à periferia da cidade – “terra de índio” – tanto quanto para definir o
praticante de “arruaça e violência” (:68). Já Bacelar (2003:230) e Ordep Serra (2000)
localizam a gíria num momento anterior, quando os rapazes das áreas ricas de Salvador
chamavam de “índios” aqueles das áreas pobres, o que significava chamá-los de
“primitivos, rudes, bárbaros, incivilizados”. Para Serra, a formação dos blocos de índio
permitiu dar um novo significado à palavra porque “o pessoal assim chamado assumiu e
tornou positivo o rótulo, relacionando-o com ‘raça’, isto é, com a coragem dos peles-
vermelhas, seu vigor, sua bizarria...” (: 62)31.
31 Experiências pessoais como moradora de um município pobre da região metropolitana do Rio de Janeiro ecomo professora das primeiras séries do ensino fundamental há anos atrás, me permitem afirmar que apalavra “índio” como forma de ofensa e associada à violência e à baderna não é exclusividade de Salvador.
76
É claro que em muitos momentos, especialmente aqueles de violência ou de
perseguição da imprensa contra os blocos de índio, estes se percebessem racialmente
discriminados, pois, como diz um de seus fundadores em entrevista a Godi, eles eram
“negros e pobres” (1991:63). E é possível que esta percepção tenha se tornado mais clara à
medida que a década de 70 foi se tornando ‘reafricanizada’, conforme tentei mostrar até
aqui. É certo também que o movimento de formação dos blocos de índio no fim dos anos
60 e início dos 70 deu um caráter absolutamente novo ao carnaval, especialmente àquele
dos jovens negros das periferias que, em menos de 10 anos, criaram 13 entidades desse
tipo, que congregavam milhares de pessoas, a ponto de ter sido decretada a proibição de
desfiles de blocos com mais de mil componentes. Além disso, as experiências de futuros
membros de blocos afro nos blocos de índio, como as de Apolônio e Vovô, ambos
fundadores do Ilê Aiyê, sendo o primeiro no Apaches e o segundo no Viu Não Vá (Agier
2000:69), sem dúvida foram importantes para a constituição do movimento negro, mas
também o foram as experiências nos afoxés e nas escolas de samba, tanto pelo desejo de
se fazer carnaval, quanto pelo ensino da percussão, pois esses espaços, assim como os
terreiros de candomblé, foram escolas para os grandes percussionistas dos blocos afro, do
samba-reggae e, conseqüentemente, da axé music.
No entanto, toda essa argumentação em favor de uma identificação étnica entre
‘negros baianos’ com ‘índios norte-americanos’ pode ser percebida como uma digressão
de Risério excessivamente levada a sério por outros analistas, especialmente quando,
ainda que superficialmente, tem-se conhecimento de que nenhuma identificação existia na
‘origem’ do formato de bloco de índio no Cacique de Ramos, a partir do qual o
movimento foi levado para Salvador. Formado por rapazes de uma família ligada à
Meu município era chamado de “terra de índio” por moradores e não moradores para defini-lo como lugarsem ordem e, em alguns casos, violento; quando crianças faziam muita algazarra ao subir escadas, porexemplo, era comum ouvir alunos e professores dizerem: “parecem uns índios”.
77
umbanda, cujos nomes, em função dessa relação religiosa, eram de origem indígena em
homenagem às entidades caboclas (Ubiratan, Ubirajara...), resolveram auto-denominar-se
‘caciques’ de Ramos, bairro onde moravam (Pereira 2002). A indumentária, também
característica do modelo, foi concebida a partir do nome proposto para o bloco, baseada na
imagem indígena presente no cotidiano, a do índio norte-americano dos filmes, dos gibis,
dos brinquedos infantis, das representações escolares e, é claro, das fantasias de carnaval.
A economia
Além dos agenciamentos produzidos por fluxos que podem ser chamados de
‘culturais’ como o candomblé, os afoxés e os blocos de índio, fluxos de economia também
entram na composição das novas configurações assumidas tanto pelo carnaval baiano
quanto pelos movimentos negros nos anos 70. A instalação do Pólo Petroquímico de
Camaçari nos anos 50, o posterior avanço na industrialização do Estado, o “milagre
econômico” nos anos 60 e a desilusão provocada por ele nos 70, assim como o aumento
do nível de escolarização da população negra32 são aspectos da conjuntura
socioeconômica que costumam ser evocados por vários autores como elementos
importantes para as mudanças sociais que promoveram o surgimento dos blocos afro.
Risério define os anos 70 como aqueles em que
“Salvador deixou de ser uma cidade relativamente tranqüila, comcerca de 600 mil habitantes, para ingressar (...) na vida caótica ecolorida da cidade grande, metrópole nordestina, com mais de ummilhão e meio de habitantes (...). Pelo menos 70% dos edifícios hojeexistentes em Salvador foram construídos na década de 70, em meio àproliferação de cinemas, lanchonetes, butiques, shopping centers, etc(...). Enfim, foi nesse período que o “milagre brasileiro” chegou aorecôncavo baiano, e a tecnologia industrial, petroquímica, seimplantou no massapê dos velhos canaviais escravistas” (:24).
32 A política de universalização do ensino nos anos 70 está sendo entendida aqui como ‘fluxo de economia’por sua implementação ser fundamental, apesar de não ter se realizado plenamente, para as metas deindustrialização e desenvolvimento do país, ‘prioridades’ dos governos militares. O mais famoso eabrangente programa de alfabetização de adultos conhecido no Brasil, o MOBRAL, é dessa época.
78
Para compreender o alcance dessas mudanças na economia e no espaço urbano de
Salvador, é preciso lembrar o que o senso comum historiográfico costuma dizer sobre a
cidade. Durante quase todo o período colonial, a capital baiana era também a capital do
Brasil, condição perdida para o Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII. Rica
em função do acúmulo de capital proporcionado pela economia açucareira e pelo comércio
de escravos, Salvador perdeu ambos no século XIX com o declínio da cana-de-açúcar e
com a proibição do tráfico de escravos em meados em 1850, momento em que a produção
de riqueza do país foi transferida para o sul com o início das plantações de café. A partir
daí, é dito que a cidade permaneceu economicamente estagnada até a década de 50.
A partir da fundação da Petrobras em 1953, novas indústrias vieram a se instalar na
região, entre as principais estão as indústrias siderúrgica e alimentar, além do Pólo
Petroquímico de Camaçari, já na década de 70 (Ribard 1999:179). Segundo Agier
(2000:18), no período de 1960 a 1980, o nível de emprego industrial da população
economicamente ativa na região metropolitana subiu de 16,4% para 32,2%. Houve
também no período um incremento da atividade comercial em bairros antes considerados
periféricos, como a Liberdade, assim como a expulsão da população pobre do centro da
cidade, mais moderno, urbanizado e comercial e, conseqüentemente, a criação de novos
bairros distantes do centro (Ribard 1999:179-80). Agier ressalta que essas mudanças
econômicas tiveram dois efeitos secundários para a população negra e pobre de Salvador.
O primeiro foi que passou a haver uma expectativa de mobilidade social através do
emprego, da carreira, antes inexistente, já que a melhoria das condições de vida dependia
da origem familiar, do clientelismo ou da escolarização (2000:18), aos quais a população
negra e pobre não tinha acesso. Por outro lado, a possibilidade do emprego, da mobilidade
através da carreira e de sua freqüente negação, tornaram mais clara a discriminação racial
sofrida pela população negra, que ocupava sempre os cargos de menor qualificação,
79
recebia os salários mais baixos e, em grande parte, continuou excluída dos benefícios
sociais, destinando-se aos trabalhos domésticos e à economia informal. Na concepção de
Agier, “essas evoluções sociais favoreceram uma modificação da ideologia racial na
Bahia. Elas criaram situações onde as diferentes trajetórias sócio-profissionais, as
desigualdades de tratamento e as discriminações individuais em relação aos locais de
trabalho apresentavam-se de maneira ‘racial’” (:19). Seu argumento baseia-se no fato,
ainda hoje verificado no país33, de que quanto maior a qualificação profissional, maior é
também a diferença salarial entre brancos e negros. Isso explicaria por que “os
movimentos negros de caráter social e político foram mais desenvolvidos” no sul do país
no período pós-abolicionista (:22) e por que os anos 70 foram especialmente profícuos
para o seu surgimento em Salvador. A mesma reflexão envolve o aumento do nível de
escolaridade. Ele tanto proporciona acesso ao mercado de trabalho e competitividade entre
trabalhadores negros e brancos, o que gera situações mais explícitas de discriminação
racial, quanto qualifica o movimento negro, que tem nos meios universitários um ambiente
propício para a criação de grupos de estudos, políticos e artísticos (:26).
Em seu trabalho sobre os movimentos negros do Rio de Janeiro e de São Paulo,
Hanchard (2001) chega à mesma conclusão de Agier. Ele diz que “ao lhes serem negadas
oportunidades de cargos para os quais estavam qualificados, muitos dos entrevistados
desenvolveram uma consciência racial que até então não tinham”. É interessante notar que
nas trajetórias individuais de militantes dos movimentos negros, a retórica de um
momento-chave de discriminação e posterior tomada de consciência é uma constante,
principalmente nas relações profissionais.
33 Ver, por exemplo, as seguintes matérias: “Desigualdade por cor no Brasil é maior do que por sexo”,Jornal do Brasil on line, 12/06/03; “Brancos ganham 50% mais que negros”, Jornal do Brasil, 13/06/03;“Abismo Racial”, Folha de São Paulo, 08/01/02; “Racismo: desigualdade não mudou, diz estudo”, Folha deSão Paulo, 30/01/02.
80
Assim, o ‘milagre econômico’ dos anos 70 produz dois efeitos que se
complementam: se por um lado, ele possibilitou, como comemora Risério, a ‘imposição’
do negro “em número maior, na vida do país” (:74) a partir de sua crescente escolarização
e intelectualização, por outro ele ajudou a criar uma nova visão de mundo, mais sensível
às desigualdades raciais. Além disso, em meados da década de 70 há a “explosão do
milagre”. Como não existia mais o respaldo do sucesso econômico para garantir o apoio
popular à ditadura, diversos setores levantaram a voz contra o regime e a organização dos
movimentos sociais ganhou impulso, inclusive os movimentos negros, o que levou o
governo Geisel a iniciar o processo de ‘distensão’ (Gonzalez 1985:125), já abordado
anteriormente. Vê-se assim que tanto no apogeu quanto em seu declínio, os fluxos de
economia gerados pelo momento conhecido como ‘milagre econômico’ produziram
efeitos de movimento em seu encontro com parcelas da população negra.
A industrialização de Salvador e a formação de uma classe média negra resultante
desse processo, ainda que pequena, têm uma relação direta com a narrativa que poderia ser
chamada de mito de origem do Ilê Aiyê. A maior parte dos autores apenas aponta que os
fundadores do Ilê eram trabalhadores da indústria petroquímica, o que significava ter boas
condições financeiras, especialmente quando comparados à grande maioria da população
negra. Num estudo mais detalhado, Agier (2000) mostra que, de fato, por serem filhos e
netos de trabalhadores do porto, os dois primeiros líderes do grupo, Vovô e Apolônio,
tiveram mais acesso à escola e chegaram ao ensino de segundo grau profissionalizante,
mas apenas Apolônio o concluiu (:89-92). Um nível de ensino mais elevado do que a
maioria da população negra e pobre de Salvador e empregos que, provavelmente, podiam
ser considerados bons, associados a uma postura de ‘orgulho negro’, criaram uma imagem
de seus líderes como pertencentes à ‘elite’, imagem esta que se estende ao grupo. Para
Agier, a concepção do Ilê Aiyê como uma elite não está baseada no perfil socioeconômico
81
de seus componentes, dos quais 95% foram considerados ‘pobres’ pelo autor na pesquisa
realizada em 1992 (: 94). Esta imagem de elite seria, então, formada no âmbito do ritual e
o sucesso do Ilê seria “fazer todo mundo crer que seus convidados eram mesmo de uma
elite social negra!” (Moura e Agier 2000:376). Isto é dito como resposta ao
questionamento de Moura (Moura e Agier 2000) quanto ao significado que Agier dá à
palavra ‘elite’: segundo este autor, ora Agier refere-se a uma elite imaginária, ora a uma
elite real, ou seja, econômica. E o próprio Moura classificaria o grupo com a segunda
opção utilizando-se do senso comum de que seus fundadores foram trabalhadores do Pólo
Petroquímico (:370). É preciso observar, primeiramente, que o grupo não pode ser
considerado “elite de fato”, como diz Moura, apenas porque dois de seus fundadores eram
funcionários da indústria petroquímica. Por outro lado, o próprio Agier afirma que os
componentes do Ilê “se situam maciçamente no meio dos grupos de prestígio médio”
(Moura e Agier 2000:375). Ora, diante da pobreza que assola a maioria esmagadora da
população negra baiana, a condição de ‘prestígio médio’ já é destacada. Além disso, Agier
mostra em seu trabalho que as fantasias do grupo, ao menos no período de sua pesquisa,
eram consideradas caras, as mais caras entre os blocos afro e mesmo entre alguns blocos
de trio. Acrescento ainda uma idéia que será desenvolvida em outro momento, mas que
relaciona o fato do Ilê Aiyê estar diretamente ligado a uma casa de candomblé com o
reforço dessa imagem de elite. Os terreiros de candomblé costumam ser percebidos como
centro de referência para a prática da caridade, do assistencialismo... Assim, a mãe ou o
pai-de-santo e seus familiares são vistos como elite, desde que bem entendida enquanto
comparação frente a uma população muito carente.
Movimentos negros políticos e intelectuais
Risério define o Ilê Aiyê e o Badauê – bloco afro e afoxé – como “entidades negras
de feição predominantemente estético-recreativo-culturais” e o Movimento Negro
82
(naquele momento ainda MNUCDR – Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial, ‘apelidado’ de MN) como “organização francamente política”
(:76). Vê-se que em 1981, quando Risério escreveu Carnaval Ijexá..., a distinção e a
acusação mútua entre movimentos políticos e movimentos culturais estava a pleno vapor.
Na verdade, trata-se de um discussão que ganhou força já no início dos anos 70 e que
permanece ainda muito atual, pelo menos em Ilhéus, como será apresentado no Encontros
5. Mas isso não significa dizer que os movimentos políticos e culturais permaneçam
distantes e isolados uns dos outros. Desde seus primeiros momentos de formação, eles
interagem e se influenciam, embora nem sempre com muita cordialidade.
Como já foi observado, os blocos afro surgiram num momento em que vários
outros grupos de estudos, de teatro, de dança, todos ligados à temática ‘afro’, também
eram formados. A literatura sobre o movimento negro baiano concentra-se na história dos
blocos afro e na formação do MNUCDR, em 1978, havendo uma carência de informações
sobre outros grupos. Silva (1988) cita alguns “grupos culturais preocupados com a questão
política do negro” surgidos em meados da década de 70, entre eles, o Malê Cultura e Arte
Negra, o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro34, o Grupo de Teatro Palmares Iñaron (:281).
Não se pode esquecer que além desses grupos, ainda havia aqueles grupos folclóricos,
criados a partir do investimento do estado na ‘afro-baianidade’. A transcrição de um
trecho do jornal do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro feita por Bacelar (2003) explicita a
diferença entre as propostas dos “grupos preocupados com a questão política do negro”,
como os denominou Silva (1988) e os grupos culturais folclóricos:
“(...) vinculado ao departamento de Arte tem um grupo de dança (...)que ao contrário dos grupos de dança negra, simples manifestaçõesfolclóricas para turista ver, o grupo desenvolve pesquisas, inclusivesobre a situação da cultura negra no Brasil.” (:243).
34 O ator e dançarino Mário Gusmão, importante personagem da história do movimento afro-cultural emIlhéus, fez parte do grupo de dança do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, assunto do Encontros 3. SobreMário Gusmão, ver Bacelar 2003.
83
Havia também grupos de estudos formados por intelectuais, como o SECNEB – Sociedade
de Estudos da Cultura Negra no Brasil, fundado pela antropóloga Juana Elbein dos Santos
e por Mestre Didi em 1974 (Bacelar 2003:244), e o Centro de Estudos Afro-Orientais –
CEAO da UFBa, criado bem antes, em 1959 (Santos 2000:25). Entre os grupos que
poderiam ser considerados mais estritamente ‘políticos’, estava o Grupo NEGO – Estudos
sobre a problemática do negro brasileiro, que viria a ser a base do futuro MNU de
Salvador (Silva 1988:286).
Grupos políticos anti-racistas começavam a se organizar no período de distensão
gradual da ditadura militar, às vezes formados no interior de outras organizações, como no
caso do movimento estudantil ou de organizações políticas ainda clandestinas. Hanchard
(2001:146) fornece um bom exemplo, ainda que esteja se referindo a São Paulo. Ele conta
que um dos grupos que inicialmente integraram o Movimento Negro Unificado, no fim
dos anos 70, tinha origem na Convergência Socialista, organização clandestina baseada no
‘trotskismo’. Segundo Hanchard, Trotski manteve relações com C. L. R. James, intelectual
e ativista negro de Trinidad enquanto esteve exilado no México, nos anos 30. As
correspondências trocadas entre eles acabou chegando às mãos da esquerda européia e,
mais tarde, na Convergência Socialista, subsidiando as discussões de militantes negros que
atuavam na organização. Assim como em outras grandes cidades do país, em Salvador
esses grupos ‘políticos’ eram formados, sobretudo, no meio universitário, longe dos
grupos de amigos e vizinhos de bairros pobres que gostavam de carnaval, saíam em afoxés
e em blocos de índio, organizavam torneios de futebol, faziam excursões e festas, e
acabaram por fundar o primeiro bloco afro, o que já colocava uma boa distância entre eles.
É preciso, como sempre, relativizar essa distância entre, de um lado, os grupos
chamados políticos e os intelectuais, e de outro, aqueles chamados culturais, ou
84
‘culturalistas’. Pelo fato de ocuparem a mesma cidade, por exemplo, pode-se supor que
uns e outros poderiam ser afetados pelos mais diferentes encontros, fosse com uma notícia
na imprensa ou com um panfleto convidando para uma reunião ou para um festa; fosse
com um grupo se apresentando na rua ou com um familiar ou amigo que morasse perto de
um grupo afro... Mas é claro que havia também contatos mais diretos.
A antropóloga e militante negra Lélia Gonzalez, já articulando o lançamento do
MNUCDR em São Paulo, foi a Salvador convidada pela prefeitura municipal para um
debate. Ela conta que sua discussão envolveu diversos grupos, inclusive blocos e afoxés, e
que daí surgiu um “novo grupo”, cuja “novidade” foi, segundo Gonzalez, “articular de
maneira explicitamente política a questão racial” (1982:47), embora na fundação do
MNUCDR, organizado meses depois, os blocos afro não sejam citados. Risério também
comenta sobre uma conversa que aponta para esta aproximação. Membros do Ilê Aiyê,
sendo alguns fundadores, ‘reclamam’ do assédio do Movimento Negro, pois “[as pessoas
do MN] ficam querendo consertar a diretoria do Ilê”, segundo Macalé, um dos
entrevistados (:85). Já referindo-se a um momento posterior, o início da década de 80,
Cunha informa que a aproximação de intelectuais e militantes junto aos blocos afro se
dava por meio dos “núcleos de apoio” ou “assessorias”, que “visavam, sobretudo,
preencher uma constante lacuna entre uma proposta estritamente voltada para o carnaval e
um trabalho comunitário e cultural” (1991:161). Nesse sentido, como destacam tanto
Cunha quanto Risério35, o Bloco Afro Malê Debalê esteve por algum tempo muito mais
próximo do movimento negro através do Níger Okhan, grupo constituído inicialmente
como núcleo de apoio do bloco, com o qual rompeu após três anos e tornou-se um grupo
autônomo (Cunha 1991:162).
35 Risério escreveu Carnaval Ijexá... durante esse momento.
85
Este ainda não é o lugar para uma discussão mais aprofundada sobre a questão
política versus cultura, que ficará para adiante e será retomada a partir da etnografia dos
grupos afro em Ilhéus. No momento, cabem apenas algumas observações. A primeira, já
mencionada, diz respeito às influências mútuas exercidas entre os grupos chamados
políticos e aqueles chamados culturais. Essas influências, combinadas com tantas outras,
como a política stricto senso ou partidária, a mídia, as agências de financiamento etc.,
podem provocar um estreitamento ou um distanciamento das relações. E isso se dá porque
a cada momento da relação há diferentes concepções de política e de cultura em ato,
promovendo a convergência ou a divergência de práticas e discursos.
Os espaços negros
A africanização, ou reafricanização, da cidade de Salvador foi gerada a partir dos
agenciamentos de fluxos de política, de economia, de religião, de música... Corpos e
cabelos foram africanizados: desfilavam pela cidade cabelos trançados, boinas, sandálias e
roupas inspiradas no candomblé e, principalmente, nas imagens que se tinha acesso dos
países africanos. Fluxos que se formaram desses encontros e se espalharam pela cidade,
africanizando outros espaços, outros domínios sociais...
As quadras ou ruas onde os blocos afro ensaiam, obviamente, tornaram-se espaços
privilegiados de ‘negritude’. Agier os denomina “espaços sociais negros”. Além de
quadras e ruas, também os bairros onde estão situados os blocos afro ganharam outras
referências à medida em que os grupos cresciam. O bairro da Liberdade, por exemplo, já
era habitado por uma imensa maioria negra muito antes do Ilê Aiyê, mas o nascimento do
grupo reatualiza a sua origem como ‘quilombo’, tornando-o o “novo quilombo” (Agier
2000:63). O mesmo pode ser dito para o Pelourinho em função da relação estabelecida
86
como o lugar do Olodum36. A partir do mesmo movimento, até os bares podem ser
africanizados. Risério rende homenagem ao Zanzibar, bar de propriedade de Vovô e Ana
Célia, ambos fundadores do Ilê Aiyê, situado no Garcia e inicialmente só freqüentado por
“pretos e mulatos” (:106). Aos poucos, a freqüência se diversificou, mas Risério faz uma
minuciosa descrição para mostrar que o bar apresenta uma série de objetos que deixam
clara sua condição de “bar criado por pretos ligados ao Ilê Aiyê e enraizado na cultura
negra” (:109). O ‘Bar do Reggae’, fundado em 1978, no Pelourinho, é um outro
exemplo37, assim como o ‘Bar do Cravo’, citado por Cunha como sede do Movimento
Rastafari Brasileiro (1991:161). Os bares são pontos de encontro por excelência, por onde
passam os mais diferentes fluxos que geram outros e traçam novas composições. Nas
narrativas de origem dos blocos afro, a cerveja e a mesa de bar estão presentes com
freqüência nas conversas nas quais surgem as idéias para um novo grupo. Esse é o caso do
Ilê Aiyê, primeiro bloco afro de Salvador, e é também o caso do Lê-guê Depá, um dos
primeiros blocos afro de Ilhéus.
À
“São os anos da contracultura, da recuperação do exótico, dodiferente, do original (...) Valoriza-se a cultura do outro. (...) Asociedade sai em busca de suas raízes. (...) O inconformismo e odesprezo pela cultura racional, essa mudança de rumos, estão nasclasses médias. Não obstante, vale lembrar que o movimento semostra de forma generalizada através da mídia, que já é eletrônica eprovoca novos gostos, traz novas informações. A intelectualidadebrasileira de maior legitimidade nos anos 60 participará ativamente deum projeto de recuperação das origens que vai remeter muitodiretamente à Bahia.(...) Da Bossa Nova à Tropicália os baianos estão na ponta darenovação da música popular brasileira... Tudo leva à Bahia (...) oCinema Novo, as artes cênicas... (...) Essa enorme publicidade que aBahia e a cultura negro-baiana vão alcançando, através também da
36 A relação dos blocos com sua comunidade, concebida também como território, abre caminhos para umleque de considerações, que deverão ser realizadas no Encontros 5.37 Uma pequena etnografia do Bar do Reggae pode ser encontrada em Pinho 1997.
87
literatura de Jorge Amado, de peças de teatro como Zumbi (...) nosapresenta[m] às veneráveis mães-de-santo dos candomblés deSalvador (...) Pela música popular aprendemos os nomes dos santos,que também são os da umbanda, mas agora é preciso ir até a Bahiapara pedir a bênção de Menininha, para jogar os búzios e ler a sorte,para experimentar o sabor do feitiço, o verdadeiro” (Prandi 1991:71-73 apud Serra 2000).
O processo de reafricanização gerado em Salvador nos anos 70 não pode ser
dissociado dessa nova Bahia apresentada, mais do que nunca, como ‘afro-brasileira’ já nos
anos 60. Foi observado anteriormente como as políticas governamentais, tanto no que diz
respeito aos países africanos, quanto em relação ao turismo, colaboraram no sentido de
forjar uma nova imagem da cidade de Salvador. Havia já aí um clima africanizado que
permeava toda a cidade e que fez, por exemplo, com que em 1973 cinco mil turistas
negros americanos viessem a Salvador “para conhecer as tradições do culto afro-brasileiro,
capoeira e samba de roda, entre outros oriundos da África”38 ou a Polícia Militar baiana
adotar a capoeira em seus quartéis em 1974 (Santos 2000:136).
Assim, foi nesse clima, mais ou menos como descrito até aqui, que bares, cabelos,
músicas, políticas, lutas, dinheiro, religião, escola etc., entraram em agenciamento e
geraram o processo que ‘reafricanizou’ o carnaval de Salvador e a criação do Ilê Aiyê e
dos blocos afro.
Os blocos afro de Salvador
O trabalho desenvolvido até aqui teve o propósito de fornecer uma visão geral dos
elementos que são considerados importantes pela literatura especializada no processo de
formação dos blocos afro, tomando a obra de Antônio Risério como referência básica. Ao
longo do texto, muito já foi dito a respeito dos blocos, especialmente do Ilê Aiyê,
38 Jornal A Tarde, de 23/03/73 apud Santos 2000:131.
88
consagrado pela grande maioria dos autores como o primeiro bloco afro39. Não obstante, é
necessário sistematizar um pouco as informações que se encontram espalhadas e
complementar com outras, incluindo outros grupos. Nesse sentido, a última parte desta
primeira descrição de encontros consiste na apresentação de um resumo, a partir dos
autores consultados, da formação dos principais blocos afro da capital baiana.
Para Risério, o surgimento do Ilê Aiyê, primeiro bloco afro, representa o primeiro
momento do processo de reafricanização do carnaval de Salvador40; é quando se dá “a
passagem do lance black para o lance afro” ou “do carnaval indígena para o carnaval afro-
brasileiro” (:38). Já Agier, considera o fato como a terceira etapa do mesmo processo41,
quando a “identidade racial” é ‘alinhada’ sobre o “africanismo cultural” (2000:51). Ribard
defende que os blocos afro significam a “maturidade de uma consciência étnica, de um
projeto político e cultural” (1999:193). Haveria ainda muitos outros autores a citar que
estabelecem relações muito diretas entre o surgimento dos blocos afro e ‘identidade’ ou
‘consciência étnica’, o que faz com que essas idéias estejam sempre juntas em seus
trabalhos. A proposta aqui é, nesse momento, separá-las, deixando que as análises a
respeito de questões como etnicidade ou identidade sejam tratadas no Encontros 4.
Ilê Aiyê
Antes de ter acesso a qualquer trabalho sobre o Ilê Aiyê e antes mesmo de
imaginar que faria um trabalho sobre blocos afro, eu tinha conhecimento, pela imprensa
talvez, que o Ilê era um bloco afro no qual só podiam desfilar pessoas negras. Ele teria
sido fundado como reação a uma atitude racista de um bloco carnavalesco de elite, que
39 Moura (Moura e Agier 2000) é o único autor, entre os consultados, que faz uma objeção nesse sentido emsua resenha à obra de Agier sobre o Ilê Aiyê, de 2000.40 Lembrando que os seguintes são o ressurgimento do Afoxé Filhos de Gandhi e a criação do ‘novo afoxé’Badauê.
89
teria vetado a entrada de Vovô e de outras pessoas. Diante disso, pensou-se em criar um
bloco só para ‘negros’. Não encontrei essa história reproduzida em local algum, no
entanto, é certo que há blocos ‘de brancos’ que não permitem a participação ‘de negros’42.
E ainda que não tenha ocorrido um ato de discriminação direta contra qualquer fundador
do grupo, fazia todo sentido criar um bloco exclusivo para pessoas negras diante do
racismo existente em todos os âmbitos sociais, inclusive e principalmente no carnaval.
A história de fundação do Ilê começa com um grupo de amigos que estavam
sempre se reunindo para bater papo, promover festas, ir à praia e fazer excursões.
Especificamente para este último fim, organizaram-se sob o nome de “A Zorra”, que
Agier denominou “empresa de lazer” (2000:68). Vovô e Apolônio, dois dos principais
fundadores, haviam estudado na mesma escola, faziam parte de uma banda e jogavam
futebol juntos (:66). Apolônio desfilava no bloco de índio Apaches do Tororó, Vovô
desfilou no Viu Não Vá (:69) e Jailson, um outro fundador, desfilava no Apaches e no
afoxé Filhos de Gandhi, conta Risério (:39). Ele conta também que Vovô lhe disse que a
idéia surgiu de uma conversa entre esses amigos: “A gente tava conversando, batendo
papo, começou a beber... Tava na época daquele negócio de poder negro, black power,
então a gente pensou em fazer um bloco só de motivos africanos” (:38), embora Agier
acrescente que Apolônio, também um dos fundadores e primeiro presidente do grupo, já
participasse de reuniões que discutiam a organização de blocos de carnaval unicamente
para negros (2000:71).
O Ilê Aiyê foi fundado no dia 1o de novembro de 1974, no Curuzu, bairro da
Liberdade e, segundo Agier (2000:73), foram oitenta os sócios fundadores, mas o primeiro
41 Iniciado em 1949, com o Filhos de Gandhi, tendo como segundo momento os blocos de índio na décadade 60.42 Guerreiro (2000:127-129) cita a CEI (Comissão Especial de Inquérito) do racismo instalada na CâmaraMunicipal de Salvador em 1999 “para investigar o processo de seleção de associados dos blocoscarnavalescos Eva, Nú Outro Eva, A Barca, Pinel e Beijo, denunciados formalmente à Justiça por
90
desfile, no carnaval do ano seguinte, contou com cerca de cem a cento e cinqüenta
componentes; os primeiros instrumentos foram comprados com recursos próprios e houve
cobrança de taxa de inscrição. No carnaval seguinte, já eram trezentos componentes e, a
cada ano, o crescimento era considerável, chegando ao número de dois mil em 1983 (:75).
Sobre a história do Ilê, nesse momento importa registrar que seu primeiro disco foi
gravado em 1984, com financiamento da empresa Oldebrecht, que também financiaria a
construção de sua sede em 1994 em um terreno comprado com verbas doadas pelo
governo do estado no ano anterior. Em 1987, foi inaugurada a primeira escola ‘primária’
comunitária do grupo (:80). Guerreiro (2000:32) diz que atualmente “as escolas atendem a
até 4 mil crianças” e ainda há as oficinas de profissionalização. Por fim, ainda é preciso
dizer que em 1981 Apolônio deixou o Ilê Aiyê e fundou o Orunmilá, outro bloco afro
de Salvador (Agier 2000:79).
À
Segundo Agier, o segundo bloco afro teria surgido em 1978 e chamava-se Alufã
Tendé (2000:77). Depois dele, viriam, apenas citando os mais famosos, Malê Debalê e
Olodum em 1979; Araketu em 1980 e Muzenza em 1981. Com exceção do bloco surgido
em 1978, os demais, junto com o Ilê Aiyê, são considerados os cinco grandes blocos afro
de Salvador, dedução sugerida por Guerreiro (2000) ao dedicar um capítulo para cada um
deles e por Ribard (1999)43, que apresenta essa divisão entre “os cinco maiores” e “os
outros” como uma “dicotomia” comum no “mundo afro”, que costuma qualificar os
discriminação”. Ela informa ainda que Antônio Risério e outro “intelectual”, Paulo Miguez, elaboraram aprimeira versão do relatório da CPI, na qual afirmaram a existência de discriminação no carnaval baiano.43 Sua obra de quase quinhentas páginas tem o mérito de oferecer uma visão mais ampla do que os demaistrabalhos sobre os blocos afro de Salvador por fazer uso de dados e entrevistas que abrangem também ospequenos blocos.
91
primeiros como blocos de “primeira categoria” ou por sua “antigüidade” (:345). A
organização de entidades de representação desses blocos também indica que a tal divisão é
‘nativa’: no início dos anos 90, os ‘outros’ criaram a Associação dos Blocos Afro da Bahia
– ABAB; meses depois44, os ‘cinco’ criaram a Federação dos Blocos Afro do Brasil –
FBAB (:356-7). Embora não seja possível tirar conclusões da informação a seguir, é
interessante saber que ao menos um bloco afro de Ilhéus foi informado por documento da
criação da FEBAB e convidado a participar do I Encontro Nacional de Dirigentes de
Blocos Afro do Brasil, nos dias 25, 26 e 27 de novembro de 1993. O documento é
assinado pelo presidente da entidade, João Jorge, do Olodum, e por quatro vice-
presidentes, representando cada uma das demais entidades. A programação do encontro
ocorrido em novembro de 1993 também não deixa dúvidas quanto à não participação de
outras entidades de Salvador, ao menos no que diz respeito à organização do evento: todas
as atividades culturais promovidas após os debates são ensaios dos cinco grandes blocos.
Malê Debalê
O Bloco Afro Malê Debalê foi fundado em 1979, no bairro de Itapoã, próximo à
famosa Lagoa de Abaeté e desfilou pela primeira vez no ano seguinte. Risério refere-se ao
Malê Debalê por sua proximidade ao Movimento Negro político. Nos três primeiros anos,
o grupo contava com um ‘núcleo de apoio’ formado por militantes e intelectuais, o Niger
Okhan, que se desligou do grupo e tornou-se uma entidade unicamente de caráter político
(cf. Cunha 1991 e Guerreiro 2000).
Dos cinco grandes grupos, o Malê Debalê é o que menos recebe atenção da mídia.
Como o Ilê Aiyê e diferentemente dos outros três, o grupo se recusa a incorporar
44 Ribard não fornece o ano de criação das entidades, mas um documento a que tive acesso através de umdirigente de bloco afro de Ilhéus informa que a FEBAB, aqui grafada tal como consta do documento, foifundada em junho de 1993.
92
instrumentos eletrônicos à sua banda e nunca gravou um disco (Guerreiro 2000:149).
Mesmo sem a presença do Níger Okhan, o grupo continuou a ser considerado como o mais
politizado entre os maiores. Falando sobre diretorias e eleições, assunto que será abordado
no último dos Encontros deste trabalho, Ribard ressalta que no Malê Debalê a estrutura
organizativa é mais participativa do que nos demais blocos. Há eleições de fato para a
diretoria, inclusive para a presidência (1999:337).
Olodum
Tanto ou mais do que o Ilê Aiyê, o Olodum recebe atenção de um grande número
de pesquisadores, de diferentes áreas. Em geral, o enfoque principal recai sobre seu
sucesso na mídia, sobre sua capacidade de ter se tornado uma empresa de fato, um
holding45, para ser mais exata.
O Olodum foi fundado em 1979 na área do Maciel/Pelourinho, sendo seu primeiro
desfile no ano seguinte. Já em 1981, há o primeiro racha que gerará a criação do Muzenza
nesse mesmo ano. De acordo com Guerreiro (2000:41), o Olodum nem desfilou em 1983,
tamanha era sua desmobilização. Nesse momento, João Jorge e Neguinho do Samba,
fundador e mestre de bateria do Ilê Aiyê por vários anos, além de outros ex-componentes
do primeiro bloco afro, aproximaram-se do Olodum e promoveram sua reestruturação.
Em 1987, ano em que tematizou o Egito em seu desfile com a música “Deuses,
Cultura Egípcia, Olodum” ou “Faraó”, como ficou conhecida, o Olodum entrou
verdadeiramente na mídia. A música ganhou o status de símbolo do samba-reggae, ritmo
que teria sido criado por Neguinho do Samba, na época, mestre de bateria do Olodum e
esse ano passou a ser o que Guerreiro chamou de “momento-marco em que o samba-
45 Sobre o trabalho do Olodum como empresa, ver Dantas 1994, no qual a definição de holding culturalaparece já no título, e 1996; também Fischer et alli. 1993.
93
reggae vai além dos espaços musicais afro-baianos e a estética negra torna-se visível no
cenário da mídia” (2000:24).
Em 1990, o Olodum gravou com Paul Simon, artista pop americano mundialmente
famoso e conquistou espaço no mercado internacional. Em 1996, foi a vez do super astro
pop Michael Jackson gravar um clip com o Olodum, no Pelourinho (Nunes 1997).
Depois de retornar de sua primeira turnê internacional, o Olodum fundou a Escola
Criativa do Olodum, instituição que além de percussão e outras oficinas ligadas à arte,
também oferece o ensino de primeiro grau (Guerreiro 2000:111). Além da Escola Criativa,
o Olodum também possui a Fábrica de Carnaval e a Boutique do Olodum no Pelourinho.
O sucesso do Olodum na mídia, a mudança do estilo, o investimento na imagem de
empresa... tudo isso fez com que o grupo gerasse uma grande polêmica em torno dos
limites de mudança de um bloco afro, ou mais do que isso, na própria concepção de bloco
afro, assunto a ser tratado adiante.
Ara Ketu
O Bloco Afro Ara Ketu é do bairro de Periperi e foi fundado em 1980 por Vera
Lacerda, presidente do bloco, e outras pessoas da família, que saíam em blocos separados.
A partir do desejo de formar um bloco de carnaval que unisse a família e os amigos, foi
sugerido que formassem um bloco afro.
Antes e com mais ênfase do que o Olodum, o Ara Ketu foi o primeiro bloco afro a
‘eletrificar’ seu som, formando uma banda em 1991 e entrando no mercado da axé music.
Segundo Guerreiro, “no decorrer dos anos 90, o Ara Ketu se afastou cada vez mais de seu
formato original e acabou por se descaracterizar enquanto bloco afro” (2000:37). Não
obstante, o grupo participa do carnaval como bloco afro, integra o grupo dos cinco
maiores e realiza trabalhos sociais, que têm sido uma das marcas mais características dos
94
blocos afro. Em 1997, o Ara Ketu fundou sua escola de percussão, que também oferece
cursos de dança e de teatro... (Guerreiro 2000:113). Porém, o trabalho de Guimarães
(1995) informa que antes mesmo da fundação da instituição educativa, já eram realizados
trabalhos que visavam ao desenvolvimento de práticas sócio-educativas.
Muzenza
Fruto de uma primeira cisão do Olodum, o Bloco Afro Muzenza foi fundado em
1981, no bairro da Liberdade, meses antes da morte de Bob Marley, maior ídolo do reggae
e da religião rastafari, com os quais o bloco se identificou e passou a ser conhecido como
o ‘Muzenza do Reggae’ (Guerreiro 2000:48). Antes de se fixar na Liberdade, onde nasceu,
o Muzenza ensaiou em diversos lugares onde houvesse uma grande aglomeração de
pessoas negras (cf. Veiga 1997:131-2 e Guerreiro 2000:47). Por essa razão, tanto Veiga
quanto Guerreiro destacam seu constante deslocamento e o primeiro o chama de ‘bloco
errante’. Desde alguns anos na Liberdade, o grupo promoveu um abaixo-assinado e
conseguiu mudar o nome da rua para Avenida Kingston (:48), em homenagem à capital da
Jamaica, país de Bob Marley e do reggae.
Haveria muito mais a dizer sobre cada um desses grupos e sobre a história do
movimento negro protagonizado pelos blocos afro em Salvador. Contudo, em primeiro
lugar, esta não é a intenção deste trabalho; em segundo lugar, os blocos afro de Salvador
terão lugar em outras situações ao longo do texto, através das quais será possível
promover um diálogo entre eles e os blocos afro de Ilhéus.
À
Este primeiro relato de encontros teve por objetivo descrever os agenciamentos de
fluxos que produziram o surgimento dos blocos afro de Salvador como parte e produto do
95
processo que Risério denominou de reafricanização do carnaval. Foi possível observar
que os mais diferentes elementos, percepções, subjetividades compuseram tais
agenciamentos. Como tais, eles geraram fluxos que se encontraram com outros e logo
produziram novas conexões. Algumas se fizeram em Ilhéus, gerando novos movimentos
também aí. Os dois próximos capítulos têm a intenção de descrever esses fluxos e permitir
o entendimento do que ficou conhecido como movimento afro-cultural de Ilhéus.
Encontros 2 apresentará fluxos e agenciamentos percebidos a partir de um olhar sobre as
histórias, as economias, as estatísticas, especialmente em relação à população negra da
cidade, pela qual fundamentalmente passou o surgimento dos blocos afro. O capítulo
seguinte deverá ser uma apresentação desses e dos agenciamentos mais diretamente
envolvidos em sua produção.
97
Encontros 2
SOBRE HISTÓRIAS, NÚMEROS,CORES E GENTE DE ILHÉUS
“(...) canção que o negro Florindo canta,enquanto colhe cacau (...):
‘Quem planta cacau sou eu,Sou eu que colhe ligeiro,Mas ai! Mulata, mas ai!
Só eu não vejo dinheiro...Do cacau que se vendeu...’”
(Amado 1944 [1972]:106-7).
Por que uma coisa é isso e não aquilo? Tudo depende dos agenciamentos entre os
elementos, da composição ou decomposição entre fluxos totalmente heterogêneos. O
capítulo anterior teve o propósito de apontar alguns desses fluxos que, em agenciamento,
produziram o que Risério (1981) chamou de reafricanização do carnaval de Salvador e do
surgimento do movimento dos blocos afro na capital baiana. Guattari (1986) diz que “um
agenciamento comporta componentes heterogêneos, de ordem biológica, social, maquínica,
gnoseológica, imaginária” (:287) e que é uma noção “relativa ao mesmo tempo às
representações imaginárias, às cadeias de linguagem, às semióticas econômicas, políticas,
estéticas, microssociais, etc.” (:155-6). Pode-se dizer que o que está em agenciamento é
tudo o que ‘está em jogo’ na produção de determinada coisa. E tudo está em jogo: o clima,
98
o ar, a hora, os números... “coleções de objetos técnicos, de fluxos materiais e energéticos,
de entidades incorporais, de idealidades matemáticas, estéticas, etc.” (:289).
E é a concepção de que as coisas se passam deste modo que faz com que este
Encontros 2 e o próximo capítulo sejam tentativas de fazer para o movimento dos blocos
afro de Ilhéus o que foi feito para o de Salvador: descrever fluxos e agenciamentos que
produziram o surgimento dos primeiros blocos, ou de desejos de formação destes, em
Ilhéus. Note-se que dizer que são ‘tentativas’ de descrição e não utilizar o artigo definido
‘os’ antes dos termos ‘fluxos e agenciamentos’ acima visa frisar que não é possível
apreender todos os elementos que compõem um agenciamento. Assim, serão descritos
aqueles que mais me afetaram, aqueles que mais fui capaz de perceber como importantes
na conjugação de fluxos que deu origem ao movimento afro-cultural de Ilhéus.
A separação entre os encontros de fluxos que serão descritos aqui e no próximo
capítulo é meramente uma questão de tornar mais clara a apresentação e, assim, o
entendimento da proposta, tal como foi argumentado na apresentação da diagramação do
Encontros 1. O objetivo deste capítulo é expor fluxos de economia, de história, de números
e outros que entram em agenciamento com tantos outros e geram subjetividades, visões de
mundo que vão participar da produção do movimento negro de Ilhéus. No próximo
capítulo, o Encontros 3, dar-se-á uma continuação deste, apresentando outros fluxos
gerados pelos antigos carnavais de Ilhéus, pelo candomblé, pelo teatro e pela dança e,
principalmente, pelo movimento dos blocos afro de Salvador, cujos fluxos foram levados
para a cidade pela TV, pelo rádio, pelos jornais, mas, acima de tudo, por pessoas que
viveram o que acontecia em Salvador e foram importantes na fundação dos primeiros
grupos afro ilheenses.
À
99
A apresentação de dados socioeconômicos e informações políticas e históricas
sobre a cidade de Ilhéus, conforme já foi observado, não está sendo proposta neste trabalho
apenas como cenário no qual uma ação se passa – no caso, o surgimento dos blocos afro.
Mais do que isso, as condições socioeconômicas; o local e a forma de moradia, assim
como as relações estabelecidas com este local por moradores e não moradores; as versões
de história local que ‘explicam’ situações, papéis assumidos, hierarquias sociais baseadas
na cor e em aspectos econômicos; o desemprego... Tudo isso ao mesmo tempo compõe e é
resultado de formas de subjetivação específicas. Assim, tais informações proporcionam um
melhor entendimento das relações sociais experimentadas pelos grupos do movimento
afro-cultural do município e de suas concepções de mundo.
Também é necessário frisar que a cidade de Ilhéus não está sendo concebida como
uma totalidade social ou cultural fechada. O recorte é feito em função da constituição dos
dados quantitativos, cuja unidade é o município, e porque este recorte – o município –
realmente orienta as formulações e ações dos grupos, assim como dos demais setores com
os quais eles se relacionam.
Ilhéus e Itabuna constituem as cidades centrais da região denominada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de Microrregião Ilhéus-Itabuna, que abrange
quase todos os municípios produtores de cacau do sul da Bahia. A idéia de “região
cacaueira” é muito presente na cidade, assim como também nos demais municípios. Talvez
a monocultura do cacau seja uma das razões para que isso ocorra em função dos
organismos governamentais de atuação regional por ela produzidos, tais como o Instituto
de Cacau da Bahia (ICB), a Comissão Executiva do Plano de Recuperação Econômica
Rural da Lavoura Cacaueira (CEPLAC) e a Associação dos Municípios da Região
Cacaueira (AMURC). Assim, informações que abranjam a região ou o Estado da Bahia
100
serão fornecidas à medida em que forem pertinentes para a compreensão das questões
levantadas1.
Não se pretende que esses dados forneçam qualquer idéia de uma “realidade
objetiva”. Assim como os dados etnográficos propriamente ditos, ou seja, aqueles obtidos a
partir da observação, dados quantitativos e históricos também precisam ser interpretados e
relacionados. Uns e outros são formas de olhar. A intenção de reproduzi-los neste trabalho
é dar pistas de como foi formado meu olhar e aquele das pessoas com as quais trabalhei.
É preciso dizer ainda que não se trata da história de Ilhéus, mas das histórias dos
historiadores. Estes não são neutros e, conseqüentemente, suas produções também não.
Mahony (1996), também historiadora produzindo sua versão sobre Ilhéus, mostra que a
versão dominante da historiografia local consolidou-se principalmente porque não sofreu
contestação do grupo de oposição ao grupo produtor dessa versão e que, posteriormente,
também o grupo opositor se apropriou dela segundo seus próprios interesses. A produção
ou a apropriação de dados históricos são práticas de lutas discursivas de poder. Foucault
diz que “não há exercício de poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que
funcionam nesse poder; a partir e através dele” (1999:28). O discurso histórico faz parte
dessa economia.
Ainda seguindo Foucault, é preciso levar em conta que o poder tem um caráter
relacional, ou seja, ele não é propriedade de alguém ou mesmo de um grupo – “não se dá,
nem se troca, nem se retoma” (1999:21) – e só existe em ato, em relação, onde não há o
lado do “poder infinito” nem o lado do “poder zero” (:200). Então, eventualmente, os
grupos subjugados apropriam-se do discurso histórico dominante para explicar práticas e
relações, e também para ser ponto de resistência a esse poder. As versões históricas
dominantes em Ilhéus são utilizadas pelos grupos afro-culturais em seu dia-a-dia, entre
1 Ver localização do município de Ilhéus no mapa do Estado da Bahia em Anexo 1.
101
outras coisas, para explicar a forma como são tratados pela elite política e econômica da
cidade, assim como para reivindicar mudanças nesse tratamento. Além disso, não há
versões históricas de oposição, mas análises críticas dessas versões, como a tese de
doutoramento de Mary Ann Mahony (1996) que será muito utilizada neste trabalho2.
Assim, não se pretende reproduzir aqui o que é chamado de história de Ilhéus. Para
isso, há uma vasta produção historiográfica3. Tanto os dados históricos como os
socioeconômicos e políticos serão expostos conjuntamente quando uns forem
complemento dos outros e à medida em que forem importantes para a análise.
Os índices socioeconômicos de Ilhéus mostram que sua população enfrenta
problemas sociais graves que afetam sobretudo os moradores dos bairros periféricos do
município, majoritariamente negros. No entanto, as conseqüências desses problemas
sociais atingem também as demais camadas econômicas. A crescente violência e o
aumento do número de crianças na rua, especialmente na época de alta temporada de
turismo, são exemplos dessas conseqüências: fluxos de violência e fluxos de crianças
também entram em agenciamento e geram preconceitos, medos, assim como orientações
nas formas de agir tanto por parte dos grupos quanto de seus interlocutores. Apenas a título
de exemplo, existe quase que um consenso entre governo, militantes do movimento negro
chamado de político e dos grupos afro de que bloco afro deve realizar “trabalhos sociais”
com crianças “em situação de risco social” para “tirá-las das ruas”, “afastá-las das drogas,
do tráfico”. Essa ‘definição’ é resultado de um agenciamento de fluxos de violência e de
crianças nas ruas em conjugação com vários outros, entre os quais, aqueles gerados por um
processo de onguização da sociedade4.
2 Agradeço a Mary Ann Mahony, professora doutora em História da Universidade de ??? pelosesclarecimentos prestados em suas palestras no Rio de Janeiro em junho de 2002.3 Ver, por exemplo, Adonias Filho 1976, Andrade 1996; Asmar 1983; Barbosa 1994; Campos 1981; Falcón1995; Garcez e Freitas 1979; Gasparetto 1986; Mahony 1996; 1998; Vinháes 2001.4 Toda essa discussão será aprofundada em Encontros 5.
102
Antes de concluir esta introdução ao capítulo, é preciso frisar que não se trata
apenas de apresentar o ‘contexto’ da pesquisa em seu sentido mais clássico, ou seja, como
termo que engloba a exposição de dados históricos, sociológicos, estatísticos etc. e que
costuma preceder a etnografia propriamente dita. Não bastasse o fato de que todos esses
dados são uma das formas possíveis de apresentar elementos que se encontram e produzem
subjetividades, sua exposição neste trabalho tem também a função de mostrar a conexão
sempre existente entre a situação socioeconômica, a cor, o lugar de moradia e a “história”
das pessoas, o que é imprescindível no debate sobre relações raciais no Brasil, seja no
campo dito acadêmico ou no dito político, na verdade, totalmente imbricados um no outro.
Ainda se pode ler e ouvir declarações que desvinculam cor e desigualdade, que negam a
existência de racismo na ‘sociedade brasileira’, ou até que o admitem, mas como atitude
individual, que parte deste e atinge somente aquele ou aquele outro, e não como um
problema sofrido/enfrentado por um contingente enorme da população brasileira. Assim, a
última parte deste capítulo pretende, a partir de registros etnográficos, reforçar a idéia de
que esses dados têm cor e endereço e que eles afetam a existência e as ações dos blocos
afro.
Histórias de Ilhéus
O município de Ilhéus possui atualmente uma área de 1.847,70 km2, distribuída
entre dez distritos, sendo o distrito-sede urbano e os demais distritos rurais. Em 1535, na
carta de doação do rei de Portugal a seu donatário, a capitania hereditária de Ilhéus possuía
50 léguas, indo do Morro de São Paulo, situado hoje no município de Valença, à barra do
Rio Jequitinhonha, no município de Belmonte. Esses eram os limites da capitania de Ilhéus
com as capitanias de Salvador, ao norte, e de Porto Seguro, ao sul. Em direção ao interior,
103
o limite seria o Tratado de Tordesilhas5. Ao longo dos séculos, áreas que pertenciam à
capitania foram sendo doadas como sesmarias e transformadas em municípios. Em 1536,
foi fundada a Vila de São Jorge dos Ilhéus, no Morro de São Sebastião6. A vila só foi
elevada à categoria de cidade em 1881 (Castro 1981).
Com exceção de trabalhos críticos e recentes, as versões produzidas pelos
historiadores locais dão esse mesmo salto cronológico: da fundação da capitania
hereditária, no século XVI, passam ao século XIX, com a implantação da lavoura
cacaueira. Em geral, começa-se a história com os grupos indígenas que habitavam a região.
A forma como Vinháes (2001) e Castro (1981) expõem o tema pode ser vista como
exemplo de uma espécie de senso comum historiográfico local: Vinháes afirma que a
região da capitania de Ilhéus era habitada pelos “Tupiniquim (...), índios dóceis e de fácil
convívio, habitantes do litoral, e [pel]os Tapuia ou Jê (os temíveis Aimoré), que viviam no
interior” (2001:37). E, segundo Castro, os principais motivos do pouco desenvolvimento
da capitania, após a “prosperidade (...) nos primeiros anos” (1981: 28), foram os ataques do
“aimoré feroz e vingativo” (: 15) e da negligência de seus administradores. A partir daí, a
maior parte dos historiadores informa que a região sul da Bahia permaneceu praticamente
inabitada até meados do século XIX, quando levas de migrantes “humildes”, especialmente
vindos das regiões de Sergipe e do sertão baiano fugindo da seca, chegaram a Ilhéus,
derrubaram as matas e começaram a produzir riqueza e crescimento econômico para a
cidade com a implantação do cacau, ainda que dispusessem de poucos recursos e apenas de
seu próprio trabalho, isto é, não tinham condições econômicas para usar a mão-de-obra
escrava. Em linhas gerais, este é o mito de origem do cacau na região e sobre o qual não há
5 O Tratado de Tordesilhas foi assinado em 1494 na cidade espanhola de mesmo nome. Trata-se de umacordo estabelecido entre Espanha e Portugal que dividia as terras já conhecidas ou que viessem a serencontradas situadas a oeste da Europa entre esses dois países. Pelo acordo, uma linha imaginária situada a370 léguas a oeste de Cabo Verde seria o marco divisório. No Brasil, essa linha passava no que hoje é oEstado de Goiás.
104
divergências significativas: Jorge Amado, Adonias Filho7 e historiadores repetem-no. Vê-
se, assim, que o mito de origem do cacau é também o mito de origem do “progresso”, da
“civilização” e de uma “identidade”8 de Ilhéus e de toda a região, cuja expansão ocorreu a
partir da derrubada da mata para o plantio do cacau. Como nas cidades fundadas por
imigrantes no sul do país a partir dos assentamentos de colonização, a imagem do
“desbravador” da mata, do “pioneiro” é a imagem de um herói9.
Segundo Mahony (1996), Antônio Pessoa da Costa e Silva, intendente de Ilhéus
entre 1912 e 1915 e importante líder de oposição às famílias tradicionais (no início do
século XX, a política em Ilhéus era dividida entre ‘pessoístas’ e ‘adamistas’, partidários de
Domingos Adami de Sá), descendente de migrantes que conseguiram se estabelecer como
cacauicultores, contratou um historiador para escrever a história de Ilhéus. Sua obra
(Barros 1915) – que já nasceu com dimensão de história oficial – ajuda a entender porque a
história de Ilhéus é repetida tal como resumida acima, ou seja, abordando praticamente
apenas o início da colonização e daí saltando para o final do século XIX e para o século
XX. Mahony argumenta que foi intenção de Pessoa deixar a elite açucareira à margem da
história; para isso, era necessário mostrar a cacauicultura como um fenômeno recente e que
nada tinha a ver com a elite oligárquica e escravocrata dos engenhos de açúcar – que estava
sendo acusada de ser responsável pelo atraso do país naquele momento – mas sim com
homens que enriqueceram por si mesmos, que eram “produtos de seus próprios esforços”,
“self-made men” (1996:495). Por isso, na obra de Barros, vê-se que
“metade do livro é dedicada à história colonial de Ilhéus e o restante
6 No Oiteiro de São Sebastião encontra-se o “marco de fundação” da cidade, inaugurado na comemoraçãodos 450 anos de fundação da Vila de São Jorge dos Ilhéus (Heine 1996:52).7 Ver Amado 1933; 1943; 1944; 1958; 1981; 1984 e 1991. Ver também Adonias Filho 1946; 1952, 1962;1968; 1971; 1975 e 1976, sendo esta última uma obra de caráter sociológico, não ficcional como as outras.8 Por ser um termo caro à antropologia, é preciso ressaltar que a palavra identidade está entre aspas porquepossui, nesse contexto, o mesmo estatuto das palavras progresso e civilização: são termos êmicos, ou seja,são utilizados tanto por historiadores quanto pelos atores sociais para exprimir uma determinada imagem desi. A palavra identidade enquanto instrumento analítico será debatida no quarto capítulo deste trabalho.9 Sobre “pioneirismo” como símbolo de “identidade” de grupos teuto-brasileiros, ver Seyferth 1999.
105
endereçado às questões do século XX. (...) Pessoa queria mostrar queIlhéus tinha uma história tão antiga quanto Salvador e que pessoas deIlhéus tinham contribuído para a formação de um Brasilindependente” (1996:495-6).
Mahony continua sua argumentação mostrando que a primeira grande crise da
lavoura cacaueira, ocorrida no final da década de 20, e o domínio da economia regional
pelos exportadores, principalmente a partir de 1926, quando o cacau passou a ser
exportado pelo porto de Ilhéus (até então era levado para Salvador), uniam tanto pessoístas
quanto a elite tradicional na condição de produtores. Não era, pois, interessante que
estivessem divididos e nenhum esforço foi feito por parte dessa elite para negar a versão da
origem do cacau popularizada na época de Pessoa. Além disso, os primeiros dados oficiais
sobre a produção cacaueira legitimam tal versão: o Instituto de Cacau da Bahia, criado em
1931 por Getúlio Vargas para salvar os grandes produtores dando-lhes crédito, divulga
dados estatísticos a partir de 1890, fazendo parecer que não havia produção de cacau antes
dessa data, assim como latifúndios e riqueza (1996:499-503). Mahony aponta algumas
outras razões para a predominância do “mito pessoísta”: as evidências físicas dos grandes
engenhos de açúcar desapareceram; as famílias nobres do açúcar costumavam ostentar
riqueza em Salvador, ao contrário dos “novos ricos” do cacau que precisavam demonstrar
seu poderio econômico na cidade a fim de aspirar ao poder político10; e, por fim, as
grandes fazendas encontravam-se em regiões mais interiorizadas, ficando as pequenas
propriedades em lugares mais visíveis (:523).
A produção de uma história oficial da economia cacaueira em seu auge e que
valorizava o grupo que estava ocupando o poder naquele momento juntamente com a
ausência de uma contra-história, fosse anterior ou posterior, trouxe conseqüências
histórico-políticas que perduram até hoje. A “verdade da história”, o “saber histórico”, que
10 São desse período áureo da economia cacaueira os mais importantes prédios históricos da cidade, entreeles: Palácio Paranaguá, de 1907; Associação Comercial, de 1912; Palacete Misael Tavares, de 1922.
106
“não é simplesmente um analisador ou um decifrador das forças, é um modificador”
(Foucault 1999:204), permanece influenciando as relações de força na cidade. Ainda que a
elite cacaueira (produtores e comerciantes) não tenha mais a mesma importância
econômica, ela ainda ocupa lugar de destaque no cenário político. Isso acontece porque o
cacau continua sendo o principal produto econômico do município, mesmo da região, e
fundamentalmente porque esse saber histórico continua sendo produzido e reproduzido.
Até mesmo quando se trata de buscar alternativas econômicas, como no caso do turismo,
esse “discurso de verdade” alimenta e é alimentado continuamente, como será
demonstrado adiante.
Para Mahony (1996), o mito de origem do cacau não é uma “mentira”, mas dá uma
“falsa impressão do passado” por focalizar uma “limitada porção da história pela exclusão
de outras” (:23). Ao contar o que seria a parte excluída da história pelo mito, a autora
pretende mostrar que antes da implantação da lavoura cacaueira como monocultura na
região, havia famílias ricas, proprietárias de latifúndios, que possuíam escravos, que
trabalhavam com o açúcar e com a madeira e, posteriormente, com o cacau. Essas famílias
começaram a investir no cacau antes de 1890 – Mahony afirma que por volta de 1860
quase todos os proprietários cultivavam cacau, ainda que não fosse muito (1996:271-2) – e
continuaram a dominar o cenário político, mesmo perdendo um pouco de sua força com a
entrada de novos atores, inicialmente com os “novos ricos” (como eram chamadas as
famílias de migrantes que se tornaram cacauicultores) (:485) e depois com os exportadores
de cacau no início do século XX.
Adonias Filhos (1976) concebe a existência de uma “civilização” ou de uma
“cultura” da região cacaueira que tem como uma de suas principais características ser
essencialmente democrática: democracia racial e democracia fundiária. Sobre a primeira,
que será melhor tratada adiante, o mito afirma que qualquer pessoa que tivesse seu pedaço
107
de terra poderia vir a enriquecer e isso seria possível mesmo a escravos, ex-escravos e
mulatos vindos do interior nordestino. A lavoura cacaueira ofereceria, então, uma real
possibilidade de mobilidade social, mesmo para negros, fossem livres ou escravos. Essa
facilidade na aquisição da terra teria proporcionado a pulverização de pequenas
propriedades, daí advém a idéia de democracia fundiária. De acordo com os estudos de
Mahony (1998:98-101), ela pode mesmo ter ocorrido, mas apenas num primeiro momento.
A autora diz que a lei de terras estadual baiana, de 1897, transformava terras devolutas –
que em Ilhéus constituíam mais da metade das terras existentes no município – em
pequenas e médias propriedades, proibindo a formação de latifúndios. Mas já nos anos 10,
a maior parte dos pequenos produtores havia perdido suas terras, tanto em função das
dívidas contraídas junto a comerciantes e a grandes proprietários quanto porque não
tiveram recursos para obter o título da terra. Os custos muito altos para obtenção do título
de propriedade e a dificuldade de acompanhar o processo, que precisava ser remetido a
Salvador e podia acabar se perdendo11 no caminho, praticamente condenavam os pequenos
proprietários à perda da terra. A obtenção de créditos junto aos bancos oficiais só era
possível para quem tivesse o título da terra, o que excluía os pequenos proprietários. Estes,
por sua vez, não tinham outra saída senão tomar dinheiro emprestado aos grandes
proprietários e comerciantes, a juros exorbitantes. Então, não sendo possível pagar o
empréstimo, terminavam por perder a terra, única garantia de que podiam dispor (ou até
mesmo a vida, segundo um certo senso comum histórico sobre os tempos “áureos” do
cacau). Como ressaltam Garcez e Freitas, “esse foi, inclusive, um dos processos mais
eficazes de concentração das terras do cacau.” (1977:26). Mahony (1998) apresenta dados
do Censo de 1920 que mostram menos donos do que propriedades, o que faz constatar que,
11 Mahony (1998) conta, por exemplo, que em 1912 vários processos de requisição de propriedade foramqueimados no Palácio do Governo da Bahia, em Salvador, mas a grande maioria dos pequenos proprietários,em geral analfabetos, não foram avisados que deveriam requerer novamente seus títulos (:102).
108
embora ainda não houvesse muitos latifúndios, uma mesma pessoa poderia possuir várias
pequenas e médias propriedades (:101).
A tese da democracia fundiária como característica do tipo de economia produzida
pelo cacau acaba por ser defendida, pelo menos nesse primeiro período de implantação da
lavoura cacaueira, até mesmo por autores que se colocam em oposição no campo
intelectual. Adonias Filho e Jorge Amado, só para citar os mais famosos escritores da
região e os mais representativos de cada um dos lados, compartilham do senso comum
sobre a história local de que os primeiros cacauicultores eram de “origem humilde”
(expressão muito utilizada por autores, mas também por moradores de Ilhéus) e que os
latifúndios começaram a se formar somente depois de 1890. Sua diferença está no que
seria o momento seguinte à implantação do cacau, sobre que “tipo de sociedade” resultou
daí.
Adonias Filho defende que a “civilização do cacau”12 é essencialmente democrática
e, conseqüentemente, progressista (Mahony 1996:5-6). Nas poucas páginas de um capítulo
bastante revelador de suas teses intitulado “O Democratismo” (1976:77-80), o autor nega a
violência atribuída aos coronéis do cacau, assim como nega a prática da grilagem. Ele
distingue o “coronel do cacau” do “coronel do sertão nordestino” – este é violento e
desrespeita as leis. Adonias Filho insiste que o fazendeiro de cacau luta por terras no
interior do sistema judiciário, não com violência. Por isso, o advogado “é o grande e
indispensável colaborador” do cacauicultor13. A violência é, na verdade, praticada pelo
jagunço, “um subtipo social”, “mercenário”; “é um tipo secundário e obscuro no conjunto
de seus [do coronel] empregados” (:79). Para Adonias Filho, o coronel contratava o
12 Para Adonias Filho, essa “civilização do cacau” existe em função de uma “uniformidade ecológica” daregião, de uma estrutura social e de uma organização econômica próprias que fornecem “normas,convivências, identidades e fins que asseguram regionalmente a integração” (1976:17).13 Garcez e Freitas (1977:77) comentam sobre a influência dos “coronéis” no poder judiciário através dosadvogados, que constituíam uma espécie de “acessório esclarecido ao lado da força armada”, a “jagunçada”.
109
jagunço para cuidar de questões morais, referentes a um “código de honra”, que não
possuíam relação com a terra (:78).
Já para Jorge Amado, o ‘tipo de sociedade’ forjado pela economia cacaueira em seu
momento posterior à implantação da cultura não tem nada de democrático. Essa economia
criou uma elite de homens rudes, humildes, mas também violentos e exploradores; que
tratavam os trabalhadores das fazendas como escravos e tomavam terras dos pequenos
agricultores, fosse pela violência direta ou pela corrupção do governo e do sistema
judiciário. Em suas obras sobre a região cacaueira, o autor afirma que antes de chegarem
os exportadores – os capitalistas estrangeiros –, a economia do cacau era baseada no
sistema feudal. Seus livros mostram vários aspectos dessa versão da história de Ilhéus: as
lutas violentas pela terra e a expropriação dos pequenos agricultores; a exploração dos
trabalhadores; a perda de terras dos produtores para os exportadores; a relação dos
fazendeiros com o poder político; a prepotência da elite local que se julga descendente da
aristocracia...
Para Mahony (1996:518), a versão de Adonias Filho predomina sobre a de Jorge
Amado. Certamente isso ocorre entre os historiadores mais tradicionais e nas versões da
elite local, que ainda hoje é atuante política e economicamente e continua reproduzindo sua
visão sobre a cidade de Ilhéus. Dois exemplos um tanto exóticos dessa visão de mundo da
elite (ou de seus descendentes) ocorreram durante uma mesa-redonda intitulada “A
escravidão em Ilhéus: do açúcar ao cacau”. Essa atividade era parte do “Seminário novas
dimensões da história de Ilhéus”, realizado na semana de comemorações dos 466 anos da
cidade em 200014. Da mesa-redonda participaram os historiadores Mary Ann Mahony e
André Rosa Ribeiro, professor da UESC, e ambos tinham o mesmo propósito: mostrar a
14 O seminário foi realizado nos dias 30/06 e 01/07 no Centro de Convenções Luiz Eduardo Magalhães, comoparte das atividades de inauguração do espaço. A título de ilustração, convém informar que o auditório onde
110
ocorrência de escravidão no início da economia cacaueira. Para tal, um dos recursos
utilizados por Mahony em sua exposição foi a apresentação de documentos sobre a morte
de escravos em cativeiro. Ao final da palestra, uma senhora disse que “nem todos os donos
de escravos eram tão perversos” e que sabia que seus antepassados “eram bons, eram
amigos de seus escravos”. O outro exemplo também foi gerado a partir da fala de Mahony.
Além de vasto material de arquivo, a historiadora recorreu a Jorge Amado para provar que
havia escravos e citou uma passagem em que o autor conta que a filha de um “coronel” do
cacau com uma escrava vivia na sede da fazenda, embora não fosse tratada como filha,
mas como “agregada”. Se Mahony recorreu a Jorge Amado por julgar que seus relatos,
embora fictícios, possuem a qualidade de informar sobre uma possível realidade dos
acontecimentos na época, uma senhora que estava na audiência, misturando ficção e
realidade, identificou-se como neta do coronel citado e perguntou se “um livro de Jorge
Amado pode ser considerado verdadeiro”; negou que seu avô tivesse feito tal coisa [ter
uma filha ilegítima com uma escrava] e, dirigindo-se à platéia, disse: “Jorge Amado tinha
que escrever essas coisas para que vocês comprassem os livros dele”. Para completar a
situação de mistura entre ficção e realidade, estava na platéia o Sr. Sá Barreto15, chamado
em Ilhéus como “o último dos coronéis”, também amigo e personagem de Jorge Amado.
Apesar da visão de Adonias Filho predominar entre os intelectuais mais antigos e a
elite, há outros setores que explicam a conjuntura político-socioeconômica atual usando
argumentos semelhantes àqueles de Jorge Amado – adotados pela esquerda já nos anos 40
e 50 (Mahony 1996:512-3), na qual o autor militava.
Membros de movimentos de trabalhadores rurais associam o retardo do
movimento de luta pela reforma agrária nessa região, quando comparada com outras, à
o evento foi realizado chama-se “Nacib”; há também as salas “Gabriela”, “Tonico Bastos” e novamente“Nacib”, todos personagens de Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.15 Falecido em 2003.
111
lavoura cacaueira em função do baixo índice de concentração fundiária que ela gerou,
também quando comparado com índices de outras regiões. O grande número de pequenas e
médias propriedades, ainda que várias delas pertencentes a um mesmo proprietário, e a não
regularização fundiária de boa parte do território (que permitia aos grandes proprietários
tomarem posse das terras dos pequenos, mas não permitia a configuração legal dessa
situação), faz com que o índice de concentração fundiária seja baixo ainda hoje. Além
disso, militantes de esquerda costumam dizer que a dificuldade de forjar alternativas
econômicas para o cacau é conseqüência da “cultura” da “exploração” e do “trabalho
fácil”, originada na relação de expropriação que a elite cacaueira sempre teve com a terra:
uma vez implantado, o cacaual não requer muitos cuidados, o que fazia, segundo diz o
senso comum na região, com que os proprietários – filhos e netos dos primeiros produtores
– fossem morar nos grandes centros urbanos e deixassem o cacau produzindo nas mãos de
empregados. Essa “cultura”, ainda de acordo com o que pode ser chamado de senso
comum crítico, haja vista que é largamente repetido, também seria responsável pelo
tratamento qualificado como “preconceituoso”, “explorador”, “humilhante” que a elite
costuma dispensar aos seus empregados e à população em geral.
É comum na região ouvir relatos de pessoas mais idosas, especialmente daquelas
que trabalharam em roças de cacau, sobre as péssimas condições de trabalho, até mesmo a
existência de trabalho escravo já no século XX, e mortes de trabalhadores e pequenos
proprietários. Costuma-se dizer que a atual crise do cacau é uma “resposta da terra” ou “da
natureza”, dependendo da versão, à “exploração” e a “todo o sangue derramado” nos
tempos áureos da economia cacaueira.
Esses relatos de ex-trabalhadores que apresentam o outro lado da mesma ‘realidade
histórica’, cada vez mais recolhidos e trabalhados em função da presença de uma
112
universidade pública na região16, assim como a popularização ainda maior da literatura de
Jorge Amado na cidade, alimentam essa versão contrária à da elite. Assim, vê-se que as
retóricas sobre o passado estão em disputa constante. Em Ilhéus, o turismo tem um papel
central nessa disputa, pois, como diz Menezes (1998):
“A definição do que é ou não uma atração turística na cidade, passaentre outras coisas por lutas pela demarcação do passado oficial deIlhéus, onde o turismo vem somar-se a retóricas cumulativas(produção intelectual local, literatura, telenovelas) pautadas naconstrução da objetificação de uma versão do passado da cidadeestreitamente ligada à atribuição dada a certas famílias de agentescentrais na construção da ‘história de Ilhéus’” (:80).
Sobre essa disputa de versões, cabem três observações. A primeira é que a obra de
Adonias Filho mais utilizada é Sul da Bahia: Chão de Cacau, de 1976, ou seja,
relativamente recente e que teria sido escrita como uma resposta à telenovela Gabriela17,
exibida em 1975.
As segunda e terceira observações dizem respeito a quem produz turismo em
Ilhéus. Por um lado há os proprietários ou descendentes de proprietários de fazendas de
cacau que investem no setor de turismo em Ilhéus – de acordo com informações obtidas
por Menezes junto a funcionários da Ilheustur (empresa pública municipal de turismo),
eles constituem cerca de 50% do empresariado desse setor (1998:79). Por outro lado, há a
atual política de turismo da prefeitura que, especialmente nos últimos anos, vem
concentrando sua estratégia de promoção da cidade na pessoa e nas obras de Jorge Amado.
A pesquisa realizada por Menezes ocorreu em 1997, primeiro ano de governo do
segundo mandato (1997-2000) do atual prefeito, agora em sua terceira gestão (2001-2004).
O uso do nome de Jorge Amado como principal atração turística de Ilhéus estava só
16 A UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz –, situada na Rodovia Ilhéus-Itabuna, investe grandesesforços no estudo da região cacaueira. Os departamentos de História e de Letras, por exemplo, possuemdisciplinas na graduação e cursos de pós-graduação voltados para o estudo regional.17 Baseada na obra Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado (1958).
113
começando18. Naquele ano, houve a inauguração da Casa de Jorge Amado e sua última
visita a Ilhéus, justamente nessa ocasião. Porém, ao longo dos anos seguintes, muitos
outros investimentos foram realizados19. Se, por um lado, o nome de Jorge Amado ajuda a
fortalecer o turismo nas fazendas de cacau por ser a economia cacaueira o maior mote de
sua literatura para essa região, por outro essa retórica turística participa da disputa de
versões históricas observada anteriormente e municia os demais setores sociais. É possível
supor que, para além de motivações de ordem técnica, há dois fatores que, de certa forma,
permitem o investimento do governo municipal nessa estratégia. O primeiro é que alguns
dos mais importantes produtores de políticas de turismo dos últimos anos são pessoas de
fora da cidade, não envolvidas, portanto, com as famílias tradicionais ilheenses. O segundo
fator refere-se à imagem do atual prefeito, formada a partir da idéia de oposição à chamada
política tradicional de Ilhéus.
Goldman (2001) mostra com números o que já foi dito aqui sobre a influência
política dos produtores de cacau na cidade: “até 1976, dos 24 intendentes e prefeitos de
Ilhéus dezenove podem ser encontrados entre os principais fazendeiros e comerciantes
locais” (:60). Esse foi o ano em que Jabes Ribeiro, atual prefeito de Ilhéus, foi candidato a
vice-prefeito com apenas 23 anos. Sua chapa não foi eleita (o governo municipal foi
assumido por Antônio Olímpio), mas ele ocupou a Secretaria de Educação. Candidatou-se
novamente em 1982 e venceu as eleições. Goldman chama a atenção para o fato de que
18 Isso não significa que Jorge Amado não fosse importante para Ilhéus anteriormente. É provável que sua“presença” na cidade tenha se intensificado a partir da gravação da telenovela Gabriela, em 1975. Já em1983, primeiro ano do primeiro mandato de Jabes Ribeiro, foi fundado o “Circo Folias da Gabriela”, umalona para a apresentação de espetáculos populares. Foi também em 1988, último ano da primeira gestão deJabes, que Ilhéus comemorou o aniversário de 30 anos do romance Gabriela, Cravo e Canela com várioseventos.19 Entre outros exemplos, podemos citar a fachada do Bataclan, famoso bordel de Gabriela... que foireconstruída (mas o resto do prédio não existe); o bar Vesúvio que foi reformado tal como era na épocaretratada no romance; e o “circuito turístico cultural” chamado “Quarteirão Jorge Amado”, criado pelaIlheustur e pela Fundação Cultural. Segundo consta de seu folheto de propaganda, ele é dividido em doisroteiros, o “Cravo” e o “Canela”, onde se pode “fazer uma viagem ao tempo dos coronéis, revivendo ashistórias e as fantasias de personagens e lugares”. Por fim, o slogan da Ilheustur em todos os eventosturísticos na cidade no ano de 2001 era “Vejo você na terra de Jorge Amado”.
114
Jabes é filho de um motorista, portanto, “não se adequava ao perfil histórico dos principais
políticos locais”, não estando vinculado às famílias e aos líderes políticos tradicionais da
economia cacaueira. Além disso, sua campanha visou mostrar seu afastamento em relação
à política que era realizada em Ilhéus através de termos como “mudança”, “renovação”,
“povo” (:61). A relação que Jabes tem com a política hoje é certamente bem diferente
daquela de 82. No início de sua carreira política, ele foi membro do chamado “MDB
autêntico”, partido que agregava parte da esquerda ainda durante a ditadura e que se
transformou posteriormente no PMDB, onde Jabes permaneceu por algum tempo, até
transferir-se para o PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro), partido pelo qual se
elegeu em 1996 e se reelegeu em 2000, e hoje é filiado ao PFL (Partido da Frente Liberal),
partido de Antônio Carlos Magalhães, maior liderança política da direita no Estado da
Bahia. Jabes Ribeiro tornou-se uma importante liderança regional, é presidente da
AMURC (Associação dos Municípios da Região Cacaueira) e agrega em seu grupo
político representantes das famílias do cacau. No entanto, ainda hoje a imagem cultivada
em torno do nome de Jabes é a de alguém que tem “origem humilde” e que “deu certo”;
alguém “de fora” em relação à elite dos coronéis do cacau que conseguiu “vencer na
política” como oposição a ela.
Histórias de Ilhéus – economia cacaueira
Os historiadores apresentam dados muito diferentes sobre a data da implantação do
cacau na região de Ilhéus. Só Vinháes (2001:213-214) cita quatro versões: na primeira, o
primeiro pé de cacau teria sido plantado “na margem direita do Rio Pardo”, hoje município
de Canavieiras, em 1746; na segunda, citando Campos (1981), ele diz que os primeiros
cacaueiros também podem ter sido plantados em 1789; numa terceira versão, a economia
115
do cacau teria sido implantada por volta de 1780 e, por fim, na quarta, cita os anos de 1755
a 1760 como provável período de início da plantação.
Mahony (1996) não cita uma data, mas apresenta indícios de que a lavoura
cacaueira já tinha alguma importância na primeira metade do século XIX. Ela cita, por
exemplo, uma obra de 1838 que fazia uma descrição do melhor método para o plantio do
cacau (:218). Ribeiro (2001:61) é mais contundente e afirma que “a partir de 1835, o cacau
tomou parte regular nas exportações anuais da província e as exportações dobraram ou
triplicaram a cada década entre 1830 e 1890”. Garcez e Freitas informam que em 1834 o
cacau já aparecia como produto de exportação, embora ainda com crescimento bastante
moderado, e chegam a dizer que naquele ano foram exportadas 26,5 toneladas de cacau
(1979:21). De qualquer forma, o que importa registrar é que o cacau já era o principal
produto econômico da região no fim do século XIX, sendo cultivado em, praticamente,
todas as fazendas (Mahony 1996:272-275).
A explosão da lavoura cacaueira ocorreu na última década do século XIX e na
primeira do XX. Segundo Mahony, é possível dizer que quase todas as fazendas, mesmo as
menores, possuíam no mínimo mil pés de cacau enquanto as maiores poderiam chegar a ter
duzentos mil pés (1996:275-6). Em 1910, Ilhéus já era o segundo maior produtor de cacau
do mundo (Vinháes 2001:214).
Em 1920, havia mais de trezentos mil hectares de propriedades agrícolas nos
municípios de Ilhéus e Itabuna (emancipado em 1912) cobertos com pés de cacau (Mahony
1998:94). O cacau teve sua cotação mais elevada em 1926. Porém, no final da década de
20, tem lugar a primeira grande crise da economia cacaueira: entre 1928 e 1931, os preços
despencaram, assim como a taxa de emprego na região. Atendendo aos apelos dos
fazendeiros, em 1931, o presidente Getúlio Vargas criou o Instituto de Cacau da Bahia
(ICB) para perdoar dívidas e dar mais crédito aos grandes produtores, pois só era permitida
116
a participação no programa de crédito a quem possuía o título de propriedade (Mahony
1996:499-502) que, como já foi dito, custava caro e só os grandes adquiriam.
A segunda grande crise do cacau aconteceu na metade da década de 50, fazendo o
presidente Juscelino Kubitschek criar a Comissão Executiva do Plano de Recuperação
Econômico-Rural da Lavoura Cacaueira (CEPLAC), com objetivos práticos, chamados de
‘emergenciais’ (cf. Garcez e Freitas 1979:44), semelhantes aos do ICB: perdoar dívidas e
dar financiamento aos cacauicultores. A CEPLAC, que em sua criação tinha um caráter
transitório – note-se que se tratava de uma ‘Comissão Executiva’ para implantar um ‘Plano
de Recuperação...’ – em 1963, passou a fornecer também assistência técnica aos
produtores, objetivando o aprimoramento das áreas plantadas, bem como a instalação de
infra-estrutura apropriada ao transporte, beneficiamento e estocagem do cacau. O órgão
passou também a atuar na área de pesquisa e na década de 90 criou e implementou a
biofábrica de clones de cacau: tratam-se de plantas modificadas geneticamente e que se
tornam capazes de resistir ao ataque da vassoura-de-bruxa, fungo que provocou a última e
mais forte crise da lavoura cacaueira, iniciada na década de 80 e que perdura até o
momento.
Desde a década de 30 do século passado, portanto, a lavoura cacaueira vem
sofrendo sucessivas crises e retomadas de crescimento. É importante observar que o cacau
sempre foi uma “atividade econômica monocultora de exportação”, ou seja, sempre esteve,
e permanece assim, vulnerável ao mercado externo, seja ele consumidor (o emprego de
uma quantidade cada vez menor de cacau na produção do chocolate provocou a diminuição
da demanda) ou produtor (a entrada dos países africanos na concorrência foi motivo de
grande desestabilização na economia cacaueira brasileira) e até mesmo em relação ao
câmbio (flutuação da cotação do dólar).
117
Na década de 80, quando teve início a última crise com o advento da vassoura-de-
bruxa, o cacau ainda era a cultura mais lucrativa da região. Nessa época a produção era
subsidiada pelo governo federal, o que fazia com que, de acordo com o depoimento de um
técnico da CEPLAC, o cacau fosse plantado “até em cima de pedra”, empregando cerca de
trezentos mil trabalhadores assalariados. Este é o mesmo número de desempregados na
região cacaueira segundo uma nota do jornal O Globo de 08/03/99 (Vinháes 2001:232). O
depoimento do mesmo técnico dá um outro dado revelador: grandes fazendas produtoras
de até vinte mil arrobas de cacau por ano no início da década de 80, hoje20 produzem
apenas mil arrobas e, em alguns casos extremos, as fazendas foram abandonadas por seus
proprietários que mantêm somente um ou alguns poucos trabalhadores para “tomar conta”.
Esse depoimento é reforçado pelos números: em 1990, foram exportadas 211.979
toneladas de cacau e produtos derivados21; em 2000, foram 61.454, mas o pior ano foi o de
1997, com apenas 53.855 toneladas exportadas22.
É preciso ressaltar que os desempregados da crise não se restringem aos
trabalhadores das fazendas, pois a maior parte das atividades econômicas dos centros
urbanos está diretamente relacionada à produção do cacau. O depoimento de um dirigente
de um bloco afro-cultural é bastante ilustrativo da importância da lavoura cacaueira na vida
da grande maioria dos ilheenses:
“Eu nunca tive um pé de cacau plantado em terreno algum, massempre dependi do cacau. Porque a gente vivia da lavoura. Era porcausa da lavoura que o fazendeiro gastava, empregava, construía. Anossa mão-de-obra era utilizada”.
Apesar de haver uma espécie de senso comum no município que condena que a
economia continue baseada na monocultura, já que “não se pode confiar no cacau”, ele
20 Depoimento concedido no ano 2000.21 Em seu trabalho de 1979, portanto anterior à disseminação da praga, Garcez e Freitas informam que,naquele momento, a política do governo com relação ao cacau visava expandir muito a produção nacional eprevia que esta seria de setecentas mil toneladas em 1990 (:100).
118
ainda é o principal produto econômico. De acordo com os dados da Produção Agrícola
Municipal 1999 do IBGE, em termos de lavoura permanente, no ano de 1997 (ano de
referência para o dado) o cacau tinha a maior quantidade de área plantada, com 60.952
hectares; o segundo produto era a borracha, com apenas 1.528 hectares e, em terceiro
lugar, ficava o coco-da-baía, com 148 hectares. Em 2000, segundo dados apresentados no
site do governo da Bahia, a área plantada de cacau em todo o Estado foi de 608 mil
hectares, tendo Ilhéus a maior participação, com cerca de 70 mil hectares e sendo também
o maior produtor, com 10.137 toneladas23. Um outro dado relevante é quanto à mão-de-
obra empregada na lavoura. No ano de 2000, o cacau foi o terceiro produto da Bahia em
emprego de trabalhadores (128.581,88), ficando atrás apenas do feijão (225.889,15) e da
mandioca (134.923,23)24. Considerando que estes dois últimos produtos são cultivados em
todo o Estado, diferentemente do cacau que é plantado apenas nessa região, pode-se ter
uma idéia do que representa seu declínio para os municípios que sempre o tiveram como
única fonte de renda. Do ano de 1999 para 2000, o cacau empregou cerca de dez mil
pessoas a menos25, o que significa dizer, grosso modo, que foram mais dez mil
desempregados produzidos num curtíssimo espaço de tempo e localizados numa única
região, aumentando substancialmente o caos social já existente principalmente em
municípios como Ilhéus e Itabuna, que recebem esse contingente de pessoas em busca de
oportunidades de sobrevivência.
Desde 1995, o governo federal criou o Programa de Recuperação da Lavoura
Cacaueira para financiar o investimento dos produtores na substituição dos cacaueiros
22 Dados retirados da tabela “Quantidade das exportações de cacau e derivados, Bahia – 1989-2000”. Fonte:SECEX/MINIFAZ/PROMO (www.sei.ba.gov.br).23 Dados da tabela “Área plantada e colhida, quantidade produzida, rendimento médio e valor das principaisculturas permanentes, segundo os municípios, Bahia – 2000”. Fonte: PAM/IBGE (www.sei.ba.gov.br).Interessante notar que o segundo município maior produtor de cacau foi Itamaraju, com metade da produçãode Ilhéus plantada numa área equivalente a menos de um quarto da utilizada nesse município.24 Dados retirados da tabela “Ocupação da mão-de-obra agrícola em Equivalentes-Homens-Ano (EHA),segundo as culturas pesquisadas – Bahia”. Fonte: SEI/EBDA/SEADE (www.sei.ba.gov.br).
119
atacados pela vassoura-de-bruxa pelas plantas clonadas. Poucos fazendeiros receberam
esse auxílio e a maior parte tornou-se inadimplente em função dos juros altos e dos prazos
muito curtos, de acordo com recorrentes manifestos, editoriais e matérias dos jornais
locais. No ano de 2001, o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,
esteve em Ilhéus para visitar a CEPLAC e anunciar uma nova liberação de recursos da
ordem de quinhentos milhões de reais pelos próximos três anos, sendo que cerca de cento
e quarenta milhões seriam liberados imediatamente26. Este novo auxílio, a perspectiva da
melhor safra de cacau desde o agravamento da crise em meados da década de 90
(“Produtores comemoram aumento na produção de cacau” – Jornal Agora, 28/07 a
03/08/01) e uma mostra da representatividade da cidade de Ilhéus no mercado
internacional sediando a 64a Assembléia Geral da Aliança dos Países Produtores de Cacau
(Jornal Agora, 29/09 a 05/10/01), fizeram com que ressurgisse um clima de “esperança” na
economia cacaueira. Ela ainda é apontada como o “futuro” da cidade (“Jabes: o futuro de
Ilhéus é cacau, turismo e informática” – Jornal Agora, 22 a 28/09/01). Além de sua
importância econômica (com movimento anual de cerca de 1,5 bilhão de dólares27), o
apelo do cacau é também ecológico, pois por necessitar de sombra em seu cultivo, ele é
plantado sob a mata. Alguns ambientalistas atribuem a esse fator que 8% de Mata Atlântica
estejam sendo preservados na região. Eles acreditam que o declínio do cacau e o
crescimento da cafeicultura e da pecuária, culturas que chegaram a ser apontadas como
alternativas ao cacau, poderiam fazer o desmatamento ganhar proporções gigantescas,
passando a ameaçar as reservas e os muitos mananciais existentes na região.
25 Foram 138.068,42 empregados segundo tabela citada na nota anterior.26 Jornal A Região, 26/08/01 (“Fernando Henrique Cardoso cria Conselho do Agronegócio do Cacau”);23/09/01 (“Representação da lavoura é ampliada no Agronegócio do Cacau”). Jornal Agora, 14 a 20/07/01(“Lançamento do novo programa do cacau termina com pancadaria na Uesc”); 25 a 31/08/01 (“FHC anuncianovo plano para o cacau e faz discurso conciliatório”); Jornal do Brasil, 25/08/01 (“FH: ‘Engoli muitos saposna Bahia’ – Presidente dá alfinetada em ACM ao anunciar diante de senadores carlistas plano de recuperaçãoda lavoura de cacau”).27 Jornal Agora, 28/07 a 03/08/01.
120
Histórias de Ilhéus – população e cor
O último Censo Demográfico do IBGE, realizado em 2000, revela que habitam
222.127 pessoas em Ilhéus, cerca de vinte mil habitantes a menos do que mostrou a
Contagem Populacional de 1996, também do IBGE. Os números condizem com a situação
da crise econômica na região: entre os censos de 1980 e 1991, percebe-se um aumento
expressivo da população de Ilhéus (cerca de 59%). Considerando-se que a crise da lavoura
cacaueira tem início na década de 80, é possível supor que esse crescimento populacional
já seja reflexo do desemprego provocado pela crise, o que fez com que a população dos
municípios vizinhos fosse buscar em Ilhéus e em Itabuna alguma alternativa de
sobrevivência. Entre 1980 e 1991, Itabuna também teve um aumento substantivo no
número de habitantes, embora não tão grande quanto o de Ilhéus. A Contagem
Populacional de 1996 permite observar que o movimento de crescimento populacional
perdurou até meados da década e que, posteriormente, houve um movimento de retração.
Não fosse isso, poder-se-ia pensar que a população ficou estabilizada nesse período pelo
número bastante próximo que o Censo de 2000 apresenta em relação ao de 1991. A
variação é de apenas –0,09%.
Observando-se os números referentes ao total da população de Ilhéus por situação
de domicílio, percebe-se que houve entre os censos de 1980 e 1991 um movimento de
crescimento da população rural em torno de 50%. Dos doze municípios com mais de cem
mil habitantes existentes no Estado da Bahia atualmente, Ilhéus é o que apresenta o menor
grau de urbanização (72,99%), possuindo, ainda, uma zona rural bastante expressiva. A
observação dos números de habitantes dos censos em municípios vizinhos sugere que
houve uma migração de sua população para Ilhéus, até mais do que para Itabuna, em
busca, primeiramente, de trabalho ainda nas roças de cacau – daí o aumento da população
121
rural – e depois na cidade. O decréscimo de população também de Ilhéus entre 1996 e
2000 aponta para a ausência de alternativas econômicas e o crescimento que se verifica no
município de Itabuna28 sugere que as pessoas foram buscar emprego no comércio, já que a
zona rural desse município é praticamente inexistente (o grau de urbanização em Itabuna é
de 97,21%). Deve-se observar ainda que das quinze regiões econômicas do Estado, apenas
duas tiveram decréscimo populacional entre 1991 e 2000, sendo uma delas a região
denominada “Litoral Sul”29, que coincide em parte com o que é chamado pelo IBGE de
Microrregião Ilhéus-Itabuna e com o que é entendido como região cacaueira. A taxa de
crescimento populacional da região Litoral Sul é de - 0,18 e ela é formada por 53
municípios, dos quais 33 perderam população nesse período30.
Os números disponíveis sobre cor/raça para Ilhéus ainda são do Censo
Demográfico de 199131. Segundo os critérios utilizados pelo próprio instituto (“cor ou
raça” “branca”, “preta”, “parda”, “amarela” e “indígena”), a soma das pessoas que se
declararam de “cor ou raça” “parda” ou “preta” em Ilhéus corresponde a 85% da
população, o que faz dela uma cidade majoritariamente negra. Embora este seja um
procedimento comum, adotado inclusive oficialmente pelo IBGE, pelo menos na década de
80, para análise e publicação de índices socioeconômicos (Andrews 1998:382-3), poder-se-
ia argumentar que o recurso à soma desses critérios falseia a realidade uma vez que é
sabido que o termo “parda” abriga as mais variadas designações de cor/raça, que poderiam,
inclusive, tender a ser agrupadas na categoria “branca” mais do que na categoria “preta”,
caso “parda” fosse extinta do censo. Essa hipótese é derivada da constatação de Harris et
28 Número de habitantes em Itabuna: 1980: 153.342; 1991: 185.277; 1996: 183.403; 2000: 196.675. Fonte:Censo Demográfico – IBGE, 2000.29 Esta é uma forma de divisão geográfica empregada pelo site do governo da Bahia (www.sei.ba.gov.br). Aoutra região a perder população é Piemonte da Diamantina.30 Dados retirados da tabela “Taxa de Crescimento Populacional – 1991-2000”. Fonte: Censos Demográficos1991 e 2000, IBGE in www.sei.ba.gov.br.31 Os números produzidos pelo Censo Demográfico 2000 ainda não foram disponibilizados para consultapública em seu site.
122
alli (1993), a partir da análise de uma pesquisa realizada pelo próprio Marvin Harris na
década de 60, de que as pessoas que se autoclassificam como morenas quando a opção é
livre, preferem ser abrigadas sob a categoria “branca” no questionário fechado formado
somente pelas opções oferecidas pelo IBGE. Telles diz o mesmo: “(...) a pessoa próxima a
uma fronteira cromática tende a ‘passar’ para a categoria mais clara” (1993:6). Assim,
somar os números referentes às categorias “parda” e “preta” para mostrar que a grande
maioria da população ilheense é negra ou afrodescendente poderia não ser considerado
legítimo.
Saber onde passa a “linha de cor” – ou dizer se ela existe ou não – no Brasil é
problema antigo nos estudos sobre relações raciais32, assim como determinar quem é negro
e a discussão a respeito dos critérios censitários – questões relacionadas entre si e
absolutamente atuais, principalmente em função da recente adoção de políticas de ação
afirmativa por algumas instituições universitárias e da polêmica então gerada. Estes são
problemas muito complexos e não é objetivo deste trabalho tratá-los profundamente,
contudo, dado que a composição racial é um aspecto importante da configuração
sociológica de Ilhéus, o assunto merece algumas rápidas considerações.
Os problemas referentes ao uso dos critérios censitários já foram amplamente
discutidos. Inúmeros trabalhos acadêmicos33 e matérias jornalísticas34 apontam que o
sistema brasileiro de classificação da população segundo cor/raça é extremamente
polêmico. É famoso o resultado de uma experiência realizada pelo próprio IBGE na
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) em 1976: a partir da pergunta “Qual
32 Para uma descrição sucinta da questão, ver Andrews 1998:379-392 (Apêndice B: “Terminologia RacialBrasileira”).33 Ver, entre outros, Byrne e Forline 1997; Harris 1990; 1993; Maggie 1996; Posada 1989; Silva 1996; Telles1995.34 Por exemplo: “Racismo Cordial” – Suplemento Especial da Folha de São Paulo, 25/06/95; “Cores e nomes– IBGE testa este ano novas categorias de cor seguindo onda politicamente correta” – Folha de São Paulo,02/11/97; “A invisibilidade no Censo – Movimento Negro contesta contagem do censo, que registra 45% de‘pardos’ e 50% de brancos no caldeirão racial brasileiro” – Jornal do Brasil, 17/05/98.
123
a cor do(a) senhor(a)?”, sem a apresentação prévia de opções, foram registradas 135
“cores” diferentes35. O trabalho de Marvin Harris citado acima também é importante e já
foi analisado diversas vezes: através da apresentação de fotos de pessoas com diferentes
características físicas para cem ‘respondentes’, ele conseguiu detectar 492 termos para
designar “raça-cor”36 no Brasil.
É comum o argumento de que essa “confusão” em relação à classificação racial
ocorre no Brasil em função de não haver aqui um sistema de classificação baseado na
ancestralidade, na regra de hipodescendência, como nos Estados Unidos, que é sempre o
outro modelo da comparação. Um argumento complementar ao anterior refere-se à
utilização de uma forma de abordagem simultaneamente êmica e ética nos censos
demográficos do IBGE, qual seja: é aceita a autodeclaração do respondente, mas esta é
feita a partir da escolha de um dos itens preestabelecidos. Assim, a pessoa deve se
enquadrar numa das cores/raças propostas. A novidade da pesquisa do PNAD de 1976 foi
o uso, primeiramente, de uma abordagem exclusivamente êmica – que gerou as 135
“cores” – e, em seguida, o pedido para que essas mesmas pessoas optassem por um dos
termos de classificação, tal qual a abordagem do IBGE nos censos. Como no modelo
americano a abordagem é somente ética – a ascendência determina a “raça” –, é
supostamente mais objetivo designar alguém como negro ou não, aliás, como branco ou
não-branco, já que o que determina a ancestralidade africana é “qualquer grau visível”
dela, mesmo quando há evidências de ancestralidade européia também (Andrews
1998:379).
35 Essas “cores” estão reproduzidas no suplemento especial da Folha de São Paulo, já citado, eposteriormente em Turra e Ventura 1995.36 No original “race-color”. Em nota, Harris et alli esclarecem que preferem o termo usado desta formaporque nem raça nem cor designam exatamente o que se pensa no Brasil: características fenotípicasdiferentes são utilizadas como determinantes, como a cor da pele, mas também o tipo de cabelo, o nariz ou oslábios (Harris et alli 1993:460).
124
Sabe-se, entretanto, que mesmo nos Estados Unidos, essa suposta objetividade só
funciona em relação a instrumentos – também eles tidos por objetivos – como o censo.
Pétonnet (1986), por exemplo, complexifica a questão ao mostrar que a classificação
dicotômica negro/branco não dá conta da realidade de um grupo de professores de classe
média onde a existência de ‘mestiçagens’ no que tange à cor da pele assim como a gostos e
hábitos culturais torna a relação entre cor da pele e cultura muito menos óbvia do que a
antropologia ou a sociologia costumam afirmar, o que faz com que ser negro ou ser branco
– já que são as categorias disponíveis – seja muito mais uma escolha a partir de histórias
individuais do que por dados objetivos.
O conhecimento gerado pelo censo, instrumento metodológico da demografia é,
essencialmente, de reificação. É possível entender melhor sua natureza reificadora
pensando a demografia como fruto da biopolítica, nome pelo qual Foucault designa a nova
tecnologia de poder instalada no século XVIII, que, por sua vez, pode ser melhor
compreendida se comparada à “técnica disciplinar” ou “disciplina”, também tecnologia de
poder instalada anteriormente e incorporada pela biopolítica:
“Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger amultiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidadepode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados,treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a novatecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não namedida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em queela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos deconjunto que são próprios da vida, que são processos como onascimento, a morte, a produção, a doença, etc. Logo, depois de umaprimeira tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o mododa individualização, temos uma segunda tomada de poder que, por suavez, não é individualizante mas que é massificante, se vocês quiserem,que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie.Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrerdo século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo quejá não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamariade uma “biopolítica” da espécie humana” (1999:289).
A demografia é, então, uma forma de produção de saber da biopolítica, que terá como
objeto a “população”, noção que se constitui como uma novidade também introduzida por
125
essa nova tecnologia de poder. Na biopolítica, os mecanismos de intervenção são globais
para que os resultados sejam de equilíbrio global, pois o que importa não é o indivíduo,
mas a média, a estatística, enfim, a espécie humana (:294). Assim, seus instrumentos de
produção de conhecimento são, necessariamente, reificadores. E o censo demográfico é um
dos principais deles.
Herzfeld chama a atenção para esse poder de reificação do censo quando trata dos
perigos da literalização e da metaforização dos discursos de identidade para a hegemonia
pretendida pelos estados-nação (1996). Ele utiliza o caso grego para mostrar que o censo é
“o catalisador de processos de reificação que só ele pode registrar acuradamente” (:82) a
partir da demanda de “precisão demográfica” exigida pelo estado (:77), como, por
exemplo, a categoria que identifica a minoria “macedônia” no interior do estado grego: “o
censo grego (...) pode ter feito mais para criar aquela categoria do que qualquer
propaganda de Skopje ou Thessaloniki.” (:82). Com isso, Herzfeld mostra que a
literalização do discurso de identidade localista que, necessariamente, deve estar elaborado
num discurso de metáfora nacional – caso contrário o nacionalismo simplesmente não
existe –, é “potencialmente secessionista” (:75).
Partindo do raciocínio de Herzfeld, pode-se considerar que no Brasil o censo
cumpre, evidentemente, sua função essencializadora, mas o estado brasileiro tem sido
habilidoso para manter sua hegemonia e evitar a explicitação de conflitos raciais, um dos
principais “perigos” apontados por Herzfeld. Um pequeno artigo de Thomaz Flory (1977)
mostra essa preocupação por parte do império brasileiro desde o período pós-
independência, em função de três fatores principais. O primeiro dizia respeito à conjuntura
provocada pela independência que estabeleceu a oposição “brasileiros” versus
“portugueses”, fazendo com que nativismo, miscigenação e patriotismo se confundissem
com o objetivo de separar o Brasil de Portugal (:206-7); o segundo referia-se à imensa
126
população negra que habitava o país naquele momento – em Minas Gerais e em
Pernambuco, por exemplo, a população de “negros” e “pardos” livres era maior do que a
de “brancos” e de escravos (:201) – e, conseqüentemente, o terceiro fator foi a preocupação
do estado com um discurso racial ainda incipiente – mas já com uma certa força, até
porque era também utilizado pelos conservadores (neste caso, ficou conhecido como a
“imprensa mulata”). A fim de cuidar para que esses fatores não se potencializassem, a
opção do estado foi por legislar com restrições sociais e não raciais, o que mantinha a elite
branca no poder e evitava o discurso de discriminação racial que poderia levar a revoltas
da população livre e da escrava (:222)37.
A forma como o tema “cor/raça” vem sendo tratado ao longo dos censos
demográficos no Brasil mostra essa mesma preocupação. Ele não foi incluído nos censos
de 1900, 1920 e 1970, “atendendo a pareceres de ‘especialistas’ em várias áreas”, diz
Posada (1989:223). Sendo um pouco mais irônico, Hasenbalg diz, especialmente sobre o
censo de 1970, realizado durante a ditadura militar, que isso ocorreu por “motivos
técnicos” – as aspas são do autor (1996:239). Os censos de 1872 e 1890 têm em comum o
fato de que os termos “mulato” ou “pardo” agregavam pessoas que não se enquadravam
nos tipos considerados racialmente originários: “brancos”, “pretos” e “caboclos”
(ameríndios). Também em 1940, o termo “pardo” foi utilizado para classificar aqueles que
não eram “brancos”, “pretos” ou “amarelos”. Somente no censo de 1950 ele fez parte da
opção de classificação. Em 1960 e em 1980, índios foram agregados a pardos (:223-5). E
somente em 1990 a categoria censitária “indígena” fez parte das opções. Além da ausência
do item cor já citada nos censos de 1900, 1920 e 1970, nota-se que os termos “pardo” e
37 É claro que o estado nem sempre foi tão sutil em sua proposta de evitar conflitos raciais. Agier (1992:61) eHasenbalg (1996:239) comentam sobre a preocupação da ditadura militar com denúncias de racismo noBrasil. Este último diz que o tema foi transformado em “questão de ‘segurança nacional’” e que “em 1969, asaposentadorias compulsórias atingiram os mais destacados representantes da escola paulista de relaçõesraciais”.
127
“mulato”, quando estiveram presentes nos censos tanto como opção de classificação
quanto como forma de abrigar o que seriam os outros, não refletem uma identificação
racial – agregam os racialmente misturados e sugerem uma identificação por cor, já que
“indígenas” também eram assim classificados.
A categoria “pardo” é, então, um problema tanto para estudiosos quanto para a
militância negra, pois impede que as pessoas aí classificadas percebam-se como
afrodescendentes, ou seja, a categoria “pardo” faz com que a idéia de “identidade negra”,
concebida como necessária para a “tomada de consciência” e, conseqüentemente, para o
fortalecimento da luta contra o racismo no Brasil, fique restrita a uma minoria da
população, a que se autodeclara “preta” no censo, e reforce a idéia do Brasil miscigenado,
sem “raças” muito bem distintas e, portanto, sem conflitos raciais. No entanto, embora não
agrade a gregos nem a troianos, o termo “pardo” foi mantido no censo de 2000 e a
experiência realizada pelo PNAD de 1976 continua importante como justificativa para isso.
Apesar das famosas “135 cores”, a maior parte dos entrevistados no PNAD de 1976
identificou-se com as opções clássicas do censo, com exceção dos 37,2% que se
identificaram com o termo “morena”, que não é critério censitário. Na segunda etapa da
pesquisa, quando as pessoas deveriam utilizar os termos do censo, daquelas que na
primeira etapa se autodeclararam “morenas”, 62,9% identificaram-se como “pardas”, o que
garantiu, para os responsáveis pelo censo, a necessidade da manutenção do termo. Diante
desse dado, parece óbvio concluir que o termo “pardo” é próprio dos registros oficiais,
tanto por parte dos pesquisadores oficiais quanto das pessoas diante de uma situação
oficial, como o censo é considerado. Sobre isso, é preciso lembrar também que o termo não
está restrito ao censo, sendo ele uma categoria utilizada na certidão de nascimento,
primeiro documento oficial da vida de uma pessoa e que faz dela membro do estado-nação
e, portanto, também ela instrumento de reificação por excelência.
128
Voltando a Ilhéus, a agregação dos percentuais de respondentes de “cor ou raça”
“parda” e “preta” justifica-se, em primeiro lugar, porque a consideração apenas do
percentual de autoclassificação “preta”, que é de 8%, seria um falseamento ainda maior da
realidade: basta percorrer as ruas da cidade para perceber isto; em segundo lugar,
considerando a argumentação de Harris et alli (1993) de que a existência da opção “parda”
e a carga semântica pejorativa atribuída a ela faz com que muitas das pessoas que se
autoclassificariam como “morenas”, se este fosse um critério censitário, optem pelo
critério “branca”, seria possível supor que o percentual de “brancos” em Ilhéus, que é de
14%, seria ainda menor38; em terceiro lugar, como argumentam Andrews (1998:391) e
Telles (1993:6), dados estatísticos sobre mobilidade social e renda podem até apontar para
diferenças nas condições de vida entre “pardos” e “pretos”, mas elas são muito pequenas e
atingem apenas uma pequena parte da população “parda”; em quarto lugar, seria muito
difícil fazer uma tal distinção levando-se em conta que filhos de um mesmo casal podem
ter sido registrados como “pardos” e “pretos”, situação comum em Ilhéus e, penso, na
maioria das famílias brasileiras; e, por fim, os dados históricos revelam uma grande
presença de população negra desde o início da ocupação de Ilhéus.
Como ocorria em toda a colônia, também em Ilhéus havia latifúndios que
produziam açúcar e madeira utilizando mão-de-obra escrava. Não há muitos dados sobre a
população de escravos anterior ao século XIX. As poucas informações existentes referem-
se, sobretudo, ao Engenho de Santana, onde ocorreu um dos mais famosos episódios da
história de Ilhéus, a Revolta do Engenho de Santana.
Erguido por Mem de Sá ainda na primeira metade do século XVI, o Engenho de
Santana foi o maior da região por séculos, até que em 1724 era o único (Marcis 2000:22).
Desde o início utilizou mão-de-obra escrava de índios e negros. O inventário feito após a
38 Os demais valores percentuais são: “pardas”: 77%; “amarelas”: 0,05%; “indígenas”: 0,1%; “sem
129
morte de Mem de Sá registrava 130 escravos em 1573. Entre 1618 e 1759, o Engenho foi
administrado pelos jesuítas. Consta que no ano de 1730, havia 178 escravos na propriedade
(Schwartz 1988).
Em 1759, os jesuítas foram expulsos do Brasil e seus bens confiscados. “O engenho
é posteriormente arrematado em leilão público pelo Provedor da Casa da Moeda da Bahia,
Manuel da Silva Ferreira” (Marcis 2000:66). Durante sua administração ocorre a Revolta
do Engenho de Santana, cuja importância histórica reside no fato de que não se tratou de
rebelião e fuga de escravos, mas de uma negociação em que, em carta dirigida ao
proprietário, um “Tratado de Paz” (Reis e Silva 1989:20), os escravos reivindicavam
melhores condições de vida (direito ao descanso e ao lazer), de trabalho (limitação da
quantidade de feixe de cana; aumento do número de trabalhadores e roupas apropriadas
para a realização de determinadas tarefas) e direito ao cultivo e à venda de produtos, entre
outras reivindicações39. A Revolta do Engenho de Santana é constantemente evocada pelo
movimento negro de maneira geral em Ilhéus, tanto em seus discursos de auto-
representação (os “negros” de Ilhéus descenderiam dos escravos do Engenho, portanto,
teriam sua mesma “garra” e “coragem”) quanto como tema dos desfiles de diferentes
blocos afro no carnaval.
Em 1821, quando era proprietário o Marquês de Barbacena, houve uma nova
rebelião no mesmo engenho que perdurou por três anos, até que tropas de Ilhéus, Valença e
Santarém conseguissem dissipar a rebelião, com os escravos indo refugiar-se em
quilombos já existentes na mata. Na “Carta de João Dias Pereira Guimarães ao Visconde
de Camamu”, de 14 de julho de 1828, há relatos de diligências feitas pela milícia de Ilhéus
a quilombos muito bem estruturados nas imediações da vila (Reis e Silva 1989:124-7).
declaração”: 0,2%. Fonte: Censo Demográfico – IBGE, 1991.39 Reproduções desse documento encontram-se, entre outros, em Schwartz 1977 (onde foi divulgado pelaprimeira vez, segundo Reis e Silva 1989:20); Reis e Silva 1989 e Marcis 2000.
130
Em 1834, o Engenho passa a ser de propriedade do Brigadeiro José de Sá
Bittencourt e Câmara, com 183 escravos. A família Sá tornar-se-ia uma das maiores
produtoras de cacau de Ilhéus e, segundo Mahony (1996:279), chegou a possuir trezentos
escravos em 1860, além de dominar o poder político municipal durante quase todo o século
XIX e parte do XX (Ribeiro 2001:62).
Mahony informa que 40% das propriedades de Ilhéus possuíam escravos na
segunda metade do século XIX, mesmo após a proibição do tráfico em 1850 (1996:279).
Aliás, é interessante notar que diferentemente do que aconteceu no restante do Estado da
Bahia, o número de escravos em Ilhéus cresceu após o fechamento da importação. Mahony
(:331) ressalta que a curva demográfica para a população escrava em Ilhéus é semelhante à
das regiões de café no sul e no sudeste do país, cujo crescimento vai até 1872 e só então
começa a cair, lembrando que a abolição é decretada dezesseis anos depois, quando o
número de escravos no Brasil já estava bastante reduzido. Essa peculiaridade de Ilhéus em
relação ao Estado se deveu ao contrabando e ao cacau. Por estar distante de Salvador e,
conseqüentemente da vigilância que havia em todo o Recôncavo Baiano, houve
contrabando de escravos em Ilhéus por mais de 20 anos após a proibição do tráfico (:250-
1). O censo de 1872 registra a presença de 226 estrangeiros em Ilhéus, sendo 56 europeus e
170 escravos africanos (:236).
A rápida expansão da lavoura cacaueira na segunda metade do século XIX evitou
que Ilhéus experimentasse o mesmo movimento vivido pelo Recôncavo de vender escravos
para o sul do país. Além de necessitar da permanência dos escravos que já trabalhavam nas
lavouras da cana e da mandioca e no corte da madeira – principais atividades econômicas
antes do cacau –, Ilhéus ainda atraiu um grande número de pequenos produtores que
traziam consigo seus poucos escravos (:253). Segundo dados apresentados por Mahony
(1998:92), a população de Ilhéus em 1818 era de 2.400 habitantes, sendo um quarto dela
131
formado por escravos; em 1870, os proprietários de escravos tiveram de registrá-los
oficialmente e foram contabilizados 1.034 escravos, número este que representava 18% da
população (1996:328); em 1881, havia dez mil pessoas habitando Ilhéus, sendo escravas
cerca de 10% delas (1998:92). Esses números confirmam que a lavoura cacaueira foi
desenvolvida também com mão-de-obra escrava, fato negado pelo mito de origem do
cacau pelas razões já expostas anteriormente.
Por outro lado, o cacau também teve seu desenvolvimento favorecido em função da
dificuldade de comercializar escravos a partir da proibição da importação de 1850, o que
prejudicou significativamente a produção do açúcar. A lavoura cacaueira demanda
pequena mão-de-obra e essa foi uma razão para a facilidade de sua implantação e expansão
num momento em que a Bahia teve seu número de escravos reduzido em função da
proibição da importação e da venda de muitos deles para as plantações de café do sul do
país. Mas o crescimento muito rápido das plantações de cacau requereu um grande número
de trabalhadores, o que fez com que o maior número possível de escravos permanecesse na
região (1996:317-8) e propiciou aos grandes fazendeiros (só eles possuíam numerosos
escravos) a ocupação de grandes extensões de terra, o quanto fosse possível cultivar. Na
verdade, a escravidão foi fundamental para a expansão da lavoura cacaueira: como a maior
parte do território de Ilhéus era formado por terras devolutas, ou seja, que pertenciam ao
Estado (de domínio público) (1998: 98), era mais fácil para os trabalhadores pobres
conseguir terras para eles mesmos do que trabalhar para alguém, o que fazia com que
trabalhador fosse uma “mercadoria escassa”. Essa situação perdurou até o final do século
XIX, quando já era grande a concentração fundiária (pequenos proprietários foram
perdendo suas terras, em função das dívidas e da grilagem dos grandes fazendeiros) e
houve o crescimento explosivo da população. Nesse momento, trabalhador tornou-se uma
‘mercadoria’ abundante (1996:332).
132
Evidentemente, no Brasil do século XIX, a população negra não era formada
somente por escravos. E em Ilhéus não era diferente. “De acordo com o Censo de 1872,
71% da população, incluindo escravos e livres, eram pardos ou negros” (Mahony 1998:93).
Entre os livres, 65% eram pardos ou negros. Em 1890, eles constituíam 75% da população.
“Por volta de 1880, milhares de pessoas estavam chegando a Ilhéus, particularmente das
comunidades do nordeste da Bahia e do sul de Sergipe (...) Tantos vieram, que a população
de Ilhéus explodiria, atingindo 105.259 habitantes no Censo de 1920...” (1996:266).
Desses milhares de migrantes que buscaram a região cacaueira entre o fim do século XIX e
o início do XX, a maior parte era de ‘negros’ e ‘pardos’ e muitos eram ex-escravos.
Mahony informa que o governo da província da Bahia incentivou a migração já na metade
do século XIX, a fim de resolver a escassez de mão-de-obra para a agricultura no sul do
Estado e o problema da seca no nordeste da Bahia: “O que fazer com milhares de
camponeses sem casa e sem terra criados pela seca tornou-se um objeto de grande
preocupação para os oficiais da província tanto quanto para as elites, que temiam a
potencial agitação social” (1996:256).
A chegada desses milhares de pessoas ‘negras’ e ‘pardas’ em Ilhéus e o acesso à
terra e, em alguns poucos casos, ao sucesso com o cacau, sustenta a tese de que a economia
cacaueira é racialmente democrática, característica da “civilização do cacau” que participa
da composição do mito. Adonias Filho afirma que:
“Certo foi que, penetrando, explorando a terra, consolidando alavoura, na base das interrelações entre baianos, sergipanos, europeus,negros, índios, sírios e libaneses, colaboraram – no instante mesmoem que se conformava culturalmente a civilização do cacau – numtipo singular de sociedade preferencialmente rural (...) Nas bases,resultado das fundações sociais e da mistura racial, um democratismoque não tardaria a se manifestar – inclusive politicamente – nos filhosdoutores que, após 1930, assumem as posições econômicas eadministrativas” (1976:77-8).
133
Em um de seus trabalhos, Mahony trata da “questão da mobilidade social dos afro-
brasileiros na área do cacau” (1998:92) e afirma que no fim do século XIX havia alguns
fazendeiros de cacau que tinham sido escravos e muitos que eram “afro-brasileiros.” (:96).
Sua conclusão é de que nem o “legado da escravidão” nem o racismo impediram que
“afro-brasileiros” tivessem acesso à terra. A dificuldade estava na manutenção da
propriedade. Além dos problemas que atingiam a todos os pequenos fazendeiros, tais como
técnicas agrícolas impróprias; falta de recursos para legalizar a propriedade; juros altos;
legislação que favorecia os credores e flutuação dos preços do cacau no mercado externo
(:102), ela acredita que o analfabetismo, comum à grande maioria dos fazendeiros “afro-
brasileiros”, e o sistema social hierárquico brasileiro criaram uma “distância social” entre
os fazendeiros afro-brasileiros e os comerciantes (exportadores), políticos, burocratas e
grandes proprietários, o que tornou “mais difícil para a maioria dos afro-brasileiros
transformar oportunidade em mobilidade social estável.” (:112).
Mahony não chega a afirmar que a diferença racial tenha determinado o sucesso ou
o fracasso de fazendeiros negros. Contudo, é fato que eles eram, em sua quase totalidade,
pequenos proprietários. E é fato também que “pequenas fazendas independentes40
desapareceram por volta de 1910” (:100). Acrescentem-se a essas informações outras
referentes à situação socioeconômica da população de Ilhéus hoje, lembrando que ‘pretos’
e ‘pardos’ constituem 85% dela, e estará claro que o racismo e a escravidão
desempenharam/desempenham um papel importante na economia cacaueira e que a
propalada democracia racial gerada por ela só existe enquanto mito.
Números
40 Entendam-se por independentes aqueles pequenos proprietários que não se aliaram a algum grandefazendeiro e, portanto, não tiveram sua proteção.
134
Como já foi exposto anteriormente, a última crise da lavoura cacaueira, iniciada no
final da década de 80, vem provocando um efeito devastador sobre a região. Seria
ingenuidade supor que a vassoura-de-bruxa é a única responsável pelo processo de
pauperização desses municípios, como se as conjunturas econômicas nacional e
internacional não tivessem sua participação. Entretanto, é inegável que a velocidade e a
força desse processo se devem à estrutura econômica baseada na monocultura do cacau
existente desde o século XIX.
Embora os índices de desenvolvimento econômico e de desenvolvimento social do
município de Ilhéus, uma das duas principais cidades da região cacaueira, estejam entre os
melhores do Estado, isso não quer dizer que sua população não passe por sérios problemas
sociais. De acordo com os dados apresentados pela Superintendência de Estudos
Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), no ano de 1998, quando houve a última atualização
das informações, Ilhéus tinha o nono melhor índice de desenvolvimento econômico
(IDE)41 entre os 415 municípios do Estado até então. O índice de desenvolvimento social
(IDS)42 já não era tão bom, ficando Ilhéus com o 16o lugar. No ranking do Estado, a
situação da cidade pode ser considerada regular, mas é preciso lembrar que a Bahia é um
estado pobre. A cidade de Salvador, que ocupa o primeiro lugar em ambos os índices
acima, tem o sexto melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)43 entre as doze
maiores cidades brasileiras, segundo estudo da ONU (Organização das Nações Unidas)
realizado com dados recolhidos entre 1995 e 199944. A divulgação desse dado foi feita no
41 O IDE é dado por uma média entre os índices de Infra-estrutura (INF), de Qualificação de Mão-de-obra(IQM) e do Produto Municipal (IPM), nos quais Ilhéus ocupa os 8o, 9o e 13o lugares, respectivamente(www.sei.ba.gov.br).42 O IDS é dado por uma média entre os índices de Nível de Saúde (INS), de Nível de Educação (INE), deServiços Básicos (ISB) e de Renda Média dos Chefes de Família (IRMCH), nos quais Ilhéus ocupa asseguintes posições: 112o em saúde, 5o em educação, 37o em serviços básicos e 27o em renda dos chefes defamília (www.sei.ba.gov.br).43 IDH: criado pela ONU em 1990, ele varia entre 0 e 1 e é baseado em três indicadores: acesso aoconhecimento, ao trabalho e aos recursos monetários (Jornal do Brasil, 24/03/01).44 Jornal do Brasil, 24/03/01.
135
mesmo relatório45 que apresentou os resultados de um estudo inédito da ONU realizado na
cidade do Rio de Janeiro. Pela primeira vez no mundo, foi mensurado o IDH de bairros e o
interesse desse estudo para este trabalho está na coincidência do relatório ter utilizado a
cidade de Ilhéus como termo de comparação. Entre os 161 bairros do Rio de Janeiro
considerados pela ONU, Acari, no subúrbio, ocupa o penúltimo lugar, com IDH de 0,53,
índice semelhante ao atribuído a Ilhéus. Na comparação com um estado, os IDHs de Acari,
e também de Ilhéus, seriam próximos ao da Bahia; em relação a países, estes seriam
Bolívia e Gabão. O relatório diz ainda que seriam necessários 101 anos, mantendo o atual
ritmo de desenvolvimento, para que a zona rural de Santa Cruz, pior IDH (0,51) da cidade
do Rio de Janeiro – e é preciso lembrar, próximo ao de Ilhéus – , alcançasse o índice do
bairro da Lagoa (0,90), que é o mais alto46.
Um estudo mais recente47 fornece o ranking dos municípios brasileiros em relação
ao Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M). Elaborado a partir dos dados
levantados pelo Censo Demográfico 2000, ele utiliza variáveis diferentes daquelas do
estudo citado no parágrafo anterior48. O IDH-M de Ilhéus é de 0,703. Entre os municípios
baianos, a cidade ocupa o 22o lugar; já no ranking nacional, Ilhéus é o município de
número 2.935. A comparação com os índices de Salvador e de Itabuna torna mais clara a
situação de Ilhéus: a capital baiana ocupa o primeiro lugar no Estado, mas o 471o no país; o
município vizinho ocupa o terceiro lugar no Estado e o 1.940o nacionalmente. Isso
significa que o 22o lugar de Ilhéus no Estado indica problemas sociais graves.
A proposta desta parte do trabalho não é apresentar um relatório socioeconômico de
Ilhéus, mas oferecer ao leitor alguns dados disponíveis sobre o município que
45 Relatório de Desenvolvimento Humano do Rio de Janeiro (ONU/Ipea/Prefeitura do Rio).46 Jornal do Brasil, idem.47 Realizado pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, pela Fundação João Pinheiro – Governode Minas Gerais e pela Nações Unidas, divulgado no site do IPEA (www.ipea.gov.br)
136
proporcionem uma melhor visualização das condições de vida da grande maioria das
pessoas que vivem nas comunidades dos blocos afro49.
A pauperização que o município de Ilhéus vem sofrendo nas duas últimas décadas é
bem visível nos processos de ocupação e de favelização da maioria de seus morros. Muitos
deles são de ocupação antiga, mas eram, até recentemente, áreas pouco habitadas, onde
hoje estão aglomeradas várias famílias. A área onde está localizado o Grupo Afro Cultural
Dilazenze é um bom exemplo desse processo: uma parte significativa do que hoje constitui
a Av. Brasil era, até a década de setenta, a chácara de “Dona” Roxa e de “Seu” Valentim,
avós do presidente do grupo. O terreno foi cortado pela Av. Brasil e o Censo Demográfico
de 2000 dividiu-o em dois setores censitários diferentes, nos quais habitam,
aproximadamente, três mil pessoas50. Os setores censitários são muito mais abrangentes do
que a área que corresponde ao que era a chácara, mas a informação é relevante para dar
uma idéia da velocidade do processo de ocupação da região, provocado tanto pela
impossibilidade financeira dos descendentes dos primeiros proprietários de habitarem
novas áreas, sendo necessário construir no terreno da família, quanto pela chegada de
famílias vindas da zona rural em busca de emprego na cidade51.
48 As variáveis e os respectivos índices para Ilhéus são: 1- esperança de vida ao nascer: 66,128 anos; 2- taxade alfabetização de adultos: 0,794; 3- taxa bruta de freqüência escolar: 0,796; 4- renda per capita: R$170,219; 5- índice de longevidade: 0, 685; 6- índice de educação: 0,795; 7- índice de renda: 0,630.49 Teria sido interessante fazer um levantamento socioeconômico dos integrantes dos blocos, tal qual Agier(2000) realizou em sua pesquisa sobre o Ilê Aiyê, bloco afro de Salvador (:93-95 e tabelas em anexo – pp.237-241). No entanto, isso não foi possível devido a três fatores: (i) embora o Ilê seja um dos maiores blocosde Salvador, a pesquisa de Agier concentrou-se apenas nele, diferente desta que trabalhou com treze gruposem Ilhéus; (ii) a estrutura dos blocos afro de Ilhéus é bastante distinta daquela dos blocos de Salvador e a nãoexistência de um cadastro de filiados – fonte utilizada por Agier – é uma das diferenças; (iii) umlevantamento específico das comunidades abrangidas pelos blocos afro também teria sido importante, masdemandaria recursos financeiros e humanos não disponíveis durante a pesquisa.50 Campos (1937:474) informa que em 1934 havia 2.000 habitantes em todo o Alto da Conquista.51 Ver como Anexo 2 o mapa de evolução da expansão populacional urbana de Ilhéus, que mostra comclareza o quão este é um processo recente e intenso. A ocupação populacional dos Carilos, subregião dobairro da Conquista onde se localiza o Dilazenze, teria ocorrido entre os anos 70 e 80. As invasões domanguezal que formam bairros como o Teotônio Vilela são ainda mais recentes, já, provavelmente, fruto dacrise do cacau nos anos 80.
137
Em 1998, ano da última atualização do cadastro de “favelas ou assemelhados”,
Ilhéus tinha dezessete mil domicílios nessa situação52. Este número corresponde a 31% dos
domicílios do município, tomando-se por base de comparação o número de domicílios
particulares permanentes do Censo Demográfico de 2000. Os números referentes à infra-
estrutura dos domicílios de Ilhéus também não são bons53. Em relação ao abastecimento
das residências urbanas por rede de água, a cidade é uma das duzentas que se encontram
abaixo da média do Estado, ocupando o 69o lugar entre estas, com 84,7% dos domicílios
urbanos atendidos. Já em relação ao abastecimento dos domicílios com rede de esgoto,
Ilhéus ocupa a 71a posição do Estado, entre os 118 municípios que se encontram acima da
média, abastecendo 71,2% das residências urbanas. O IBGE informa também que 17,7%
dos domicílios ilheenses não têm banheiro nem sanitário e que, nesse quesito, há 55
municípios no Estado em posição melhor do que a de Ilhéus. Em relação à coleta de lixo,
Ilhéus ocupa a 29a posição entre os municípios abaixo da média da Bahia, atendendo a
82,8% dos domicílios urbanos.
Um outro problema social grave em Ilhéus é a taxa de analfabetismo. Os números
apontam que o analfabetismo no município diminuiu substantivamente entre os censos de
1991 e de 2000, mas ele ainda é muito alto. Em 1991, a taxa de analfabetismo era de
34,72%; no censo de 2000, é de 19,71%, pouco menor do que a média do Estado e dá a
Ilhéus o 39o melhor índice de alfabetização da Bahia54.
Cor e território
Embora não haja dados que desagreguem os números acima em função de “raça”
ou “cor”, é legítimo supor que os problemas sociais que eles refletem atinjam em cheio a
52 Pesquisa de Informações Básicas Municipais, IBGE 1999.53 Os dados que se seguem foram todos obtidos no Censo Demográfico 2000 (IBGE 2000).
138
população negra55, seja porque os índices nacionais – estes sim desagregados – mostrem
esta mesma relação56, seja porque a simples observação a olho nu dos bairros situados na
periferia de Ilhéus permita perceber que eles são ocupados quase que totalmente por essa
população e que desemprego, analfabetismo, falta de saneamento etc., estão concentrados
neles. O bairro da Conquista, onde estão situados atualmente quatro blocos afro, é um bom
exemplo disso pois, poder-se-ia, no mínimo, estabelecer para este bairro a mesma
proporção entre “pretos” e “pardos” em relação ao quantitativo de “brancos” que existe
para o município, ou seja, é possível afirmar que, pelo menos, 85% dos seus moradores são
“negros”. E os problemas socioeconômicos, especialmente em algumas subregiões do
bairro – que é muito grande e uma estimativa razoável é de que ele abrigue 10% da
população do município –, são bem visíveis.
A partir da década de 70, alguns trabalhos acadêmicos têm buscado mostrar a
existência de racismo no Brasil. Muitos deles pretenderam apresentar visões alternativas ao
mais representativo investimento de pesquisa sobre o tema das relações raciais no país, o
conhecido projeto UNESCO da década de 50, formado por pesquisadores da “escola
paulista de relações raciais” – tal como Hasenbalg os denominou (1996:239). As
conclusões dos pesquisadores do projeto UNESCO garantiram, de certa forma, que o país
mantivesse sua ‘fama’ em relação ao “mito da democracia racial”, já que as teses
defendiam, com mais ou menos veemência, que o racismo no Brasil é mais social do que
racial e que a discriminação racial é causada, principalmente, pela situação de desigualdade
54 Tabela “Classificação dos municípios, segundo a taxa de analfabetismo da população residente de 10 anosou mais de idade, em relação à média do Estado, Bahia – 1991-2000” – Censos Demográficos 1991 e 2000 –IBGE.55 Doravante referir-me-ei assim à soma das pessoas que se declararam de “cor” ou “raça” “preta” ou“parda”, já que no que tange aos índices sociais e econômicos, não há razão nem modo de distinguir essesgrupos.56 A título de exemplo, vale a informação de que, de acordo com a “Síntese de Indicadores Sociais 2002” doIBGE, divulgada no dia 12/06/03, a diferença de rendimentos entre brancos e negros ou pardos no Brasil é de50%. Os dados informam também que o 1% mais rico da população é formado por 88% de brancos e que os10% mais pobres são constituídos por 68% de negros ou pardos (Jornal do Brasil, 13/06/03).
139
econômica, herança do passado escravista da população afro-brasileira, responsável por
sua posição na ‘base da pirâmide’. Assim, se o bairro da Conquista em Ilhéus é constituído
majoritariamente por uma população negra e se ele apresenta sérios problemas sociais,
segundo a tese de que a desigualdade econômica é a fundamental, e não a racial, não há
entre essas proposições uma relação causal; elas admitem apenas uma relação conectiva,
ou seja, há uma maioria populacional negra e há problemas socioeconômicos57. Tal
situação seria conseqüência de uma dada ordem histórico-econômica.
No entanto, dizer que há quatro blocos afro no bairro da Conquista porque a
população negra é predominante neste lugar não parece nenhum absurdo, pelo menos de
acordo com uma espécie de senso comum compartilhado por alguns estudiosos do tema
que estabelece uma relação, só aparentemente óbvia, entre cultura afro-brasileira e
população afro-descendente, tomando esses termos tal como eles são utilizados no âmbito
dessa visão. Essa situação seria fruto de uma dada ordem cultural. “Separar a análise
sociológica dos negros na sociedade urbana e industrial da análise antropológica das
práticas culturais afro-brasileiras” era, segundo Agier (1992:53), um dos procedimentos de
análise característicos dos pesquisadores do projeto UNESCO. Este raciocínio reflete ele
mesmo uma idéia de hierarquização racial que atribui uma ‘cultura’ a um grupo
minoritário em função de sua cor/raça sem estabelecer uma relação entre este grupo e o
fato de que ele só se encontra nessa condição – de minoria – como conseqüência do que
poderia ser visto também como ‘cultura’ do grupo dominante, nesse caso, o racismo.
A atribuição de uma “identidade cultural” a grupos minoritários constitui
atualmente uma das formas mais eficazes de manutenção da desigualdade social/racial por
57 Há uma terceira relação possível de ser encontrada, cuja formulação não se explicita como tese acadêmica,mas é muito presente no senso comum: trata-se de pensar a condição de ser pobre como conseqüência da corda pele: ‘é negro, logo, é pobre’. Essa visão vem acompanhada de estereótipos raciais – e racistas,evidentemente – que implicam ‘incapacidade’, ‘deficiência moral’ etc. da população negra. Um doscorolários desse tipo de formulação é o de que ‘progredir’, ‘vencer na vida’, ‘ser alguém’ é uma questão de‘vontade’ e ‘esforço’, qualidades que diferenciariam alguns da maioria.
140
parte de grupos majoritários. Malik (1996) mostra como a associação de uma ‘cultura’ a
grupos que podem ser definidos racial ou nacionalmente, permite e explica a manutenção
de desigualdades sociais sem que seja necessário o uso da politicamente incorreta teoria
racial, banida dos meios acadêmicos já nas primeiras décadas do século XX. A exaltação
da diversidade cultural, em geral colada na de diversidade étnica, tem a mesma
conseqüência do discurso de raça: provocar e garantir, através da naturalização, a exclusão
social.
Antes de prosseguir, porém, são necessárias algumas observações que apenas
anunciam futuros esclarecimentos. Em primeiro lugar, termos como ‘maioria’, ‘minoria’,
‘grupo minoritário’, ‘grupo dominante’, que serão melhor definidos adiante, não estão
sendo adotados como descrições quantitativas, obviamente. Tais noções passam pela
posição de um determinado grupo numa relação de poder assim como pelo tipo de
subjetividade que o atravessa.
Dado que a palavra cultura abriga conceitos muito diferentes, torna-se necessário
precisar o sentido aqui empregado, que se refere a práticas e a determinadas formas de ver
e de viver o mundo que são, necessariamente, muito diversas daquelas da maioria58. Desse
ponto de vista, cultura é algo que uma maioria atribui a minorias: ‘o negro’, ‘o índio’
(assim mesmo, no singular), ‘os descendentes de imigrantes’ ‘têm’, ‘preservam’,
‘mostram’, ‘perdem’, ‘resgatam’ sua ‘cultura’. Nesse caso, a ‘maioria’ só ‘tem cultura’,
58 Assim colocado, o conceito fica muito próximo da forma usualmente trabalhada pela Antropologia. Etalvez não haja mesmo diferença se concordarmos que o conhecimento antropológico é produzido pelamaioria – onde está situado o antropólogo – e atribuído a minorias, isto é, independente da concepção detrabalho de campo ou de narrativa etnográfica que se tenha, é certo que o antropólogo diz o que os grupossociais fazem, pensam, vivem. Como diz Guattari (1996:18): “as sociedades primitivas descobrem que“fazem cultura”; elas são informadas, por exemplo, de que fazem música, dança, atividades de culto, demitologia etc. E descobrem isso sobretudo no momento em que pessoas vêm lhes tomar a produção paraexpô-la em museus ou vendê-la no mercado de arte ou para inseri-la nas teorias antropológicas científicas emcirculação”.
141
tomada nesse mesmo sentido, quando se trata ‘d’o brasileiro’, da ‘cultura nacional’59. Não
quero dizer que não seja legítima a apropriação por parte de grupos minoritários do termo
“cultura” entendido como uma forma singular de produção de subjetividade em sua luta
política, mas toda essa discussão será melhor tratada adiante.
Retomando a reflexão sobre a relação entre os índices socioeconômicos que
indicam graves problemas sociais e sua concentração em locais de maioria negra, é preciso
dizer que certamente o bairro da Conquista em Ilhéus não é um gueto no sentido que em
geral é atribuído aos locais de segregação racial nos Estados Unidos. Buscando evitar que
o pesquisador naturalize distinções estabelecidas pelo senso comum e/ou pelo grupo
majoritário e, pelas mais variadas razões, adotadas por quem é o alvo da distinção, a
seguinte ‘advertência’ de Wacquant é bastante pertinente. Dirigindo-se a pesquisadores dos
guetos afro-norte-americano dos anos 90, ou o “hipergueto”60, ele diz que:
“os habitantes do gueto não são um ramo distinto de homens emulheres necessitados de uma denominação especial. São pessoascomuns tentando ganhar a vida e melhorar a sorte o mais que podemsob as condições incomumente opressivas e depressivas a elasimpostas” (1994:104).
No entanto, no presente estudo, a literatura que faz uso do conceito de gueto pode
ajudar a pensar a situação do bairro da Conquista de maneira diferente, retirando dela um
viés unicamente econômico para dar-lhe também61 uma conotação racial: se há aí quatro
blocos afro porque a população que habita o bairro é majoritariamente negra, a situação
59 Sobre o uso, no Brasil, de símbolos relacionados às ‘culturas’ de minorias, “símbolos étnicos”, como“símbolos nacionais”, ver o famoso artigo de Peter Fry (1977) e a reflexão de Goldman (2001:83), feita apartir de Fry, de que a questão passa pelos “níveis segmentares considerados”.60 Wacquant opõe o “gueto comunitário” dos anos seguintes ao pós-guerra ao “hipergueto”, característico dosanos 90, que o autor resumidamente define como “uma nova formação sócio-espacial que conjuga a exclusãode classe e de raça sob a pressão da retração do mercado ao abandono do Estado, levando assim a uma‘desurbanização’ de grandes áreas do centro da cidade” (1998:214).61 Não se trata de negar a relação entre a história da população negra no Brasil e sua atual situaçãosocioeconômica. Os dados apresentados sobre a população negra em Ilhéus e sua posição na economiacacaueira tiveram esse propósito neste trabalho. Tomando novamente emprestada a argumentação deWacquant sobre o gueto americano, também penso que “é nesse espaço objetivo de posições e recursosmateriais e simbólicos que se radicam as estratégias empregadas pelos moradores do gueto para imaginarquem eles são e quem podem ser” (1994:103).
142
econômica experimentada por essa população também deve ser pensada pelo mesmo
prisma. Uma observação de Hasenbalg estimula a reflexão sobre a questão da segregação
racial. Ele diz que “a ausência, no Brasil, de guetos raciais nitidamente delineados tem
levado com freqüência à idéia de que existe nos espaços urbanos uma segregação
residencial das classes sociais, mas não dos grupos raciais” (1996:240). Além do trabalho
considerado pioneiro de Raquel Rolnik sobre a existência de “territórios negros” nas
cidades de Rio de Janeiro e São Paulo (1989)62, uma outra referência obrigatória sobre a
questão no Brasil é o estudo de Telles (1993). Ele mostra com dados estatísticos que no
Brasil há o que ele chama de “segregação residencial moderada por cor” que não pode ser
explicada só por questões econômicas pois, segundo este autor, ela ocorre entre membros
de uma mesma faixa de renda (:16), embora “o isolamento residencial dos brancos [seja] é
praticamente assegurado pela ausência de uma classe média não-branca significativa”
(:12).
Em um outro artigo, Wacquant (1995) define o gueto negro americano como um
“universo racial e culturalmente homogêneo, caracterizado pela baixa densidade
organizacional e pela pequena penetração do Estado” (:67). Não é possível caracterizar o
bairro da Conquista como um lugar “racial e culturalmente homogêneo”. Entretanto, ele
estaria mais próximo, segundo a descrição de Wacquant, do outro local que ele utiliza para
comparar com o gueto americano: os bairros proletários de imigrantes em Paris, as cités63.
62 A definição desta autora para “territórios negros” não passa simplesmente por um lugar de altaconcentração de população negra. A forma como Rolnik se refere às favelas como ‘território negro’ explicitabem sua proposta: as favelas são “os espaços mais caracterizadamente negros da cidade” porque “para aliafluiu uma mistura peculiar de histórias, um caminho singular que passou pela África, pela experiência dasenzala e pelo deslocamento e marginalização operados pela abolição e a República.” (1989:35). É a partirdessa perspectiva, a ser melhor trabalhada em Encontros 4, que o conceito poderá ser aplicado aos blocosafro.63 A literatura sobre guetos raciais é vasta e os trabalhos estão remetidos, sobretudo, aos guetos negrosamericanos, embora o conceito também seja trabalhado e, conseqüentemente, relativizado para darcompreensão ao fenômeno de segregação espacial de imigrados que vem ocorrendo na Europa nas últimasdécadas – e a França tem sido um campo privilegiado para tal investigação. Tanto para guetos negrosamericanos quanto para bairros de imigrados na França, ver, entre outros, Gutwirth 1987; Peralva 1995;Pétonnet 1982 e 1986; Taguieff 1987; Wacquant 1992, 1994 e 1995; Wilkinson 1992.
143
“O mundo das cités é dominado pelo sentimento de exclusão que,antes de mais nada, se manifesta em referência aos temas da reputaçãoe do desprezo. As diversas cités são hierarquizadas numa escala da máfama que afeta todos os seus aspectos (...) e cada um de seusmoradores. As cités sofrem de um verdadeiro estigma” (FrançoisDubet e Didier Lapeyronnie 1992:114 apud Wacquant 1995:68).
O próprio autor ressalta que, dessa perspectiva, as cités parisienses não seriam guetos – não
são uma “formação sócio-espacial que é racial e culturalmente homogênea, baseada na
relegação forçada, a um território específico, de uma população destacada em termos
negativos” (:80). Mas é a estigmatização o que afeta todos esses lugares. Ainda segundo
Wacquant, “o estigma é a característica mais saliente da experiência vivida por aqueles que
se encontram encurralados nestas áreas” (:68). E ainda que não seja bem esse o caso da
Conquista, isso – sentir-se estigmatizado em função do local de moradia ou perceber a
atribuição de estigmas a ele – acontece em determinados momentos. E, em alguns deles, a
questão racial salta aos olhos. Rolnik (1989) mostra como, no Brasil, a estigmatização
sempre acompanhou os “territórios negros”, fossem eles a senzala, o cortiço ou favela, para
usar seus exemplos:
“A história da comunidade negra é marcada pela estigmatização deseus territórios na cidade: se, no mundo escravocrata, devir negro erasinônimo de subumanidade e barbárie, na República do trabalho livre,negro virou marca de marginalidade. O estigma foi formulado a partirde um discurso etnocêntrico e de uma prática repressiva: do olharvigilante do senhor na senzala ao pânico do sanitarista em visita aocortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violênciadas viaturas policiais nas vilas e favelas” (:39).
Desde minha primeira visita a Ilhéus, ainda em 1997, eu já era alertada pelos
funcionários e donos das pousadas em que fiquei hospedada sobre os riscos de ir à
Conquista por ser um bairro “violento”. Em 2000 e 2001, alguns eventos envolvendo
adolescentes da região onde está situado o Dilazenze aumentaram a conexão entre
‘violência’ e ‘Conquista’: assaltos e disparos de arma de fogo, em algumas poucas
situações seguidos de morte, passaram a fazer parte da ‘rotina’ das pessoas por algum
tempo. Eles não eram diários, mas eram entendidos dessa forma pelas pessoas que, ao
144
menos idealmente, diziam mudar seus hábitos em função disso: evitavam ficar até mais
tarde nas calçadas conversando, evitavam deixar as crianças brincando na rua à noite,
evitavam passar por locais ditos mais perigosos... Assim, tanto na Conquista quanto no
gueto americano estudado por Wacquant (1994), a violência é cometida por moradores
contra moradores. A descrição deste autor para as condições de promoção da violência no
gueto bem poderia ser apropriada para a Conquista: “a disponibilidade combinada de
armas, prolongada exclusão do trabalho assalariado e difusão do tráfico de drogas
modificou as regras do confronto masculino nas ruas, de forma que fornecem combustível
à escalada dos crimes de morte” (:107).
Antes desses eventos, a subregião do Dilazenze não era listada entre as mais
violentas do bairro e, quando algum furto ou assalto ocorria lá, era dito ser provocado por
rapazes de outras subregiões consideradas mais pobres. Mas já em 2000 e, ainda mais
fortemente em 2001, a Av. Brasil, endereço do grupo, passou a ser um local a ser evitado
por entregadores de bebida, de pizza e de gás, além de taxistas e outros. Durante um certo
período, dois adolescentes cobravam “pedágio” dos entregadores e quando estes se
recusavam a dar, eram assaltados. Eu mesma passei a ter um horário para ir embora pois,
além da escassez do transporte coletivo, taxistas se recusavam a ir até o local. Somente os
“conhecidos” aceitavam fazer esse percurso e, obviamente, valorizavam ainda mais seu
trabalho por isso, o que só reforça o estigma.
Embora o bairro da Conquista não possa ser chamado de gueto, é possível percebê-
lo como um local também racialmente segregado. As “subclassificações” do bairro, como
ocorre na Conquista, são característica do gueto: “[os moradores do lugar] lançam mão de
taxonomias próprias para organizar o cotidiano, diferenciando diversas subunidades no
interior do conjunto como um todo que, com efeito, possui um significado apenas
administrativo e simbólico – ainda que com conseqüências palpáveis” (Wacquant 1995:68-
145
9). Nesse mesmo movimento de diferenciação interna, as pessoas “exageram seu valor
moral como indivíduos (ou como membros da família)” (:75) e acabam por assumir o
discurso de fora que reforça o estigma do local. No caso do Dilazenze, eram comuns os
comentários de reprovação, especialmente de rapazes, a respeito da abordagem da polícia
nas ruas da Conquista, até mesmo “em frente de nossas próprias casas”, diziam. Mas, ao
mesmo tempo que havia um sentimento de “injustiça” e de “discriminação” – nunca
explicitamente racial, embora também não fosse qualificada de nenhuma outra forma – em
relação à ação da polícia, essa era, às vezes, justificada pelas atitudes de outros moradores
– no caso dos adolescentes e daqueles que os acobertavam: “É por causa desse tipo de
pessoa que a gente passa por isso”.
Mas um tal investimento na diferenciação interna pode ter como corolário o
desprezo e a acusação de “querer ser o que não é”. Wacquant coloca que no caso do gueto
negro americano, quem tenta “avançar na estrutura de classes” e sair do gueto é acusado de
“querer tornar-se branco” (:77). Na Conquista, dizer que uma pessoa é um “um negro
metido a besta” tem o mesmo significado e diz respeito a alguém que quer distanciar-se de
“sua origem”. Referindo-se a um conhecido que se destaca na política local, uma das
pessoas do grupo disse que “ele sempre se vestiu diferente, (...) sempre trabalhou com a
elite, sempre se comportou como tal, embora sua família sempre tenha sido pobre,
moradora da Conquista...”.
No Dilazenze, essa diferenciação interna é necessária também em função do fato de
que o grupo, assim como o terreiro ao qual ele está diretamente vinculado, tem uma
relação para fora do bairro e sua sobrevivência enquanto grupo depende dela –
contratações para apresentações em hotéis e em eventos turísticos da cidade, por exemplo.
Assim, o presidente do Dilazenze busca valorizar moralmente o grupo, ressaltando sempre
que pode que este não tem nenhuma relação com os elementos que considera serem parte
146
do estigma atribuído aos jovens da Conquista: “drogas”, “indisciplina”, “marginalidade”64.
Dois dos adolescentes responsáveis por aquele momento de violência dos anos de 2000 e
2001 eram filhos da mestre de bateria mirim e um deles já havia sido assistente do mestre
de bateria principal. Tendo se afastado do grupo por conta própria, numa tentativa de
retorno, ele foi “desaconselhado” a isso pelos dirigentes do Dilazenze.
Entretanto, investir na diferenciação em relação ao espaço não basta, pois o estigma
imputado à subregião do Dilazenze atinge diretamente as atividades do grupo e do terreiro,
provocando o esvaziamento dos eventos promovidos por eles. No período de violência
mais intensa, era notória a pequena quantidade de pessoas assistindo às festas do terreiro;
quanto ao grupo, seu presidente pensava que era melhor não promover nada, “pois
ninguém compareceria”. O bar existente na quadra da sede do Dilazenze, que poderia
render recursos para o grupo assim como para quem o administrasse, permanecia fechado.
É claro que havia outros motivos para isso, mas naquele momento, o motivo mais
fortemente alegado era o perigo que o funcionamento do bar poderia representar para os
moradores, por ser um local de aglutinação de pessoas, além da expectativa de que haveria
pouco movimento. Esta também é uma característica comum ao gueto, como diz
Wacquant: “acima de um certo limiar, a onda de crimes violentos torna impossível a
operacionalização de uma atividade comercial no gueto e assim contribui para o
esvanecimento da economia baseada no trabalho assalariado” (1998:216). Mas este, sem
dúvida, não é um problema que atinge apenas o Dilazenze. É possível afirmar que todos os
blocos afro da cidade sofrem com a violência local e com o estigma atribuído a seus
bairros. E o mesmo ocorria com o Olodum, um dos mais famosos blocos afro do país e
conhecido internacionalmente, antes da revitalização urbana do Pelourinho, em Salvador.
64 Este é um discurso importante para a própria constituição do bloco afro em sua relação com a comunidadee será melhor trabalhado adiante, em Encontros 5.
147
Outras características do gueto apresentadas por Wacquant (1995:115) são
observáveis na Conquista, como a predominância da economia informal e a dependência
da rede de parentesco e de benefícios sociais, como a previdência65, ou filantrópicos, como
a cessão de cestas básicas por parte do governo municipal ou de “ajuda” de igrejas e/ou
outras organizações. Na Conquista, uma vez por semana, à noite, a igreja católica do bairro
distribui um “sopão”. A distribuição acontece na Av. Brasil próximo à sede do Dilazenze.
Os adultos da família dizem que não são eles nem seus vizinhos mais próximos que fazem
uso dessa ajuda, mas conhecem “muita gente que precisa mesmo que mora ali perto”66.
Uma outra observação de Wacquant diz respeito à impossibilidade das pessoas de
saírem do gueto devido à falta de investimento do Estado em moradias populares fora dele
(1995:122-3). No Brasil, pode-se dizer o mesmo em função das poucas políticas de
habitação voltadas para a população de renda mais baixa, o que faz com que as pessoas
tenham de construir suas casas nos terrenos da própria família (em geral, constróem-se
sobrados ou ocupa-se todo o terreno disponível).
Relegando os conjuntos habitacionais ao abandono tanto em relação ao seu estado
físico quanto à presença e à eficiência das instituições públicas, o Estado perpetua as
condições que promovem a segregação, como a violência, a informalização da economia, a
falta de acesso à saúde e à educação, o desemprego. É o que Wacquant chama de “efeito
multiplicador” da segregação, que reforça tudo o que a provoca (1995:120). Ao mostrar
que o gueto é o produto de determinadas ações políticas que envolvem raça, classe e
espaço urbano (:102), ele quer ressaltar que o “isolamento [racial] (...) não é uma expressão
de afinidade e escolhas étnicas” (:120). Não se trata, de forma alguma, de ‘desracializar’ o
65 É muito comum em todo o país, especialmente em regiões de maior desemprego, que um grande númerode pessoas dependa da única renda “certa” mensal que é a aposentadoria ou a pensão de um ou maismembros da família.66 Mas não se pode negar que a distribuição da sopa consiste num ‘programa’ para as crianças da família,pois nos dias marcados para a distribuição, as crianças esperam com ansiedade o momento de pegar a sopa etomam-na com um apetite que, dizem seus pais, não costumam ter para “a comida de casa”.
148
gueto, mas pensá-lo como se fosse uma ‘opção’, retira de cena o processo histórico que o
constituiu, naturalizando-o:
“encobre-se assim o fato de os negros serem o único grupo que passoupela experiência da “guetização” na sociedade norte-americana, isto é,uma separação residencial total, permanente e involuntária, fundadana casta como base para o desenvolvimento de uma estrutura socialparalela (e inferior)” (1996:147).
À
A adoção do ponto de vista de que um local de população predominantemente
negra constitui um ‘território negro’, segundo Rolnik (1989)67 – entendido enquanto auto-
representação e identificação de uma história e de práticas culturais comuns – pode se
transformar num instrumento de luta e de mobilização política. É claro que para isso
acontecer é necessário que esse local tenha o estigma racial mediando sua relação com um
fora que é acionado em determinados momentos.
Agier (1992) trabalha com a idéia de que ocorreu em Salvador o surgimento de um
“movimento social e identitário” (:56) novo a partir de mudanças políticas, econômicas e
culturais no fim dos anos 70, como foi visto no capítulo anterior. A fim de dar
compreensão ao que chama de “atual movimento de identidade afro-baiana”, este autor
defende que os blocos afro e afoxés são “espaços sociais negros”, ou seja, instituições e
espaços marcados mesmo fisicamente que seriam percebidos como locais de refúgio pela
população negra, onde é “bom assumir a negritude”, onde é possível sentir-se respeitado
(1992:64)68. A imagem do gueto apresenta-se também aqui, mas de uma maneira
positivada do ponto de vista da luta contra o racismo. Para Agier, a constituição desses
“espaços urbanos próprios, reapropriados ou liderados por negros” (:109) são uma forma
de olhar e de se situar diante da “sociedade global” e expressam uma “identidade política”
67 Ver nota 61deste trabalho.68 O tema dos blocos afro como ‘espaços sociais negros’ será retomado em Encontros 4.
149
que atua através de uma “perspectiva de gueto” frente ao racismo de integração/dominação
da elite baiana69. Como diz Agier:
“Essa perspectiva pode ser verificada nas tendências mais recentes domovimento negro político no Brasil. Nelas se desenvolvem, em vez deum discurso favorável à assimilação (era o lema da Frente Negra nosanos trinta) ou simplesmente contra a discriminação (tema do MNU –dos anos setenta), diversas tentativas para destacar, na sociedade, umespaço próprio para os negros: busca de territórios próprios, apoio aexperiências educacionais autônomas, além da inclusão, nas fronteirasdo ‘movimento negro’, dos grupos culturais e religiosos afro-brasileiros. O diálogo com a sociedade global se torna aparentementemenos importante do que o inventário de práticas e instituiçõesrotuladas como ‘negras’” (1992:113).
As formulações de Wacquant para o gueto norte-americano assim como para as
cités parisienses ajudaram a pensar as condições de vida da população residente dos bairros
periféricos de Ilhéus em relação com o fato da maioria dessa população ser negra, tomando
a Conquista como um caso privilegiado, sem que fosse preciso pensar esses bairros como
guetos. Da mesma forma, tomando emprestada a Agier a idéia de atuação dos blocos afro a
partir de uma “perspectiva de gueto”, é possível pensar desse ponto de vista o desejo dos
grupos afro-culturais de Ilhéus de produção de uma identificação entre o bloco, seu
espaço/comunidade/bairro e a questão racial. Em algumas situações – pois esta não é uma
idéia fixa, presente durante todo o tempo – os grupos assumem que fazem parte e que estão
situados em zonas segregadas da cidade, onde existe uma dimensão racial fortemente
colocada, e investem esforços no sentido de suscitar na população aí residente uma outra
forma de olhar para esses lugares e/ou de se posicionar perante a cidade.
Além de várias outras dimensões que serão tratadas ao longo do trabalho, as
atividades realizadas pelos blocos afro em suas sedes – ou na rua da sede ou, nos casos dos
blocos que não possuem sede, na casa do presidente e/ou fundador (que em geral é a
referência do bloco e seu endereço oficial) – são justificadas pela necessidade de dar
69 Agier identifica na Bahia (em Salvador) um tipo de racismo que “não tem uma forma deexclusão/segregação, mas uma maneira, difusa e inconfessada, de integração e dominação” (1992:62).
150
opções de lazer à população. Um argumento bastante utilizado pelos dirigentes dos grupos
é o de que as pessoas “não se sentem à vontade” para freqüentar espaços de lazer no
Centro da cidade, por exemplo. Em 2001, durante a gravação de um programa sobre
‘preconceito’ pela TV local, três dirigentes de grupos filiados ao Conselho de Entidades
Afro-Culturais (CEAC) foram entrevistados. Em suas respostas, todos eles identificaram a
segregação espacial, embora não tenham usado tais termos, como o maior problema da
população negra em Ilhéus. É claro que não há nenhuma proibição real que impeça as
pessoas de freqüentar este ou aquele lugar, mas há “o receio de que você não seja bem
visto nesses lugares. Você não vai para evitar um problema maior, um constrangimento”,
segundo um dos dirigentes. E, em determinados locais de lazer no Centro da cidade e em
bairros considerados de moradores de renda mais alta, é notória a ausência, ou a baixa
freqüência, de pessoas negras. É certo que o fator ‘falta de recursos financeiros’ é
preponderante, mas ele não justifica tudo: pode-se gastar tanto dinheiro num bar “perto de
casa” quanto se gastaria num bar no Centro, mas o primeiro é quase sempre preferível ao
segundo.
Assim, apresentações de dança, teatro, palestras e, especialmente, shows de blocos
afro devem ser realizados na Conquista para que as comunidades dos grupos compareçam,
costumam dizer os dirigentes dos blocos. Por outro lado, esta mesma percepção leva ao
argumento oposto: de que os shows devem ser feitos no Centro para que as pessoas das
comunidades – “os negros”, como dirigentes e representantes do governo costumam dizer
quando estão falando da população negra – entendam que a cidade também lhes “pertence”
e para que “elas possam se sentir melhor em sua própria cidade”. Essas visões não variam
de grupo para grupo, nem mesmo de dirigentes para dirigentes dentro de um mesmo grupo,
mas de evento para evento, às vezes tratando-se da mesma pessoa.
151
As reuniões para planejamento das atividades da Semana da Consciência Negra são
momentos especialmente interessantes para refletir acerca de identificação étnica e espaço.
Em 1997, a organização da Semana Nacional da Consciência Negra esteve a cargo
principalmente do CEAC, embora tenha contado com participações pontuais da Pastoral
Afro, vinculada à Igreja Católica, e com o “apoio” do governo municipal, ‘mediado’ pelo
gerente de Ação Cultural, da Fundação Cultural de Ilhéus (FUNDACI), e pelo sub-
secretário de Esportes, ambos também, nesta época, representantes de grupos afro. Numa
das reuniões de preparação para o dia 20 de Novembro, dia dedicado a Zumbi dos
Palmares e é quando ocorre o evento mais importante da Semana, um longo tempo foi
destinado à discussão de onde deveria ser realizado o show dos blocos afro e a exposição
de fotos: se fosse no Centro, na Praça da Catedral de São Sebastião, as comunidades não
iriam, mas as atividades teriam maior visibilidade, o que seria bom para o fortalecimento
do “movimento afro-cultural”; se fosse na Conquista, “por ser o bairro com maior número
de blocos afro” e, conseqüentemente com o maior número de pessoas vinculadas aos
blocos, seria possível aglutinar muito mais gente para assistir ao espetáculo, porém, a
repercussão na cidade seria pequena. Tanto num caso quanto no outro, os argumentos
versavam sobre a melhor maneira de se elevar o sentimento de “auto-estima” da população
negra de Ilhéus: se o show fosse no Centro, o evento poderia ter repercussão na TV e nos
jornais, pessoas de todos os bairros poderiam comparecer, a “cidade toda ficaria
sabendo”... a população negra de Ilhéus se sentiria prestigiada; se o show fosse na
Conquista, o bairro teria visibilidade na cidade, haveria um número muito maior de
espectadores, seria um evento de lazer para uma população que quase não o tem... a
população negra de Ilhéus se sentiria prestigiada. A conclusão foi de que o evento deveria
ocorrer na Praça da Catedral, no Centro da cidade70.
70 É importante observar que o fator distância não seria um impedimento para o deslocamento dos moradores
152
Já em 2001, além dos blocos afro, o governo municipal, através da Secretaria de
Esporte e Cidadania, e a Igreja Católica através da Alufá-Gê71, uma associação vinculada à
Pastoral Afro, tiveram uma participação bem mais efetiva na organização da Semana da
Consciência Negra. Um dos representantes da Alufá-Gê, que é padre, propôs a realização
de uma missa em estilo afro numa igreja situada no bairro da Conquista, próxima à quadra
do Dilazenze, em função dos vários blocos afro sediados neste bairro e de seus membros.
O presidente do Dilazenze, que atuava como representante dos blocos, argumentou que
todas as atividades deveriam ser realizadas na Conquista dada a facilidade de aglutinar
pessoas e de proporcionar a “participação da comunidade”, o que não ocorreria se as
atividades fossem realizadas no Centro. Ambas as propostas foram resultado de uma
conversa particular entre eles, ocorrida previamente à primeira reunião de preparação.
Nessa ocasião, já com a presença de outros participantes, inclusive do secretário municipal
de Esporte e Cidadania, a proposta de que todas as atividades ocorressem na Conquista foi
questionada. Primeiramente pelo secretário, que preferia que as palestras que ele estava
sugerindo com pessoas famosas e que atrairiam, segundo ele, um bom público
acontecessem no Centro de Convenções Luiz Eduardo Magalhães, cujo auditório maior
tem capacidade para mil lugares. Argumentou que era preciso “pensar grande”, que as
pessoas dos blocos pareciam estar “com medo quanto à sua capacidade de colocar muita
gente no Centro de Convenções”. Para contrapor-se a ele, o representante dos blocos afro
retomou uma colocação do padre a respeito da dificuldade das pessoas de “assumirem sua
negritude”, justificando que embora a população negra de Ilhéus fosse muito grande, isso
não significava que todas as pessoas “tivessem vontade de ouvir alguém falar sobre
questões relacionadas ao negro”. Enquanto o secretário insistia que as atividades não
da Conquista para a Praça da Catedral: da Praça da Conquista, onde se costuma realizar os shows, à Praça daCatedral não se leva mais de dez minutos a pé.
153
deveriam ser na Conquista, algumas mulheres da Alufá-Gê presentes à reunião faziam
sinais de apoio à idéia – sorriam e balançavam a cabeça em sentido vertical. Talvez porque
não quisessem discordar diretamente do padre, não chegaram a argumentar nada. Quando o
assunto foi encerrado com a decisão final de realizar todos os eventos na Conquista, uma
das mulheres disse, com um ar de decepção e ainda como se fosse uma última tentativa de
argumentação, que todas as atividades deveriam ocorrer “bem cedo [no início da noite]
porque lá na Conquista é muito perigoso”, justificando sua ‘torcida’ notada anteriormente
para que os eventos não fossem realizados no bairro. Seu comentário, obviamente, é
baseado no estigma atribuído ao local já ressaltado páginas atrás72.
Percebe-se, assim, que nos momentos em que buscam trabalhar conjuntamente o
bloco, o espaço/a comunidade e a questão racial – ressaltando que do meu ponto de vista
nenhuma relação estabelecida entre esses três ou quatro termos é óbvia e imanente –, os
grupos afro podem ser considerados, então, “espaços sociais negros”, como sugere Agier
(1992:64). Porém, como já foi alertado antes, nem sempre a questão racial está colocada e
os grupos afro podem ser apenas ‘espaços sociais’, estabelecendo com a comunidade uma
relação que passa pelo sentimento de pertencimento local, do tipo ‘tal bloco é de tal bairro’
ou ‘de tal comunidade’. Essa conexão pode ser evocada, por exemplo, durante o desfile no
carnaval, quando o bloco é apresentado à população e faz-se uma referência à sua
localização na cidade. Iniciar o desfile nas ruas do bairro, como fazem o Dilazenze, o Miny
Kongo e o Rastafiry, por exemplo, ou caminhar por elas depois do resultado do carnaval
(quando se é campeão, é claro), como tem feito o Dilazenze nos últimos cinco anos, são
71 Associação do Resgate da Identidade e da Cultura Negra e Necessitados. Sobre esta entidade e sua relaçãocom os blocos afro, informações mais detalhadas serão apresentadas nos capítulos seguintes.72 Apesar da decisão de realizar todas as atividades na Conquista, o secretário, por conta própria, organizouuma palestra com um deputado federal num outro espaço, à qual compareceram cerca de dez pessoas, sendotrês dirigentes de blocos afro, dois representantes da Alufá-Gê, o padre era um deles, eu e um outropesquisador e três alunos da escola onde seria realizada a palestra. É claro que havia também assessores dodeputado e um vereador, além de funcionários da Assessoria de Imprensa do município para registrar oevento. E é claro também que a palestra não aconteceu em função do pequeno público.
154
formas de interação com ‘a comunidade’. A relação do grupo afro com sua comunidade, do
papel do grupo diante dela e da ‘sociedade’, ou seja, seu caráter propriamente
‘comunitário’ tem muitas outras implicações, cada vez mais fortes e presentes no cotidiano
dos grupos, a serem trabalhadas no Encontros 5.
Mas nem sempre essa ‘identificação’ bairro-comunidade é boa. Isso acontece
também nos conflitos entre gangues de bairros, o que já gerou, pelo menos, uma morte.
Quando uma gangue de um bairro está em conflito com uma gangue de um outro bairro, é
aconselhável que o bloco afro do primeiro não vá tocar no segundo, ou vice-versa, mesmo
que não haja componentes dos grupos envolvidos com as gangues. Há casos de grupos que
foram fazer apresentações em locais que lhe haviam sido proibidos e tiveram problemas;
há casos em que tiveram ameaças de problemas; e há casos em que os componentes se
recusaram a ir.
À
Conforme anunciado no início deste capítulo, ele e o próximo são complementares
em seu objetivo geral de apresentar os agenciamentos que permitiram a formação do
movimento afro-cultural de Ilhéus. A opção pela divisão se deu em função do tipo de
material trabalhado em cada um deles: enquanto este se dedicou a analisar fluxos de
histórias da presença da população negra na cidade, da própria formação desta, de
estatísticas, de ocupação do espaço urbano etc., o próximo também pensará sobre fluxos de
histórias, mas de histórias dos blocos afro, dos carnavais da cidade, dos personagens
considerados importantes quando se fala do movimento afro-cultural, enfim, do que é
colocado em jogo quando se trata de pensar a origem desse movimento em Ilhéus.
155
Encontros 3
MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS
“Traz na pele, no sangue e no peito oorgulho de ser Ilê Aiyê
Foi você quem fez mudar o nosso pensar,o nosso pensar
Sem você não existiria o nosso lugar.”(Gilson Rodrigues, “Exaltação Ao Ilê Aiyê”)1
Em seu primeiro desfile, em 1975, ao se mostrar para o mundo e prevendo que
causaria impacto, que era realmente “um bloco original”, tal como propagandeava seu
primeiro cartaz de divulgação, o Ilê Aiyê cantou: “Que bloco é esse?/Eu quero saber/É o
mundo negro/Que viemos mostrar prá você”2. Quem conhece um pouco do movimento
negro na Bahia, seja pela literatura sobre o assunto ou empiricamente, já viu/ouviu esse
trecho algumas ou várias vezes. Ele está presente na maioria dos trabalhos sobre blocos
afro, ora como epígrafe, ora como citação ou até mesmo como título de algum capítulo ou
seção. Isso ocorre por dois motivos, ambos muito óbvios: primeiramente por ter sido a
primeira música, do primeiro bloco afro, sendo utilizada tanto quando há a intenção de
contar a ‘história’ do movimento negro em Salvador quanto quando se quer recompor a
genealogia dos grupos, pois o Ilê Aiyê é o “ancestral”, o “pai” de todos os blocos; o
1 Música-tema do Grupo Cultural Dilazenze no desfile do carnaval em 2000, cujo tema foi “Mundo Negro IlêAiyê”.
156
segundo motivo tem a ver com a própria letra da música, muito propícia para introduzir o
tema, pois, praticamente, transforma-o num ‘conceito’ ou em algo a ser explicado. A partir
da pergunta “que bloco é esse?”, seguem-se descrições e definições do que é um bloco afro
ou sobre o movimento negro ou ainda sobre a chamada reafricanização do carnaval de
Salvador. E a experiência do Ilê Aiyê é sempre o ponto de partida, ainda que o objeto em
questão seja um outro bloco.
Assim, a história do movimento negro em Ilhéus também pode ser introduzida a
partir da música e da pergunta Que bloco é esse?, primeiramente porque a origem do
movimento em Ilhéus – quando surgiram os dois primeiros blocos afro da cidade – está
direta ou indiretamente vinculada a pessoas e acontecimentos relacionados ao movimento
negro de Salvador. Assim, ao remontarem sua genealogia, os blocos afro de Ilhéus também
chegam à capital e ao Ilê Aiyê. Por outro lado, pelo menos em Ilhéus, a pergunta “que
bloco é esse?” continua pertinente. Quando, com o Ilê Aiyê, surgiu o que só depois veio a
ser chamado de “bloco afro”3, ele era algo realmente novo, mas ainda hoje, quase trinta
anos depois, o que vem a ser um bloco afro é tema de discussão e de propostas de
definição.
A proposta deste capítulo, ou deste novo ‘relato de encontros’, é a mesma que se
aplicou ao movimento de Salvador em Encontros 1, ou seja, apresentar que conexões de
fluxos tornaram possível o surgimento do movimento afro-cultural de Ilhéus. É também
uma continuação do capítulo anterior, no qual foram apresentados dados históricos e
socioeconômicos que compõem os agenciamentos coletivos que permitiram o
aparecimento dos blocos, assim como entram na composição do dia-a-dia do movimento.
2 “Que bloco é esse?”, de Paulinho Camafeu.3 O termo “bloco afro” foi “inventado” pela Bahiatursa, órgão de turismo do governo do Estado, no final dosanos 70, quando já havia em Salvador outros blocos com as mesmas características e a empresa estataldesejou diferenciá-los dos demais para fins de definição de recursos e de horários de desfile, transformando-os em uma “categoria”.
157
Inicialmente, a idéia é oferecer ao leitor um panorama geral do movimento afro-
cultural de Ilhéus. Para tanto, cada bloco será resumidamente apresentado, formando uma
espécie de ‘árvore genealógica’ dos grupos, porém, de baixo para cima, ou seja,
começando pelo último bloco afro surgido em Ilhéus, em 2000, e terminando nos
primeiros. Já nessa concisa apresentação, que constitui a primeira seção, aparecem
diferentes fluxos que se agenciaram e promoveram o surgimento de cada um dos blocos: o
candomblé, o movimento negro de Salvador, o carnaval, a dança, o dinheiro...
São dois os primeiros blocos afro de Ilhéus porque há uma divergência sobre a
natureza (bloco afro ou afoxé) daquele que seria o primeiro. A data de fundação do Miny
Kongo é anterior ao surgimento do Lê-guê Depá em pouco mais de um mês. No entanto,
este último desfilou primeiro. Isso faz com que o aspecto cronológico não encerre a
questão e outras duas observações quanto à natureza dos grupos sejam consideradas: a
primeira refere-se ao fato de que o Miny Kongo foi fundado, mas não desfilou
imediatamente, assim, segundo este argumento, ele não teria existido como bloco afro
desde a sua fundação; a segunda diz respeito à forma como o Lê-guê Depá se apresentou:
seus ritmos, suas músicas, seus instrumentos seriam de afoxé, não de bloco afro, fazendo
do Miny Kongo o primeiro bloco de Ilhéus. Eis aí um exemplo de que a definição de bloco
afro ainda suscita calorosas discussões. O Miny Kongo e o Lê-guê Depá são o tema da
segunda seção.
Quando se escuta as falas das pessoas que participaram diretamente do surgimento
dos blocos afro em Ilhéus ou mesmo as histórias que os mais novos contam sobre eles,
logo fica claro que vários fatores contribuíram concomitantemente para a sua emergência.
As experiências dos fundadores dos primeiros blocos no carnaval e sua relação com o
movimento negro de Salvador é um desses fatores e faz parte da própria história dos
grupos, contada na seção anterior. Por isso, dar uma noção do que era o carnaval ilheense
158
em seus “bons tempos” e de como ele chegou à atual configuração é o objetivo da terceira
seção.
Também constitui fator de influência sobre o movimento negro de Ilhéus a ida para
a cidade de pessoas que viveram o surgimento dos blocos na capital, reconhecidas como de
suma importância para a constituição do movimento. Nesse último item, sem dúvida, o
nome mais lembrado é o de Mário Gusmão, ator de teatro e de cinema, além de dançarino,
cuja importância para o movimento em Ilhéus é até relativizada, mas nunca é negada.
Mário Gusmão é o tema de uma outra seção.
Porém, além do carnaval, do movimento negro de Salvador, do candomblé –
presentes na história dos primeiros blocos –, também outros agenciamentos que
participaram da produção do movimento de reafricanização da capital passavam por Ilhéus
e devem ser registrados, como a relação da cidade com o continente africano através do
comércio do cacau e o movimento do black soul. Esse é o tema da última seção.
Antes de terminar esta introdução ao capítulo, porém, é preciso ressaltar que
também valem aqui as mesmas observações feitas anteriormente quanto ao uso da
‘história’, ou melhor, das ‘histórias’. Novamente, lembro, são versões – de historiadores,
de antropólogos, de outros pesquisadores, mas também de militantes, de participantes, de
pessoas que viveram determinadas situações ou ouviram falar delas – que estão claramente
em disputa de prestígio e atuando na dinâmica do movimento afro-cultural de Ilhéus a todo
instante.
O Movimento Afro-Cultural de Ilhéus
Atualmente, o Conselho de Entidades Afro-Culturais de Ilhéus (CEAC), ou
simplesmente “Conselho”, é composto por quinze grupos4: doze blocos afro, um afoxé, um
4 Além dos treze grupos que se apresentaram nos desfiles de carnaval dos anos de 2002 e 2003, estãoincluídos entre os quinze o D’Logun, que não tem desfilado nos últimos anos, mas cujo representante é o
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grupo de maculelê e uma “levada”5 de um grupo de capoeira. Dos quinze grupos, treze
vêm participando com mais ou menos regularidade dos desfiles de carnaval e têm
constituído uma das principais atrações da cidade durante esse período. Entre eles, o mais
antigo é o grupo de maculelê, conhecido como “Pauzinhos”6, mas cujo nome é Embaixada
Gêge Africana e tem como fundação o ano de 1976. O mais recente é o bloco afro
Guerreiros de Zulu, fundado em 2000.
Os grupos que compõem o CEAC têm em comum o fato de desfilarem no carnaval
com instrumentos, ritmos, danças, vestimentas, alegorias etc., relacionados ao que se
costuma denominar ‘cultura afro-baiana’ ou ‘cultura negra’ ou ‘cultura afro’. Num
determinado plano, isso é o que os identifica. Por outro lado, esses grupos são muito
diferentes. Pode-se dizer que os ‘Pauzinhos’ e o afoxé Filhos de Ogum são remanescentes
de uma outra época do carnaval ilheense, quando havia outros grupos de maculelê e muitos
outros afoxés, além de diversas escolas de samba. Às vezes, os Pauzinhos são convidados
para apresentações ao longo do ano em eventos públicos e privados, como escolas e
igrejas. Já o afoxé e a ‘levada’, restringem-se ao carnaval, como lhes é próprio, pois esses
grupos não têm existência fora daquele momento. O afoxé Filhos de Ogum está constituído
como Associação Recreativa de Educação e Cultura Afro-brasileira Filhos de Ogum e é
formado por filhos e filhas-de-santo do Ilê Axé Loi-Loyá e pela comunidade do Alto do
Coqueiro, onde o terreiro está situado; já a “levada da capoeira”, como é chamada, tem por
componentes os capoeiristas do Grupo de Capoeira Camarada-Camaradinha. Existem
muitos outros terreiros em Ilhéus e tantos outros grupos de capoeira, mas somente esse
atual presidente do Conselho (gestão 2001-2003), e o Força Negra, que participou pela última vez comogrupo na eleição para a atual diretoria do Conselho, em 2001, embora não desfile mais há muitos anos.5 Levada nada mais é do que um bloco sem alegoria, sem tema. Os blocos afro quando saem “só de camisa”também são chamados assim.6 O apelido é explicativo: maculelê é um misto de dança e luta com bastões (ou facões). Em apresentações depalco, alguns grupos utilizam facões que quando batidos um no outro provocam faíscas e fazem o espetáculoficar ainda mais bonito. Porém, no desfile de carnaval só bastões são utilizados.
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terreiro e esse grupo de capoeira constituíram um afoxé e uma levada, respectivamente.
Por isso, fazem parte do Conselho.
Verifica-se, assim, que o grupo de maculelê, o afoxé e a levada apresentam
características muito peculiares que os diferenciam entre si e coloca-os, mas apenas nesse
plano, em oposição aos blocos afro, que constituem a base do CEAC e o núcleo do que se
conhece como movimento afro-cultural de Ilhéus.
Os blocos afro, embora sejam grupos carnavalescos, isto é, seu propósito maior é o
desfile no carnaval, têm uma existência como entidade que se pretende permanente. Dizer
que um bloco “só aparece no carnaval” ou “só trabalha no carnaval” é uma acusação, em
geral feita por dirigentes de outros blocos ou por militantes do movimento negro. O
argumento é que um bloco afro “deveria realizar atividades o ano todo”. Além disso, como
entidades, eles estão organizados no CEAC, no qual o afoxé e a levada só entraram em
1997 e os Pauzinhos só em 2001, e idealmente – já que na prática não é bem assim – são
regularizados (registrados) como associações e possuem sedes, estatutos, fazem eleições
etc. Somente sua existência nesses moldes permite que eles se constituam num
‘movimento’.
Sobre os “grupos afro-baianos” de Salvador, aí incluídos blocos afro e terreiros de
candomblé, Agier (1992a:109) diz que são três os princípios que os organizam e
constituem sua “identidade política”: segmentação, genealogia e pureza. No caso dos
blocos afro, estes se vêem, de acordo com Agier (1992b:70)7, e são vistos pela maioria dos
estudiosos do tema, conforme descrito no primeiro capítulo deste trabalho, na ponta final
de uma linha do tempo que começaria com o batuque como divertimento dos escravos,
passando pelos afoxés e pelos blocos de índio, até chegar ao Ilê Aiyê, o primeiro bloco
afro. Daí, todos os blocos traçam uma linha genealógica com este último e o nascimento
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de cada novo grupo se dá por segmentação. Como diz Agier, para que um bloco seja
inserido no meio, legitimado, “é preciso situar-se dentro da genealogia do campo e
identificar-se como uma segmentação desse campo” (1992a:109), que é o que lhe
possibilita traçar sua linha de pureza.
Como resultado parcial de sua pesquisa também desenvolvida em Ilhéus – e já
exposta na introdução deste trabalho –, Goldman (2001) deseja introduzir o uso da noção
de segmentaridade como uma aposta de que tal conceito pode dar mais inteligibilidade à
política em Ilhéus e, de maneira geral, em “sociedades dotadas de Estado” (:60). Sua
proposta é investigar a política stricto senso, isto é, “partidária e de Estado” (:58), do ponto
de vista do movimento negro da cidade. Para tanto, Goldman inicia seu artigo tomando
emprestado o modelo de análise de Agier (1992b) e mostra que ele pode ser aplicado em
Ilhéus: assim como em Salvador, os blocos afro ilheenses também se representam por
modelo genealógico e cada novo bloco é formado a partir de uma ruptura com um bloco
anteior, ou seja, por segmentação. Os primeiros blocos afro de Ilhéus deram origem, assim,
a duas linhas genealógicas. Goldman também observa que “as rupturas que dão origem aos
blocos são atribuídas a brigas entre seus componentes, a maior parte ligada a problemas
financeiros e/ou desentendimentos sobre a organização do bloco” (2001:59). Já em 1981,
as disputas internas eram uma preocupação de Antônio Risério, que estava vendo “a
conversão das rixas em rachas”. Essas ‘rixas’ que provocavam ‘rachas’ podiam ter por
origem a rivalidade entre bairros ou disputas pessoais – “inclusive amorosas”, ele ressalta.
Mas, ao que parece, o tipo de racha que mais lhe preocupava era aquele provocado pelas
disputas de “poder e prestígio social”, em função da projeção que os grupos vinham
ganhando a nível nacional (:125)8. Em Ilhéus, embora não seja possível apontar nenhum
7 Embora façam referência ao mesmo tema e tenham muitos trechos em comum, esses artigos de Agier(1992a e 1992b), um em francês e outro em português, não constituem exatamente traduções.8 Ribard (1999:337) também chama a atenção para as rivalidades internas que geram novas entidades.
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tipo de regularidade, quem rompe, por que rompe e a origem, isto é, de que grupo o
fundador de determinado bloco veio, são questões que influenciam a composição de
alianças. Além disso, a posição de “dono” de bloco, que gera ‘poder e prestígio social’ é
um importante fator na dinâmica do movimento9.
As duas linhas genealógicas originadas nos primeiros blocos afro de Ilhéus deram
origem a cerca de quinze grupos ao longo de quase vinte anos de movimento10. E essa
expansão do movimento é o “lado positivo” das rupturas que levam à segmentação, como
disse um dos fundadores do Miny Kongo: “foi bom que houvesse dissidências porque
aumentou, espalhou o movimento afro na cidade”.
O Grupo Guerreiros de Zulu é o bloco afro mais recente e nele se cruzaram as duas
linhas genealógicas. Como banda afro, o grupo nasceu em 1998 com o nome de “Babilônia
Jah”, mas até o carnaval de 2000, seus fundadores ainda desfilavam no Zambi Axé e no
Miny Kongo, de onde saíram para fundar o Guerreiros de Zulu como bloco afro em abril
de 2000. O grupo possui uma pequena sede, na verdade uma sala, no Alto Soledade,
localizado entre os bairros do Malhado e de São Miguel. Seus ensaios são realizados numa
praça, que é o ponto mais alto do morro, ou na Av. Ubaitaba, nos ensaios que antecedem o
carnaval e reúnem um maior número de pessoas. O grupo conta ainda com um salão cedido
pela igreja católica local para a realização de aulas de capoeira.
Primeiramente, sigo a linha genealógica na direção do Zambi Axé.
O Grupo Zambi Axé foi fundado em 1994, como grupo de dança. Seu primeiro
desfile foi em 1997. Na ocasião, assim como outros grupos, o Zambi Axé saiu com uma
banda em cima de um minitrio e com dançarinos na Avenida. No ano seguinte, o grupo
9 Mas essas reflexões estão reservadas para o Encontros 5.10 Em algumas poucas situações, dois ou três outros grupos são lembrados. Alguns constituíram-se apenascomo grupo de dança, como o Raça Negra, também do Alto da Conquista. Outros tiveram uma vida muitocurta. Entre eles está o Obatalá, de Sambaituba, distrito rural de Ilhéus, que foi o único bloco afro formadofora do distrito sede que chegou a desfilar na Avenida por dois ou três anos no início da década de 90.
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saiu melhor caracterizado como bloco afro. O Zambi Axé foi formado por dissidentes d’Os
Gangas e por componentes de um grupo de dança chamado Zalamandra. Inicialmente, sua
sede foi no bairro do CSU, na Rua do Cano; depois passou a ser no Basílio (na casa de um
ex-diretor dos Gangas) e atualmente é no Malhado, um dos bairros mais populosos de
Ilhéus. Embora não possua uma sede própria, conta com o apoio de um terreiro de
umbanda para guardar instrumentos e utilizar como sede. Filhos carnais da mãe-de-santo
participam ativamente do grupo. Seus ensaios são num largo em frente ao terreiro.
Outro grupo nascido como dissidência d’Os Gangas é a Associação Afro Cultural e
Comunitária Os Malês, fundada em 1992. Desde então, seu presidente é um ex-
componente dos Gangas. Outros fundadores d’Os Malês haviam desfilado no Lê-guê
Depá, que já não desfilava há quatro anos. O grupo Os Malês não possui sede própria. Sua
comunidade, onde mora a maioria dos componentes, é o Malhado.
O Grupo ‘Os Gangas’ foi fundado em 1986 como uma dissidência do Lê-guê Depá.
Sua sede era no Alto do Basílio. Desde sua fundação até 1997, quando ainda se fazia
presente como entidade embora não tenha desfilado naquele ano, o bloco desfilou de cinco
a seis vezes. Atualmente não existe mais. Seu último presidente converteu-se ao
protestantismo e hoje é vereador. Assim, por essa linha, chega-se ao Lê-guê Depá, cuja
descrição será feita adiante.
A outra linha genealógica de ascendência do Guerreiros de Zulu segue direto para o
Miny Kongo. Porém, antes dele, passo para o outro bloco mais recente, o Leões do
Reggae, que também descende diretamente do Miny Kongo, pois seus fundadores também
desfilaram nele, embora tenham passado por uma banda afro, que não se constituiu como
bloco, antes de fundarem o grupo.
O Grupo Leões do Reggae foi fundado em 1997. Inicialmente, atuou somente como
banda afro. Seu primeiro desfile no carnaval ocorreu em 1999, junto com o Raízes Negras.
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O grupo não desfilou nos dois anos seguintes e seu primeiro desfile individual foi em 2002.
A casa de seu presidente, que funciona como sua sede, está situada na Rua Santarém, entre
a Av. Itabuna e o Alto da Conquista.
O Grupo Danados do Reggae é formado por ex-componentes do Zimbabuê que
deixaram este último em 1990. O grupo não possui sede própria, mas seus ensaios
acontecem numa das regiões mais turísticas da cidade, a Praia do Pontal, ao lado do Morro
de Pernambuco, ou na Av. Lomanto Júnior, que beira a Baía de Ilhéus. Seus componentes,
quase todos jovens, são moradores do bairro do Pontal, considerado um bairro de classe
média, e de Nova Brasília, uma espécie de sub-bairro do Pontal, cuja população é de baixa
renda. O grupo desfila apenas com percussionistas e poucos dançarinos, como se fosse
uma grande banda afro na Avenida. Seu estilo lembra menos um bloco afro do que a
Timbalada, grupo de Carlinhos Brown em Salvador que também desfila como bloco afro,
no qual seus dirigentes dizem se inspirar.
O Zimbabuê foi fundado em novembro de 1985. Seus fundadores são conhecidos
capoeiristas de Ilhéus, filhos de um outro famoso capoeirista e estivador. São moradores
antigos do Oiteiro de São Sebastião – seu pai era o principal responsável pela organização
de uma grande festa no dia 20 de Janeiro em homenagem a São Sebastião na sede do
Sindicato dos Estivadores. Os irmãos Barreto desfilavam no Miny Kongo e deixaram este
último para fundar o Zimbabuê, a partir da mobilização de outros capoeiristas. Embora
fossem moradores do Oiteiro, o grupo ensaiava e saía do Pontal, lugar onde hoje ensaia o
Danados do Reggae. Desde 2001, o Zimbabuê é praticamente outro bloco. Os
componentes antigos não desfilam mais e sua sede é no bairro Teotônio Vilela, uma antiga
invasão, localizada na periferia da cidade, que é outro dos bairros mais populosos e mais
carentes de Ilhéus. Quem o “assumiu”, como se costuma dizer, foi um ex-integrante e
vocalista do Dilazenze.
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Além desses, há outros caminhos que levam ao Miny Kongo.
O Grupo D’Logun seria considerado não mais existente, não fosse pelo fato de que
seu presidente tornou-se, em 2001, o presidente do CEAC. Havia alguns anos que o grupo
não desfilava e, mesmo seu presidente tendo assumido a presidência do Conselho, isso não
voltou a acontecer. O grupo foi fundado em 1992 e é o mais novo dos blocos afro situados
no Alto da Conquista, mais exatamente numa sub-região conhecida como Alto Formoso.
Seus fundadores saíram do Raízes Negras, mas em mais de uma ocasião esses blocos se
uniram para desfilar no carnaval.
O Grupo Raízes Negras foi fundado em 1990 como dissidência do Rastafiry.
Também está situado na Conquista. Seus ensaios acontecem na Praça de uma área
conhecida como Plano Inclinado. Já desfilou na companhia do D’Logun e do Leões do
Reggae.
A Associação Afro Rastafiry foi fundada por ex-integrantes do Miny Kongo em
1982, embora seu primeiro desfile só tenha sido realizado em 1987. Durante todo esse
período, seus fundadores continuaram a desfilar no Miny Kongo. O grupo possui uma
pequena sala como sede no térreo da casa de seu presidente. Seus ensaios acontecem num
mirante próximo à Praça Santa Rita, a principal do bairro da Conquista. Dos blocos ainda
em atividade, é o segundo mais antigo e já foi campeão do carnaval.
Novamente chega-se ao Miny Kongo, mas ainda é preciso falar de outros blocos
antes dele.
O Grupo Cultural Dilazenze é, atualmente, o bloco afro mais bem estruturado da
cidade. Alguns outros possuem sedes próprias, mas a do Dilazenze é a única que é uma
quadra, o que permite que os ensaios e vários eventos sejam realizados aí. Foi fundado em
1986 por ex-componentes do Axé Odara. Também está situado na Conquista, numa sub-
região conhecida como “Carilos”, uma referência ao dono da fazenda ali situada há muitos
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anos atrás, avô de Luiz Carilo, fundador do Lê-gue Depá. Alguns de seus componentes
têm/tiveram posição de destaque na história do movimento negro ilheense. Gilmar
Rodrigues foi presidente do CEACI no início dos anos 90. Marinho Rodrigues, presidente
do grupo desde 1988, tornou-se vice-presidente do CEACI em 1992 e presidente eleito do
CEAC quando este foi reativado como uma nova entidade (gestão 1997-2000)11. Nei
Rodrigues é o atual vice-presidente do Conselho (gestão 2000-2003) e do Dilazenze. Os
três são irmãos e isso revela mais uma característica do grupo: há uma rede familiar
extensa responsável por sua sustentação. O Dilazenze foi o campeão consecutivo dos
carnavais de 1999 a 2003.
O Grupo Cultural Axé Odara foi fundado por ex-integrantes e, mais do que isso,
por fundadores do Miny Kongo, em 1984. Eles formavam a base do grupo de dança deste
último. Sua saída provocou um grande abalo na estrutura do Miny Kongo. Entre os
fundadores do Axé Odara, estava o ator e dançarino Mário Gusmão, importante
personagem também na história do Miny Kongo e, por isso, do movimento negro de
Ilhéus. Embora tenha se constituído como bloco afro, a proposta do Axé Odara estava
muito mais direcionada para sua formação como grupo de dança e de teatro, cujos
espetáculos tinham um caráter mais politizado. Segundo seu estatuto, sua sede ficava na
Av. Princesa Isabel, mas seus ensaios aconteciam no Circo Folias de Gabriela, criado para
a realização de shows populares, na Av. Soares Lopes. O grupo tinha um número reduzido
de componentes e não tinha uma “comunidade”, uma ‘base territorial’. Ainda assim,
chegou a ser campeão do carnaval ilheense. Desde o início da década de 90, ele atua na
11 Na verdade, Marinho Rodrigues já havia assumido a presidência da entidade alguns anos antes, quando oantigo presidente, Mirinho, se afastou. Contudo, os anos de 1995 e 1996 foram um momento dedesmobilização do movimento, tanto que foi preciso fundar uma nova entidade em 1997, até porque todos osdocumentos da anterior foram perdidos numa enchente na casa de Mirinho. A cronologia da organização dosblocos afro em Ilhéus será detalhada no próximo capítulo.
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cidade de Porto Seguro como grupo de dança e é dirigido por um de seus fundadores, mas
este é o único dos antigos componentes que permanece no grupo.
O Grupo Força Negra também foi fundado por ex-integrantes do Miny Kongo.
Quando houve a saída daqueles que fundaram o Axé Odara, foram esses integrantes que
ajudaram a sustentar o grupo. A história do Força Negra começa ainda na década de 70
com o Movimento Estudantil Promocional de Ilhéus – MEPI, entidade fundada em 1970 e
formada por estudantes de vários níveis de escolaridade e inicialmente vinculada à Igreja
Católica, onde costumava se reunir até uma divergência com o bispo, desde então passando
a utilizar o Sindicato dos Bancários até o início da década de 90, quando deixou de existir.
O MEPI possuía uma espécie de núcleo voltado para a “questão negra” e um grupo de
“dança de clube”, no estilo black soul, que também chegou a Ilhéus. Em 1980, alguns
militantes foram convidados para participar da fundação do Miny Kongo e logo passaram a
compor também seu grupo de dança afro. Em 1988, embora ainda fizessem parte do Miny
Kongo, os componentes do MEPI organizaram um grupo de dança afro do núcleo, ao qual
foi dado o nome de Força Negra. Eles saíram do grupo de dança do Miny Kongo, mas não
do bloco. Apenas dois anos depois de formado, o Força Negra passou a desfilar no
carnaval, quando seus fundadores, de fato, deixaram o Miny Kongo.
A sede do Força Negra era a casa de um dos componentes, também no Alto da
Conquista. O grupo teve uma vida relativamente curta: uma de suas lideranças, Alzidério,
que também teve muito destaque na história do movimento em Ilhéus (participou do Miny
Kongo e foi fundador do Axé Odara), faleceu. Além disso, seu presidente, liderança do
grupo e do movimento, converteu-se ao protestantismo. Tal como ocorre no Dilazenze, a
rede familiar era, em grande medida, responsável pela sustentação do grupo. Em 1997,
desde alguns anos inativo, houve uma tentativa de reativar o Força Negra por parte de
militantes do Movimento Negro Unificado (MNU) de Ilhéus. A tentativa de revitalização
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do grupo não foi bem sucedida, pois nunca conseguiram desfilar. A última vez que seus
representantes se posicionaram como entidade foi nas últimas eleições para o CEAC, em
2001, em função de uma decisão dos organizadores de que votariam aqueles dirigentes que
haviam participado das eleições de 1997.
Com o Força Negra conclui-se a rápida apresentação de cada um dos blocos afro
em Ilhéus gerados pelos dois primeiros em duas linhas genealógicas, que se iniciam
distintamente e se encontram no Guerreiros de Zulu12. Seguem-se, então, as descrições dos
grupos geradores dessas linhas: o Miny Kongo e o Lê-guê Depá.
O início
Era o ano de 1981 em Salvador. Antônio Risério publicava Carnaval Ijexá: notas
sobre afoxés e blocos do novo carnaval afrobaiano, texto sempre citado pelos trabalhos
sobre blocos afro em Salvador como a primeira reflexão sobre o ‘novo movimento’, sobre
o ‘diferente’, sobre a “reafricanização” que vinha ocorrendo no carnaval da capital desde
meados da década de 70. Isso significa que no início da década de 80, o movimento dos
blocos afro já tinha tomado corpo, já era conhecido e reconhecido, se ainda não no Brasil –
o que vai acontecer com força com a explosão do Olodum, em 1987 –, pelo menos na
Bahia.
Era o ano de 1980 em Ilhéus. Como diz Luiz Carilo, personagem importante do
início do movimento afro-cultural da cidade, “começou a aparecer por aqui um
movimento. Aí, no Oiteiro de São Sebastião, apareceu um movimento afro e eles fundaram
um bloco, o Miny Kongo”. A fundação oficial do Miny Kongo data de 22 de Novembro de
1980. Em janeiro de 1981, um outro grupo se organizava para a lavagem da Catedral de
São Sebastião: estava sendo fundado o Lê-guê Depá, sendo Carilo um de seus fundadores.
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O Lê-guê Depá desfilou no carnaval desse ano; o Miny Kongo só saiu em 1982. Essa
diferença de datas sobre fundação e desfile é um dos ingredientes da polêmica que ainda
hoje alimenta discussões em Ilhéus sobre qual foi o primeiro bloco afro da cidade. Por
enquanto essa discussão ficará de lado para ser retomada adiante. Agora, o que importa
registrar é a observação de Carilo de que “começou a aparecer por aqui um movimento”.
Ele não explicita que movimento é esse, mas percebe-se que se trata do mesmo movimento
que fervilhava em Salvador e começava a respingar em Ilhéus. Eram os blocos afro
chegando13.
O Lê-guê Depá
Luiz Carilo é dançarino, ator, produtor artístico, professor. Passou vários anos de
sua juventude em Salvador, participando ativamente da vida cultural da cidade, pela qual,
como ele conta, era encantado: adorava o som do berimbau dos grupos de capoeira nas
ruas, os batuques nos bares, as baianas, as lavagens do Bonfim, as famosas festas de
Largo... Chegou a ingressar na Faculdade de Dança em 1974, mas não terminou o curso.
Trabalhou com artistas que “foram presos pelo DOPS”. Diz que “vivenciei[ou] a
Tropicália” e “assisti[u] ao casamento de Caetano Veloso”. Voltou para Ilhéus ainda na
década de 70 e continuou trabalhando com produção de eventos e espetáculos para a
prefeitura. Começou a freqüentar o terreiro de candomblé de Pai Pedro14 e, através de seu
interesse por candomblé e por teatro, aproximou-se de Ilza Rodrigues, ou D. Ilza, como
12 Ver Anexo 3 com o quadro das linhas genealógicas traçadas entre os grupos e Anexo 4 com o mapa deIlhéus e a localização da área de atuação dos blocos, tomando como referência a numeração que consta emAnexo 3.13 Conforme já anunciado, ver-se-á nas próximas páginas que há algumas divergências sobre o início dosblocos afro em Ilhéus, contudo, a informação de Barbosa (1994:50) reproduzida por Cambria (2002:45) deque os blocos surgiram após ou a partir do espetáculo “África Presente”, de Mário Gusmão, é totalmenteequivocada. Em primeiro lugar, como já registrado, os primeiros blocos são de 1980 e 1981, enquanto oespetáculo é de 1985, cuja estréia ocorre dias antes do primeiro carnaval do Axé Odara, grupo que encena oespetáculo, fundado no ano anterior. E em segundo lugar, todos os blocos posteriores ao espetáculo foramfundados por ex-integrantes dos blocos anteriormente existentes.14 Pai Pedro foi um dos mais conhecidos pais-de-santo de Ilhéus. Faleceu no início do ano de 2003.
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doravante será chamada aqui. D. Ilza é a mãe-de-santo do Terreiro Euá Tombency Neto,
localizado nos “Carilos”. O terreno onde hoje está situado o terreiro já foi bem maior. Era a
chácara de D. Roxa, mãe carnal de Ilza, sua antecessora no cargo maior do Tombency e
uma das mais famosas mães-de-santo da região. Provavelmente, a chácara fora,
anteriormente, parte da fazenda do avô de Luiz Carilo, a quem D. Roxa e Sr. Valentim, seu
esposo, conheceram.
D. Ilza, mãe de quatorze filhos, também era dançarina e atriz. Participava de um
grupo de teatro e de dança com Pedro Matos, ator, produtor, diretor de teatro. No carnaval,
saía em todos os blocos, afoxés e escolas de samba que podia. Como ela conta, “nem vinha
em casa para trocar de roupa para não perder tempo. Levava a roupa do outro bloco e
trocava lá na Avenida mesmo”. Seu encontro com Carilo e com Pedro Matos produziu
vários espetáculos, nos mais diferentes eventos da cidade. Ela levava junto seus filhos mais
velhos, que também participavam ativamente, tocando e dançando. Com Luiz Carilo, ela
participou da fundação da Sociedade de Artistas em Artes Cênicas de Ilhéus (SACI), em
outubro de 1980. Era uma associação de artistas de dança, teatro e música. Algum tempo
depois, ambos fundaram a uma outra entidade como dissidência da SACI.
D. Ilza via bloco afro na TV, mas afoxés, danças e ritmos do candomblé, ela
conhecia muito bem. Carilo vira e vivera o burburinho do movimento afro em Salvador
bem em seu início, embora não tivesse desfilado em nenhum bloco. Nas entrevistas que me
concederam, cada um deles disse que foi do outro a idéia de formar um bloco afro em
Ilhéus. Gilmar, um dos filhos de D. Ilza, contou que a idéia nasceu “numa mesa de bar”,
em um dos vários encontros que o grupo de teatro e dança fazia nos fins-de-semana, em
bairros diferentes, para “fazer samba de roda e de viola para o pessoal ficar mais
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integrado”, além de teatro de rua15. Nesse momento, o “movimento no Oiteiro” e a
conseqüente fundação do Miny Kongo já haviam ocorrido. Carilo, D. Ilza, seus filhos e
outros decidiram que fariam a Lavagem da Escadaria da Catedral já como bloco e, se desse
certo, desfilariam no carnaval. Era, então, janeiro de 1981, ano do “Centenário de Ilhéus”
(comemoração de sua elevação da categoria de vila para cidade) e uma série de eventos
comemorativos estavam programados. Carilo, por sua proximidade com o governo
municipal, solicitou verba à prefeitura para o lançamento de um bloco afro no carnaval.
Com o dinheiro adiantado, organizou o evento da Lavagem da Catedral de São Sebastião
pelo grupo e comprou atabaques e agogôs, os primeiros instrumentos.
O nome do grupo foi uma homenagem a Xangô, orixá importante na história do
Terreiro Tombency16. Lê-guê Depá é o nome de “uma qualidade de Xangô”, é um “Xangô
menino”. Assim, as cores escolhidas para o bloco foram vermelho e branco, as cores do
orixá homenageado.
O sucesso conseguido pelo grupo no evento de janeiro encorajou-o ainda mais a
desfilar no carnaval. Os ensaios ocorriam no terreiro, de onde o bloco saiu no dia do
desfile. O tema escolhido foi uma homenagem a Oxalá. Além de Oxalá, representado pelo
próprio Carilo, três outros orixás foram homenageados. Eram os “destaques” do bloco,
“luxuosamente vestidos”. O bloco foi dividido em alas e desfilou com cerca de 150
pessoas. Havia a ala dos destaques, a ala das baianas e outra de pessoas vestidas de abadá,
de pedaços de tecido trançados no corpo e até mesmo “lençóis brancos amarrados”, como
conta D. Ilza. Carilo esclarece algo que D. Ilza também já disse várias vezes: as pessoas de
santo (diretamente ligadas ao candomblé) “não saíam” – ou “não saem”, ou “não deveriam
sair” – vestidas com roupas de santo para “não confundir as coisas”, para “mostrar
15 Tal como foi destacado em Encontros 1, mesas e bares constituem espaços privilegiados para encontros enovas composições.
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respeito”. Assim, vestiam-se de orixás ou de baianas somente pessoas que não tinham
cargos no candomblé ou que não “viravam no santo”, ou seja, que não entravam em
possessão.
Segundo Carilo, a divisão em alas já fazia parte de sua preocupação em frisar que
se tratava de um bloco e não de um afoxé. E este será o principal argumento contra o título
reivindicado pelo Lê-guê Depá como o primeiro bloco afro de Ilhéus: dirão que ele era um
afoxé, não um bloco afro. Sobre isso, cabe observar que na matéria do dia 10 de março de
1981, no jornal Diário da Tarde, o grupo é citado na programação do carnaval como um
entre os nove afoxés que desfilariam naquele ano17. Em 1982, já contando com a presença
também do Miny Kongo, ambos são citados como “blocos afro” na programação do
carnaval divulgada pelo mesmo jornal, nos dias 20 e 21 de fevereiro. Neste ano, o Lê-guê
Depá novamente homenageia um orixá, Xangô, o padroeiro do bloco.
Em 1983, o Lê-guê Depá desfilou sem fantasias, sem tema, praticamente sem
bateria. Em função de um desentendimento entre componentes da bateria (formada
principalmente pelos filhos de D. Ilza) e Carilo quanto ao ritmo que seria empregado, os
primeiros deixaram o bloco e foram para o Miny Kongo, então em seu segundo ano de
desfile. Embora tivesse conseguido novos instrumentos, Carilo entendia que era preciso
continuar com o ritmo ijexá, “próprio de afoxé”, como dizem ex-integrantes do Lê-guê
Depá, para “manter a tradição”, confirma o próprio Luiz Carilo. Além disso, não havia
recursos para trabalhar o bloco18. Com poucos integrantes, fantasias somente as de baianas
16 Xangô também é o padroeiro do Dilazenze, grupo afro que seria fundado anos depois por filhos maisnovos de D. Ilza.17 A “Embaixada Gêge Africana” (os Pauzinhos) também está incluída como um afoxé na programação.18 Era o primeiro ano do primeiro governo de Jabes Ribeiro. Não foi possível verificar o que a imprensa dissena época porque o primeiro semestre de 1983 do jornal Diário da Tarde não está disponível no acervo doCentro de Documentação da UESC, onde foi realizada a pesquisa com jornais. Porém, em fevereiro de 1984,uma matéria ressalta que não houve competição de blocos no ano anterior, o que sugere que a prefeitura nãodisponibilizou recursos para as entidades.
173
– que as pessoas tinham ou era possível conseguir – e poucos percussionistas, o bloco não
foi bem.
No ano seguinte, já morando no bairro do Malhado, Carilo resolveu “levar o bloco”
para lá, ou seja, ele deixou de ensaiar e de sair do Tombency, embora D. Ilza continuasse
fazendo parte da diretoria do grupo. A receptividade da comunidade do Malhado foi boa –
Carilo conta que recebeu apoio também financeiro de comerciantes locais – e deu fôlego
ao Lê-guê Depá para desfilar por mais cinco anos, até 1988. O bloco foi campeão dos
carnavais de 1984 e 1985, com os temas “Revolução dos Malês” e “Iniciação de Iaô”,
respectivamente.
Além do desfile no carnaval, o bloco fazia apresentações de dança e era também
um “bloco junino”, ou seja, organizava-se como quadrilha de festa junina para
apresentações. Carilo ressalta que o objetivo do grupo era conhecer e transmitir
conhecimento sobre “folclore e costumes da região”, através das “pesquisas” que ele
realizava. O bloco não existia só pelo carnaval ou pelo teatro, mas “pelo conhecimento”.
O Miny Kongo
Como no caso do Lê-guê Depá, também no Miny Kongo o movimento de Salvador,
o candomblé e o envolvimento anterior dos fundadores com o carnaval foram marcantes
para a fundação do bloco. No entanto, a participação do ator e dançarino Mário Gusmão
como fundador do Miny Kongo fez com que essas influências ficassem em segundo plano.
Há algumas opiniões divergentes, mas a ele é atribuída a fundação do grupo, assim como o
início do movimento negro no município de Ilhéus.
Atanagildo, morador antigo do Oiteiro de São Sebastião, desfilava na Vermelho e
Branco, uma das escolas de samba mais famosas e lembradas de Ilhéus. Ele também
gostava muito de carnaval e conta que esteve em Salvador, observou os blocos afro e
174
pensou que seria bom “levar um movimento desse para Ilhéus porque lá não tem nada”.
Era o ano de 1980. E foi num passeio para Olivença, distrito hidromineral e turístico de
Ilhéus, enquanto ele apresentava as músicas e as “batidas” que aprendera em Salvador para
outras pessoas, que surgiu a proposta de fundar um bloco afro. A data oficial de fundação
do Miny Kongo é o dia 22 de Novembro de 1980. Porém, o desfile no carnaval do ano
seguinte foi uma idéia que não se concretizou.
Embora haja uma versão um pouco diferente para o nascimento do grupo, ela não é
incompatível com a de Atanagildo. Acredito que se trate de uma questão de dar prioridade
a este ou àquele momento de um mesmo processo. De acordo com essa outra versão, a
vontade de formar um bloco afro teria surgido no grupo de dança criado por Mário
Gusmão, na Academia Raiz, onde começou a dar aulas em 1981, ano de sua vinda de
Salvador para Ilhéus. Logo que chegou, Mário foi morar no Oiteiro e convidou algumas
pessoas do lugar para que fossem ter aulas de dança com ele, notadamente de dança afro,
na Academia Raiz. Eram cerca de dez pessoas que viriam a ser a base do grupo de dança
do Miny Kongo e, mais tarde, do Axé Odara, que Mário Gusmão também ajudou a fundar
e do qual foi diretor. Dado que a fundação formal do bloco aconteceu em 1980, mas não
foi possível desfilar em 1981, pode-se pensar que esta era uma idéia que existia, mas que
só ganhou consistência, ou que ganhou maior consistência, a partir do incentivo de Mário
Gusmão, que teria dito a Veludo (também fundador do Miny Kongo) e a Atanagildo: “faça
mesmo, crie mesmo esse bloco” – e de sua experiência, que já participara no Ilê Aiyê e
vivera intensamente todo o início do movimento negro na capital. Dessa forma, ambas as
versões são combinadas e só discordam na importância dada a Mário Gusmão. Porém,
antes de discuti-la, é preciso discorrer mais sobre o grupo.
Atanagildo não fazia parte do grupo de dança e, além de ser liderança do grupo,
ficou exercendo, ao que parece, o papel de ‘relações públicas’ do bloco, principalmente
175
junto ao poder público. Mas não apenas isso: o bloco está registrado em cartório em seu
nome, prática comum também a outros blocos. Segundo conta, o nome do grupo é uma
homenagem a Ogum, seu orixá. Miny Kongo seria, então, segundo ele, uma qualidade de
Ogum. Além disso, o nome seria bom porque criaria uma relação com a África, dando a
entender que seria “uma parte da África aqui no Brasil, o Congo”.
Outras pessoas praticantes e conhecedoras de candomblé informam que há uma
zuela (cantiga) dedicada a Oxóssi na qual aparecem os termos “Banda Miny Kongo”,
forma como o bloco era chamado logo no início19. Essa zuela foi cantada na Avenida no
primeiro desfile do grupo, o que também o caracterizaria como afoxé. Contudo, embora
utilizasse músicas e ritmo de afoxé, o Miny Kongo diferenciou-se do Lê-guê Depá em
relação aos instrumentos: havia muitos atabaques e agogôs – “por falta de instrumentos [de
percussão]” – mas a presença de um paulistão e de alguns outros instrumentos marcava que
não se tratava de um afoxé.
Para o primeiro desfile em 1982, o Miny Kongo recebeu um auxílio da prefeitura e
contou com a ajuda de Jabes Ribeiro doando todo o tecido que seria utilizado nas fantasias
do bloco. Jabes estaria concorrendo ao cargo de prefeito naquele ano pela primeira vez.
Alguns instrumentos foram tomados emprestados nos terreiros de Pedro Farias, ou Pai
Pedro, e de uma parente de Atanagildo. Pai Pedro tornou-se, então, padrinho do bloco e lhe
deu um grande apoio. Um dos fundadores diz que o bloco “saiu com muito atabaque
também. Tudo começou com muito atabaque”. Outros instrumentos “próprios de bloco
afro” foram comprados por Atanagildo ou tomados emprestados na famosa Escola de
Samba Vermelho e Branco, também situada no Oiteiro. Em seu primeiro carnaval, o Miny
Kongo já foi campeão, desfilando com cerca de 250 pessoas, pelos cálculos de Atanagildo.
176
Em seu segundo desfile, em 1983, a chegada em Ilhéus e, mais precisamente, no
Oiteiro, de Renato do Olodum às vésperas do carnaval provocou uma mudança importante
no Miny Kongo: a batida, o ritmo já não seria de afoxé, como no ano anterior. Embora
instrumentos de percussão (repique, surdos) já tivessem sido adquiridos, nos ensaios
daquele ano, a batida ainda não havia mudado muito. Renato, com a ‘autoridade’ de ex-
diretor do Olodum20, introduziu a “batida de bloco afro”, o que colaborou para o
deslocamento dos percussionistas do Lê-guê Depá para o Miny Kongo. A influência dos
blocos afro de Salvador pode ser notada não só pela participação de ex-integrantes do Ilê
Aiyê e do Olodum, mas também porque os blocos da capital eram o modelo a ser seguido.
Se não havia blocos afro em nenhum outro lugar e se aqueles eram chamados de blocos
afro, era preciso fazer, ser como eles para ser também reconhecido como tal – era preciso
entrar na linha de pureza que Agier menciona. Atanagildo conta que, em função disso, ele
chegou a levar “os meninos do Miny Kongo” (percussionistas e dançarinos) para Salvador.
A hospedagem era a casa de sua irmã, onde permaneciam por cerca de uma semana. Nesse
período, iam aos ensaios do Ilê Aiyê, do Muzenza para aprender as músicas, as danças, os
ritmos a fim de reproduzi-los no Miny Kongo. É preciso ressaltar que Missião também já
havia desfilado no Ilê Aiyê duas vezes antes da fundação do Miny Kongo.
Em 1984, o Miny Kongo experimentou, pela primeira vez em Ilhéus, ser um dos
protagonistas de um episódio que viria a se repetir algumas vezes e que se tornaria uma
espécie de ‘emblema’ de um embate ‘racial’ e de ‘classe’: trata-se do momento em que o
bloco afro se encontra com o trio elétrico na Avenida. Naquele ano, o trio elétrico em
questão foi nenhum outro senão o primeiro e mais famoso da Bahia e do Brasil, o de Dodô
19 No jornal Diário da Tarde de 20 e 21/02/82 e de 29/02/84, o grupo é citado como “Bloco Afro Filhos daBanda Minicongo” e “Bloco Afro Banda MiniKongo”, respectivamente.20 Comparando essa informação com a história do Olodum, presume-se que a ‘autoridade’ concedida aRenato fosse pelo fato de estar vindo de Salvador, já que o Olodum ainda estava no início e já emdecadência, pois só em 1983 ele seria assumido por João Jorge, Neguinho do Samba e outros ex-componentes do Ilê Aiyê que promoveram seu renascimento (ver Encontros1).
177
e Osmar. O incidente daquele ano foi bem resolvido pois, como manda a ‘etiqueta’ do
carnaval, o trio, que é bem mais potente e ‘barulhento’, deve silenciar-se para o bloco afro
passar. E foi o que aconteceu. Além disso, Osmar pediu desculpas dizendo que não foi
intencional (Diário da Tarde 08/03/84). Esses ‘incidentes’ são famosos e recorrentes em
Salvador e já aconteceram algumas vezes em Ilhéus. Como esses episódios são, em geral,
tratados na chave da discriminação racial sofrida pelo bloco afro, essa discussão será
aprofundada no próximo capítulo.
Lê-guê Depá ou Miny Kongo?
A polêmica sobre qual foi o primeiro bloco afro de Ilhéus só costuma ser levantada
por pessoas que participaram da fundação de um dos dois blocos em questão, o que
significa dizer que ela não é muito importante para o conjunto dos militantes do
movimento. O que pode ser chamado de ‘senso comum’ da história do movimento negro
em Ilhéus afirma que o Miny Kongo foi o primeiro bloco afro e que Mário Gusmão foi seu
grande idealizador e fundador. No entanto, para os objetivos deste trabalho, a questão é
relevante porque oferece dados e reflexões a respeito da própria concepção de bloco afro,
pois não se trata apenas de um problema cronológico – embora nem mesmo este seja tão
simples. As divergências passam principalmente pela definição do que é um bloco afro.
Quanto ao aspecto cronológico – quem foi o primeiro? –, a contenda parece fácil de
ser resolvida. Considerando-se o momento da fundação, aparentemente, não há dúvida de
que o Miny Kongo seria o primeiro. Mas não é bem assim. Contra o que parece ser um
fato, um dado, pessoas que participaram da fundação do Lê-guê Depá argumentam que o
Miny Kongo foi fundado, mas não se constituiu como bloco afro: “Primeiro bloco afro que
existiu aqui dentro de Ilhéus foi o Lê-guê Depá. A primeira entidade afro foi o Lê-guê
Depá. O Miny Kongo se queixa que foi o primeiro bloco a ser fundado. Aí pode ser. Mas o
178
primeiro a desfilar foi o Lê-guê Depá. Ele foi fundado um ano antes, mas não desfilou”.
Por outro lado, mesmo para fundadores do Miny Kongo, o argumento das datas parece não
ser determinante. Atanagildo defende a posição do Miny Kongo chamando a atenção
justamente para as características dos grupos: “Lê-guê Depá não era bloco, era afoxé.
Como bloco afro mais velho aqui é Miny Kongo”.
Além dos temas dos desfiles, das roupas de orixás usadas principalmente nos dois
primeiros anos, dos instrumentos de candomblé (atabaques, agogôs, chocalhos e reco-
recos), as músicas cantadas no desfile aproximavam ainda mais o Lê-guê Depá da
concepção de afoxé. A música do primeiro ano, de autoria de Délson Rodrigues, um dos
filhos de D. Ilza, apresentava o bloco a partir de Xangô: “Lê-gue, lê-gue, lê-gue, lê-gue /
Lê-gue, lê-gue, lê-gue, lê-gue / Lê-guê Depá / Sou menino, sou orixá / Eu sou Xangô / No
reino do Lê-guê Depá”. Em outros anos, foram utilizadas versões de músicas de ‘novos
afoxés’ famosos de Salvador, como o Zanzibar e o Badauê. Uma versão de uma música do
Zanzibar faz com que o próprio Lê-guê Depá se chame de afoxé: “Morena linda / Não
fique triste / Você tem que se alegrar / Jogue a tristeza para o alto / E venha para o afoxé
Lê-guê Depá”.
Principalmente em seu primeiro ano, o Miny Kongo também cantou “música de
terreiro”, especialmente a música (zuela) de onde foi tirado o nome do bloco, dedicada a
Oxóssi. Também utilizou instrumentos de candomblé, “batida” de candomblé. Enfim,
como o Lê-guê Depá, também tinha características de afoxé.
O Miny Kongo foi fundado em novembro de 1980; o Lê-guê Depá, menos de dois
meses depois, em janeiro de 1981. O Lê-guê Depá desfilou em 1981; o Miny Kongo só em
1982. O Lê-guê Depá saiu pela primeira vez somente com instrumentos de afoxé, cantando
músicas de candomblé e de afoxés, mas nasceu com a “intenção” de ser bloco afro: “Eles
[do Miny Kongo] colocaram na cabeça que foram o primeiro bloco afro de Ilhéus. Mas a
179
intenção da gente foi colocar um bloco afro”, diz Ilza Rodrigues; o Miny Kongo desfilou
pela primeira vez com instrumentos de afoxé e instrumentos de percussão, tocou em ritmo
de afoxé, cantou músicas de afoxé, de candomblé, mas também cantou músicas do Ilê
Aiyê. Também surgiu concebendo-se como bloco afro.
Em seu primeiro desfile, em 1975, o Ilê Aiyê também saiu com instrumentos de
afoxé, embora não fosse a totalidade deles, cantando composições próprias, mas também
“música de terreiro” em ritmo de candomblé21. Não havia, nesse momento, outro bloco no
qual se espelhar para se dizer se era ou não era um bloco afro. Aliás, como já foi observado
anteriormente, o termo “bloco afro” nem existia. Mas havia afoxés e o Ilê Aiyê não queria
ser mais um afoxé. O que havia era o desejo de ser “apenas um bloco original”, como o Ilê
Aiyê se auto-qualificou em seu primeiro cartaz convidando as pessoas para o bloco.
Também já havia referências à África: uma foto de pessoas caminhando numa rua de
Lagos, Nigéria, e a frase “São os africanos na Bahia” (Agier 2000:72). Contudo, no
segundo ano de desfile, esse desejo ficou muito mais claro e as referências à África foram
mais marcantes. Numa ótima conversa num fim de tarde no quintal da casa de D. Ilza em
que músicas do Lê-guê Depá e do Miny Kongo foram lembradas e cantadas, alguns de seus
filhos, ex-componentes de ambos os blocos, explicaram que além dos instrumentos e do
ritmo, uma diferença importante entre bloco afro e afoxé é que a referência do primeiro são
as “coisas da África” – “histórias da África, indumentárias da África, povos da África”.
Eles disseram que no início dos blocos afro, a “África” era sempre o tema dos desfiles, das
roupas, das músicas. Gomes (1989:180) aponta a “ênfase aos temas ‘africanos’” como a
principal característica da “reorientação estética” do carnaval baiano provocada pelos
blocos afro, “revelando uma mudança de comportamento da juventude negra baiana em
torno da construção e valorização de determinados símbolos de identidade étnica que
21 O ritmo ijexá ainda hoje é a base da batida do Ilê Aiyê.
180
tinham como inspiração o continente e a cultura negra africanos”22. Era o movimento de
reafricanização.
Não cabe aqui ‘bater o martelo’ a respeito da polêmica sobre o primeiro bloco afro
de Ilhéus, nem mesmo haveria argumentos suficientes para isso, como espero ter
demonstrado. Mas vale ressaltar que ‘ser bloco afro’ era desejo do Miny Kongo, do Lê-guê
Depá e do próprio Ilê Aiyê, e foi esse desejo que criou tudo. Porque o desejo é a base de
criação de qualquer coisa, é o que gera fluxos que se encontram, que se agenciam e
inventam a vida. Como dizem Deleuze e Guattari (1996:98): “um fluxo é sempre de crença
e de desejo. As crenças e os desejos são o fundo de toda sociedade (...)”.
Um pouco do Carnaval em Ilhéus
Para se fazer um histórico do carnaval em Ilhéus, seria preciso realizar uma
pesquisa sobre o tema, tarefa mais apropriada para um historiador. Além disso, não há nem
mesmo uma bibliografia sobre o assunto e informações sobre o carnaval antigo da cidade
estão espalhadas em pouquíssimas obras23. No entanto, como já foi observado
anteriormente, dado que a relação que os fundadores dos primeiros blocos afro tinham com
o carnaval foi mais um fator que concorreu para seu envolvimento com eles, melhor
dizendo, para a produção do desejo de formar um bloco afro, é preciso dar ao leitor alguma
noção do que era o carnaval ilheense anterior e concomitante ao início dos blocos. Essa
‘noção’, que também é a minha, foi formada a partir de comentários das pessoas com as
quais trabalhei conjugados com informações encontradas em outras fontes. E assim são,
em geral, os dados etnográficos: eles são ouvidos, vistos, lidos, mastigados, digeridos,
‘introjetados’, amalgamados e, depois de tudo, transformam-se em ‘idéia’, em ‘noção’, que
22 A temática dos blocos passou por modificações, especialmente por causa do Olodum, que começou aenfocar outros temas, como a história da população negra no Brasil ou outros locais externos à África Negra,como Cuba, Egito e Madagascar, respectivamente nos carnavais de 1986, 1987 e 1988 (Gomes 1989:183;185).
181
é o que se diz sobre um objeto ou o que fundamenta tudo o que se diz. Mas apresentar os
‘dados’ é um recurso para facilitar a transmissão da ‘idéia’. Por isso, na medida do possível
e de maneira, obviamente, sintética, recorrerei a informações advindas dos comentários das
pessoas, mas também de jornais e da pouca bibliografia disponível para descrever o que sei
sobre o carnaval de Ilhéus.
Como contam Campos (1981[1937]) e Vinháes (2001), em Ilhéus, o carnaval
começou a ser comemorado no final do século XIX. Não há muitas informações além de
nomes de entidades e de personalidades da cidade que participavam desta ou daquela
agremiação e, obviamente, os autores estão se referindo ao carnaval de elite. Uma
informação interessante dada por Vinháes (:312) é que em 1950 Pedro Farias criou o afoxé
Filhos da África, o qual teria existido até 1970. Vinháes ainda escreve sobre o carnaval de
Ilhéus por mais quatro páginas e chega até o carnaval de 1999, mas o de Pai Pedro é o
único afoxé citado por este autor. Além de Vinháes, também Carilo em sua entrevista a
mim e Échio Reis em entrevista a Borges (2002:32) comentam sobre a beleza e a
admiração que tinham pelo afoxé de Pai Pedro. Já alguns filhos de D. Ilza disseram que
preferiam o Filhos de Xapanan, que sempre passava pela Conquista. Hoje quase não há
afoxés na cidade. Existe o afoxé Filhos de Ogum que é filiado ao CEAC e “um ou dois
ainda desfilam de vez em quando”. Mas nem sempre foi assim. A decadência dos afoxés,
assim como das escolas de samba de Ilhéus e dos blocos de arrasto mais tradicionais, foi
um processo da década de 80.
No carnaval de 1981, foram nove os afoxés que desfilaram24. Ao longo dos anos,
este número foi diminuindo. Por não serem registrados, os afoxés não recebiam
financiamento público, como as escolas de samba e os blocos. A falta de recursos tornava a
presença de vários deles na Avenida algo intermitente. Em 1987, segundo matéria
23 Ver, por exemplo, Barbosa 1994, Campos 1981, Borges 2002 e Vinháes 2001.
182
publicada no Diário da Tarde de 27/02 do mesmo ano, apenas dois afoxés desfilaram. E,
dez anos depois, novamente apenas dois se filiaram ao CEAC, justamente o Filhos de
Ogum, que desfila até hoje e o Filhos de Xapanan, que desfilou pela última vez em 1998.
Os jornais da década de 80 também mostram o fim das escolas de samba e de
muitos blocos de arrasto. As escolas de samba de Ilhéus são dos anos 60 e “não deixavam
nada a dever para as do Rio de Janeiro”, foi o que ouvi mais de uma vez em Ilhéus. Borges
(2002) diz que nos primeiros anos da década de 60 “a sociedade de Ilhéus brindava as
notícias da imprensa: o terceiro melhor carnaval do país.” (:25). Talvez haja um certo
exagero nessas declarações, mas o fato é que nessa época o modelo de carnaval era o do
Rio de Janeiro25 e as escolas de samba ilheenses despertavam paixões nos foliões, havendo
uma grande rivalidade entre elas. Interessante notar que seus nomes eram os de suas cores.
As mais conhecidas escolas de samba de Ilhéus foram a Azul e Branco, a Verde e Branco,
a Vermelho e Branco, a Amarelo e Branco e a Amarelo e Azul, além da Escola de Samba
do Pontal (Vinháes 2001:312).
Matérias publicadas no Diário da Tarde de 1985 mostram uma tendência do
carnaval da Bahia que em Ilhéus certamente contribuiu para o fim das escolas de samba e
dos afoxés. Começava o reinado do trio elétrico, embora eles já fizessem parte da festa
desde a década de 70 (Borges 2002:36). No dia 14/02/85, havia uma nota falando sobre o
descontentamento de várias agremiações carnavalescas em relação à política de carnaval
do Departamento de Turismo Municipal, mais exatamente sobre os recursos
disponibilizados. Por isso, as escolas de samba – aquelas que ainda desfilavam, mas não
diz quais – e alguns blocos de arrasto não desfilariam nesse ano, “em solidariedade às
escolas de samba”. Já no dia 21/02, depois do carnaval, a manchete estampada na primeira
24 Incluindo o Lê-guê Depá, registrado como afoxé pelo Diário da Tarde, de 10/03/81.25 Gomes (1989:172), referindo-se a Salvador, também diz que “durante toda a década de 60 e início dos anos70, o modelo de carnaval carioca exerce grande influência nos festejos baianos”.
183
página do Diário da Tarde é “Para a maioria, o carnaval foi decepcionante”. Segue, então,
uma matéria esclarecendo o “real motivo” do desentendimento entre as escolas de samba e
a prefeitura. Segundo o jornal, as escolas de samba pediram 15 milhões de cruzeiros e,
embora não houvesse uma recusa na cessão do dinheiro, o diretor do Departamento de
Turismo teria feito declarações de ofensa às escolas dizendo que “elas queriam mesmo era
comercializar com o dinheiro da prefeitura”. Entretanto, continua a matéria, naquele ano a
prefeitura pagou cento e cinqüenta milhões de cruzeiros para o trio elétrico de Baby e
Pepeu, além das despesas com sua comitiva, de dezessete pessoas, inclusive seus filhos,
babás e a mãe de Baby. O jornal diz também que no ano anterior, a prefeitura pagou “uma
fortuna” ao trio de Dodô e Osmar, “o que só serviu para fazer Jabes” – então prefeito –
“aparecer no Jornal Nacional”. Na década de 90, serão os trios da própria cidade e os
“blocos de branco” que competirão com os blocos afro, mas este assunto será abordado
adiante.
Além dos afoxés e das escolas de samba, os blocos de arrasto faziam muito sucesso
em Ilhéus. Até o início da década de 80, eles desfilavam no ‘horário nobre’ e competiam
entre si. O apoio do governo municipal era fundamental para a organização dessas
agremiações, como ainda é. Dois prefeitos, em especial, são sempre destacados nessa
relação entre o poder público, bem corporificado na pessoa do prefeito, e os blocos de
carnaval. Um deles era Herval Soledade. Borges (2002:24) comenta sobre o grande
incentivo ao carnaval popular que ele deu em sua primeira gestão (1955-59). Para ela,
atitudes populares como a promoção do carnaval popular e o “natal dos bairros” teriam
favorecido sua reeleição em 1963. Vale a pena reproduzir aqui uma fala de Herval
Soledade que consta de seu trabalho:
“... O povo não deve apenas pagar impostos, disse eu várias vezes,quando censurado e chamado de louco, baderneiro e batuqueiro, porpatrocinar o carnaval, ajudar os foliões, promover concursos e enfeitara cidade. É dever do poder público promover meios a que o povo
184
alegre o espírito e esqueça, por três dias em cada ano que seja, osseus sofrimentos e as suas finalidades [sic]. E assim procedi,atendendo a minha consciência e o desejo popular” (grifo meu).
Naquela época, apresentar-se para o prefeito, “era uma tradição”, que já “deixava
uns barris de chope, comida....” para os blocos, é o que “contam os mais velhos”, segundo
o presidente do Dilazenze. Essa “tradição” também acontecia nos tempos de Ariston
Cardoso, ex-prefeito de Ilhéus (1973-76). Todos os blocos que iriam desfilar tinham de ir
até sua casa, na Conquista. Até hoje os Pauzinhos se apresentam em frente à casa de
Ariston Cardoso antes de seguirem para o desfile na Avenida. D. Ilza conta que alguns
blocos também iam até o terreiro para se apresentar para D. Roxa, sua mãe.
Vários blocos de arrasto e “de sujo” continuam desfilando ainda hoje, mas não há
mais competição entre eles, que costumam passar pela Avenida à tarde e entre um bloco
afro e outro. O ‘horário nobre’ agora é dos blocos afro, embora seus dirigentes não o
considerem tão nobre assim, pois o melhor horário, “quando a rua está mais cheia”, fica
reservado para os shows de palco ou para os trios elétricos.
A respeito do movimento negro de Salvador, conforme foi observado no Encontros
1, é dito que os afoxés e os blocos de índio, estes últimos surgidos na década de 60, foram
precursores dos blocos afro, pois essas entidades reuniam a população negra e moradora da
periferia da cidade. Em Ilhéus não havia blocos de índio. Eram os grupos de maculelê que,
ao lado dos afoxés, agregavam especialmente rapazes negros, moradores de bairros
periféricos e mostravam ritmos, instrumentos e danças afro-brasileiras na Avenida. Além
do grupo de maculelê Embaixada Gêge Africana, os Pauzinhos da Conquista, que ainda
hoje desfila no carnaval e é filiado ao CEAC, havia um outro grupo famoso em Ilhéus, o de
Cabo Jonas, que saía do Pontal. Os filhos mais velhos de D. Ilza eram foliões dos
Pauzinhos – ‘Seu’ Jurassi, dirigente do grupo, é um dos ogãs mais antigos do Terreiro
Tombency – e lembram da rivalidade que havia entre os grupos. Houve uma época em que,
185
terminado o desfile, a polícia recolhia os “pauzinhos” e se pegasse alguém portando um
bastão, a pessoa seria presa. O encontro dos dois grupos sempre terminava em “uma briga
arretada”: “Eles cantavam ‘cana via, pegou fogo, é de vera...’. Quando falava ‘é de vera’,
aí o bicho pegava”, conta um ex-folião.
O carnaval de Ilhéus da década de 80 foi marcado pela quase extinção das escolas
de samba, pela diminuição do número de blocos de arrasto, pelo enfraquecimento do
‘carnaval de rua’ e, numa direção contrária a tudo isso, pelo recrudescimento do
movimento afro-cultural.
Em 1981, houve a estréia do Lê-guê Depá. Em 1982 desfilaram este último e o
Miny Kongo. O mesmo aconteceu nos dois anos seguintes. Em 1985, no “Carnaval da
Democracia”26, uma homenagem ao fim da ditadura militar com a posse de um presidente
da República civil, dois novos blocos afro estrearam na Avenida: Axé Odara e
Embaixadores da África (que só desfilou este ano). Em 1986, desfilaram Lê-guê Depá,
Miny Kongo, Axé Odara e o estreante Zimbabuê. O “Carnaval da Vitória”, em 1987 – uma
homenagem à vitória de Waldir Pires nas eleições ao governo do Estado de 1986 (Diário
da Tarde 17/02/87) e do qual Jabes viria a ser secretário do Trabalho em 1989, para em
1990 se eleger deputado federal (Goldman 2001:61) – foi o primeiro ano de desfile de três
novos blocos: Dilazenze, e Os Gangas, totalizando sete concorrentes. A partir de então, o
número de blocos afro cresceu, embora nem todos tivessem sempre condições de desfilar.
O início da década de 90 é considerada a melhor época para os blocos afro: muitas
apresentações de suas bandas nos hotéis e bares da cidade, além de haverem se tornado a
principal atração do carnaval de Ilhéus. Em 1993, o Diário da Tarde registrava que seriam
nove blocos afro desfilando. Entretanto, na gestão de Antônio Olímpio (1993-1996), os
26 Em cada ano, a comissão de carnaval da prefeitura escolhe um tema para ser trabalhado nas chamadas depropaganda turística para o carnaval, assim como nos adereços que enfeitam o local do desfile e as principais
186
blocos afro também sofreram com a falta de investimento no carnaval por parte do governo
municipal. Em 1994, o carnaval foi transferido da Avenida Soares Lopes, no Centro, para a
Avenida Litorânea, no Malhado. A mudança de endereço do local de desfile e do carnaval
de rua, de maneira geral, foi para evitar danos à recém reurbanizada Soares Lopes, embora
algumas pessoas digam que isso ocorreu para atender a pedidos de moradores da área, a
mais ‘nobre’ da cidade, que não queriam “conviver com o carnaval”, com “o povo em suas
portas”. Neste ano, o Diário da Tarde ainda registra o desfile de dez blocos afro, situação
que mudaria radicalmente no ano seguinte, quando os recursos destinados a auxiliar o
desfile dos blocos deixaram de existir. Em 1995, somente o Rastafiry desfilou na Av.
Litorânea, enquanto o Dilazenze se apresentou no distrito de Olivença, ambos como
levadas, ou seja, com poucos instrumentos e sem alegorias, “só de camisa”. Este também
foi o primeiro ano do “carnaval antecipado”, uma ‘criação’ da prefeitura de Itabuna
imitada pela de Ilhéus. Ele acontecia em janeiro porque se tornava mais viável trazer para a
cidade os grandes trios elétricos e artistas de Salvador, que cobravam muito caro para
saírem da capital na época do carnaval. Em 1996, o carnaval antecipado foi ‘privatizado’, o
que significa dizer que essas atrações eram contratadas pelos blocos de trio da cidade. Era
o “carnaval comercial”27. Neste ano, desfilaram Dilazenze, Rastafiry e Miny Kongo,
novamente apenas “de camisa”, pois nestes dois últimos anos do governo Antônio
Olímpio, os blocos não receberam qualquer auxílio da prefeitura. Os anos de 1994, 1995 e
1996, quando a festa foi realizada no Malhado e, especialmente os dois últimos anos,
quando não houve “carnaval de verdade”, são considerados os piores carnavais de Ilhéus
na opinião dos dirigentes dos blocos.
ruas da cidade. É interessante notar que o tema escolhido para 1985, assim também como o de 1987 (o de1986 não foi possível saber), refletem posições políticas assumidas pelo então prefeito Jabes Ribeiro.27 Maiores detalhes sobre motivações e percepções a respeito da introdução dos dois carnavais em Ilhéus,além de uma boa descrição destes, podem ser obtidos em Menezes 1998.
187
De 1997 a 2001, Ilhéus teve dois carnavais28: o “carnaval antecipado”, chamado de
“Ilheus Folia”, e o “carnaval cultural” ou “oficial”. No primeiro ano da nova gestão de
Jabes Ribeiro, em 1997, o carnaval voltou para a Avenida Soares Lopes. Além de manter o
carnaval antecipado, o governo municipal investiu na reativação do carnaval propriamente
dito, ao que chamou de “carnaval cultural”. Para tanto, ele buscou os grupos ainda
existentes, praticamente apenas blocos afro, e lhes deu algum recurso para o desfile, que
não foi ainda nos moldes da década de 80, com carros alegóricos e fantasias, mas foi um
recomeço. O carnaval desse ano foi chamado de “Carnaval do Resgate”. Fica fácil
entender o título a partir de uma propaganda do governo municipal em jornais locais
reproduzida por Menezes (1998:88):
“O carnaval mudou tanto, que este poderia até ser chamado decarnaval fora de época. Aqui em Ilhéus, a cultura ainda é viva e vocêvai brincar de uma maneira contagiante e envolvente, como se faziaem outras épocas. O carnaval cultural de Ilhéus representa o resgate demanifestações próprias da cidade. Nele, a tradição se mistura comblocos afro, trios elétricos, afoxés, blocos de trio, de percussão e dearrasto. Venha viver a espontaneidade e o carisma do povo de Ilhéus ereviver os carnavais de pierrôs, colombinas, palhaços e mascarados,culminando com um apoteótico banho de mar à fantasia.”
O carnaval cultural e, em função dele, o estímulo à reorganização dos blocos afro –
e com o tempo também dos blocos de arrasto, que no carnaval de 2002 já eram em torno de
dezesseis filiados à Ilheustur – provocou também a reestruturação do Conselho de
Entidades Afro-Culturais em 1997, pois o governo municipal insistiu que a partir do ano
seguinte não negociaria mais com cada uma das entidades, apenas com o Conselho. O
processo de re-fundação do CEAC merece uma análise aprofundada, que ficará para
adiante. O que importa registrar agora é que no momento de rearticulação das entidades
carnavalescas locais, apenas os blocos afro estavam em condições de se apresentar.
28 A título de curiosidade, esta não foi a primeira vez que Ilhéus teve ‘dois’ carnavais. Campos (1981[1937]:504) conta que havia um “segundo carnaval” chamado “Mi-Carême”, uma festa “mais popular” doque o carnaval, cuja “duração estende[ia]-se do sábado de aleluia até a sexta-feira de Páscoa, às vezes”. Era
188
Segundo o presidente do Dilazenze, isso só aconteceu devido à estrutura permanente do
bloco afro, diferente das demais entidades carnavalescas: “Já tinha estrutura, por exemplo,
não saía no carnaval, mas tinha um grupo de dança funcionando, tinha uma bateria, uma
banda fazendo show. E as escolas de samba e os outros blocos não tinham isso, só
apareciam no carnaval”. Além disso, na maior parte dos casos, “o pouco patrimônio que
[os blocos] tinham foi mantido, como os instrumentos”.
Em 1998, dos quinze grupos afro filiados ao CEAC, apenas dois não desfilaram.
Em 1999, voltaram a acontecer os concursos entre os blocos afro e assim se segue desde
então. Em 2002, o Ilhéus Folia deixou de ser realizado e o governo municipal, a terceira
gestão de Jabes Ribeiro (2001-2004), voltou a trazer trios elétricos para o carnaval cultural,
que neste ano teve a presença de doze grupos afro, além de blocos de arrasto, cantores e
bandas locais e atrações famosas de Salvador29.
Após discorrer superficialmente sobre o que tem sido o carnaval de Ilhéus das
últimas décadas até o momento, é preciso retomar a exposição dos diferentes fluxos que ao
se encontrarem, provocaram o surgimento do movimento afro-cultural. De todos os aqui
listados, talvez aquele a que se atribui maior importância seja a vinda para Ilhéus do ator e
dançarino Mário Gusmão.
Mário Gusmão
Quando fui a Ilhéus pela primeira vez, em 1997, ouvi falar de Mário Gusmão. Meu
trabalho não era exatamente sobre os blocos afro30 e em função do curto período de campo
de que dispunha, a história do movimento negro do município foi tratada muito
uma festa comum em todo o interior e certamente deu origem ao nome ‘micareta’, pelo qual são conhecidosos ‘carnavais fora de época’ que ocorrem em todo o país no estilo do carnaval de Salvador.29 Ver Anexo 5: “Quadro resumo da participação dos blocos afro nos carnavais de Ilhéus (1981-2004)”.30 Cf. Introdução.
189
superficialmente. Assim, em minha dissertação de mestrado (Silva 1998:89-90), pouco
escrevi sobre o ator. Apenas que:
“O fundador do Miny Kongo foi Mário Gusmão, ator, bailarino e ex-integrante do Ilê Aiyê de Salvador que havia se mudado para Ilhéus.Mário Gusmão foi evocado em diversas ocasiões como o ‘grandemestre dos blocos afro’, ‘o precursor do movimento negro emIlhéus’”.
Alguns anos depois, não creio que meu conhecimento sobre Mário Gusmão tenha
se ampliado muito. Como sempre acontece, o período de campo pareceu curto para buscar
tantas informações diferentes e no caso dele, penso, seria interessante uma pesquisa que o
tivesse como foco central. Todavia, o aprofundamento da pesquisa na direção da história
do movimento negro em Ilhéus proporcionou-me conhecer um pouco mais de sua
passagem pelo município, o que é suficiente para, a partir das novas informações,
enfatizar, relativizar ou acrescentar outras àquelas dadas em 1998. É preciso dizer que
essas ‘novas’ informações não são fruto somente do trabalho de campo. Dois textos de
Jeferson Bacelar (2001 e 2003)31 e um ou outro comentário do próprio Mário Gusmão
colhido em Risério (1981) ajudaram muito a entender melhor o que se diz a seu respeito
em Ilhéus.
Mário Gusmão nasceu no município de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, em 1928.
Bacelar (2001) conta que ele era de família pobre, mas em função das relações de trabalho
de sua mãe e de sua avó com as “senhoras de sociedade” (:161), Mário pôde estudar em
escolas particulares, “de branco” (:164). Ele cresceu “junto aos candomblés” em
Cachoeira, mas “jamais se incorporou à religião afro-brasileira” (:166). Em meados dos
anos 40, Mário foi morar em Salvador com sua família. Relatando sobre seus primeiros
empregos na capital, Bacelar diz que ele era auto-didata em inglês e, por isso, conseguiu
31 Sou grata a Jeferson Bacelar por ter, tão gentilmente, enviado a mim o Capítulo VII de sua tese dedoutoramento em Ciências Sociais intitulada “Mário Gusmão. Um príncipe negro nas terras dos dragões damaldade”, defendida recentemente na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federalda Bahia, Salvador.
190
um emprego numa “empresa americana” (:170; 175). Essa informação é relevante porque o
conhecimento de inglês é um dos elementos que compõem a imagem mais recorrente de
Mário Gusmão em Ilhéus como pessoa “experiente”, “inteligente”, “que até morou fora do
país”, o que de fato não aconteceu. As aulas de inglês que dava em Ilhéus são sempre
citadas como sua forma de ter renda na cidade e também de ser conhecido.
Bacelar também informa que Mário Gusmão foi o primeiro negro a ingressar na
Escola de Teatro da UFBa, o primeiro curso de teatro de nível superior do país (:174). Em
1959, um grupo dissidente da Escola de Teatro fundou o “Grupo dos Novos”, ao qual
Mário Gusmão viria a se integrar pouco tempo depois32. Em 1964, esse mesmo grupo
fundou o Teatro Vila Velha, ícone do Tropicalismo por ter sido o palco do início das
carreiras de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e Tom Zé, entre
outros (:176).
Mário Gusmão tornou-se um ator famoso e consagrado: participou de inúmeras
peças de teatro e de vários filmes, especialmente de Glauber Rocha (:177). Mas em 1973,
passou cinqüenta dias na prisão por ter sido encontrado com uma grande quantidade de
LSD (:179). Deprimido, viveu um período de isolamento, até que, em meados da década de
70, voltou a trabalhar com o apoio de Clyde Morgan, dançarino negro americano, professor
da Escola de Dança da UFBa (Bacelar 2003:238) que, segundo Bacelar, foi quem
introduziu Gusmão “na riqueza da cultura africana e afro-brasileira”, que o fez “descobrir a
sua condição racial” (2001:180-1). Ele e Morgan atuavam no grupo de dança do Núcleo
Cultural Afro-Brasileiro. Além disso, como ressalta Bacelar, Mário Gusmão vivenciava de
perto o movimento político e cultural negro que se iniciava na década de 70 em Salvador, a
fundação do Ilê Aiyê, do MNUCDR (Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação
32 Entre os fundadores desse grupo estava Échio Reis, que faleceu em Ilhéus em 2000. Em 1997, em minhaprimeira visita à cidade, ele trabalhava para a Fundação Cultural e dirigia um grupo de teatro, tendo noelenco sob sua direção militantes do movimento negro chamado ‘político’.
191
Racial), bem como os processos de independência dos países africanos e o movimento
negro americano (:181).
Em 1977, Mário Gusmão fez parte da delegação que foi representar o Brasil no II
Festival Mundial de Artes e Culturas Negras, em Lagos, na Nigéria. A viagem durou
menos de um mês (Bacelar 2003:247-8), mas em Ilhéus, para algumas pessoas, ela durou
anos, o que também valoriza e dá mais ‘autoridade’ a ele no que diz respeito ao seu
conhecimento sobre “a África”. Nessa época, embora Mário Gusmão ainda não fosse
militante ativo do Ilê Aiyê – segundo Bacelar, Mário Gusmão envolveu-se com o Ilê Aiyê
entre 1979 e 1980 (:257) – ele era amigo de Macalé dos Santos, dançarino e fundador do
grupo, e ambos trouxeram dessa viagem modelos de roupas, informações, objetos e outras
coisas que ajudaram a produzir o desfile do Ilê Aiyê quando o bloco homenageou a Nigéria
em 1979 (Risério 1981:42). Aliás, depoimentos de Gusmão estão espalhados por todo o
livro de Antônio Risério, com informações e opiniões sobre o movimento negro de
Salvador na década de 70, especialmente sobre o Ilê Aiyê.
Em 1981, Mário Gusmão estava morando numa região pobre de Salvador, estava
sem trabalho e não conseguia alunos para as aulas de inglês (Bacelar 2001:182). Com a
ajuda de Jorge Amado foi contratado pela prefeitura de Ilhéus no início daquele ano. Isso
aconteceu graças a uma carta de Jorge Amado ao então prefeito Antônio Olímpio (Bacelar
2003:246)33.
Gusmão foi contratado pela prefeitura com variadas funções. Como professor, ele
deveria “desenvolver atividades culturais nos colégios, ali formando grupos de teatro, de
dança e corais” (Bacelar 2001:182). Mas Bacelar também informa que ele foi “designado
para prestar serviços como auxiliar da Coordenação dos festejos do Centenário da Cidade”
33 Mário Gusmão disse a Bacelar que “pela amizade que Jorge Amado lhe devotava e para auxiliá-lo, exigia asua presença nos filmes adaptados de seus romances” (2003:246).
192
(2003:263)34. Diz ainda que ele foi professor de inglês da prefeitura. Além disso, sabe-se
em Ilhéus que ele foi professor da Academia Raiz – onde desenvolveu o trabalho de dança
que deu origem ao Miny Kongo – e montou alguns espetáculos na cidade. Em 1983, Mário
Gusmão assumiu um cargo importante no departamento de Cultura de Itabuna, na gestão
de Ubaldo Dantas (:264).
Enquanto esteve na região cacaueira, os trabalhos como ator foram poucos, mas
importantes. Ele atuou em um filme, uma mini-série e uma novela. Em 1987, Mário
Gusmão retornou a Salvador, onde permaneceu até falecer em 1996 (Bacelar 2001:182).
Quando Mário Gusmão chegou em Ilhéus, em fevereiro ou março de 1981, seu
primeiro endereço foi o Oiteiro de São Sebastião. Para lá, ele levou consigo o reconhecido
e prestigiado ator que era, mas não apenas isso, era ator e era negro, “uma das figuras mais
queridas e respeitadas da comunidade negromestiça baiana”, assim o apresenta Risério
(1981:19); levou também o dançarino, especialmente de dança afro, da dança dos orixás,
muito interessado em ‘cultura’; levou a experiência da viagem à Nigéria, de ter conhecido
pessoalmente a África, ‘fonte de inspiração’ das roupas, das músicas, dos cabelos, dos
discursos de boa parte da juventude baiana no auge do movimento de ‘reafricanização’;
levou o militante que participava de reuniões com o movimento negro político de
Salvador; e, entre muitos outros, levou o ex-integrante do Ilê Aiyê, considerado “uma
espécie de consultor para assuntos artísticos, afro-brasileiros e africanos”, diz Vovô,
presidente do Ilê, em depoimento a Bacelar (2003:257-8). No mesmo ano em que chegou
em Ilhéus, Mário Gusmão foi jurado na Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, ajudou a
fundar um afoxé em Salvador e viajou com este grupo para a Serra da Barriga, em
Alagoas, em homenagem a Zumbi dos Palmares (:259).
34 Outros atores e atrizes conhecidos nacionalmente também foram convidados pela prefeitura com o mesmopropósito.
193
No Oiteiro de São Sebastião, Mário Gusmão encontrou “um movimento”, como
disse Luiz Carilo: encontrou um bloco afro recém-fundado, que era mais um desejo do que
um fato; encontrou jovens que haviam visto e/ou desfilado em blocos afro na capital e que
admiravam o Ilê Aiyê; encontrou nesses mesmos jovens a vontade de valorização da
África e da ‘negritude’; encontrou uma relação forte das pessoas, da comunidade, com o
carnaval – a Escola de Samba Vermelho e Branco, do Oiteiro, ainda desfilava e era uma
das mais importantes de Ilhéus; encontrou pelo menos uma pessoa ligada a candomblé,
Atanagildo, que naquele momento já era liderança do bloco.
Ao que Mário Gusmão levou para Ilhéus e para o Oiteiro e ao que encontrou por lá,
podem ser acrescentadas as condições, que talvez possam ser chamadas de ‘práticas’, que,
em maior ou menor medida, a depender do interlocutor, contribuíram para a formação do
Miny Kongo. É preciso lembrar mais uma vez que essas ‘condições práticas’ são pensadas
neste trabalho também como fluxos que participaram dos agenciamentos que produziram o
início do movimento dos blocos afro em Ilhéus.
A disponibilidade de Mário Gusmão para desenvolver atividades culturais em
Ilhéus, dada pelo tipo de contrato que tinha com o governo municipal, é ressaltada
especialmente por pessoas que, embora reconheçam sua importância para o movimento
negro ilheense, desejam minimizá-la. Essas pessoas encontram-se em uma luta discursiva
pela memória do movimento, por prestígio e pelo que possa advir dele. Mário Gusmão
acaba por fazer parte da mesma contenda que Carilo e Atanagildo protagonizam sobre o
primeiro bloco afro de Ilhéus: se cada um desses últimos reivindica para si a iniciativa do
primeiro bloco afro, então, Mário Gusmão não pode ter o título de ‘precursor’ do
movimento. Ambos, em suas entrevistas a mim, chamaram a atenção para o papel que
Gusmão deveria desempenhar na cidade como promotor de grupos culturais. Para Carilo, a
formação do Miny Kongo era parte de seu trabalho: “Ele recebia um salário da prefeitura
194
(...). Então, o deles [Miny Kongo] era como se fosse financiado pelo governo. Ele tinha
direito a casa, comida e roupa lavada. Ele estava em Ilhéus para isso”. Atanagildo,
obviamente, não compartilha da opinião de Luiz Carilo. Porém, argumenta que o Miny
Kongo já existia e que a relação de Mário Gusmão com o grupo era de trabalho.
Outra ‘condição prática’ favorável foi o tipo de relação que Atanagildo foi capaz de
estabelecer com o governo municipal, que lhe proporcionou a obtenção da verba necessária
para o desfile do grupo em 1982. Também pelas mãos de Atanagildo vieram os primeiros
instrumentos, tanto aqueles que ele tomou emprestados com Pai Pedro graças à sua relação
com o terreiro, quanto aos demais, principalmente os de percussão, comprados com seu
próprio salário, segundo conta. Sua relação com o então candidato Jabes Ribeiro, que doou
os tecidos para o primeiro desfile do bloco, também pode ser contabilizada aqui.
A aproximação de Mário Gusmão da Academia Raiz também foi de suma
importância em função de ter ocorrido nesse espaço a gestação do grupo de dança afro, o
núcleo do Miny Kongo e, mais tarde, do Axé Odara. Para Missião um dos fundadores do
Miny Kongo que participava do grupo, foi aí que “tudo começou para os blocos afro de
Ilhéus”:
“Mário Gusmão nos levou para a Academia Raiz e lá fizemos umtrabalho de grupo, fizemos um trabalho de palco; ele nos davaorientações de teatro, de dança. Inclusive o Miny Kongo tinha seupróprio grupo de dança e de espetáculo. Fazia show em tudo que écidadezinha por aí”.
Quando saiu do Miny Kongo em 1984 e levou consigo seu grupo de dança para
fundar o Axé Odara – embora no estatuto de fundação do grupo não conste seu nome –
Mário Gusmão já não morava no Oiteiro, mas num sítio afastado da cidade, que o deixava
mais próximo de Itabuna, onde estava trabalhando.
As características mais marcantes do Axé Odara – ser mais um grupo de teatro do
que um bloco afro e ser mais politizado no que concerne à questão racial – parecem revelar
195
uma influência ainda maior de Mário Gusmão do que a que se via no Miny Kongo. Em
1985, primeiro ano de desfile do grupo, estava em cartaz o show “África Presente”,
dirigido por Mário Gusmão e montado pelo Axé Odara. No jornal Diário da Tarde de
15/02 do mesmo ano, há uma nota – provavelmente a reprodução de um release feito pelo
grupo – que informa sobre o enredo do Axé Odara: “Moçambique, 9 anos de
Independência”. Diz também que “a proposta da negrada do Axé, que participa
intensamente do movimento negro ilheense, é levar para a avenida o espetáculo que o
grupo tem levado aos palcos das cidades da região cacaueira” e que a escolha do enredo
tem a ver com a vontade do grupo de “manifestar-se pela valorização da raça negra” e que
“Moçambique é símbolo de resistência negra na luta pela liberdade e contra a
discriminação racial”. Foi o Axé Odara que pela primeira vez em Ilhéus debateu e
manifestou-se contra a comemoração da Abolição da Escravidão em 13 de Maio35 e
comemorou o Dia Nacional da Consciência Negra. Nessa ocasião, o nome do grupo
divulgado pelo jornal foi “Comando Negro do Sul da Bahia Axé Odara”, que transmite
uma idéia politicamente mais agressiva em torno da questão racial. E dois anos depois, em
25/05/87, já sem a presença de Mário Gusmão, o jornal anuncia que o Axé Odara está se
“articulando para formar o MNUI” (Movimento Negro Unificado de Ilhéus), a ser descrito
no próximo capítulo.
Comecei esta seção reproduzindo o que escrevi sobre Mário Gusmão na dissertação
de mestrado. Depois de acrescentar outras informações àquelas que escrevi, é preciso
concluir esta parte do texto ‘consertando’ o que foi dito na ocasião. Primeiro, que Mário
Gusmão não foi o fundador do Miny Kongo, mas um deles, ao lado de vários outros.
Segundo, que é possível relativizar seu título de “precursor do movimento afro em Ilhéus”,
35 Diário da Tarde 11 e 12/05/85: “(...) o grupo afro ilheense inicia hoje as comemorações contra a data 13 demaio...”; e em 20/11, o mesmo jornal divulga a programação do grupo para o Dia da Consciência Negra, queinclui espetáculo no Circo Folias da Gabriela e missa em homenagem à memória de Zumbi dos Palmares.
196
pois o desejo do movimento já existia antes de sua chegada. É claro que se ele “só fez o
seu trabalho” ou se “ele deu início a tudo. Foi a partir dele que tudo começou para os
blocos afro de Ilhéus”, é questão de ponto de vista. Em terceiro lugar, interessa enfatizar a
força de sua presença ainda hoje no movimento. As palavras mudam, mas a todo instante é
possível encontrar alguém do movimento afro-cultural de Ilhéus saudando-o como ‘o
grande mestre dos blocos afro’.
África e black power também em Ilhéus
Alguns outros movimentos que se tornaram importantes para o entendimento do
processo de reafricanização que ocorreu em Salvador também podem ser percebidos em
Ilhéus, ainda que com menor relevância e sem deixar de levar em conta que só sua
ocorrência na capital já afetaria a cidade.
Um deles é a intensificação de relações com países africanos, registrada, por
exemplo, na visita de ministros da agricultura da Nigéria, de Togo e de Camarões em 1968
ao terreiro de candomblé de Pai Pedro, um dos mais famosos da cidade (Barbosa 1994:49).
Em entrevista a Marcio Goldman36, em 1982, quando de seu trabalho de campo para sua
dissertação de mestrado, Pai Pedro falou dessa visita com orgulho, menos, talvez, por
serem ministros em seu terreiro, e mais por poder “conversar [com eles] normalmente”.
Além disso, segundo contou Pai Pedro a Goldman, posteriormente ele recebeu uma carta
do ministro da Nigéria dizendo-lhe que a língua ‘falada’ em seu candomblé era a mesma
língua de seus bisavós, língua já morta em seu país. Nessa mesma entrevista, Pai Pedro
disse ainda que vinha exercendo a função de intérprete da CEPLAC durante as visitas de
africanos, informações essas que legitimavam seu conhecimento de candomblé e que
36 A quem, mais uma vez, agradeço por disponibilizar alguns de seus dados para mim.
197
produziam o efeito de fazer com que um terreiro de candomblé em Ilhéus pudesse ser tão
ou mais ‘africano’ do que a própria África.
As informações de Pai Pedro aliadas às de Santos (2000) permitem supor que as
décadas de 60 e de 70 podem mesmo ter experimentado uma intensa presença africana em
Ilhéus. Como já observado em Encontros 1, Santos enfatiza os esforços de aproximação do
governo brasileiro em direção ao continente africano como forma de criar um bloco de
países do terceiro mundo, tendo o Brasil como líder, esforços esses apoiados sobre
‘afinidades culturais’ e sobre a imagem do país como exemplo de democracia racial. Além
disso, seja compondo alianças ou seja em disputa direta, a relação de Ilhéus e região com
os países africanos era intensa em função do cacau que, ainda segundo Santos, era “o ponto
suscetível entre o governo brasileiro e países africanos” nesse desejo de aproximação, pois
em fins da década de 60, esses últimos passaram a ser a grande ameaça e mesmo os
causadores de mais uma crise da economia cacaueira. A informação de Santos de que em
1968 houve a XI Conferência da Aliança dos Produtores do Cacau justifica a visita dos
ministros africanos a Pai Pedro (2000:40-1), o que deve ter ocorrido na cidade algumas
outras vezes37.
Apesar de ter ouvido poucas referências a esse movimento, é preciso registrar que
fluxos de black soul também atingiram e agitaram parte da juventude negra de Ilhéus.
Alguns dos filhos mais velhos de D. Ilza costumavam freqüentar os bailes da década de 70
e a ‘produção’ deles e dos amigos era toda feita em sua casa: sapatos “cavalo-de-pau”
lustrados e cabelos penteados com pente “ouriçador” – feito com cabo de madeira e pentes
de guarda-chuva velho – para deixá-los no estilo ‘black’ faziam parte dessa produção, é o
37 O cacau é responsável também por outro tipo de interação de Ilhéus com o continente africano, ainda quemais recente do que o período acima focalizado e que, muitas vezes, não chega a acontecer porque setransforma em tragédia. Em função da queda de produção do cacau brasileiro, as indústrias passaram aimportá-lo de países africanos. O produto chega pelo porto de Ilhéus em grandes navios que trazem em seusporões passageiros clandestinos que vêm de países africanos para o Brasil. O problema é que os gases tóxicos
198
que conta o presidente do Dilazenze, embora ele só pudesse observar o movimento, já que
não tinha idade para os bailes. E ‘vestígios’ da época ainda alcançaram o grupo, pois é o
que se pode deduzir do nome dado ao seu primeiro concurso de beleza, em 1986: “Garota
Black Dilazenze”. No ano seguinte, ele assume o nome de Noite da Beleza Negra, como o
Ilê Aiyê, e assim se mantém.
O “grupo de dança de clube” que também esteve na origem do Força Negra,
conforme já observado antes, é um outro exemplo desses mesmos agenciamentos. Embora
um pouco mais tardio, já no momento em que o black soul começava a ganhar os ares do
funk, no final dos 70, a organização em “grupo de dança” e a idéia de que se tratava de
“música de negro” refletia as propostas do movimento anterior.
À
Até o momento, este trabalho concentrou-se em apresentar como se deu o início do
movimento afro-cultural em Ilhéus, tendo sido este o propósito dos três primeiros
capítulos. Para que fosse possível entender o que aconteceu na cidade, o primeiro ‘relato de
encontros’ foi dedicado a mostrar os agenciamentos que promoveram o (res)surgimento de
uma série de fenômenos que acabaram por configurar a estética, o comportamento, a
música, as idéias que compuseram o que veio a ser chamado de reafricanização do
carnaval, de Salvador e da vida de parcela da juventude negra. Entre esses fenômenos estão
os blocos afro. Os fluxos que produziram mudanças na capital também atingiram Ilhéus e
com tanto mais força à medida que os fenômenos produzidos também criaram outros
fluxos que se agenciaram com outros tantos existentes na cidade. Os dois capítulos
seguintes visaram passar por processos sociais criadores desses fluxos, fossem eles
econômicos, históricos, políticos, culturais, religiosos etc.
produzidos pela fermentação das amêndoas de cacau fazem com que boa parte dessas pessoas cheguem
199
Os dois próximos encontros formarão, então, uma segunda parte da tese, cujo
objetivo, grosso modo, será apresentar o funcionamento do movimento dos blocos afro em
Ilhéus a partir de desejos de diferir, de incluir e de ser incluído, que correspondem a
agenciamentos que geram, respectivamente, modos de subjetivação negra, comunitária e
artística ou empresarial.
mortas à cidade. Não era raro ouvir esse tipo de notícia enquanto estive no campo.
200
Encontros 4
BLOCOS AFRO: SINGULARIZAÇÃO,TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS, TERRITÓRIOS NEGROS
“Novas práticas sociais, novas práticas estéticas,novas práticas de si na relação com o outro, com o
estrangeiro, como o estranho: todo um programaque parecerá bem distante das urgências do
momento!”(Guattari 1995)
Quando o Miny Kongo e o Lê-guê Depá surgiram em Ilhéus, fundados
respectivamente em 1980 e 1981, o movimento dos blocos afro de Salvador já havia
tomado corpo. Em fins dos anos 70, a Bahiatursa criou o termo ‘bloco afro’ e oficialmente
eles passaram a constituir uma categoria específica no carnaval, o que significou horário de
desfile diverso dos demais blocos, verbas e quesitos de julgamento próprios também.
Embora nem todos concordassem e esta fosse uma forma de “domesticar preventivamente
o fenômeno afrocarnavalesco” (Risério 1981:121) que começava a aparecer, isolar esses
blocos do conjunto dos blocos carnavalescos e classificá-los sob o adjetivo ‘afro’
certamente contribuiu para lhes dar a força de um ‘movimento’.
É certo que não foi o termo implantado pela Bahiatursa que deu essa especificidade
aos blocos afro. Já em seu primeiro desfile, em 1975, ao permitir que só pessoas negras
desfilassem, o Ilê Aiyê mostrou que os organizadores do bloco e seus primeiros
componentes partilhavam de uma outra visão de mundo distinta daquela que predominava
201
(e ainda predomina) na ‘sociedade brasileira’ ou na ‘sociedade baiana’ a respeito do que se
costuma denominar relação racial. A primeira conseqüência disso foram as acusações de
‘racismo’ feitas ao bloco por parte da imprensa1. O Ilê queria ser “um bloco original”,
como constava de seu primeiro cartaz de divulgação, e sua originalidade se manifestava no
uso de elementos – a indumentária, a música, o nome, os temas – que buscavam na
‘África’ sua inspiração: uma ‘África’ que passava por Lagos, na Nigéria, presente na foto
que ilustra o primeiro cartaz do bloco, mas que passava também pelo candomblé, do
Brasil, de onde vieram os primeiros instrumentos; enquanto o nome tinha origem
simultaneamente nas duas Áfricas: Ilê, presente no nome do terreiro da mãe de um dos
fundadores, e Aiyê buscado num dicionário de yorubá emprestado por um amigo iugoslavo
(Agier 2000:119 e Risério 1981:45)2. Na descrição dos agenciamentos que produziram o
surgimento do movimento dos blocos afro em Salvador (Encontros 1), pôde-se ver que
essa ‘outra visão de mundo’ e o desejo de ser ‘original’ foram gerados a partir de fluxos
que passaram por movimentos políticos, culturais, religiosos, musicais, econômicos etc.,
que ocorriam na África, nos Estados Unidos, na Jamaica, no Brasil...
O adjetivo ‘afro’ não tem, portanto, o mesmo sentido que ‘de sujo’, ‘de arrasto’, ‘de
trio’ ou de qualquer nomenclatura que sirva para categorizar um bloco de carnaval. Até
poderia ter, pois, em princípio, ele serviria para descrever que se tratava de um bloco
carnavalesco que se diferenciava de outros por utilizar um tal ritmo, uma tal forma de se
fantasiar, de privilegiar tais temas e alegorias. No entanto, dada sua vinculação a uma das
formas mais poderosas de estratificação – a racial –, o adjetivo ‘afro’ extrapola o carnaval
porque é mais do que uma designação de música ou de fantasias para um bloco
carnavalesco; ele marca distinções que vão muito além do momento do desfile. O adjetivo
1 Sobre a repercussão do primeiro desfile do Ilê Aiyê e as acusações de racismo, ver principalmente Gomes(1989), mas também Risério (1981).
202
‘afro’ marca uma diferença não somente daquele bloco, mas daquelas pessoas em relação a
outras e essa diferença não se restringe ao carnaval, ela pode se estender à vida, ao dia-a-
dia. É nesse sentido, então, que a etiqueta ‘afro’ imposta aos blocos pela Bahiatursa
participa da constituição de um movimento: ao identificá-los em torno de uma
característica comum, ela contribuiu para que os grupos se aglutinassem a partir de
objetivos também comuns, os quais passavam tanto pelo carnaval quanto pelo cotidiano,
pelo anseio de mudanças sociais, políticas, enfim, pela vida. Além de atividades conjuntas
entre os blocos afro e destes com outros setores do movimento negro, em Salvador, foram
geradas duas associações – a FEBAB e a ABAB3 – e em Ilhéus, os blocos afro se
organizaram no CEAC (ou CEACI, como a entidade era chamada de sua fundação até
1997), que será melhor apresentado adiante.
Um dos corolários da idéia de movimento é o de perenidade dos blocos. Como já foi
destacado antes, um bloco afro deve estar em atividade o ano inteiro e dizer que ele só
“aparece no carnaval” é uma forma de acusação. Um desdobramento disso é que os blocos
passaram a não se formar como grupos carnavalescos – ao menos não em seus estatutos –,
mas como ‘grupos culturais’, ‘associações culturais’ e outros termos semelhantes. Assim,
embora desfilar no carnaval continue sendo o principal motivador de constituição dos
blocos4, a atividade passou a ser mais uma de suas atribuições e, dependendo do contexto –
especialmente para pessoas externas ao movimento –, não é nem mesmo a mais
fundamental delas. Ao longo deste capítulo, serão apresentadas evidências etnográficas
para essa afirmação.
2 Ilê: “Denominação da casa de candomblé (...); casa”; Aiyê: “(...) mundo, terra, tempo de vida” (Cacciatore1977:148; 41).3 Cf. Encontros 1.4 Autores que escrevem sobre blocos afro em Salvador relacionam outras motivações para a criação dasentidades que serão discutidas no decorrer deste capítulo e do seguinte.
203
Os blocos afro surgiram no processo de emergência dos novos movimentos sociais
nas décadas de 60 e 70, quando a luta política deixou de ser exclusiva da esfera da
produção e se embrenhou em outros domínios da vida social, mostrando que a diferença de
classe não era a única existente nem a única que exigia mudança. A luta contra outras
formas de opressão tinha de passar inicialmente pela demonstração de sua existência, o que
só seria possível dando visibilidade às minorias e enfatizando as diferenças sobre as quais
estavam calcadas as relações de opressão. No caso da luta contra o racismo, “assumir a
negritude” através de tudo o que pudesse ser identificado com ‘cultura negra’ era a forma
de marcar a diferença5 e mostrar uma modalidade de opressão sofrida exclusivamente pela
população negra no Brasil. Dever-se-ia ser negro acima de tudo. O nascimento do Ilê Aiyê
se dá, então, no agenciamento de fluxos do movimento do black soul e do black power, do
reggae, das lutas de independência de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, da
valorização do candomblé, entre outros. Todos movimentos de ‘afirmação de negritude’. O
Ilê nasce, assim, como mais uma forma de expressar a singularidade de ser negro numa
sociedade que gosta de se conceber misturada e sem diferenças raciais, portanto, sem
racismo.
A essa postura dos movimentos sociais – lembrando que enfatizar a especificidade
era uma estratégia comum a todos os grupos minoritários – corresponde uma forma de
análise acadêmica que privilegia essa diferença, também considerando-a acima de tudo.
Assim, um outro corolário dessa posição de movimento negro defendida pelos blocos
reside no tipo de análise acadêmica que incide sobre eles, que faz com que não só a origem
dos grupos, mas também todas as suas práticas, sejam explicadas pela ‘tomada de
consciência’, ou não, de uma ‘identidade étnica’.
5 Cf. a argumentação presente em Encontros 1.
204
A proposta aqui não é negar que os blocos afro sejam grupos de pessoas que se
organizam a partir da identificação com temas que podem ser chamados de ‘raciais’ ou
‘étnicos’ ou ‘que têm origem na diáspora negra’... É claro que as pessoas pensam nisso.
Um dos objetivos desse novo ‘relato de encontros’ é mostrar através da etnografia que os
blocos afro se constituem em torno de dois aspectos fundamentais: carnaval e ‘cultura
negra’. Ambos são termos polêmicos. O primeiro porque às vezes é visto como um aspecto
secundário, até menor, do grupo; é como se, entre muitas outras coisas, os blocos se
organizassem para sair no carnaval. Ao contrário do que costuma parecer, essa é uma
definição central, um argumento importante para diversos posicionamentos dos grupos
frente às críticas que lhes são feitas. O segundo aspecto fundamental de definição dos
blocos afro é que eles são grupos de pessoas que, em geral, mas não exclusivamente6, são
classificadas e se auto-classificam como negras e estão organizadas em entidades que têm
como objetivos principais a ‘valorização’, a ‘preservação’ e a ‘divulgação’ do que é
concebido por elas como ‘cultura negra’.
Sem querer adotar uma visão legalista, o fato de ser essa a definição que consta da
maioria dos estatutos dos blocos deve ser levado em consideração. E isso acontece. Ainda
mais do que em relação ao primeiro aspecto – o de serem entidades carnavalescas – não há
discordâncias quanto ao segundo. No entanto, nas definições extraídas dos trabalhos de
pesquisa a respeito do tema, parece haver uma necessidade de um complemento para esta
segunda definição: valorizar, preservar e divulgar a ‘cultura negra’ não são objetivos que
se encerrem em si mesmos; é preciso que eles sejam seguidos de um ‘para’ ou um ‘a fim
de’ ‘aumentar a auto-estima da população negra’ ou ‘promover a consciência negra’ ou ‘a
cidadania’, ‘ocupar um lugar na sociedade’, ‘construir uma identidade cultural negra’,
6 Somente no Ilê Ayiê há essa exclusividade.
205
entre outros complementos de mesmo significado7. Apresentar a existência dos blocos afro
em função de seu objetivo de ‘valorização’ da ‘cultura negra’ como forma de luta contra a
dominação pela discriminação racial, aumentando a ‘auto-estima’, mostrando ‘o negro’
como ‘não inferior’, como ‘igual’ ‘ao branco’... é um discurso recorrente nos grupos e
entre os intelectuais que tratam do tema, além de ser o que torna possível a aproximação
entre os blocos afro e os grupos do movimento negro dito político, apesar de todas as
divergências ainda colocadas.
Contudo, parecem ser os intelectuais os que mais levam a sério esse discurso. Não
que ele seja falso, ou que os grupos não se julguem cumprindo esse papel ou ainda que os
militantes do movimento negro não acreditem no trabalho dos blocos afro. A questão é
que, para a maioria dos componentes dos blocos, termos como ‘auto-estima’, ‘cidadania
negra’ ou ‘consciência negra’ não são natural e primariamente constitutivos deles, ou seja,
eles não nasceram para isso, embora seu trabalho possa ter esses resultados. Na verdade, é
também isso o que enxergam os militantes do movimento negro político, daí as constantes
críticas que estes dirigem àqueles, baseadas na proposição de que a luta contra a
discriminação racial deveria ser o objetivo principal, sendo ‘cultura negra’ apenas o meio
de promovê-la. É nesse sentido que parecem ser os intelectuais que estudam os blocos afro
os que mais fazem uso desse discurso para defini-los. Ainda quando os trabalhos
apresentam várias outras dimensões do cotidiano dos blocos ou de suas motivações para se
organizarem, o enfoque na ‘identidade étnica’ (ou ‘etnicidade’ ou ‘negritude’)
sobrecodifica todo o resto.
A primeira seção deste Encontros 4 tem por objetivo explicitar por que caminhos,
também neste trabalho, os blocos afro são concebidos como ‘territórios negros’. Esta é
uma definição bastante comum tanto na literatura especializada quanto no meio militante,
7 Zourabichvili (2000) observa que toda organização política tem uma ‘meta’, um ‘projeto’ a cumprir e é uma
206
mas a idéia de território aqui não passa necessariamente por um ‘espaço’, mas por um
modo de existência, conforme ver-se-á a seguir.
A segunda seção visa apresentar a relação dos blocos afro de Ilhéus com o
candomblé como principal, porém não única, fonte de elementos de ‘cultura negra’, que
alimenta cotidianamente a produção das atividades, da estética, mas também das
concepções e formas de agir de seus membros, ou pelo menos, de boa parte deles.
Contudo, os grupos afro-culturais de Ilhéus também se relacionam com outras religiões, ou
ainda, outras religiões também interagem com o movimento dos blocos afro, assunto
abordado em seguida.
Na terceira seção far-se-á uma descrição das atividades e elementos que
caracterizam um bloco afro a partir de um viés que pode ser denominado de étnico, que
produzem e são produzidos por um modo de subjetivação negro. Dado que os blocos afro
são entidades carnavalescas, é sobretudo na sua forma de se apresentar na festa – fantasias,
temas, coreografias, música – e em sua preparação – ‘Noite da Beleza Negra’, ‘Festival de
Música’ – que mais se expressa sua singularidade. O carnaval é a ‘vitrine’ dos blocos afro,
afirmação que já se tornou um clichê entre acadêmicos e militantes. E é justamente porque
os grupos afro se mostram mais ‘racializados’ no carnaval, quando sua proposta de diferir
fica mais em evidência, que a festa constitui o grande foco de análise das teorias sobre
identidade e etnicidade que definem o movimento dos blocos afro. O carnaval é concebido
como o espaço-tempo da produção de identidade; é a fronteira onde ocorrem as relações
interétnicas. Seja como ‘inversão’, ‘contestação’ ou ‘deformação’ ‘da realidade’ ou como
elevação de auto-estima e imposição social, busca da ocupação de um lugar, investimento
na mudança da organização social... Uma rápida passagem sobre essas análises e o que elas
implicam para a definição de bloco afro será o tema da quarta seção.
espécie de obrigação que todas elas venham acompanhadas da pergunta “o que se propõe?” (:333).
207
Ao mesmo tempo em que “é bom assumir a negritude” no espaço do bloco, para
além do racismo que incide sobre as pessoas individual ou coletivamente – racismo sentido
assim como uma agressão pessoal ou sobre toda a população negra –, ser um grupo
racialmente organizado também impõe relações racialmente orientadas, que ora podem
significar uma conquista para os grupos, ora podem revelar-se pelo racismo de outros
setores sociais. Descrever tais relações é o objetivo da quinta seção.
Por fim, na sexta seção deste capítulo, o foco será o movimento afro-cultural
essencialmente enquanto movimento: sua organização como movimento cultural e suas
relações políticas.
Bloco afro como território negro
Conforme foi adiantado no final do capítulo anterior, este capítulo e o próximo
objetivam mostrar os agenciamentos que constituem o movimento afro-cultural de Ilhéus.
Não há dúvida de que o desejo de diferir é fundamental na proposta de organização de um
bloco afro e que isso se dá nos encontros de elementos provenientes do que é concebido
como ‘cultura negra’, gerando, então, uma forma de pensar o mundo a partir desse desejo,
ou seja, a partir de um modo de subjetivação negro. Porém, este não é o único desejo que
constitui um bloco afro, nem o único processo de subjetivação gerado por ele, daí a
importância de situá-lo num capítulo – este – reservando o seguinte para outros desejos e
outras formas de subjetivação.
É amplamente difundida a idéia de que a categoria ‘negro’ foi construída pela
escravidão, que aboliu origens e transformou a todos em escravos, escravos vindos da
África, escravos negros. Mas a categoria imposta transformou-se em auto-percepção e em
arma de luta. Retomando o artigo de Rolnik (1989), a idéia de ser negro surgiu e se
desenvolveu na senzala: “o confinamento na terra de exílio foi capaz de transformar um
208
grupo – cujo único laço era a ancestralidade africana – em comunidade” (:30). A senzala,
foi assim, o primeiro território negro. Ao longo do tempo, outros foram surgindo, sendo o
quilombo o mais representativo deles, pois propunha uma forma de se pensar e de interagir
com a ‘sociedade’ como um grupo distinto, formado a partir da experiência singular e
violenta da escravidão.
A associação entre bloco afro e ‘território negro’ é recorrente nos meios militantes
e acadêmicos, seja em artigos, em palavras de ordem ou em letras de música. Guerreiro
afirma que a “noção de territorialidade é uma marca das organizações afro de Salvador”
(1998:112) e que esses territórios “funcionam como local do encontro, da troca, das
elaborações simbólicas que permitem a construção das identidades” (:119). Michel Agier
diz que depois da criação do Ilê Aiyê, o bairro da Liberdade passou a ser chamado de
“novo quilombo” (2000:63); o Curuzu, sub-bairro onde está situado o grupo, é a ‘nova
senzala’; a sede do Ilê tem o nome de ‘Senzala do Barro Preto’ (significado do termo
Curuzu). Ainda segundo Agier, os blocos afro são “espaços negros urbanos” definidos a
partir de limites constituídos por “traços físicos, sociais ou culturais” que formam
“fronteiras simbólicas entre etnias”, as quais são concebidas pela obrigatoriedade da
identificação “frente aos outros e ao olhar dos outros” (2003:08). O nome escolhido do Ilê
Aiyê passa pela idéia de território ou, para usar uma expressão de Agier, de “espaço social
negro”, pois dá ao grupo uma noção de “casa” – significado do termo “ilê” –, de “busca de
um lugar, de um espaço seguro, traço visível de um ancoradouro cultural afirmado contra
todas as depreciações, sociais e culturais, às quais os negros são habitualmente submetidos
nos espaços cotidianos não segregados” (Agier 2000:121)8. Ribard (1999), embora não use
o termo ‘território’, conduz a sua análise do surgimento dos blocos afro em Salvador em
torno da noção barthiana de “fronteiras étnicas”, de um ‘nós’ que se forma como “grupo
209
étnico” frente a um ‘outros’, importando saber como a fronteira é mantida, isto é, como os
blocos afro investem na diferenciação para construir e manter uma “identidade étnica”, que
os permita ser “outros”9. De acordo com essa análise, a rua, e mais exatamente o carnaval,
seriam o lugar da fronteira, das “relações interétnicas” entre “movimento afro-baiano” e
“sociedade global” (:304), do “confronto” de “dois mundos e duas identidades
antinômicas”, simbolizados pelo jovem negro do bloco afro e pelo jovem branco de um
trio elétrico famoso (:306). Assim, o bloco afro, seja enquanto sede ou grupos de pessoas
desfilando na avenida ou mesmo como ‘referencial étnico’ de pessoas que se pensam como
‘nós’ em oposição a ‘outros’, é percebido como um lugar.
Michel Agier (2000) conta a história da fundação do Ilê Aiyê a partir da
organização de jovens vizinhos, moradores do bairro da Liberdade, para o lazer. Mesmo
antes da fundação da Zorra, uma espécie de pequena empresa que organizava excursões a
partir da qual seria criado o Ilê, os jovens amigos saíam juntos no carnaval formando uma
banda (:69), estudavam na mesma escola (:66), organizavam torneio de futebol, grupos de
quadrilhas para São João, saíam juntos para praias, para os bailes... (:65). Era, assim como
tantos outros, um grupo de amigos criando atividades para estar juntos. E o Ilê foi mais
uma dessas atividades. O Ara Ketu também foi produto de um desejo coletivo de amigos e
familiares que queriam sair no carnaval (Guerreiro 2000:37).
Entre os blocos afro de Ilhéus não foi diferente. O Lê-guê Depá surgiu quando
pessoas que se juntavam para atividades artísticas e de lazer resolveram fundar um bloco
afro. No Miny Kongo, mesmo antes da Academia Raiz e de Mário Gusmão, da história de
formação do bloco contada por um dos seus fundadores pode-se concluir que eram amigos
8 É o próprio Agier quem diz que a tradução para Ilê Aiyê mais divulgada pelo grupo é a de “Mundo Negro”(2000:122).9 No primeiro capítulo de sua obra, chamado “A Questão Étnica”, Ribard (1999) faz um apanhado geral danoção de etnicidade, apresenta os conceitos de Frederik Barth cunhados em Os Grupos Étnicos e suasFronteiras, de 1969, e sua aplicação sobre o que ele chama de “Mundo Afro” de Salvador.
210
que saíam juntos: segundo Atanagildo, foi numa excursão para Olivença, distrito
hidromineral de Ilhéus, que pela primeira vez se comentou sobre a formação de um bloco
afro. O mesmo se dá com o Força Negra, formado a partir do MEPI10, e até mesmo com o
Dilazenze: apesar do grupo vir na esteira da participação de seus membros em outros
blocos, uma associação de amigos de bairro chamada Associação Juvenil do Alto dos
Carilos – AJAC foi uma das bases para a formação do bloco.
Antes da AJAC, já havia a Associação Desportiva do Alto dos Carilos –
ASSEDAC. Apesar do termo “desportiva”, tratava-se de uma associação de moradores
fundada e presidida por um irmão mais velho do atual presidente do Dilazenze. Talvez pela
diferença de geração, não havia espaço na ASSEDAC para os adolescentes. A criação da
AJAC visava suprir a demanda do grupo de amigos por passeios, festas e, principalmente,
torneios de futebol, o que garantia uma “mobilização” muito maior do que aquela
conseguida pela associação de moradores, pois seu presidente “não gostava de futebol”. Os
primeiros e únicos bens adquiridos pela associação foram “material esportivo”, como bolas
de futebol e jogos de camisa.
Poder-se-iam multiplicar muito os exemplos de blocos afro que nasceram a partir
de outras formas de organização, sejam comunitárias ou simplesmente de amigos de rua.
Ribard afirma que uma das principais características dos grupos negros é a socialidade
baseada na idéia de “viver com”, de “estar junto” (1999:479). Agier diz que os blocos “são
habitualmente os produtos da sociabilidade dos bairros” (2000:59). Assim, é preciso
lembrar que um grupo afro enquanto um “espaço social negro”, “lugar onde os negros
fiquem à vontade”, como um “oásis”, tal como esse autor o define (1992:71), é antes um
‘espaço social’, onde, a princípio, amigos se reúnem e se sentem ‘à vontade’. Os blocos
afro, seriam, então, territórios negros não somente porque são espaços onde pessoas negras
10 Uma associação estudantil, conforme descrito em Encontros 3.
211
se reúnem – o que já acontecia antes – mas, fundamentalmente, porque aí é produzida o
que Guattari chama de uma “subjetividade dissidente” da “subjetividade capitalística”, que
é a dominante (1986)11. Seguindo Raquel Rolnik (1989), então, poder-se-ia afirmar que os
blocos afro são “territórios negros” porque neles continua a se desenvolver um devir
negro12, que floresceu ainda nas senzalas, como “afirmação da vontade de solidariedade e
autopreservação que fundamentava a existência de uma comunidade africana em terras
brasileiras”. Foi essa “vontade de solidariedade e autopreservação” que fez com que
grupos totalmente heterogêneos, “cujo único laço era a ancestralidade africana”, pudessem
se constituir em comunidade (:30).
Assim, a associação entre território negro e bloco afro conjuga o espaço físico do
bloco – seja como sede, mas também como grupo de pessoas desfilando na avenida,
ensaiando em uma praça, promovendo ou assistindo a um espetáculo – com um “território
existencial”, tal como definido por Guattari (1986): “Um território é o conjunto de projetos
ou de representações sobre o qual vai se desencadear pragmaticamente toda uma série de
comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos,
cognitivos.” (:119). Diferentemente de ser um ‘espaço negro’, a idéia que guia este
11 “Subjetividade dissidente” é o mesmo que “processo de singularização”, “singularidade”; é a invenção deoutros modos de existência: “o termo ‘singularização’ é usado por Guattari para designar os processosdisruptores no campo da produção do desejo: trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra asubjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outrapercepção, etc.” (Guattari e Rolnik 1996:45). “Subjetividade capitalística” é o mesmo que “ordemcapitalística”, cuja definição fica bem clara no seguinte trecho: “A ordem capitalística produz os modos dasrelações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado,como se ama, como se trepa, como se fala, etc. Ela fabrica a relação com a produção, com a natureza, com osfatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com o presente, com o passado e com o futuro –em suma, ela fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo.” (:42).12 Devir: termo de Deleuze e Guattari da ordem do desejo: “É que devir não é imitar algo ou alguém,identificar-se com ele. (...) Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que sepossui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento erepouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e atravésdas quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo. (...) O ator De Niro, numaseqüência de filme, anda ‘como’ um caranguejo; mas não se trata, ele diz, de imitar o caranguejo; trata-se decompor com a imagem, com a velocidade da imagem, algo que tem a ver com o caranguejo.” (Deleuze eGuattari 1997:64-67). Adiante, os autores dizem que “até os negros, diziam os Black Panthers, terão quedevir-negro. Até as mulheres terão que devir-mulher.” (:88).
212
trabalho é a de perceber o bloco afro como ‘território negro’ no sentido de lugar de
produção de subjetividade negra.
Blocos afro e Religiosidade
Bloco afro e candomblé
No primeiro capítulo deste trabalho, ao mostrar que agenciamentos produziram o
processo de reafricanização do carnaval e o surgimento dos blocos afro, pôde-se ver que o
candomblé teve uma posição de destaque em todo o processo. A partir das décadas de 60 e
70, o candomblé passou a ser valorizado especialmente como resultado da mistura, do
sincretismo, do ‘Brasil mestiço’, tornando-se, então, ‘religião alternativa’ e ‘atração
turística’, imagem-símbolo da ‘baianidade’13. Por outro lado, os movimentos negros não
permitiram que o candomblé fosse apropriado exclusivamente pela idéia de ‘mestiçagem’ e
transformaram-no também em símbolo de ‘negritude’ e de ‘resistência’ por sua forte
relação com uma origem africana, cujos principais elementos característicos teriam sido
conservados na língua dos cânticos, nos mitos dos orixás, nas roupas, na dança, nos
instrumentos, nos ritmos etc, o que faz da religião a mais importante fonte de ‘cultura
negra’ do país.
Não bastasse o fato do candomblé ser chamado de ‘guardião’ da cultura negra no
Brasil nos meios militantes e inspirar as manifestações artísticas de boa parte dos grupos
negros já existentes em meados dos anos 70, o primeiro bloco afro ainda surgiria no seio
de um terreiro, influenciando sobremaneira o que passaria a ser assim concebido. Do
candomblé, saíram ritmos, temas, nomes, danças, instrumentos, acessórios, vestimentas...
Dessa perspectiva, todo o capítulo poderia se resumir a esta seção, pois a maior parte dos
elementos que constituem um bloco afro na dimensão que aqui está sendo referida como
‘étnica’ poderia ser encontrada na sua relação com a religião. No entanto, eles também são
213
compostos a partir de outros agenciamentos, o que torna mais profícuo pensá-los
separadamente, levando em conta outras conexões.
O candomblé, porém, participa do funcionamento de um bloco afro sob uma outra
dimensão, uma que não passa apenas por ‘características’, mas por rituais14, rivalidades
entre os grupos e orientações que guiam as ações dos dirigentes, por exemplo.
Em Ilhéus, nem todos os blocos afro têm relação com o candomblé como religião15.
Isso ocorre com mais intensidade em quatro deles. Na descrição do nascimento do Miny
Kongo no capítulo anterior, foram dadas informações que ligam o grupo à religião: seu
nome, os primeiros instrumentos emprestados de dois terreiros e a relação de um de seus
fundadores com um desses terreiros. O nome do Zambi Axé também tem origem no
candomblé: Zambi é o deus supremo, o equivalente, na nação angola, a Olorum em ketu, e
axé significa a força, a energia que abarca e constitui tudo o que existe. Além disso, e
como já foi dito, o local onde o grupo guarda seus instrumentos e na frente da qual realiza
seus ensaios, é também um terreiro de umbanda, cujos ogãs, filhos carnais da mãe-de-
santo, são importantes percussionistas do bloco. Outro grupo que tem seu dirigente e um
dos principais percussionistas como ogã de uma casa de candomblé é o Danados do
Reggae.
Mas a relação mais explícita se dá no caso do Dilazenze: em Ilhéus, foi o único
grupo a nascer, assim como o Ilê Aiyê, no interior de um terreiro de candomblé, o
‘Terreiro de Euá Tombency Neto’, cuja data de fundação remonta a fins do século XIX,
ainda que com outros nomes. A atual mãe-de-santo, também fundadora do Lê-guê Depá16,
é a quarta geração a ocupar a direção do terreiro, sucedendo à sua mãe desde 1975, dois
13 Cf. Encontros 1.14 O ritual de saída do Ilê Aiyê é uma das características mais marcantes do bloco. Ele costuma ser maiscomentado e prestigiado do que o próprio desfile do grupo.15 O motivo da ressalva com sentido de esclarecimento é que mesmo aqueles grupos cujos dirigentes nãopertencem ao candomblé, de uma forma ou de outra se relacionam com ele através dos elementos aquichamados de característicos dos blocos.
214
anos após o seu falecimento. Sua antecessora dirigiu o ‘Terreiro de Senhora Santana
Tombency Neto’ entre 1942 e 1973. Ela sucedera a seu irmão falecido em 1941. Foi nesse
momento, mais exatamente em 1946 – quando concluiu suas obrigações religiosas – que o
terreiro passou a fazer parte da linha genealógica do Tombency, cuja matriz, em Salvador,
é o primeiro terreiro de nação angola do Brasil. Isso aconteceu porque a finalização das
“obrigações” tanto da atual mãe-de-santo quanto de sua antecessora17 foram feitas por uma
mãe-de-santo de um terreiro descendente do primeiro Tombency. Seu tio materno e pai-de-
santo antes de sua mãe havia assumido o terreiro em 1915 com o nome de ‘Terreiro Roxo
Mucumbo’, um ano após o falecimento de sua mãe, que havia fundado o ‘Terreiro Aldeia
de Angorô’ em 1885.
O nome do Dilazenze é uma homenagem a um personagem importante da história
do terreiro. Dilazenze Malungo era a dijina18 de Hipólito Reis, amigo e pai-de-santo do tio
da atual mãe-de-santo. Ele iniciou as obrigações de sua mãe e faleceu antes que pudesse
completá-las. Ele era “africano” (não se sabe dizer em que país nasceu) e “nem sabia falar
bem o português”, o que certamente lhe conferiu uma legitimidade ainda maior para
exercer suas funções religiosas. É também importante registrar que Hipólito Reis foi o pai-
de-santo do tio da mãe-de-santo do Tombency, ainda que este já exercesse a função há
muito tempo, sem que houvesse sido iniciado por ninguém – “exercia por dom”, assim
como sua mãe19.
16 Cf. Encontros 3.17 Mãe e filha “de sangue”, irmãs “de santo”, Dona Ilza, a atual mãe-de-santo ainda era criança quando foifeita no santo no mesmo barco que sua mãe, em meados da década de 40. Quando ela faleceu, D. Ilza era‘mãe pequena’ da casa, a segunda função mais importante em um terreiro.18 Dijina : “nome pelo qual a filha ou filho de santo será conhecido, dentro do ritual, após sua iniciação. Érevelado pelo orixá ou entidade protetora pessoal. É formado pelo nome conhecido do santo, acrescido deuma qualidade especial deste, e mais, às vezes, o local de origem da divindidade ou da entidade. Termousado nos candomblés bantos e na Umbanda.” (Cacciatore 1977:105).19 Em 1997, durante meu primeiro trabalho de campo em Ilhéus, foi-me solicitado que reunisse asinformações ali disponíveis sobre a história do terreiro e redigisse uma “apostila” para os compositores dobloco. O tema do carnaval de 1998 seria “Tombency Angola, essa é a sua história”, uma homenagem aoterreiro. “Apostila” é um pequeno texto com as informações necessárias sobre o tema para orientar oscompositores na redação das músicas que concorrerão no festival (quando ele acontece), cujas vencedoras
215
A vida do Dilazenze, então, começou fortemente vinculada ao terreiro. A própria
adoção do nome só foi possível após um pedido de permissão feito através do jogo de
búzios, já que se tratava de um dos mais importantes eguns20 do terreiro. Dada a permissão
e verificado que o Dilazenze devia ser consagrado “de Xangô”, orixá de Hipólito Reis,
passou-se à realização de todos os rituais necessários à sua existência. Os fundamentos21 do
Dilazenze estão enterrados no centro do barracão do terreiro junto com os fundamentos
deste, o que lhe dá uma relação muito estreita com a dimensão do sagrado, um
“compromisso”. E este “compromisso” costuma ser invocado, especialmente pela mãe-de-
santo, nas ocasiões em que há algum conflito interno ao grupo: é preciso “respeitar os
fundamentos”, é um “compromisso que não pode ser desfeito por qualquer coisa”.
Na verdade, a interferência do ‘sagrado’ nos momentos de conflito entre os
dirigentes do grupo – que, não se deve esquecer, são irmãos, o que faz qualquer conflito
ser ainda mais grave – é recorrente. Um desses momentos, rapidamente descrito na
Introdução deste trabalho, ocorreu às vésperas do carnaval de 2000. Eu havia chegado em
Ilhéus no sábado anterior ao carnaval, dia do festival de música e Noite da Beleza Negra,
quando é eleita a ‘rainha’ do bloco. Esse também é o dia de tentar arrecadar recursos
extras, já que o orçamento do desfile costuma ser sempre mais alto do que o montante
concedido pela prefeitura. O problema é que só o próprio evento já consome recursos
extras, além do pouco conseguido junto a (raros) patrocinadores e ao governo municipal.
serão cantadas durante o desfile. Essa é uma prática também entre os blocos de Salvador (ver Ribard1999:423; Risério 1981:44; Agier 2000:36; 79-80; Guerreiro 2000:89-93). Não considero o texto da apostilacomo de minha autoria: ele apenas é, como disse, uma reunião de informações contidas no livro Encontro deNações de Candomblé, 1984, em documentos do terreiro e complementadas por entrevistas com D. Ilza, aatual mãe-de-santo do Tombency. Miguel Vale de Almeida e Susana Viegas, ambos antropólogosportugueses realizando pesquisa em Ilhéus durante meu primeiro período de campo, foram convidados pormim a acompanhar uma das entrevistas com D. Ilza, na qual também estavam presentes alguns de seus filhoscarnais e filhas-de-santo do Tombency. Vale de Almeida reproduziu o texto da apostila parcialmente e commodificações num artigo (2000:87-90).20 Egun: “Espíritos, almas dos mortos ancestrais que voltam à Terra em determinadas cerimônias rituais.”(Cacciatore 1977:110).21 Fundamentos: “ ‘Assentamentos’, objetos que contêm o axé das divindidades e ficam enterrados sob ocentro ou outro local especial do terreiro, constituindo a base mítica do mesmo.” (Cacciatore 1977:132).
216
Um palco foi montado na rua, em frente à quadra do Dilazenze, e até que compareceu um
bom público se a chuva terrível que caía for levada em conta, mas a arrecadação só deu
para cobrir os custos do momento.
Sem ter como adiantar a compra de todo o material para o desfile por falta de
verbas, o jeito era esperar pelo “dinheiro da prefeitura”, que só foi liberado na terça-feira
imediatamente anterior ao carnaval. A base da fantasia seria de tecido amarelo, amarelo
forte, amarelo ouro, que é uma das cores do Dilazenze, mas seria preciso encontrar
também estampados com motivo afro e outras cores. Para facilitar a compra, aluguei um
carro e nos dirigimos para Jequié, município situado a cerca de duas horas e meia de
Ilhéus, onde haveria uma concentração de fábricas têxteis; não encontramos, porém, os
tecidos desejados por lá. No dia seguinte, procuramos os tecidos em Ilhéus – o pouco que
havia fora comprado no dia anterior por outros blocos, especialmente o Miny Kongo, cuja
cor predominante também é o amarelo. Fomos, então, a Itabuna, município vizinho a
Ilhéus, e também nada foi achado. Já era quarta-feira e as costureiras precisavam iniciar o
trabalho, caso contrário não haveria tempo de produzir as cerca de cento e cinqüenta
fantasias pretendidas. O clima estava tenso e era grande o nervosismo por parte de todos os
envolvidos com o bloco. À noite, no retorno de Itabuna, houve uma intensa discussão entre
três irmãos: o presidente do bloco, o vice-presidente, e um outro, nem tão envolvido com o
grupo, mas nosso ‘motorista’ naquela ocasião. Acusações, gritos e ânimos muito exaltados.
Nesse momento, a mãe-de-santo, muito nervosa, tentava acalmar seus filhos, quando sua
‘cabocla’, uma das entidades mais importantes do terreiro, a possuiu. A discussão cessou e
os três foram chamados para conversas particulares com ela. Depois disso, todas as pessoas
que de alguma forma estavam envolvidas na preparação do bloco para o carnaval ali
presentes foram convocadas para passar por rituais de limpeza e de proteção. Enquanto
aguardávamos a preparação dos banhos que todos deveríamos tomar, resolvemos que o
217
carro seria alugado por mais um dia e iríamos a Salvador comprar os tecidos. E assim
fizemos, só retornando a Ilhéus na madrugada da sexta-feira, quando as costureiras
iniciaram o trabalho e não descansaram até a noite de domingo, mais precisamente até o
momento de saída do grupo para o desfile. E o Dilazenze conquistou seu bicampeonato.
As obrigações para o carnaval do Dilazenze começam cerca de uma semana antes,
com providências tomadas pela mãe-de-santo. Na noite anterior ao desfile, todas as pessoas
“de frente” do bloco – basicamente a diretoria, os responsáveis pelo carro alegórico, as
costureiras e outras pessoas envolvidas – são convocadas para um cerimônia interna no
terreiro, cujo maior objetivo é proteger essas pessoas e o próprio bloco. E uma outra
cerimônia acontece no momento de saída para o desfile, quando o bloco já está formado na
rua, em frente ao terreiro de um lado e à quadra do Dilazenze de outro. A mãe-de-santo faz
orações, entoa zuelas, joga pipoca e sopra pó de pemba sobre todo o bloco. Ela diz que é
necessário “protegê-lo”, pois ele passará por várias encruzilhadas até chegar na avenida
para o desfile, e isso pode ser perigoso, pode haver algum “trabalho” preparado contra todo
o grupo ou contra algum de seus componentes. Interessante ver que em 2000, quando
presenciei esse momento, alguns percussionistas se benziam com o ‘sinal-da-cruz’ e
espalhavam pó de pemba sobre seus instrumentos, da mesma forma como os ogãs fazem
sobre os atabaques nas cerimônias de candomblé22.
No carnaval de 1999, um outro episódio ocorrido no momento de saída é também
bastante revelador da importância da dimensão do sagrado na vida do Dilazenze. Bloco
armado na rua, aparentemente tudo pronto “para descer”, uma das filhas-de-santo do
Tombency – também irmã dos dirigentes do Dilazenze – virou no santo. Tratava-se de sua
‘Pomba-Gira’, ou ‘escrava de sua santa’, que vinha avisar que uma obrigação não fora
22 Vale informar também que cada novo instrumento do Dilazenze passa por obrigações, para só depois serusado, segundo depoimento de Marinho Rodrigues, presidente do Dilazenze, reproduzido por Cambria(2002:121).
218
realizada e que o bloco corria perigo, que havia “trabalhos” contra ele no caminho e que
alguma coisa ruim poderia acontecer. O presidente do grupo reconheceu que havia
“esquecido” de providenciar o animal para a oferenda a Exu, que deveria ter sido feita no
sábado – esta seria uma tarefa sua porque ele é o responsável pela distribuição da verba
recebida da prefeitura para o carnaval. Na mesma hora, a mãe-de-santo tratou de
improvisar uma oferenda e “caprichou” no pó de pemba e na pipoca, cuidando de cada
componente individualmente. Só então o bloco desceu para a avenida. No caminho, alguns
incidentes ocorridos foram posteriormente interpretados como conseqüência dessa
‘desatenção’ e que eles poderiam ser muito mais graves, caso a entidade não tivesse
avisado e não se providenciasse o mínimo necessário para a proteção do bloco. Para o
segundo dia de desfile, o corte para Exu foi feito e tudo correu bem23. O acontecimento foi
marcante também porque este foi o ano da primeira vitória do Dilazenze, das cinco
consecutivas, no concurso dos blocos afro.
Em Ilhéus, o Dilazenze é o único bloco que realiza esta cerimônia em função de sua
relação com o terreiro. A respeito de Salvador, Ribard afirma, generalizando, que os blocos
afro realizam a cerimônia de saída antes do desfile (1999:447) e que “mesmo quando o
grupo não tem uma conexão muito estreita com o candomblé, deve-se efetuar um certo
número de rituais e seguir regras específicas, necessários ao bom andamento dos projetos e
das atividades” (:406). Embora outros blocos realizem o padê de Exu antes do desfile, ao
que parece, o Ilê realiza a cerimônia desde os primeiros carnavais. E o ritual de saída é,
sem dúvida, a maior atração do bloco, sendo, inclusive, transmitido pela TV e
‘celebridades’ costumam marcar presença, como conta Agier, para quem este ritual “é a
mais original das atividades do Ilê Aiyê, sua mais importante marca de identidade”; é o que
o faz ser percebido como “o mais africano e o mais puro de todos os blocos de carnaval,
23 Goldman, Comunicação Pessoal.
219
parece ter ‘saído’ de uma casa de candomblé, pode ser definido como um afoxé, e sua
existência seria a prova de uma presença das tradições africanas no Brasil” (Agier
2000:141-2).
Agier entende o carnaval do Ilê como uma seqüência ritual que compreende três
momentos: os banhos de purificação, ou “lavagens”, no dia anterior ao carnaval que
marcariam, em sua visão, a separação de uma condição social comum para a condição de
ser Ilê – “todos preparam seus corpos e seus espíritos para ser Ilê durante cinco dias”
(:143); a saída, ou “abertura do caminho”, que seria um momento liminar entre a separação
e a reagregação já como Ilê Aiyê no momento do “desfile”, que constituiria o terceiro
momento da seqüência. Em seu conjunto, o processo que começa pelos banhos, passa pela
saída e termina no desfile, teria por objetivo criar um “mundo novo”, “formar” uma nova
identidade: seria a identidade individual dando lugar ao nascimento de uma identidade
coletiva – a identidade Ilê Aiyê (:150).
A etnografia da saída do Ilê Aiyê feita por Agier24 é muito interessante e mostra
bem qual é o sentido do ato: pipoca, pemba, oferendas a Exu... tudo visa proteger o bloco e
seus componentes. É bastante plausível supor que o ritual de saída do bloco tenha se
tornado mais espetacular à medida que o grupo foi se tornando mais famoso, ganhando
mesmo o status de atração – Agier informa que as emissoras de TV devem pagar ao grupo
para filmar o ato (:141) –, fazendo dele mais uma de suas ‘marcas’, tanto quanto a
interdição ao desfile de pessoas brancas. Mas as duas ‘características’ têm, me parece,
razões de ser muito distintas. Manter o Ilê como um ‘bloco só de negros’ é expressão do
desejo de diferir e de criação de um território único, distinto, ou seguindo o raciocínio de
Agier, é um “marcador de identidade”. Mas o mesmo não pode ser dito para um ritual de
candomblé, ainda que ele colabore para reforçar a diferença do bloco. Quando Agier diz
24 Ver Agier 2000, seções “Le rite carnavalesque” e “La mise en scène de l’identité” (:141-154).
220
que o ritual de saída “é a mais original das atividades do Ilê Aiyê, sua mais importante
marca de identidade” (:141), parece não considerar que se trata de uma obrigação aos
orixás, que o bloco deve ser protegido e que esse é um procedimento usual e necessário no
candomblé para todas as situações em que algo ou alguém corre riscos. O bloco
simplesmente não pode sair sem essa obrigação. Em Ilhéus, o Dilazenze é o único grupo a
passar por esse ritual de saída, mas nunca foi dito que isso ocorresse para ‘mostrar uma
identidade negra’ ou para ‘afirmar a negritude’ ou mesmo para marcar uma diferença, seja
do bloco como ‘bloco afro’, ou seja em relação a outros blocos afro. Os motivos têm a ver
com riscos de vida mesmo.
O temor dos possíveis ‘trabalhos’ religiosos ou mágicos não é exclusividade do
Dilazenze, que não seria sua única ‘vítima’. Outros blocos também julgam ser necessário
buscar proteção, mas contra o Dilazenze. Conversando com o dirigente de um bloco, ele
pediu que eu lhe confirmasse que o Dilazenze “fazia trabalho” contra os demais blocos
para ganhar o carnaval (no momento dessa pergunta, o Dilazenze havia conquistado seu
tricampeonato). Neguei que isso acontecesse, ao que ele replicou: “mas para se proteger,
faz, não faz?”. Faz. Nesse plano, a maior rivalidade em Ilhéus se dá entre o Dilazenze e o
Miny Kongo, já que são os blocos que mantêm relações mais estreitas com o candomblé.
As acusações são mútuas, até porque ambos são reconhecidos, ao lado do Rastafiry, como
os melhores blocos da cidade, pois essa rivalidade não teria muito sentido se assim não
fosse25. Contudo, outros blocos também podem ser envolvidos, já que há mães e pais-de-
santo próximos a outros dirigentes. Assim, em certas situações, problemas do Dilazenze,
por exemplo, podem vir a ser atribuídos por seus membros a ‘trabalhos’ de outros grupos
ou a sentimentos de inveja – o chamado ‘olho grande’; da mesma forma que as vitórias
25 Os três continuam sendo os maiores blocos em número de componentes e politicamente ainda sãoreconhecidos como os mais importantes. Além disso, cada um deles reivindica para si um motivo para
221
deste mesmo grupo podem ser percebidas por parte de membros de outros blocos também
como resultado de ‘trabalhos’ em favor do Dilazenze.
A religiosidade está muito presente no dia-a-dia do Dilazenze, não só no carnaval.
Antes de atividades importantes, reuniões vistas como decisivas ou encontros promovidos
pelo grupo, orações e cânticos são entoados. Se membros do grupo forem participar de
algum evento considerado importante, eles também são “preparados” para que possam
estar protegidos; se o barracão do terreiro for usado para uma atividade coletiva com a
presença de outros grupos, ele é cuidado para que ninguém possa trazer nada de mal para
as pessoas dali. Esse foi o caso de uma palestra de um deputado federal do PT/BA, também
dirigente nacional do MNU, ocorrida na abertura da Semana Nacional da Consciência
Negra. Na mesa armada para o palestrante e autoridades, havia um lindo arranjo que fora
dado de presente para a Cabocla Jupira, entidade importante do terreiro. A mãe-de-santo
do Tombency disse que sua função seria mostrar a quem chegasse – haveria muita gente
“de fora” no barracão – que a casa estava protegida, evitando, assim, a própria tentativa de
“fazer qualquer coisa”.
Em 2000, o Dilazenze criou o Projeto Batukerê, realizado com crianças e
adolescentes da comunidade, que será objeto de discussão do próximo capítulo. Aqui
interessa destacar que sua criação também passou por obrigações: além de ser um projeto
do grupo – e isso naturalmente aconteceria –, o fato de utilizar em seu nome o termo ‘erê’,
que denomina o ‘espírito criança’, também exigia o pedido de permissão. O problema foi
que isso demorou a acontecer. Logo que se iniciou o projeto, a mãe-de-santo do Dilazenze
lembrava-nos constantemente de que era preciso oferecer um caruru, comida à base de
quiabo, aos orixás Ibeji, que corresponderiam a São Cosme e São Damião no sincretismo
afro-brasileiro. E à medida que diversos problemas foram ocorrendo no projeto, ela
receber um valor maior do que os demais: o Dilazenze tem sido campeão dos últimos carnavais, o Miny
222
tornava-se mais insistente. Finalmente, quando saiu a primeira parcela dos recursos
prometidos pela prefeitura para o Batukerê, a primeira providência foi fazer o caruru para
todas as crianças e pessoas envolvidas com o projeto. E ao longo de todo o período de
campo, ficou muito claro que cuidar do Batukerê era também cuidar dos santos erês,
especialmente daqueles das pessoas do terreiro. Assim, toda vez que em um evento
diferente uma refeição especial era servida às crianças do projeto26, parte deveria ser
guardada para as entidades; se doces fossem distribuídos, alguns deveriam ser oferecidos a
elas27.
A direção do grupo também é uma determinação dos orixás. O atual presidente
ocupa a posição desde 1988 e deverá presidir o Dilazenze pelo período de 21 anos. Nos
quase dois primeiros anos do grupo, um irmão seu foi o presidente provisório. Houve um
consenso em escolhê-lo como a pessoa que conduziria o processo de fundação do
Dilazenze que, como dito anteriormente, passou por uma série de obrigações. Ao final
destas, “houve uma resolução dos orixás” de que o presidente atual “deveria assumir”.
Apesar de ser uma determinação divina, isso não significa que não haja conflitos internos
em torno da questão. Houve até um momento de afastamento do atual presidente que durou
seis meses – quando o vice-presidente, seu irmão, assumiu o cargo – e tantos outros de
reivindicação de mudanças ou de ameaças de renúncia. Segundo o presidente do grupo,
situação semelhante se passa no Ilê Aiyê, do qual Vovô, um de seus fundadores, não pode
deixar a presidência em circunstância alguma, conforme também determinaram os orixás28.
Kongo é o mais antigo e o Rastafiry argumenta ter o maior número de componentes na bateria.26 A proposta do Projeto Batukerê é servir merenda para as crianças participantes diariamente, o que só nãoacontece quando não há forma alguma de obtenção dos recursos.27 Eu mesma fui aprendendo que se levasse balas para as crianças, deveria reservar algumas para os erês dacasa.28 Agier (2000) conta que Vovô assumiu a presidência três anos após a fundação do bloco, pois havia umacordo entre ele e Apolônio, também fundador, de que cada um deles dirigiria o grupo por esse período.Apolônio deveria voltar à presidência para o carnaval de 1981, mas ele deixou o bloco, que já se encontravainteiramente instalado na casa de Vovô (:79). Adiante, Agier diz que a posição de Vovô como presidenteacabou se tornando “implicitamente permanente” (:83).
223
À
Em Ilhéus, terreiros e rituais de candomblé não são atrações turísticas como em
Salvador. Por muito tempo, o único terreiro citado em folhetos ou em publicações
turísticas era o de Pedro Farias, falecido em 2003, e o único evento era a Festa de Iemanjá,
na Baía do Pontal, mais precisamente na Praia da Maramata29, que recentemente passou a
ser promovida com apoio da prefeitura e a ser anunciada como atração turística no
calendário divulgado pela Ilheustur (órgão municipal de turismo)30. Um outro evento
famoso é a Lavagem da Catedral de São Sebastião – semelhante à Lavagem da Igreja do
Senhor do Bonfim –, cuja relação com o candomblé acaba sendo somente a presença das
‘baianas’ lavando a escadaria com ‘água de cheiro’ e aparecendo nas fotos de promoção do
evento, que é uma homenagem a São Sebastião, um dos padroeiros da cidade31. Parece
acontecer em Ilhéus o mesmo que ocorre em Salvador, onde ‘lavagens’ de escadarias e
praças tornaram-se comuns como festas que não se justificam religiosamente como parte
do “ciclo pré-carnavalesco” da cidade (Agier 2000:29).
A pouca visibilidade do candomblé na cidade, se comparada com Salvador, e os
números do Censo do IBGE de 1991 – apenas 151 pessoas, ou 0,06% da população,
declararam ter o candomblé ou a umbanda como religião – poderiam levar a crer que não
há muitos praticantes em Ilhéus. Contudo, são muitos os terreiros de candomblé e ainda
que não seja possível estabelecer precisamente quantos, parece legítimo supor que só o
29 Assim chamada após a instalação do “Campus das Espumas Flutuantes”, sede da Universidade Livre doMar e da Mata – MARAMATA, entidade ambiental do governo municipal.30 Heine (1996:61) cita a Festa de Iemanjá como uma “festa popular” de Ilhéus, uma “festa profana” (sic), naqual acontece uma procissão de barcos. Interessante é sua conclusão: “Também acontece festa de largo,barracas, trios elétricos, que o baiano é muito alegre e não precisa de muito motivo para fazer uma festa”. Omérito de Iemanjá parece ser bem diferente do que ela atribui a N. Sra. das Vitórias: “é a outra padroeira deIlhéus, merecendo pois todas as honrarias”. Menezes (1998:93-8) conta que a festa começou a ser realizadana Baía do Pontal em 1997 e no ano seguinte recebeu pela primeira vez o apoio da prefeitura. Assim, apesarde diversos outros terreiros também promoverem a cerimônia, a festa do Pontal passou a ser a ‘oficial’ dacidade.31 Ilhéus tem ainda dois outros padroeiros: São Jorge e Nossa Senhora das Vitórias.
224
número das pessoas que ocupam cargos importantes nos terreiros seja maior do que aquele
verificado no Censo. Dessa forma, mesmo aqueles grupos afro cujos dirigentes não
participam ativamente de algum terreiro, estabelecem relações ou têm componentes
ligados à religião, o que promove uma vinculação ainda mais estreita entre candomblé e
blocos afro. Não que esta seja uma relação necessária. Isso foi negado por vários
dirigentes, mesmo por aqueles que se consideram “de dentro da seita”, como o presidente
do Dilazenze, para quem já foi muito mais forte em Ilhéus a concepção de que todo bloco
afro tem que estar ligado a um terreiro. Na década de 80, quando nasciam os primeiros
blocos, mesmo aqueles cujos dirigentes não pertenciam ao candomblé procuravam
vincular-se a um pai ou a uma mãe-de-santo como se tal relação fosse inerente a um bloco
afro. Talvez isso tenha ocorrido porque alguns dos mais importantes blocos de Salvador
possuíam essa relação: o Ilê Aiyê nasceu, praticamente, no interior de um terreiro; um dos
fundadores do Ara Ketu era um pai-de-santo e sua presidente é praticante da religião,
guardando relações estreitas com seu terreiro; a mãe de João Jorge, presidente do Olodum,
é também mãe-de-santo. Em Ilhéus, o Miny Kongo era ligado ao terreiro de Pedro Farias;
o Lê-guê Depá tinha relações com o Tombency enquanto saía dos Carilos e passou a estar
ligado a outro terreiro quando foi para o Malhado; o Axé Odara afirmava ter uma ligação
também com o Tombency, pois a mãe-de-santo e alguns de seus filhos pertenciam ao
bloco. Contudo, entre os principais blocos, talvez esta fosse a relação mais ‘artificial’ na
opinião do presidente do Dilazenze, já que não havia uma ligação “verdadeira”: “não
ficava claro que eles [os principais dirigentes] aceitavam isso [o candomblé]. Era só o
status do Axé Odara de ser ligado ao terreiro de Mãe Ilza, porque não se via a influência
do terreiro no bloco.”
Bloco afro e outras religiões
225
Ainda que os ritmos e as coreografias dos blocos afro tenham origem no
candomblé, é fácil compreender que, com o tempo e com outras influências, eles tenham
sido desvinculados e tenham ganhado ‘vida própria’: o ritmo (ou o ‘estilo’) que impera na
maioria dos blocos afro desde meados dos anos 80 é o samba-reggae32; a dança afro pode
ser ‘primitiva’, ‘contemporânea’, ‘folclórica’, entre outros. Assim, “para fazer bloco afro,
não precisa ser de candomblé, não”, como disse um dirigente que pertence a uma casa de
santo.
Se não é necessário “ser de candomblé”, também não parece possível que uma
pessoa pertença simultaneamente a um bloco afro e a uma religião evangélica: o vínculo
entre blocos afro e candomblé é freqüentemente evocado como justificativa da saída de
alguém de um grupo quando essa pessoa é ‘convertida’. Este foi o caso do Força Negra e
dos Gangas, grupos que deixaram de existir após a conversão de suas lideranças.
O presidente do Força Negra, cuja conversão ocorreu dias antes da data marcada
para sua iniciação numa casa de santo, disse que não seria mais possível continuar com o
bloco em função de sua relação com o candomblé. Nesse caso, porém, isso não significou
seu afastamento da “questão negra”: ele teria dado continuidade ao seu “trabalho de
conscientização” numa Igreja Batista situada no bairro da Conquista, cuja maioria dos fiéis
é negra, através da formação de grupos de percussão (com os instrumentos do bloco) que
tocam “música de adoração a Deus em iorubá” nos cultos; ele também é responsável pela
organização de um grupo de dança afro e costuma promover palestras e debates sobre a
questão racial33. E ainda que afastado dos blocos afro, é possível encontrá-lo em atividades
promovidas por eles, nas quais, muitas vezes, já se sentiu “discriminado por não ser de
32 Cambria (2002:74) defende que ‘samba-reggae’ é um “conceito guarda-chuva que define a concepção deorganização rítmica adotada pelos blocos e compreende diversos ritmos específicos (principalmente:merengue, reggae, samba-reggae e suingue)”.33 Burdick (2002) dá exemplos de algumas igrejas evangélicas na região metropolitana do Rio de Janeiro –seu trabalho é principalmente com as pentecostais – que incentivam a formação de bandas juvenis de gênerosmusicais como samba, pagode, hiphop, rap com temas religiosos (:201-2).
226
candomblé”. Essa ‘queixa’ foi feita em 2001, mas ele já falara disso em 1997, logo após
um debate na Semana da Consciência Negra daquele ano, no qual o prefeito esteve
presente e anunciou que implantaria o Conselho Municipal do Negro, o que acabou não
acontecendo34. Naquela ocasião, o ex-dirigente do Força Negra estava se referindo a um
militante do MNU, filho carnal de uma mãe-de-santo e sem relação prévia com blocos
afro, embora estivesse naquele momento assumindo o próprio Força Negra junto com
outros integrantes do MNU, e que lhe repreendeu por sua nova religião.
Já o ex-presidente dos Gangas esteve afastado dos grupos até recentemente quando,
já vereador (eleito em 2000), voltou a se aproximar dos dirigentes, principalmente através
do atendimento de pequenas solicitações dos grupos, embora não comparecesse a nenhuma
de suas atividades35. Sobre sua relação com o candomblé, a seguinte cena é reveladora: ao
entrar em sua sala e ouvir que eu conversava com seu assessor sobre o assunto, ele fez uma
‘careta’ e se retirou.
Um terceiro exemplo de mudança pós-conversão apresenta uma posição bem
distinta das anteriores. Trata-se do atual subsecretário municipal de Esporte. Um dos seus
irmãos foi dirigente do Axé Odara, grupo ao qual também já pertenceu; ele é primo do ex-
dirigente do Força Negra citado acima, e também já fez parte desse grupo, além de ter
contribuído com a fundação de alguns blocos novos, inclusive chegando a participar da
diretoria do CEAC eleita em 1997 como membro do Zambi Axé. Como professor de
educação física e diretor da Divisão de Desportos da Secretaria Municipal de Educação36,
ele era responsável por atividades de ginástica ao ar livre durante o verão e tinha um bloco
34 Sobre a tentativa de implantação do Conselho Municipal do Negro em Ilhéus, ver Silva 1998:66-70.35 Os Gangas já não desfilavam há alguns anos, antes mesmo da conversão de seu ex-presidente, mas o fimoficial do grupo coincide com o seu afastamento (ver Encontros 3).36 Este era seu cargo na gestão 1997-2000 de Jabes Ribeiro; já no segundo mandato consecutivo de Jabes(2001-2004), a Divisão de Desporto foi transferida para a Secretaria de Esporte e Cidadania, onde ele passoua ser o subsecretário de Esporte.
227
de carnaval chamado Timbalafro, “uma espécie de levada de carnaval”37, e chegou a
desfilar no Dilazenze em mais de uma ocasião. Numa conversa reproduzida por Almeida
(2000:28) antes de sua conversão, Gurita, como é conhecido, relacionava “negros
americanos” e protestantismo, dizendo que eles “perderam a identidade: não sabem o que é
o acarajé, o vatapá, o caruru, o candomblé”, pois eles não teriam a mesma relação que o
Brasil tem com a África, o que lhes daria uma “concepção de negritude” diferente daquela
existente no Brasil.
Nas eleições municipais de 1996, o subsecretário concorreu ao cargo de vereador e
fez articulações para ser o candidato de alguns blocos afro, mas não foi eleito. Já nas
eleições de 2000, ele esperava ser o candidato de todo o movimento negro38, o que também
não conseguiu, mas havia uma diferença em relação à tentativa anterior, pois agora ele era
“evangélico” e sua relação com a ‘cultura negra’ precisava ser outra, não poderia mais
passar pela participação em blocos afro, ou seja, pela “parte festiva da cultura negra”, mas
por sua organização (quando ajudou a fundar o Guerreiros de Zulu ele já era protestante):
“Hoje é que eu não saio mais [em bloco afro] porque assumi umapostura religiosa outra, do protestantismo mesmo. Hoje eu sou umcidadão evangélico. (...) Isso não me impede de trabalhar pela culturanegra. Eu deixei a parte festiva da cultura negra, mas vou continuartrabalhando na parte social, administrativa, que eu acho que é muitomais importante do que a parte festiva. A parte festiva qualquer umpode trabalhar porque gosta de festa, gosta de beber, de tocar, dedançar... mas a parte que eu me proponho a fazer é a mais difícil. Euacho que a minha relação vai ficar muito mais fortalecida, muito maisconfiável a partir de agora”.
A observação conjunta de suas declarações mostra a relação por ele estabelecida
entre ‘cultura negra’, blocos afro e candomblé39, a qual também é afirmada por membros
37 Grupo fundado em 1993, inicialmente para ser um bloco de trio, o que não se concretizou, transformando-se, então, em um grupo de dança para puxar blocos de trio.38 Em meu trabalho de campo em 1997, Gurita já dizia isso e era algo que parecia ser viável, pois durantetodo o tempo ele buscava colaborar com os grupos e manifestava essa vontade, sendo, então, apoiado poroutros dirigentes (ver Silva 1998:72-74), mas em 2000, ele novamente não foi eleito.39 O antagonismo existente entre o movimento negro e o movimento pentecostal, como conclui Burdick(2002), está fundamentado no fato de que “do lado do movimento negro, o pentecostalismo é visto comoinimigo porque está impregnado da tradição religiosa européia e porque declarou guerra à religiosidade afro.
228
dos grupos afro, para quem é difícil conceber que uma boa relação possa ser estabelecida
com a igreja evangélica – sentimento que também se estende à igreja católica, como se
verá em seguida. E se, de alguma forma, os personagens dos três exemplos acima
conseguem estar próximos dos blocos, isso acontece em função de sua condição anterior de
militantes do movimento afro-cultural. Um quarto exemplo deixará isso mais evidente. Em
2001, ainda que a contragosto dos dirigentes dos blocos afro, uma palestra com o deputado
federal Pastor Reginaldo Germano (PFL/BA), fez parte da programação da Semana
Nacional de Consciência Negra em Ilhéus. Pouquíssimas pessoas compareceram e a
palestra não aconteceu. A localização da escola onde ocorreria o evento foi importante para
o esvaziamento da palestra, mas o fato de ser um pastor – além de ser um político
conhecido na região, com uma boa base eleitoral entre evangélicos, especialmente da
Igreja Universal – também influenciou bastante. Isso não significa uma ‘xenofobia’
religiosa, embora seus pronunciamentos contra os ‘cultos afro-brasileiros’ tenham sido
uma alegação contrária à sua participação levantada por um dos presentes na reunião de
preparação da Semana da Consciência Negra em que a palestra foi proposta. O deputado é
até reconhecido como alguém que toca na questão racial40, mas o entendimento das
pessoas era que ele não teria nada a dizer a militantes de blocos afro. Além do mais, como
a proposta, assim como toda a articulação para o evento, partiu do secretário de Esportes e
Cidadania, político antigo da cidade – com cinco mandatos como vereador –, esta tentativa
de aproximação pareceu extremamente ‘eleitoreira’ aos olhos de alguns dirigentes, como
se Pastor Reginaldo estivesse buscando novas bases eleitorais junto aos blocos afro
utilizando o discurso da questão racial, o que também poderia vir a ser útil ao secretário.
Enquanto isso, os pentecostais solidários com a luta contra o racismo sentem-se alienados do movimentonegro por causa, entre outras razões, do compromisso deste último com as religiões afro.” (:207).40 Na ocasião, foi-nos dado um livrete com pronunciamentos de Reginaldo Germano na Câmara dosDeputados entre 1999 e 2001 a respeito de temas como ‘discriminação racial’, ‘segurança pública’ e ‘justiça’,editado pelo Centro de Documentação e Informação/Coordenação de Publicações da Câmara dos Deputados,Brasília, 2001.
229
Situação semelhante se passa na relação com a Igreja Católica, mas não exatamente
com a religião católica, o que acaba por facilitar um pouco o entendimento com a primeira.
A grande maioria dos integrantes dos blocos afro ilheenses se considera católica. Visitas às
casas de alguns deles para conversas ou entrevistas me permitiram ver imagens de santos
em suas paredes, bíblias na sala etc.
Na verdade, o pequeno número de praticantes de candomblé declarados ao Censo
de 1991 do IBGE na cidade pode ser explicado, entre outras razões, porque parece não
haver incompatibilidade entre ‘ser católico’ e ‘ser do candomblé’. É bem verdade que é
cada vez maior o número de pessoas, especialmente em Salvador, que desejam mudar a
concepção de candomblé como ‘religião de sincretismo’, afirmando sua ‘pureza’ e
negando a aproximação do catolicismo. No caso do Terreiro Tombency e do Dilazenze, em
Ilhéus, seu presidente é um defensor dessa separação. Contudo, ao longo de todo o período
de campo, foram inúmeras as manifestações religiosas de cunho católico que presenciei,
sobretudo no meio da ‘família Dilazenze’.
Em 2001, uma das filhas do vice-presidente do grupo freqüentava o catecismo para
fazer sua primeira comunhão. Nesse mesmo ano, numa das festas mais importantes do
Terreiro Tombency, a festa de Nanã, que acontece em julho, esta mesma menina e sua
prima, quase da mesma idade, vestiram-se como (lindas) ekédis41 – ainda não
confirmadas42 – e “dançaram na roda” pela primeira vez. Foi uma novidade e um grande
acontecimento, dotado, por diversas razões, de grande importância.
Em 1997, o Tombency encontrava-se na seguinte situação: a mãe-de-santo,
algumas filhas e netos moravam nos cômodos do terreiro – a camarinha (quarto de
41 Ekédi: “Moça, mulher auxiliar das filhas de santo em transe, amparando-as para que não caiam,enxugando-lhes o suor, levando-as à camarinha para vestir a roupa do orixá etc. Seu orixá deve seharmonizar com o da iaô que ela auxilia. A ekédi não entra em transe. Em alguns candomblés faz umainiciação ligeira, como a dos ogãs.” (Cacciatore 1977:111).
230
recolhimento, onde ficam reclusas as pessoas que estão se preparando para a iniciação ou
para o cumprimento de alguma etapa de sua vida religiosa) era o quarto de todos, enquanto
a cozinha do terreiro foi dividida e teve um espaço transformado em sala, cuja porta dá
para o barracão. Foi preciso ocupar os espaços do terreiro porque a antiga casa não tinha
condições de moradia em função de uma obra que já durava anos. Ao lado da casa, havia
as ruínas do antigo terreiro, onde se encontravam os assentamentos dos orixás na frente do
atual. A partir de 1999, as obras foram retomadas; a casa pôde voltar a ser habitada e no
lugar das ruínas foi construído o “quarto do santo”, onde estão os assentamentos. Nesse
mesmo ano, foi realizado um toque, uma cerimônia mais simples do que seria uma festa. E
em maio de 2000, finalmente houve a primeira grande festa pública (com duração de três
dias) do Terreiro de Eua Matamba Tombency Neto depois de alguns anos. Foi uma
obrigação para Angorô, orixá do pai pequeno da casa, que comemorava seus 21 anos de
feitura de santo, embora já tivesse completado 25 anos. Em dezembro, houve uma outra
grande festa, na qual também foram comemorados os 50 anos de feitura de santo da
ialorixá do Tombency, completados desde 1996.
A alegria de ver as meninas ékédis “dançando na roda” dizia respeito ao futuro do
terreiro, mas também ao futuro do Dilazenze. Seu presidente comentou o quanto era
importante para o grupo que o terreiro voltasse a “funcionar” para que “os netos”, que
entravam na adolescência, também pudessem ter a referência do candomblé, já que até
então eles não tinham visto (talvez apenas quando muito pequenos) as festas do terreiro. É
claro que durante todo esse tempo o terreiro ‘funcionou’, pois as obrigações internas, e até
umas poucas e pequenas cerimônias públicas, não deixaram de acontecer, e é até
presumível que as crianças participassem de alguma forma, já que costumam circular, na
42 Elas foram ‘suspensas’, ou seja, indicadas para o exercício dessa função por um orixá, um ano antes,também na Festa de Nanã. A confirmação ocorrerá num momento posterior, depois de obrigações e umperíodo de reclusão na camarinha.
231
medida do possível, livremente por todos os espaços. No entanto, elas não podiam
experimentar o que é considerado fundamental para a vida do Dilazenze – e dos blocos
afro de maneira geral: a música, a dança, as roupas, os gestos que só são vividos nas festas
públicas. O presidente do grupo dizia que a coreógrafa, na ocasião com vinte e poucos
anos, vivera intensamente as festas do terreiro na infância, que coincidiu com o nascimento
do bloco e do sucesso de seu grupo de dança, formado, em grande parte, por seus tios,
todos com funções no terreiro. E essa vivência teria colaborado imensamente para seu
aprendizado como bailarina e coreógrafa de dança afro.
E o que vale para a dança, também vale para a aprendizagem da percussão. Em
Encontros 1, mencionei a importância da vivência no candomblé, ou com alguém que
fosse próximo a ele, na formação dos grandes percussionistas de Salvador. Durante um
intervalo de uma festa do terreiro, alguns percussionistas do Dilazenze, que são também
ogãs, conversavam sobre o quão difícil e cansativo é tocar os atabaques durante as festas,
pois é preciso estar atento e preparado para provocar ou atender à solicitação de cada orixá,
o que sempre implica aceleração/redução do ritmo ou mudança deste repentinamente. Não
é preciso dizer que esta é a melhor escola de percussão que pode haver.
Compreende-se, assim, a alegria geral da família e dos que torcem pelo futuro do
terreiro e do grupo de ver as meninas vestidas de ekédi e dançando na roda pela primeira
vez. Nesse mesmo período, passou a ser comum vê-las com outras crianças imitando os
passos desenvolvidos na roda. Também passou a ser recorrente ver, especialmente os
meninos mais novos, tocando os atabaques durante o dia ou enquanto esperavam a festa
começar ou ainda nos intervalos desta, além da traquinagem de ficarem imitando as
manifestações dos orixás, com gritos, gestos e danças, e com imensa perfeição. Não deve
mesmo haver forma mais eficaz de aprendizagem e de garantia de que mais tarde, quando
232
tiverem de dançar e de tocar no Dilazenze ou em alguma outra situação, eles saberão
exatamente o que estarão fazendo.
Retornando à relação do Dilazenze, e do terreiro, com o catolicismo, setembro de
2001 foi um período extremamente interessante desse ponto de vista. No início do mês, um
percussionista do grupo e ogã do terreiro, participou de um cursilho43 masculino de um
fim-de-semana no seminário católico da cidade. Ao final do encontro, no domingo, os
participantes seriam recepcionados por suas famílias e lá compareceram sua esposa, sua
mãe e uma de suas irmãs. Além disso, foi solicitado que familiares e amigos escrevessem
mensagens em cartões com dizeres religiosos ou de amizade. Ao menos nas semanas
seguintes, foi notório seu entusiasmo para comparecer às missas.
Outro episódio ocorreu cerca de duas semanas depois, quando houve uma festa
importante no terreiro, a festa da Cabocla Jupira. Tratava-se da inauguração de sua
“cabana”, resultado também de uma obra longa, que se seguiu à recuperação da casa da
mãe-de-santo e à reabertura do terreiro. Sendo o espaço pequeno, a festa muito disputada e
o lugar extremamente quente, permaneci pouco tempo no recinto, e quase não fotografei.
Por alguns dias, em função de outras atividades, não retornei ao terreiro. Recebi um recado
de que as oferendas da cabana ainda não haviam sido retiradas esperando que eu pudesse
fotografar o lugar – que estava belíssimo. Uma interessante coincidência fez com que o dia
em que fui fotografar a cabana da Cabocla Jupira fosse também o dia em que esteve na
casa da mãe-de-santo “Nossa Senhora Peregrina”, uma imagem (Nossa Senhora de Fátima
ou alguma outra) que percorre cidades e é levada às casas que a solicitam, aí
permanecendo por um dia. Houve orações e cânticos católicos em torno da imagem.
43 Atividade comum na Igreja Católica, na qual as pessoas (em geral apenas homens ou apenas mulheres)ficam reclusas por alguns dias para rezar, ouvir palestras, fazer discussões, cantar...
233
Também fui convidada a fotografar a ‘santa’ e as pessoas presentes para as orações44: a
própria mãe-de-santo e algumas suas filhas, de sangue e de santo.
Em 1973, pouco antes de falecer, a mãe e antecessora da atual mãe-de-santo
concluiu a construção de uma pequena capela dedicada à Senhora Santana – que
corresponderia, segundo o sincretismo, à Nanã, seu orixá – em frente ao terreiro, para que
a missa em comemoração ao seu dia pudesse ser realizada ali e para que fossem feitas
todas as obrigações do terreiro que necessitam de uma igreja, especialmente as de
iniciação, quando a ‘iaô’ – ou ‘muzenza’, como se denomina no candomblé angola – deve
participar de uma missa ao final de sua preparação. Durante todo o período de campo, a
capela foi usada como moradia para um filho e netos da mãe-de-santo.
A igreja católica em Ilhéus, por sua vez, tem buscado uma aproximação junto aos
terreiros, ainda que somente através do reitor do Seminário e de seus assessores,
responsável pela Pastoral Afro de Ilhéus e presidente da Alufá-Gê – Associação do
Resgate da Identidade e da Cultura Negra e Necessitados45, uma entidade católica
vinculada à Pastoral Afro. O termo ‘necessitados’ como parte do nome da associação foi
acrescentado a partir do entendimento dos membros fundadores de que a entidade não
deveria ser exclusivamente dedicada “ao negro”, mas a “todos” que estivessem em
condições sociais desfavoráveis, que atingem principalmente a população negra, mas não
somente.
Em Ilhéus há alguns anos e um dos pouquíssimos padres negros da cidade, o
presidente da Alufá-Gê fomentou a fundação de uma Pastoral do Negro – depois chamada
de Pastoral Afro – na Diocese e conseguiu que algumas paróquias criassem seus núcleos –
havia quatro núcleos em 2001. O principal objetivo da pastoral é “proporcionar vivências a
44 As fotografias com a imagem foram anteriores às da cabana. Para estas, a mãe-de-santo se produziu comuma roupa feita com um tecido de estampa no estilo afro.
234
partir do Evangelho no resgate da cultura afro-brasileira, perpassando pela conscientização
individual e coletiva da identidade do negro”46. Ao menos naquele momento, suas
atividades estavam centralizadas na realização de “missas em estilo afro”, ou seja, cânticos
em ritmos “africanos”, tocados com atabaques e outros instrumentos percussivos de
“origem africana”, e letras sobre a “questão negra”, ou seja, letras sobre discriminação
racial, escravidão, pobreza; além disso, há um ornamento específico para a igreja, com
muitos tecidos estampados, palhas, cestos e folhas. Esta era a ornamentação nas três
ocasiões em que participei de atividades religiosas organizadas pela pastoral, duas em
“parceria” com o movimento afro-cultural47. Ele também é engajado num movimento
interno à igreja de bispos, padres e diáconos negros, tendo Ilhéus sediado o 4o Encontro de
Bispos, Padres e Diáconos Baianos Negros em 2001, o que seria uma “conquista” diante
do preconceito racial que o padre reconhece existir na cidade.
O primeiro movimento mais concreto de aproximação entre igreja católica, grupos
afro e terreiros ocorreu por ocasião das atividades da Semana Nacional de Consciência
Negra de 1997. Naquele ano, o então gerente de ação cultural da Fundação Cultural de
Ilhéus (FUNDACI) e principal representante local do Movimento Negro Unificado48,
tentou articular que a organização da Semana fosse conjunta entre o governo municipal e
sua entidade, os grupos afro e a Pastoral Afro. Tal aproximação foi provocada
45 O nome da entidade, como contou seu presidente, foi sugerido por seus integrantes. O termo ‘alufá’significaria sacerdote em iorubá e a partícula ‘Gê’ refere-se a seu nome, Getúlio.46 Conforme consta do documento “Projeto da Pastoral do Negro da Diocese de Ilhéus”, s/d.47 A terceira atividade foi um “casamento afro” celebrado na Catedral de São Sebastião, um “marco” para aconsolidação da pastoral afro em Ilhéus, segundo alguns de seus membros, que valorizaram ainda mais o atoposteriormente, comentando sobre o fato de que alguns freqüentadores da igreja, brancos, se retiraram dacerimônia, gesto entendido como de desaprovação. Esta era a prova de que a realização do casamento naCatedral fora uma audácia apoiada pelo bispo e que consistia, por isso, num grande avanço na Diocese. Poroutro lado, as reações de alguns membros do Dilazenze presentes também foram bem interessantes edistintas: seu presidente se retirou desaprovando o “uso” de elementos do candomblé no ritual; já seu vice-presidente acompanhou toda a cerimônia, realizando todos os gestos e orações, apesar de risos e olhares dedesaprovação em alguns momentos. Contudo, foi muito visível seu entusiasmo quando uma mãe-de-santopresente, que estava co-celebrando o casamento, cantou uma zuela a Oxalá, seu orixá.
235
principalmente pelo gerente de ação cultural, que embora seja do candomblé, militou na
igreja católica na juventude e naquele momento estava bem próximo dos blocos afro por
ter participado da reativação do CEAC e por ser, ao menos em tese, seu canal de
comunicação com o governo. A organização conjunta resultaria num ato ecumênico, mas
isso foi possível pois os representantes da igreja protestante convidados não aceitaram
participar. Houve, sim, um ato religioso – um “ato de reflexão”, como ficou sendo
denominado o evento – no pátio de uma escola secundária, com leituras da bíblia, cânticos
católicos, também atabaques, passos de dança do candomblé, roupas como as que seriam
usadas por escravos, oferendas que representavam ‘coisas’ ligadas ao ‘negro’, como
comidas ‘típicas’ (pipoca, milho, acarajé...), utensílios de barro e de palha, além de muitos
pronunciamentos.
O grupo de dança do Dilazenze e mais recentemente também o grupo formado
pelas crianças do Projeto Batukerê são constantemente convidados a se apresentar em
algum encontro promovido pela igreja católica, seja no Abrigo São Vicente, próximo ao
Dilazenze, com o qual existe uma espécie de parceria informal – os grupos se apresentam
gratuitamente e às vezes o Dilazenze solicita o espaço para algum evento, ou pede
doações... –, seja em eventos maiores, promovidos pela Diocese. Exemplo desse último foi
a apresentação do grupo no show de encerramento do X Encontro Intereclesial das
Comunidades Eclesiais de Base, de 11 a 15 de julho de 2000, uma grande reunião
promovida pela igreja católica. Nessas ocasiões, o Dilazenze é apresentado como um grupo
‘folclórico’ e o show é mais ‘turístico’: as meninas vestidas de ‘baiana’ ou de ‘gabriela’49
se apresentando em coreografias mais simples do que as da dança afro propriamente dita.
48 Sua participação no governo foi devida a uma coligação do PT, seu partido, com o PSDB, então partido deJabes Ribeiro, eleito prefeito em 1996. Em 1998, a coligação acabou graças ao apoio do prefeito a FernandoHenrique Cardoso, candidato à presidência apoiado por ACM. O líder do MNU, então, deixou o governo.49 Estar vestida de ‘gabriela’ significa, em geral, usar um vestido estampado com flores, curto e decotado nomodelo ‘tomara-que-caia’. Em Ilhéus, ‘gabriela’ também pode ser uma profissão: da moça que se veste desta
236
Dessa forma, o Dilazenze, assim como outros grupos, é percebido mais como um produto
da “cultura regional”, do que como um grupo do movimento negro, o que faz com que a
relação com a igreja católica tenha o mesmo significado de uma relação comercial ou com
algum outro setor profissional.
Em 2001, também por ocasião das comemorações da Semana dedicada a Zumbi
dos Palmares, uma nova aproximação se deu entre a igreja e os blocos afro. O primeiro
intermediário entre os grupos foi o então secretário municipal de Esporte e Cidadania,
também membro da Alufá-Gê. Naquele momento, sua proximidade com o CEAC se dava,
principalmente, em função da criação do Memorial da Cultura Negra, que passava por sua
secretaria, e do convênio estabelecido com o Dilazenze para o repasse de verbas para o
Projeto Batukerê, assunto do próximo capítulo. Diferentemente de 1997, houve, de fato,
uma tentativa de organização conjunta de quase todas as atividades, entre as quais alguns
debates e uma missa, que ocorreram no Abrigo São Vicente. As opiniões dos membros da
Pastoral Afro sobre a ação dos blocos é muito semelhante às de outros setores do
movimento negro – o que será enfocado adiante – e, talvez por isso, a participação da
Alufá-Gê foi restrita aos atos ‘reflexivos’, como os painéis de discussão, e a missa. A parte
“festiva”, que correspondeu a um show dos blocos afro na Praça da Conquista e a um
torneio de futebol, ficou toda a cargo do CEAC.
Os debates foram esvaziados, mas a missa, assim como o show que ocorreu logo
após, foram concorridos. A missa foi preparada como um grande acontecimento, mais um
‘marco’ para a ‘igreja católica ilheense’. A proposta inicial do padre responsável pela
Pastoral Afro era realizá-la na Catedral, para demonstrar força perante a elite branca da
própria igreja que condenava “esse tipo de missa”, mas foi “desaconselhado” pelo bispo da
forma para trabalhar em hotéis, restaurantes ou até mesmo em navios de turistas que chegam à cidade, diz-seque “é gabriela”, que “trabalha de gabriela”.
237
Diocese, que achava que aquele ainda não era o momento50. De qualquer forma, a ocasião
foi concebida como muito especial: pela primeira vez o próprio bispo celebrou uma missa
em estilo afro e ainda havia a presença do prefeito, com alguns assessores, do secretário de
Esporte e Cidadania e de duas ou três mães-de-santo, entre elas a do Terreiro Tombency,
que usava um abadá de origem africana51. Aliás, eram muitas as pessoas que exibiam
alguma roupa ou acessório em ‘estilo afro’, inclusive assim eram os paramentos dos
celebrantes da missa.
A ‘produção’ do evento foi toda da Pastoral Afro, que solicitou, porém, que os
percussionistas para a missa ficassem a cargo dos blocos, pois a pastoral tinha suas
próprias bailarinas que costumavam se apresentar nas missas afro. O responsável pelos
blocos nessa comissão conjunta não providenciou os percussionistas, mas rapazes da
própria igreja tocaram durante a cerimônia, o que fez com que este fosse um evento
exclusivamente produzido pela igreja e, até porque haveria o show posteriormente e muitas
providências de última hora precisavam ser tomadas, quase não houve a participação de
dirigentes dos blocos.
Terminada a Semana, o padre reclamou da ausência dos componentes dos blocos,
de sua pouca participação nos eventos, principalmente nos debates, e da não colaboração
na missa, conforme sua solicitação. Já o representante do CEAC reclamou da falta de apoio
da Alufá-Gê para os demais eventos programados, os da ‘parte festiva’, assim como dos
poucos presentes oriundos da pastoral afro ou da associação até mesmo nos debates. Na
verdade, a “parceria” entre a igreja católica e os blocos afro se restringiu, efetivamente, a
um conjunto de cerca de dez pessoas participando de todos os eventos.
50 Uma informação de Agier a respeito do Ilê Aiyê mostra a enorme diferença entre a igreja católica deSalvador e a de Ilhéus: este autor diz que Vovô, presidente do Ilê, é membro da Confraria da Igreja de NossaSenhora do Rosário dos Pretos, na qual em todo 1o de novembro é realizada uma missa em comemoração aoaniversário do grupo. Toda a cerimônia (músicas, objetos do ritual do ofertório e orações) tem como tema omesmo escolhido para o desfile do grupo no carnaval seguinte. Depois da missa, o bloco sai em procissão atéo Forte de Santo Antônio, onde realiza um ensaio (2000:125).
238
Em todas essas ocasiões de aproximação entre a igreja católica e o movimento afro-
cultural, chama a atenção que também aqui vêem-se reproduzidos o problema e a solução
dos movimentos negros da década de 70: tenta-se superar a heterogeneidade dos
movimentos – latente nos debates e nas acusações mútuas – a partir do candomblé como o
substrato comum a eles, ou seja, como ‘fonte’ de ‘cultura negra’. As formas de interação
da igreja católica com o movimento dos blocos afro levam a concluir que “o resgate da
cultura afro-brasileira”, um dos objetivos da pastoral afro conforme descrito páginas atrás,
passa pela coleta de elementos presentes no candomblé – a roupa, a dança, o ritmo, a
comida, até a língua (em algumas missas, há cânticos e orações que utilizam expressões
iorubá ou angola, quando alguma mãe-de-santo da cidade é convidada a participar) – vistos
como ‘originais’, como representantes de uma ‘cultura’ ausente no dia-a-dia dos fiéis
católicos, mas ‘guardada’, ‘preservada’ pelos praticantes do candomblé. Desse ponto de
vista, os blocos afro se encaixam adequadamente na proposta: trabalham elementos do
candomblé sem serem entidades religiosas. Assim, tem-se acesso à ‘cultura negra’ do
candomblé, sem que seja preciso comprar o pacote inteiro. É bem verdade que há também
tentativas de aproximação da igreja com o próprio candomblé, mas, em geral, nos espaços
católicos, sob a fórmula de ‘um mesmo Deus, sob diferentes formas’. E, diante do que foi
apresentado anteriormente a respeito da relação de pessoas ligadas ao candomblé com a
religião católica, isso não é muito difícil, embora esses momentos de interação se resumam
a alguns poucos eventos anuais.
Bloco afro e subjetividade negra
O Ilê Aiyê, como primeiro bloco afro, foi criado a partir da apropriação dos
elementos que compõem um bloco de carnaval, tais como música, tema, fantasia e
alegoria, e do investimento sobre eles do que foi considerado como o mais puramente
51 O abadá fora trazido de Londres como presente por um casal de amigos.
239
negro, de origem africana, ou como herança mais próxima do que era africano, guardado
pelo candomblé. Essa foi uma forma de seus fundadores diferenciarem-se do que existia,
fazendo-se mais negros, fazendo outras pessoas se sentirem mais negras, inventando o que
seria daí em diante considerado mais negro, chamado de ‘afro’ posteriormente.
Como visto em Encontros 1, Salvador estava se reafricanizando nos anos 70, e os
blocos afro são tanto conseqüência quanto contribuição para isso. E sua importância
central está no fato de que nenhum outro grupo ou movimento poderia ser tão
manifestamente negro em sua estética, associada à sua música, quanto um bloco de
carnaval, que permite a fantasia e a exibição como não se faz no dia-a-dia. Assim, os
principais elementos considerados ‘étnicos’ passaram pelo carnaval, mas ganharam outros
domínios, foram para as ruas e para outras atividades que movimentam os grupos afro
durante todo o ano, quando estes estruturam-se para isso.
Esta seção pretende, então, apresentar e analisar os principais elementos que
participam da composição de um bloco afro, não apenas no carnaval, como também em
outros momentos. A partir da rápida explicação de Deleuze (1992:203-4) sobre os gêneros
do conhecimento, pode-se dizer que a música, a dança, a indumentária, os temas produzem
uma idéia, um conceito de ser negro – “novas maneiras de pensar”. O conceito inspira,
produz novos perceptos e afectos, que são também dimensões do conceito. Têm-se, assim,
novas formas de se vestir, de usar os cabelos, de se movimentar que são singulares. Trata-
se de um percepto que funciona para si e para outros quando se dança de tal forma, se toca
tal ritmo, se compõe uma música enfocando um tal tema – “novas maneiras de ver e
ouvir”. E, a partir dos perceptos, novos afectos, ou seja, “novas maneiras de sentir” e de
devir negro, tornar-se outro52...
52 Deleuze sobre o mesmo tema: “É que o conceito, creio eu, comporta duas outras dimensões, as do perceptoe do afecto. É isso o que me interessa, e não as imagens. Os perceptos não são percepções, são pacotes desensações e de relações que sobrevivem àqueles que os vivenciam. Os afectos não são sentimentos, são
240
A dança afro
Agier sustenta que o Ilê Aiyê introduziu um novo tipo de samba no Brasil, um
“samba re-etnicizado, em função da reafricanização” (2000:159). Nesse novo samba, não
só o ritmo é novo, mas também a dança. Do samba que se conhecia, guarda-se a ‘ginga’,
mas o grupo produz um novo estilo, novas regras que definem o que é dança afro, cujas
características fazem referência a uma origem africana, de uma África longínqua e no
passado, mas também ao candomblé, uma África atual na Bahia (:159-60). Quando escreve
Carnaval Ijexá..., em 1981, Risério revela que no Ilê não há alas de dança nem um modelo
de coreografia para não oprimir as pessoas com uma forma única de dançar (1981:44): “No
Ilê, o destaque são todos”, diz um dos membros do grupo. Já Agier (2000), baseado em sua
pesquisa realizada na primeira metade da década de 90, descreve o desfile do Ilê Aiyê com
uma pequena ala de dança formada por seis pessoas sobre um caminhão e um outro grupo
de componentes também formando uma ala de dança no chão. Além disso, há dois
dançarinos mais prestigiados: um homem, que é sempre o mesmo, e uma mulher, a “Deusa
de Ébano” eleita na Noite da Beleza Negra (:95). Segundo Guerreiro (2000:40), o Malê
Debalê, surgido em 1979, foi o primeiro bloco afro a ter uma ala de dança em seu desfile.
Ribard, referindo-se genericamente aos blocos afro, diz que cada ala tem sua própria
coreografia, como se fossem sub-grupos no interior de um bloco, homenageando orixás
específicos (1999:434).
A contribuição do Ilê Aiyê na divulgação da dança afro é inegável; contudo, é
difícil conceder ao grupo a ‘invenção’ do estilo. Além dos afoxés, que já reproduziam
passos de candomblé nas ruas desde finais do século XIX, já no final da década de 60 e
início da de 70, havia grupos que estilizavam as danças dos orixás em apresentações
devires que transbordam aquele que passa por eles (tornando-se outro). (...) O afecto, o percepto e o conceitosão três potências inseparáveis, potências que vão da arte à filosofia e vice-versa.” (Deleuze 1992:171)
241
teatrais, como aquela de que Mário Gusmão participou em 1971 (Bacelar 2003:238). Sua
experiência nesse e noutros espetáculos, e a ‘descoberta’ de sua ‘negritude’ e da dança afro
com seu amigo Clyde Morgan, que tinha relações com o candomblé, fizeram de Mário
Gusmão um dançarino profissional de ‘afro’. É verdade que ele chegou a participar do Ilê
Aiyê no final dos anos 70, mas sua formação como bailarino de dança afro já era um fato.
E sua experiência como dançarino foi, certamente, sua maior contribuição para o
surgimento do movimento afro-cultural de Ilhéus.
Entre as inúmeras diferenças existentes entre os blocos afro de Ilhéus e aqueles de
Salvador (ao menos dos principais, cujas histórias são mais divulgadas), uma que se
destaca é quanto à origem dos primeiros blocos ilheenses, aqueles surgidos nos anos 80:
vários nasceram a partir de grupos de dança afro. Alguns formaram-se a partir da dança e
depois de algum tempo tornaram-se blocos afro; outros já foram criados como blocos afro,
mas o grupo de dança foi a primeira atividade do grupo. Mário Gusmão esteve diretamente
ligado ao surgimento de dois deles e, indiretamente, a alguns outros. Além disso, não se
pode esquecer que a competência de Gusmão deve ser conjugada com a proximidade com
o candomblé das pessoas que iniciaram os primeiros blocos.
Retomando rapidamente a origem dos primeiros blocos, tanto o Miny Kongo
quanto o Lê-guê Depá surgiram a partir de pessoas que inicialmente se organizaram para
dançar. Foi a dança afro que aproximou Luiz Carilo, que era bailarino clássico, da mãe-de-
santo do Tombency, que dança para os orixás. Ele desejava “aprender o afro”. Essa troca
de experiências rendeu bons frutos: organizaram-se como grupo de teatro – com a
participação de Pedro Mattos – e de dança; fundaram a SACI – Sociedade de Artistas em
Artes Cênicas de Ilhéus –, em cuja ata de fundação D. Ilza consta como “dançarina
profissional primitiva”, assim como três de seus filhos que também assinam a ata;
apresentaram-se num espetáculo de dança – vestidos como baianas e orixás – na Lavagem
242
da Catedral de São Sebastião de 1981 e fundaram o Lê-guê Depá, promovendo o primeiro
desfile no carnaval deste mesmo ano.
O Miny Kongo foi fundado em novembro de 1980 com a proposta de ser bloco
afro, mas não desfilou em 1981; logo depois do carnaval, Mário Gusmão chegou em
Ilhéus, foi morar no Oiteiro de São Sebastião e trabalhar na Academia Raízes, para onde
levou vários jovens vizinhos e lhes ensinou dança afro; dessa primeira organização,
juntamente com Atanagildo e Veludo, este último pai de alguns dos alunos de Gusmão, o
Miny Kongo estruturou-se para seu primeiro carnaval em 1982. E em seus dois primeiros
anos, o grupo de dança do Miny Kongo, no segundo ano já com a presença também de D.
Ilza e filhos, foi “sucesso” em toda a região.
Logo depois, surgia o Axé Odara também tendo origem num grupo de dança,
praticamente o mesmo que participou da fundação do Miny Kongo, com Mário Gusmão à
frente, mas também com D. Ilza e filhos. E, embora o grupo tenha desfilado já no carnaval
seguinte à sua fundação, ele é mais reconhecido como um grupo de dança e de teatro que
desfilava no carnaval do que como um bloco afro que possuía um grupo de dança.
Um exemplo ainda mais contundente do predomínio dos grupos de dança naquele
momento é o surgimento do Força Negra, que nasce mesmo como grupo de dança e
somente após dois anos atuando desfila em seu primeiro carnaval. Houve ainda grupos
como o Raça Negra, também na Conquista, formado por ex-componentes do Rastafiry e do
Axé Odara, que durou cerca de um ano e nunca se constituiu em bloco.
O Dilazenze, fundado em 1986, foi originalmente pensado como um bloco afro,
mas sua primeira e principal atividade foi seu grupo de dança que, segundo conta seu
presidente, nasceu com o diferencial de ser ainda mais voltado para a estilização das
danças dos orixás e logo fez muito sucesso. Anotações, panfletos e notícias de jornal de
243
fato comprovam uma intensa atividade dos grupos de dança afro naquele momento na
cidade.
Já entre os blocos afro surgidos na década de 90, apenas um, o Zambi Axé, nasceu
a partir de um grupo de dança – o Zalamandra, que não era afro. Os demais surgiram já
como bloco ou como banda afro. Pode-se supor que esta mudança seja proveniente do
sucesso de grupos como o Olodum e o Ara Ketu, assim como dos blocos mais antigos de
Ilhéus, atuando sob esse formato a partir do final dos anos 80. Tal como aconteceu com os
grupos de dança, alguns blocos se constituíram como uma etapa posterior de sua formação
como banda; outros se mantiveram assim e acabaram extintos num momento de retração
do estilo a partir da metade da década de 90, quando a ‘axé music’ ou o ‘pagode baiano’
passaram a ser mais requisitados pelos hotéis da cidade, principais contratadores dos
blocos.
Atualmente, apenas o Miny Kongo e o Dilazenze dedicam-se a preparar espetáculos
de dança afro na cidade; porém, só este último tem um grupo de dança em permanente
atividade, e é o que tem garantido sua visibilidade em relação ao trabalho artístico. O Balé
Afro Dilazenze, como é chamado, recebe convites para se apresentar em eventos
promovidos pela prefeitura e pela universidade local53. Há algumas outras poucas
oportunidades, todas, em geral, mal remuneradas ou mesmo prestadas como favores. Mas o
grande mérito do grupo está no fato dele mesmo produzir eventos como shows em escolas,
‘mostras de cultura’, oficinas de dança e a apresentação da ala de dança no desfile de
carnaval, que se tornou uma das atrações mais esperadas. O Miny Kongo também participa
de alguns eventos e promove outros, mas sempre em menor intensidade do que o
53 Durante um certo período, alguns componentes do Dilazenze participaram de um grupo de dança afroformado na Universidade Estadual de Santa Cruz, que lhes dava uma pequena ajuda de custo. A coreógrafado grupo chegou a ensinar dança afro para crianças atendidas por um projeto social da universidade. Alémdos pequenos cachês recebidos vez por outra, essas foram as únicas oportunidades em que esses bailarinosforam pagos pela atividade de dançar.
244
Dilazenze. Ambos já prepararam espetáculos para serem especialmente apresentados no
Teatro Municipal de Ilhéus, inclusive com venda de ingressos. Entre os demais grupos, o
Zambi Axé e o Guerreiros de Zulu também investem na preparação de dançarinos e
seguem o modelo do Dilazenze de ter uma ala de dança que realiza coreografias
específicas durante o desfile. Nos outros blocos, os grupos de dança são compostos por
pessoas, em geral meninas, que se apresentam nos shows da banda percussiva nos hotéis e
nos ‘receptivos’ para os navios que chegam com turistas.
Uma diferença marcante entre os grupos de dança afro atuais e aqueles formados na
década de 80, em seu período ‘áureo’, está na participação masculina: apesar de não ter
registro de todos os participantes de todos os grupos, pode-se dizer que a maioria dos
componentes eram homens. Uma primeira mudança da composição de gênero ocorreu
ainda nos grupos já então formados. No mais famoso deles, o Axé Odara, foram as
desavenças internas e acusações ao então dirigente que assumiu o grupo após o
afastamento de Mário Gusmão, que levaram à saída de grande parte dos rapazes, mas
também das moças. O Axé Odara passou por uma renovação a partir da entrada de novos
componentes, principalmente mulheres, e seguiu para Porto Seguro. No caso do Miny
Kongo, uma boa parte de seus componentes iniciais foi para o Axé Odara; o grupo de
dança foi assumido, então, por pessoas que mais tarde viriam a fundar o Força Negra, entre
elas vários rapazes. O Dilazenze começou seu grupo de dança com um número equilibrado
de homens e mulheres, pelo que consta em anotações antigas do grupo, sendo seu primeiro
diretor do grupo de dança o também primeiro presidente do bloco. Com o tempo, o grupo
de dança do Dilazenze foi perdendo os rapazes e as mulheres passaram a ser maioria,
245
assumindo a direção do grupo: primeiramente foram as filhas mais novas da mãe-de-santo
do Tombency, depois uma de suas netas, a atual coreógrafa54.
Atualmente, o grupo de dança do Dilazenze se apresenta com um número muito
maior de mulheres do que de homens. A divisão sexual no grupo é bem marcada: mulheres
na dança e homens na percussão. Esta é uma divisão bastante usual, seja em blocos afro ou
não. No entanto, por se tratar de um grupo tão estreitamente ligado a um terreiro de
candomblé, não se pode negligenciar esta relação, e mais uma vez a influência da religião
pode ser bem notada, já que também no candomblé há uma divisão sexual acentuada:
homens tocam atabaques, são ogãs; mulheres viram no santo e dançam na roda; homens
que viram no santo são homossexuais ou são julgados assim.
Em 2000, nas reuniões de planejamento do Projeto Batukerê55, havia uma
preocupação em evitar que as crianças e adolescentes participantes também assumissem
essa postura de divisão de ‘tarefas’ por gênero. Assim, foi decidido que todos deveriam
participar de todas as oficinas oferecidas pelo projeto: dança afro, percussão, criatividade
(artesanato, teatro) e capoeira. A princípio, a participação de meninos na oficina de dança e
de meninas na percussão era satisfatória e algo exótica: todos comentavam sobre como
alguns meninos dançavam bem e sobre a disposição de tocar percussão, mesmo os
instrumentos mais pesados, que as meninas demonstravam. No entanto, não tardou muito
para que a divisão se estabelecesse e, apesar dos apelos dos instrutores, os meninos não
compareciam mais à oficina de dança. Já as meninas freqüentaram por mais tempo a
oficina de percussão, pois, se por um lado, os meninos sofriam mais pela estigmatização
em torno da dança – ou temiam por isso –, por outro, parecia ser mais aceitável, e mesmo
mais admirável, que as meninas tocassem.
54 No momento, ela se encontra afastada, embora continue dando “assistência” a uma outra neta de D. Ilza,responsável pelo grupo.
246
Durante alguns anos, outro grupo afro de Ilhéus, o Rastafiry, teve um Banda
Feminina de percussão e, segundo seu dirigente, esse era o segmento mais requisitado do
grupo para a realização de shows, era seu diferencial em relação aos demais blocos. Nos
últimos anos, a banda não tem se apresentado mais, porém, o trabalho gerou resultados: o
Rastafiry ainda possui o maior número de mulheres em sua bateria.
No meio masculinizado dos blocos afro, são raras as mulheres que atuam em suas
baterias. De acordo com a opinião de um dirigente, “não há mulheres na bateria porque
nossa batida é muito difícil, às vezes nem homem aprende” – declaração que explicita um
pensamento dominante no meio dos blocos afro, embora poucos tenham coragem de
afirmá-la de maneira tão contundente. Vê-se, assim, que uma outra proposta de visão de
mundo, que uma subjetividade feminina precisa ser continuamente produzida a fim de
possibilitar a criação de ‘novos mundos’ diferentes deste em que os meninos do Batukerê
podem pressionar as meninas que desejam tocar percussão baseados na idéia de que este é
o seu lugar, não o delas. O esvaziamento das oficinas a partir da divisão de gênero fez com
que começasse a haver uma reivindicação geral pela possibilidade de escolha das aulas que
se desejaria fazer, o que acabou por ‘oficializar’ a ‘divisão sexual’ da arte.
A influência do candomblé na constituição do que veio a ser conhecido como dança
afro é mais do que notória. A estilização da dança dos orixás é a base ‘do afro’. De acordo
com o presidente do Dilazenze, este foi o grande trunfo de seu grupo de dança em seu
surgimento: em função de sua “real” relação com um terreiro, mais e melhor do que os
outros o grupo saberia fazer uso do que conhecia sobre a dança dos orixás. Especialmente
no caso desse grupo, por sua ligação com o terreiro, o candomblé está sempre muito
presente, seja por seus elementos, seja pela competência dos bailarinos, seja pelos cuidados
que devem ser tomados com a forma de tocar – o ritmo empregado não pode ser tão forte
55 Trata-se de um projeto social com crianças e adolescentes da comunidade do Dilazenze que será
247
quanto o que se usa para chamar os orixás. Há uma grande preocupação com o que
poderia ser chamado de ‘saúde religiosa’, isto é, um bailarino designado para uma tal
função – desempenhar o papel de um orixá, por exemplo – deve estar com suas obrigações
religiosas em dia, se ele as tiver, para não correr o risco de “sentir-se mal”, ou seja, de
sofrer os primeiros sintomas da possessão mas não chegar a entrar em transe por não ser
iniciado, ou mesmo de virar no santo. Durante um ensaio em 2001, um dos dançarinos,
que já fora avisado que tinha obrigações a cumprir, começou a entrar em transe durante o
ensaio de um dos números, cujo tema era a dança de Iansã e Xangô. Todo o grupo foi
duramente repreendido pela mãe-de-santo, pois se as pessoas “de dentro” tivessem notado
o que estava para acontecer, poderiam evitar a situação diminuindo o ritmo dos atabaques
ou interrompendo o ensaio. O dançarino, por sua vez, também foi lembrado de que
precisava fazer o que “havia para ser feito”. Na ocasião, foram relatados outros episódios
em que fatos semelhantes teriam acontecido. Uma delas foi durante um espetáculo em que
membros do Dilazenze tocavam, mas a possessão só foi notada por quem é “de dentro”,
pois aos olhos do público parecia parte da cena.
Entretanto, os agenciamentos que produziram o que passou a ser chamado como
dança afro desvincularam-na do candomblé, não sendo a religião sua única fonte.
Documentários sobre tribos africanas disponíveis em fitas de vídeo ou filmes que tenham o
continente africano como cenário também são recursos úteis, pelo menos para blocos afro
como os de Ilhéus, que não têm acesso a outros materiais. Porém, depois do candomblé,
talvez a mais importante fonte de informação sobre dança afro para os grupos de Ilhéus
sejam as visitas, embora não muito freqüentes, de Zebrinha, bailarino de referência
nacional para a dança afro e diretor e coreógrafo do Balé Folclórico da Bahia, famosa
companhia de dança de Salvador. Vez por outra, ele é convidado pela prefeitura para
apresentado no próximo capítulo.
248
oferecer oficinas de dança na cidade. Nessas ocasiões, a dança afro é valorizada e mesmo
bailarinos das academias de balé clássico participam das aulas56. Além disso, intercâmbios
com grupos de Salvador também são apontados como importantes para a aquisição de
conhecimento. Ultimamente eles têm sido raros, mas comenta-se que “em outros tempos”
– sempre é dito que houve um outro período muito melhor para os blocos afro de Ilhéus
–eram constantes as viagens para a capital baiana a fim de trocar experiências com grupos
famosos, como o Olodum e o Ilê Aiyê.
A roupa afro
O candomblé também fornece muitos dos elementos que compõem a indumentária
utilizada nos espetáculos dos grupos afro de Ilhéus, especialmente quando estes tematizam
a dança dos orixás. Porém, para os desfiles no carnaval e outros shows, a inspiração é a
África, preferencialmente aquela chamada de ‘primitiva’, a das “tribos”. Nesse caso,
novamente documentários, filmes e revistas são as principais fontes. Em função da falta de
recursos, os mais diferentes materiais podem ser utilizados como modelo, entre eles
imagens dos grupos de Salvador conseguidas em fitas de vídeo ou pela transmissão da TV,
mas também livros de fotos com temas africanos, revistas e documentários produzidos pela
“National Geographic”, aos quais alguns poucos grupos têm acesso, assim como filmes de
ficção, como a antiga série de TV “Tarzan” e outros mais recentes como o filme
hollywoodiano “Um Príncipe em Nova York”, que conta a história de um ‘príncipe’ de um
país africano que vai procurar uma noiva nos Estados Unidos. As pessoas que se referiram
ao filme como fonte disseram que seu interesse nele passava pela observação das roupas
utilizadas pelos ‘africanos’. No caso de “Tarzan”, a “África” apresentada é concebida
como mais “primitiva” e inspira roupas para espetáculos de dança afro também
56 Ao longo de meu trabalho de campo, iniciado em 1997, embora não tenha presenciado nenhuma dessasoficinas, soube algumas vezes da estada de Zebrinha na cidade. Uma dessas ocasiões, precisamente daquele
249
“primitiva”, como a “dança do fogo”, tema de performance de diferentes grupos. Livros
didáticos ilustrados com figuras sobre o período da escravidão, telenovelas de época ou
mesmo pinturas também foram citados. Um ex-dirigente comentou que uma de suas
inspirações para a criação de indumentárias para seu bloco foi um quadro que retratava o
cotidiano dos escravos no Brasil, com suas roupas de algodão cru, e que inspirou Castro
Alves em seus poemas. Possivelmente era um Rugendas.
Nesse aspecto, a estrutura dos grandes blocos de Salvador é muito diferente daquela
dos de Ilhéus que, possivelmente, se assemelha à dos pequenos blocos da capital. Ainda na
década de 70, o Ilê Aiyê já pôde contar com artefatos, tecidos, modelos diretamente vindos
da África. Em 1977, por exemplo, um de seus componentes, Macalé, e Mário Gusmão,
ainda não integrado ao grupo na ocasião, foram à Nigéria para o II Festival de Artes
Africanas em Lagos e trouxeram muito do que seria utilizado pelo Ilê Aiyê no carnaval de
1979, quando homenageou aquele país. Agier (2000) informa que os responsáveis pelas
pesquisas no Ilê Aiyê chegaram a viajar para Angola, Senegal e Benin. Conhecer de perto
os países africanos era uma forma de mudar o foco da África ‘primitiva’ e ancestral para a
África contemporânea, enfatizando as dimensões políticas e culturais desses países (:79).
Através de um “intercâmbio cultural” com países africanos promovido pela Fundação
Gregório de Matos (Guerreiro 2000:105), as viagens foram financiadas pelo governo
municipal, possibilitando que membros dos grandes blocos de Salvador visitassem o
continente africano, coletassem material e realizassem pesquisas que seriam
posteriormente desenvolvidas nos desfiles. Em depoimento a Risério (1981:42), Vovô,
presidente do Ilê, diz que a roupa do bloco é o resultado da mistura de diversos elementos
do ‘povo’ ou da ‘região’ enfocada; a roupa é estilizada, não copiada, e pode agregar
informações sobre “costumes, política, religião.”
ano, encontra-se registrada no trabalho de Vale de Almeida 2001:48-9.
250
Como visto, é prática comum aos grupos afro a produção de ‘apostilas’ ou enredos
a respeito do tema escolhido para aquele ano que orientarão a composição do carro
alegórico – o ‘carro de som’ – e a criação das fantasias, mas sobretudo a composição das
músicas que serão cantadas durante o desfile. Especialmente em seu início, era comum que
os grupos afro tivessem ‘grupos’ ou ‘equipes’ de pesquisa que se encarregavam da coleta
de informações sobre o tema escolhido e da seleção do material básico a ser repassado para
os compositores e demais responsáveis pelas fantasias e alegorias. Entre os primeiros
blocos de Salvador, a ‘equipe de pesquisa’ abrigava intelectuais, artistas e pessoas ligadas
ao movimento negro ‘político’ que se aproximavam da entidade57. Contudo, de modo
geral, esses grupos são formados pelas pessoas que possuem um nível mais alto de
escolaridade no interior do grupo, como diz Ribard: “(...) essa ‘coleta de dados’ cabendo a
uma pessoa do bloco que tenha mais facilidade de ter acesso a essas informações”
(1999:423), ou mesmo pelas lideranças, que determinam o tema e recolhem os subsídios
que ajudarão na produção do carnaval.
No início do Dilazenze, por exemplo, há registros da existência de equipes de
pesquisa que produziam as apostilas e até assinavam-nas como tal. O presidente do grupo
diz que a equipe constituía, na verdade, um grupo de estudos sobre história da população
negra e sobre racismo. Esse grupo de pesquisa também era encarregado de produzir
material para que todo o bloco discutisse sobre essas questões, além de preparar textos
sobre a história do Dilazenze, seus objetivos e apresentá-los aos novos componentes.
Também há registros de grupos de pesquisa no Axé Odara e no Força Negra. Uma das
57 Segundo Cunha (1991), esses grupos eram chamados de ‘núcleos de apoio’ ou ‘assessorias’. O seguintecomentário de Vovô, líder do Ilê Aiyê, reproduzido pela autora numa nota, faz entrever que, sob esseformato, esses grupos permaneciam numa relação quase que autônoma aos blocos: “Com uma composiçãohumana com poucos conhecimentos teóricos sobre África negra e negros, [os blocos afro] tiveram querecorrer a intelectuais brancos, negrólogos e negreiros para conseguir informação sobre sua própria cultura, eestes intelectuais passam a ser padrinhos, madrinhas e conselheiros. Transmitindo uma visão particular dapolítica para a diretoria e por conexão ao bloco e afoxé, geralmente contrários às aspirações dos associados ”(Nêgo: boletim informativo do MNU 1982:3 apud Cunha 1991:161). Ver também Encontros 1.
251
pessoas mais importantes para o Dilazenze nesse aspecto foi seu primeiro presidente:
mesmo após ter deixado a presidência do grupo, ele continuou à frente das pesquisas e da
criação das fantasias, até se afastar totalmente. Assim, com o passar do tempo, a proposta
dos temas e os textos básicos de orientação acabaram sendo feitos quase que
exclusivamente por seu presidente58. Noutros grupos de Ilhéus, os dirigentes são sempre os
responsáveis pelo tema e pela elaboração das apostilas, embora também contem com a
ajuda de alguns membros e amigos do grupo.
Como já se sabe, a disponibilidade de recursos no meio dos blocos afro de Ilhéus é
escassa. Faltam-lhe livros e outros tipos de materiais que forneçam informações sobre o
tema escolhido. Muitas vezes, esse ‘material’ não é nem mesmo necessário, por exemplo,
quando os temas giram em torno de personagens importantes para o grupo ou de sua
própria história, ainda que, de qualquer forma, uma pequena compilação de dados seja feita
para homogeneizar as informações. Foi o que aconteceu em 1997, como já descrito,
quando o presidente do Dilazenze solicitou que eu reunisse algumas das informações
existentes em documentos e na memória de algumas pessoas para homenagear o Terreiro
Tombency. Já quando o tema proposto é um fato histórico apropriado pelo movimento
negro como importante para a auto-afirmação e para a elevação da auto-estima da
população negra, como o são o Quilombo de Palmares e a Revolta dos Malês,
58 Em 2001, houve um fato inédito, pelo menos para os últimos anos: o tema do carnaval de 2002 foidecidido por eleição durante um encontro do Dilazenze em novembro. Até então, isso não ocorria. É claroque sempre houve tentativas de se propor um tema diferente daquele encaminhado pelo presidente. Noentanto, esbarra-se no obstáculo da produção da apostila: quem quiser se contrapor, que prepare também aapostila para o grupo – este é o seu ‘desafio’ – e isso nunca acontece. A escolha do tema para o carnaval de2002 foi de fato singular, pois não só a proposta do presidente perdeu a eleição, como ele mesmo aprontou aapostila. Mas havia um motivo muito particular para isso: o tema escolhido foram os 15 anos do grupo,completados em 2001. O ‘consenso’ surgiu porque não haveria outro carnaval para comemorar a data, nemoutra pessoa tão organizada quanto ele para ter a história do grupo já praticamente pronta. No carnaval de2003, o presidente desejava homenagear Mário Gusmão (o que acabou acontecendo no carnaval de 2004),mas sua proposta foi derrotada. Ainda que a mãe-de-santo do Dilazenze reconhecesse que não poderia “votarcontra Mário Gusmão”, seu voto acabou sendo por uma homenagem às ‘iabás’ (orixás femininos) propostapelo vice-presidente. E mais uma vez foi o próprio presidente do grupo quem preparou o material básico paraa organização do carnaval por falta de quem o fizesse. Registre-se que nesse ano o grupo voltou a ter acolaboração de seu primeiro presidente, considerado um de seus melhores estilistas.
252
respectivamente em níveis nacional e estadual, e até mesmo a Revolta do Engenho de
Santana, a nível regional; ou países da África Negra, como Angola; ou movimentos de
influência sobre o movimento negro no Brasil, como o rastafarianismo etc.; até mesmo
quando o tema são os orixás59, as fontes para as apostilas são aquelas que estiverem ‘à
mão’: livros didáticos, revistas, matérias publicadas em jornais, material produzido por
outros grupos60 e, é claro, a ajuda de outras pessoas que estejam dispostas a isso e, ao
menos naquele momento, compartilhem da preocupação e do desejo de que o carnaval seja
bom61. Essa ajuda pode vir até mesmo de um outro dirigente que já tenha desenvolvido o
tema em ano anterior e concorde em ceder a apostila, o que é um fato raro, mas não
inédito.
A estrutura para a produção das fantasias e alegorias para o desfile também é bem
diferente entre os blocos de Ilhéus e os grandes blocos de Salvador. O Ilê Aiyê e o Olodum
possuem suas próprias confecções, onde produzem os tecidos e as fantasias que serão
utilizados naquele ano, de acordo com o tema escolhido. No caso do Olodum, sua fábrica
não se limita ao carnaval e produz roupas e acessórios que podem ser encontrados em
todos os pontos turísticos do país. Essa é uma de suas principais marcas do ‘Olodum
empresa’, elogiado por uns e criticado por outros. Mas, mesmo entre os blocos menores de
Salvador, com exceção de uns poucos que utilizam apenas camisetas, Ribard diz que vários
compram tecido e pintam-no ou mandam confeccionar com o emblema do bloco e do tema
59 É evidente que as pessoas mais próximas ao terreiro conhecem os orixás, ou inquices, como são chamadosno candomblé angola, mas colocar esse conhecimento numa apostila requer um bom poder de elaboração detexto e síntese, sendo mais prático e eficiente buscar os livros.60 Depois que adquiriu uma certa estrutura organizativa e financeira, o Ilê Aiyê passou a transformar oresultado de suas pesquisas, suas apostilas, em pequenos livros chamados ‘Cadernos de Educação’, utilizadosna escola mantida pelo grupo e distribuído para algumas entidades. Além do texto, são divulgadas também asletras das músicas que concorreram ao festival do ano em questão.61 Assim é que, de 1997 para cá, em alguns desses anos, eu e meu orientador temos auxiliado das maisdiversas formas a elaboração dessas apostilas, mas apenas naquele primeiro ano colaborei na redação. Nosdemais, e apenas quando nos foi solicitado, ajudamos enviando pequenos textos ou artigos sobre o assunto,algumas vezes nem mesmo sem ter essa intenção. É o caso do carnaval deste ano de 2004: ainda em Ilhéusem 2001, compartilhando com o presidente do grupo de seu interesse sobre Mário Gusmão, cedi-llhe uma
253
daquele ano; os blocos ainda fornecem as sandálias e os adereços, o que faz das fantasias
dos blocos afro as mais custosas do carnaval, embora os blocos de trio possam cobrar
muito mais por uma simples camiseta chamada de ‘abadá’ (1999:436-40), nome tomado
das fantasias dos blocos afro.
A situação dos blocos afro de Ilhéus é bem outra. Contando apenas com os recursos
liberados pela prefeitura anualmente para o carnaval, suas fantasias são feitas com os
tecidos que se consegue encontrar nos dias que antecedem a festa, em geral, seguindo as
cores dos blocos. As estamparias de motivo afro, sempre desejadas mas nunca utilizadas –
até porque costumam ser tecidos importados, caros e difíceis de achar – são substituídas
pelos estampados de cores fortes, comprados na própria cidade, em cidades vizinhas ou na
capital baiana. A compra de todo o material fora de Ilhéus tem se tornado cada vez mais
comum, pois os dirigentes dos blocos afro ilheenses costumam reclamar do aumento dos
valores dos artigos de carnaval na cidade “quando os lojistas ficam sabendo que a
prefeitura liberou o dinheiro”. Segundo dizem, a crise do cacau, o desemprego na cidade e
a extinção das escolas de samba fizeram com que os blocos afro passassem a ser os únicos
grandes consumidores de tecido, aviamentos e outros artigos utilizados em fantasias de
carnaval em Ilhéus e, “ao invés de aproveitarem a oportunidade para vender mais, os
comerciantes exploram os blocos, que acabam preferindo comprar em outras cidades.”
Nesses momentos, até a ‘tese’ de que esse tipo de comportamento é “herança do cacau”,
que “ensinou esse pessoal [os mais ricos] a querer ganhar dinheiro fácil” é evocada. Talvez
seja verdade que haja um aumento dos preços nessa época, mas seria necessária uma
pesquisa de mercado que comprovasse o argumento dos dirigentes. Por outro lado, talvez
os blocos não sejam vistos pelos lojistas como tão bons consumidores assim, pois o
comércio não só não faz descontos como nem mesmo se prepara com estoques dos tecidos
cópia de Bacelar (2001), artigo que este ano foi a base da apostila para a homenagem que o grupo fez ao
254
mais utilizados pelos grupos. Em 2000, durante a ‘odisséia’ já relatada para comprar o
material do carnaval do Dilazenze, foi possível constatar que simplesmente não havia
tecidos considerados básicos para qualquer agremiação carnavalesca nas cores amarela,
vermelha ou branca, por exemplo62. Outra hipótese que se pode levantar nesse sentido, é
que ao menos uma vez por ano uma loja de instrumentos musicais ganharia um bom
dinheiro em Ilhéus, se houvesse alguma. A maior parte dos recursos recebidos da
prefeitura é investida na compra de peles para os instrumentos, que são caras e têm ‘vida
curta’, mas é preciso ir a Itabuna adquiri-las, o que pode se transformar num problema,
pois todos os blocos afro de Ilhéus, assim como os blocos de arrasto, além dos blocos da
própria cidade, dirigem-se às mesmas lojas para a compra do material e nem sempre os
estoques conseguem suprir a demanda63.
A confecção das fantasias varia de bloco para bloco. O Dilazenze, por exemplo,
responsabiliza-se pela costura de todas as roupas: durante alguns dias – sempre a depender
da data de liberação “do dinheiro da prefeitura” – três ou quatro costureiras trabalham dia e
noite aprontando tudo, contando com a ajuda de algumas outras mulheres para os
arremates. Nos anos considerados mais organizados, o grupo vende suas fantasias em
carnês, que ficam em torno de quinze a vinte reais. A venda antecipada garante a entrada
de algum recurso com antecedência, mas nunca é muito significativo. Além disso, são
poucas as fantasias vendidas, pois as duas maiores alas do bloco, a de dança e a de bateria,
ganham suas roupas e, na “ala do povão”, muitas fantasias são doadas, seja porque se trata
“grande precursor dos blocos afro de Ilhéus”.62 No carnaval de 1999, primeiro ano das cinco vitórias consecutivas do Dilazenze, a fantasia do grupo na‘ala do povão’ ficou jocosamente conhecida sob o apelido de “presidiário”: com a falta de tecidos nas coresdo bloco, optaram pela cor preta para compor a fantasia. Diante da reclamação geral de que o bloco nãopoderia sair usando tanto o preto (a mãe-de-santo do Dilazenze sempre adverte que isso não é bom, do pontode vista do candomblé), combinaram-no com o branco, fazendo uma fantasia listrada de preto e branco, daí oapelido.63 Ribard (1999) cita a aquisição das peles para instrumentos de percussão, por seu custo, como um dospiores problemas dos blocos afro de Salvador sempre que se refere às suas dificuldades financeiras. Ver,entre outras, p. 435.
255
de alguém da família, seja porque é um convidado ou simplesmente porque não tem
condições de pagar. Nos últimos anos, há também a “ala do Batukerê”, formada por
crianças que participam do projeto e que também recebem suas fantasias. A única
exigência é que as pessoas comprem suas sandálias de couro, que o bloco não tem como
fornecer.
Em outros blocos, no Miny Kongo, por exemplo, o tecido é comprado pelo
dirigente e cópias desenhadas das fantasias são entregues às pessoas para que elas mesmas
as costurem. Às vezes, paga-se pelo tecido, mas nem sempre. O presidente do Dilazenze
disse que o grupo já utilizou esse sistema uma vez, mas isso prejudicou a homogeneidade
do desfile, pois, ainda que houvesse um modelo a ser seguido, algumas pessoas ‘criaram’
suas próprias fantasias. Contudo, foi possível ver que essa homogeneidade é de fato
importante nas alas de dança e de bateria, uma vez que na pressa dos últimos minutos antes
do bloco sair, “vale até pano amarrado” na ‘ala do povão’.
A rigidez do julgamento de membros de blocos afro pode ser maior do que a dos
jurados no dia do desfile, sobre os quais às vezes é dito que “não entendem nada de bloco
afro”. Portanto, para aqueles que ‘entendem’, as fantasias utilizadas definem se um grupo é
ou não um bloco afro. Não que este julgamento acarrete qualquer conseqüência, ou seja,
não é o uso deste ou daquele tecido, desta ou daquela roupa que vai determinar se um
grupo continuará fazendo parte do CEAC e se receberá verbas no ano seguinte. Então,
talvez seja melhor dizer que o uso de uma fantasia revela se o grupo está se comportando
ou não como um bloco afro sob o olhar, em geral, de membros de outros blocos afro.
Do primeiro desfile do Lê-guê Depá em 1981 ao carnaval de 1994, segundo ano do
governo de Antônio Olímpio, os blocos afro de Ilhéus foram subvencionados.
Depoimentos de vários dirigentes atestam que esta nunca foi uma negociação fácil e,
especialmente após a criação do Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus, então
256
CEACI, os blocos considerados novos não recebiam o repasse das verbas, controladas
pelos “grandes” que dirigiam a entidade. Segundo um ex-dirigente do Força Negra, era
preciso ‘provar’ que se conseguiria sair sem recursos para ‘ter direito’ a recebê-los no ano
seguinte. E, ainda assim, os considerados menores sempre recebiam quantias menores
também. No período compreendido entre os anos de 1994 a 1996, a política de carnaval do
governo mudou radicalmente: primeiramente, o carnaval foi transferido da Av. Soares
Lopes para a Av. Litorânea, no bairro do Malhado. Nos anos de 1995 e 1996, quando o
carnaval foi antecipado, os blocos perderam sua subvenção e apenas dois deles, o
Dilazenze num ano e o Rastafiry no outro, desfilaram, mas utilizando apenas camisetas.
Atualmente, o Olodum, o bloco afro mais conhecido do país, utiliza apenas camisetas em
seu desfile e alguns blocos de Ilhéus acabaram seguindo seu exemplo. Na opinião de
alguns, esta foi uma saída válida na época em que não havia recursos e as camisetas, além
de serem bem mais baratas, podiam ser financiadas por políticos ou por patrocinadores que
teriam seu nome e sua marca estampados nelas. Em 2000, por exemplo, que era ano
eleitoral, o Rastafiry utilizou uma camiseta em que constava o nome de um candidato a
vereador.
Outro aspecto considerado é quanto à concepção de fantasia de bloco afro. Para
alguns dirigentes, a influência da TV mostrando escolas de samba do Rio e de São Paulo e
a pouca divulgação dos blocos afro de Salvador – que são pouco televisionados e, quando
são transmitidos, isso acontece em horários de pouca audiência –, faz com que “alguns
dirigentes nunca tenham visto um bloco afro desfilar. Ele tem uma idéia porque viu um
‘flashezinho’ na TV”, como contou um presidente de bloco que acabara de emprestar uma
fita de vídeo com um desfile do Ilê Aiyê para um outro dirigente. Por isso, alguns blocos
seguem os modelos propostos pelas escolas de samba: tecidos com brilho, lantejoulas,
257
plumas e até ‘madrinhas de bateria’ podem aparecer nos casos mais exagerados64, inclusive
com mulheres utilizando biquíni ou roupas sensuais, algo bastante condenado entre os
blocos afro. O modelo dos blocos de trio acabam sendo adotados nos blocos afro por
“meninas que acham que botar um shortinho com uma camisetinha ficam mais na moda.”
É bem verdade que esses são casos raros, mas há uma preocupação de que blocos trajados
dessa forma não recebam boas notas dos jurados, para não “fazer escola”. Isso aconteceu,
por exemplo, a partir do uso de camisetas pelo Rastafiry: de acordo com o mesmo dirigente
citado acima, “outros blocos seguiram o mesmo caminho, pois acharam que havia mais
facilidade para vender.” A preocupação vem de um dos elementos fundamentais para a
concepção dos blocos afro: além da música, uma nova forma de se vestir, de se fazer belo,
de se fazer moda, foi a grande novidade dos grupos afro nos anos 70: é a “auto-gestão
estética”, expressão de Gilberto Gil reproduzida por Risério (1981:26), que deve ser
preservada.
Na verdade, a expressão ‘auto-gestão estética’ é uma boa forma de começar a
abordagem de uma questão delicada, mas importante, tanto no meio do movimento negro
cultural quanto no do político, ao menos em Ilhéus. Nos anos 70, falar de ‘auto-gestão
estética’ da ‘juventude negromestiça’, como diz Risério, significava ressaltar que uma
parcela considerável da população jovem e negra entrava em novos agenciamentos a partir
dos mais diferentes fluxos e propunha novas formas de se vestir, de usar o cabelo,
acessórios... uma nova moda que desejava fazer-se diferente da moda e do modo de ser
dominantes. Não tardou para que o novo estilo fosse, como tudo o mais, capturado pelo
capitalismo, aceito e até mesmo estimulado por ele. Ainda assim, ele continuou a indicar
diferenças, mas a idéia de auto-gestão estética também perdeu um pouco do seu sentido
inicial, pois, em alguns contextos, ela passou a ser obrigatória, ditadora de posições. Não é
64 Em geral, são personagens da cidade que certamente desfilariam em escolas de samba se elas ainda
258
preciso passar muito tempo em Ilhéus para saber que o movimento negro forte e
predominante na cidade é o dos blocos afro, mas, em termos de estética do cotidiano, são
os representantes do movimento negro político que se destacam: cabelos, batas, sandálias,
boinas... Em meu primeiro dia na cidade ainda em 1997, disseram-me que seria fácil
reconhecer o mais destacado representante do MNU em Ilhéus e alguns outros membros
por seus trajes. Simultaneamente, descobri que os trajes não diziam nada sobre os
dirigentes dos blocos afro, pelo menos não em seu cotidiano. Roupas em estilo afro são
reservadas para eventos. Pode-se afirmar que nenhum deles utiliza roupas, cabelos ou
acessórios que o identifique como ‘negro’: nem batas, nem boinas ou gorros, nem cabelos
dreadlocks, nem tranças, nem contas... E, em certas ocasiões, isso constitui um motivo de
acusação por parte de alguns representantes do movimento negro considerado mais
político, que utilizam bastante esses elementos. Para estes últimos, vestir-se dessa forma
significa afirmar-se como negro, não ter vergonha de sua negritude. E foi mesmo com esse
objetivo que o processo de reafricanização do carnaval reafricanizou também os corpos.
Como diz Risério:
“o novo visual da blackitude, diferenciando-a no conjunto dapopulação, representava exatamente o momento em que o pensamentose materializava, aquém e além das palavras. Batas, búzios,trancinhas, etc., funcionavam, portanto, como sinais exteriores deidentificação entre membros de uma comunidade reunida ao redor deinteresses comuns. (...) [era] símbolo de inconformismo e afirmaçãode uma distância” (1981:101).
Talvez usar ou não usar tais roupas ou acessórios nunca tenha passado pela cabeça
dos dirigentes mais jovens, mas não se pode dizer o mesmo dos mais antigos, que viveram
com mais ou menos intensidade as décadas de 70 e de 80 e a “febre” da música “Eu sou
Negão”, de Gerônimo, símbolo de ‘afirmação de negritude’. Contudo, diferentes fatores
fizeram com que usar trajes afro no dia-a-dia não fosse mais possível ou desejado:
existissem. Os blocos afro são apenas uma passarela.
259
discriminação no emprego, falta de recursos e até mesmo a idéia, às vezes expressa num
tom um tanto agressivo, de que “não é preciso estar fantasiado para mostrar que se é negro
e que se faz um trabalho sério pela população negra”, como disse um dos dirigentes. De
fato, partindo de um viés mais prático, as pessoas mais conhecidas do movimento negro
político hoje de Ilhéus que valorizam essa forma de se vestir, trabalham em locais
alternativos e, na maioria das vezes, seu emprego – ou sua forma de sobreviver – passa por
sua liderança ou por seu trabalho político/comunitário. É claro que a relação não é causal e
poder-se-ia legitimamente argumentar que empregos e posições de liderança vieram como
conseqüência da postura assumida anteriormente. Porém, levando-se em consideração
apenas o momento presente, a situação dos dirigentes dos blocos afro é bem diferente. Em
sua grande maioria, eles são desempregados e, quando têm emprego, não é na área de
cultura ou de política de movimento, o que, segundo seus relatos, proíbem-nos de usar
“trancinhas ou roupas coloridas”. O dirigente do Rastafiry lembra que chegou a usar
‘dreadlocks’, mas isso só aumentava a discriminação contra si mesmo e contra o grupo a
partir da associação entre o cabelo “rasta”, o nome do grupo e o uso de maconha, o que o
obrigou a cortar o cabelo para procurar emprego65. Apenas alguns poucos percussionistas,
que conseguem tocar em bandas de axé music e têm um trabalho mais permanente, fazem
uso de uma estética afro no dia-a-dia, mas nesse caso poder-se-ia dizer que eles se vestem
‘artisticamente’. Estritamente desse ponto de vista, é paradoxal que aqueles que acusam os
blocos de só quererem saber da ‘festa’ e da ‘cultura’, valorizem tanto a estética, se
apresentem mais ‘culturalmente negros’, enquanto aqueles que acusam os representantes
do movimento político de só saberem falar e fazer reuniões, pareçam avessos à valorização
cotidiana da ‘culturalização’ dos corpos.
65 O Rastafiry sempre sofreu uma certa rejeição por parte da comunidade, talvez por não ter uma basefamiliar no bairro e, certamente, pela associação do nome do grupo ao consumo de maconha. Já houveabaixo-assinado contra o grupo e ele já foi chamado de “rasta-fumo”.
260
Por outro lado, não se pode deixar de considerar que essa ‘acusação’ por parte de
pessoas do movimento negro político tem uma certa razão de ser. É inegável que o não uso
de roupas e cores associadas a um estilo ‘afro’ seja também produto do racismo, produto
de uma visão de mundo, de um modo de subjetivação que atinge ‘brancos’, ‘negros’ e
pessoas de quaisquer outras ‘cores’, inclusive membros e dirigentes de blocos afro. Como
disse uma pessoa envolvida com os blocos em Ilhéus: “Todo mundo quando pensa em
negro, pensa logo em cores berrantes. Pensa em vermelho, amarelo, verde... É uma pena
que as pessoas não tragam isso para o seu dia-a-dia. Mas ‘branco’ pode; ‘negro’ tem que
andar de branco ou de preto, para sumir”. Essa mesma pessoa, então, lembrou de alguns
ditos populares preconceituosos sobre o uso de roupas de determinadas cores por pessoas
negras. Como não imaginar que as pessoas não pensem nisso na hora de se vestir? Como
supor que elas não temam, ainda que por instantes, ser comparadas com as imagens criadas
por alguns desses ditos que talvez já tenham ouvido diversas vezes? Como supor que elas
estejam dispostas a enfrentar possíveis conflitos ou a produzir mudanças, a produzir uma
outra forma de ver o mundo, todos os dias? Um pequeno diálogo entre dois membros de
blocos afro torna bastante clara essa idéia. Eles conversavam sobre a mudança da forma de
se vestir daquele destacado membro do MNU que, como relatei acima, disseram-me que eu
poderia facilmente reconhecê-lo por seus trajes. Naquela época, ele ocupava um cargo na
prefeitura como representante do movimento negro. Afastado da prefeitura e do próprio
MNU, um dos rapazes constatou que ele estava se vestindo diferente, não estava mais
usando o estilo afro e que o motivo da mudança talvez fosse a necessidade de usar roupas
mais formais para acompanhar as constantes audiências judiciais pelo assentamento rural
do qual é líder. Mas o outro rapaz disse que talvez seja, “simplesmente, por estar cansado
de ser discriminado.”
261
É praticamente senso comum nos estudos sobre a diáspora negra a defesa da tese de
que o corpo foi o meio mais utilizado, mesmo único, de preservação e transmissão de uma
‘memória coletiva’ frente à opressão do sistema escravocrata. Assim, danças, gestos,
marcas na pele, cabelos, roupas, acessórios foram e continuam a ser a principal forma de
expressão de subjetividade negra. Para os componentes dos blocos afro, os desfiles são o
momento máximo dessa expressão, quando todos os símbolos afro são acionados
conjuntamente: vestuário, música, dança, religião, temas, discursos. Além do desfile de
carnaval, há vários outros ‘eventos’, ou seja, momentos especiais em que se produz e se
expressa singularidade negra. Estes podem ser as comemorações da Semana da
Consciência Negra; “missas afro” e cerimônias de candomblé; shows; palestras;
entrevistas; programas de TV; os festivais de música afro e a Noite da Beleza Negra, entre
outros. Isso não significa que as pessoas só desejem expresssar sua singularidade nesses
momentos ou que aquelas que utilizam roupas afro no dia-a-dia sejam mais negras do que
as demais: ainda que seja o cotidiano, utilizar tais roupas tem sentido por se conceber o
trabalho, o provável encontro na rua, o ato de ser visto por outros como ‘eventos’,
momentos especiais em que se deseja expressar uma forma singular de ser, que é negra.
Por isso, constitui um erro relacionar o uso ou não de vestimentas ou adereços
chamados de ‘étnicos’ com idéias como as de ‘identidade’ ou ‘consciência étnica’. Ambas
as categorias circunscrevem os processos de singularização, fazendo-os passar por um
mesmo esquadrinhamento: ‘assumir a identidade negra’, ‘tomar consciência’, ‘ter
consciência étnica’ significa vestir-se, comportar-se, pensar e sentir de uma mesma forma,
como se esta estivesse em algum lugar aguardando ser ‘enxergada’ ou ‘assumida’. Tratar o
movimento dos blocos afro, o movimento negro político ou qualquer outro movimento
baseado em novas possibilidades de experimentar o mundo como uma questão de
‘identidade’ ou de ‘consciência’ é negar a criação possível dos encontros, como se
262
houvesse uma única forma de ser afetado por um novo modo de existência, o qual já está
lá66. Como diz Guattari,
“identidade e singularidade são duas coisas completamente diferentes.A singularidade é um conceito existencial; já a identidade é umconceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros dereferência (...). Em outras palavras, a identidade é aquilo que fazpassar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só emesmo quadro de referência identificável.” (Guattari e Rolnik1986:68).
A Noite da Beleza Negra
Depois do desfile de carnaval, a “Noite da Beleza Negra” ou a “eleição da rainha do
bloco”67 talvez seja o evento mais emblemático promovido pelos blocos afro na produção
de seu desejo de diferir. Ritmos, danças e roupas não significam tanto para a proposta de
uma outra concepção da vida social quanto a afirmação de que uma estética percebida
como muito distinta da dominante deve ser admirada. Pois é no corpo, no rosto, na cor da
pele, na textura e forma dos cabelos que o racismo mais se agarra, onde o modelo único
mais se impõe.
O Ilê Aiyê foi também o pioneiro na realização de um concurso para eleger uma
mulher com o objetivo de representar o bloco: a ‘Deusa de Ébano’. De acordo com Agier
(2000) a ‘Noite da Beleza Negra’ teria surgido na “segunda fase” do Ilê, caracterizada pela
ênfase no “engajamento político”, quando seus temas claramente demonstrariam uma
66 Um exemplo da ‘não criação’ presente na idéia de ‘tomada de consciência’ é a observação de Zourabichvili(2000) a respeito do comunismo segundo o marxismo: “o comunismo não está, propriamente falando, porvir; ele está, desde já, presente como uma tendência, inscrita nas constradições do sistema atual. O quepermite falar do futuro, sem descambar em princípio para o sonho ou para o arbitrário, é a possibilidade dedecifrá-lo no próprio presente em devir. Mas, desse modo, a estrutura de realização aparece combatida demodo insuficiente: tem-se sempre previamente o futuro em imagem, graças ao instrumento dialético; orealizável é apenas elevado a necessário, enquanto o virtual conserva a forma antecipatória de uma meta(essa é a maneira pela qual o futuro continua a se antecipar no presente). Daí por que operador revolucionáriopor excelência é a tomada de consciência, que pressupõe o próprio conteúdo e dá, paradoxalmente, ao futuroa forma lógica do passado: não a emergência de uma nova sensibilidade.” (:344-5, nota 26).67 Talvez porque receba este título, e ainda que ressalte que “em menor medida” do que o maracatu, Ribardatribui a eleição da rainha à influência do coroamento do rei e da rainha na Congada (1999:166). Entretanto,é bom lembrar que apesar dos padrões estéticos e critérios distintos, trata-se de um concurso de beleza, talqual os concursos de “miss” que fizeram tanto sucesso no Brasil durante décadas (e ainda existentes), cujasvencedoras recebem (ou recebiam) manto, coroa e cetro.
263
“intenção africanista mais política e pedagógica” (:79)68. Nessa época surgiram o que o
autor denomina de “principais marcadores da identidade do grupo” (:80). Além da Noite da
Beleza Negra, Agier também assim qualifica o ‘Dia da Mãe Preta’, comemorado em 28/09,
dia em que foi assinada a Lei do Ventre Livre69 (faz-se uma homenagem à Mãe Hilda e,
através dela, a todas as mães do bloco e debate-se o papel da mulher, especialmente da
mulher negra) e ‘Novembro Azeviche’, que engloba uma série de comemorações de
caráter “étnico” ocorridas neste mês, começando com o aniversário do grupo, dia 1o,
depois o aniversário de independência de Angola, dia 11, a Semana da Consciência Negra,
comemorando o 20 de Novembro, dia de Zumbi dos Palmares e a Revolta das Chibatas, no
dia 22 (:125)70.
A Noite da Beleza Negra é, sem dúvida alguma, um concurso de beleza. Mas acima
da beleza estética corporal, há “critérios estéticos específicos” que, ao menos em tese,
devem ser levados em conta: a competência na dança afro e a fidelidade do penteado e da
roupa ao estilo afro. No Ilê, além de saber dançar para desfilar no alto de um carro
alegórico – critério essencial em todos os blocos, segundo Ribard (1999:432, nota 61) – é
preciso ter uma “postura identitária ligada à expressão da consciência negra” (:433). Para
tanto, já na inscrição, a candidata deve responder a perguntas direcionadas a medir seu
potencial de articulação verbal e suas idéias a respeito do Ilê, uma forma de verificar se ela
68 Agier (2000) divide a história do Ilê Aiyê em três fases distintas que correspondem à “caracterizaçãoprogressiva de sua identidade”: a primeira fase, no surgimento do grupo, teria como principal característica odesejo de “participação no carnaval” a partir de uma organização “informal”, cujo diferencial do bloco estariaapoiado sobre um “exotismo improvisado”; a segunda fase enfatizaria seu engajamento político e umaconcepção de “africanização mais trabalhada”; já a terceira fase, já no final dos anos 80, seria marcada peloinvestimento do grupo em seu caráter associativo (os trabalhos sociais) e empresarial (:77).69 Segundo Agier, o grupo buscava um dia para dedicar à Mãe Preta e encontraram a data num “calendário deigreja” (2000:125).70 Na resenha que faz ao trabalho de Agier, entre várias outras objeções, Moura diz que o calendárioapresentado pelo autor não é cumprido daquela forma e que “o esquema de interpretação utilizado pelo autor[do qual o calendário é parte] parece ter vida própria” (2000:368). No entanto, ao final do parágrafo em quedá essas informações, o próprio Michel Agier observa que só o Dia de Zumbi dos Palmares é comemoradocom regularidade (2000:125).
264
se encaixa no perfil do bloco: ela deve ter “consciência racial” e “inspirar respeito” (Agier
2000:137).
E é natural que exista essa exigência, pois, como representante do bloco – no caso
do Ilê Aiyê especialmente, por ser um grupo importante, pelo qual ela dará entrevistas, será
assediada pela imprensa – e eleita para isso com base em critérios que valorizam elementos
‘étnicos’ que diferem do padrão de beleza hegemônico, é necessário que seu discurso
condiza com a razão de ser do evento, cujos objetivos são: “a busca constante da mudança
dos modelos de beleza no país, a valorização da beleza negra, a satisfação do negro a partir
de suas próprias características, a integração do negro com seus valores na sociedade.”
(Agier 2000:131).
O investimento do Ilê Aiyê numa imagem de “elite negra”, tal como defendido por
Agier (2000), é constituído não só pela diferenciação econômica, que teve origem na
formação profissional e emprego de seus fundadores, mas também passa pela diferenciação
moral de seus membros em relação aos estereótipos depreciativos atribuídos à população
negra. No caso da ‘deusa de ébano’, por ser representante do bloco e por ser mulher e
negra, sobre quem os estereótipos incidem com mais vigor, as exigências em relação aos
valores morais são ainda mais destacados. Ainda segundo Agier, a mulher no Ilê Aiyê – e
isso é dito às candidatas ao título de Beleza Negra – deve representar força, dignidade
(principalmente em relação à sensualidade), deve ter relação com o candomblé e com a
cultura negra (o que significa “ancestralidade”) e deve ter sentido de família, pois estará
representando a ‘família Ilê Aiyê’ (:131).
No Dilazenze, o concurso foi realizado pela primeira vez sob o nome de “Garota
Black Dilazenze”, em 1987. Já na segunda edição passou a receber o mesmo nome criado
pelo Ilê Aiyê, e também apresenta preocupações com os comportamentos morais de seus
membros. Mas, no caso das candidatas à Beleza Negra, os fatores, a princípio
265
preponderantes, são aqueles referentes à participação anterior no bloco ou à expectativa de
que isso venha a acontecer. Apesar de haver inscrições, uma pré-seleção é feita a partir do
próprio convite para o concurso, em geral dirigido a moças que integram o grupo de dança
ou que tenham parentesco ou amizade com alguém do grupo, sendo esta uma suposta
garantia de que a vencedora virá a se integrar ao bloco, pois espera-se que sua presença
não seja restrita ao desfile. Mas isso é só um ideal. Unicamente a beleza de uma candidata
sem relação prévia com o grupo, que pareça só estar interessada em ganhar um ‘concurso
de beleza’ e ser destaque do bloco desfilando no alto do caminhão, pode ser motivo
suficiente para obter uma torcida forte entre os homens e causar discussões destes com
[su]as mulheres. Aos jurados71 recomenda-se que observem se as candidatas sabem dançar
afro: como destacou Ribard para os blocos de Salvador, também em Ilhéus este é um
critério essencial. Algumas chegam a ter aulas com a coreógrafa do grupo dias ou mesmo
horas antes do desfile, mas nem sempre isso é suficiente. Quando nenhuma das candidatas
é uma exímia dançarina, os comentários que levam a apostas e previsões sobre quem
vencerá, ou sobre quem deveria vencer para o bem do grupo – quem fará “mais bonito” no
carnaval –, giram em torno da desenvoltura da candidata e da percepção ou não de suas
habilidades para o aprendizado da dança, tarefa à qual ela deve estar disposta a se dedicar
no período entre o concurso e o carnaval que, em geral, não passa de uma semana.
No julgamento das candidatas, deve-se observar também os trajes utilizados. É dito
que às vezes cada candidata representa um país africano; em outros concursos, cada uma
estiliza a roupa do seu orixá – ou do que se supõe ser o seu orixá, já que nem todas são do
71 Geralmente, o júri é formado por artistas locais (músicos, escritores, atores e diretores) que acompanham atrajetória dos grupos afro através de uma participação ou outra em alguns eventos e pela posição mesma dejurados, em concursos como esses ou nos próprios desfiles; por patrocinadores – quando eles existem –, porpessoas consideradas ilustres que estejam na cidade e que se aproximam do grupo e, em algumas ocasiõesnos últimos anos, por pesquisadores. Em 2000, por exemplo, o “corpo de jurados” era formado por mim; peloentão secretário de Esportes e que seria candidato a vereador naquele ano (que possui uma relação próximaaos blocos e já participou de alguns deles); por uma cantora de nome da cidade, que participou do Força
266
candomblé. Na Noite da Beleza Negra de 2000, o importante era que o traje fosse ‘afro’,
ou seja, havia uma mistura de tecidos e estilos, concebida a partir de um certo improviso.
Poucas candidatas possuíam sua própria roupa e todas elas foram, ainda que apenas com
um ou outro detalhe, arrumadas pelas mulheres do grupo. Assim, tecidos com motivo de
‘tigre’ ou de ‘onça’ eram combinados com torços72, acessório próprio do candomblé, ou
com lenços e saias amarrados das mais diferentes formas.
Não há prêmios em dinheiro ou em bens para a vencedora. Até há alguns anos, o
troféu era o ‘martelo de Xangô’, orixá do Dilazenze, feito artesanalmente em madeira,
tecido, palha e búzios. Atualmente, o artista plástico que colabora com o Dilazenze faz
esculturas em madeira como troféu. Mas há também uma possibilidade, ainda que rara, de
fazer uma ‘carreira’. Dois casos ocorridos nos últimos anos são exemplares de quais são
esses possíveis ganhos. Em 1999, com a volta da competição entre os blocos, o Dilazenze
desejava desfilar com uma rainha, mas pôde realizar a Noite da Beleza Negra por falta de
recursos. Convidou, então, uma moça que já fora rainha do grupo e de outros blocos, além
de já ter pertencido ao grupo de dança do próprio Dilazenze, mas também do Axé Odara.
Ela disse que só aceitaria o convite se recebesse um cachê para isso, pois já teria recebido
convites de outros blocos que lhe pagariam. O grupo recusou e a rainha daquele ano foi
uma das filhas das irmãs do presidente do grupo.
Outro exemplo é o de uma menina moradora do bairro do Salobrinho (bairro
periférico onde está situada a UESC) que fazia aulas de dança com a coreógrafa do grupo
no programa social da Universidade. Ela foi um dos casos de candidata convidada a
participar do concurso por já ser de um grupo de dança afro. Na Noite da Beleza Negra de
2001, ela ficou com o segundo lugar, mas acabou também desfilando no alto do caminhão
Negra em seu início; por uma poetisa e produtora cultural e por um representante do setor de financiamentode pequenos empreendimentos da Caixa Econômica Federal, da cidade vizinha de Itabuna.
267
– na verdade, havia uma torcida grande por ela entre os componentes do grupo e como a
decisão dos jurados não agradou muito, uma prerrogativa foi aberta exclusivamente neste
ano para que a ‘vice’ também desfilasse. Ela passou a se integrar ao grupo de dança do
Dilazenze e a fazer apresentações e foi, assim, ‘projetada’, como disse um dos integrantes
do Dilazenze: “Quem era ela antes do carnaval? Era uma menina lá do Salobrinho. Só.
Mas ninguém sabia quem era ela. Saiu no Dilazenze, fez filme para a Ilhéustur. Está como
‘gabriela’73. Por quê? Porque foi vice. Não foi nem rainha, foi vice. Mas ficou conhecida
pelo Dilazenze desfilando. Esse pessoal [da Ilhéustur] viu.”
O Rastafiry e o Miny Kongo também já chegaram a realizar a Noite da Beleza
Negra em Ilhéus, embora com bem menos freqüência do que o Dilazenze. Até o fim do
período desta pesquisa, o Rastafiry se contrapunha a esta ‘vantagem’ orgulhando-se de ter
implantado e promovido o Festival de Música em maior número de vezes na disputa direta
com o Dilazenze.
No caso do Ilê Aiyê, a Noite da Beleza Negra passou a ser um de seus maiores
eventos, para o qual são convidadas pessoas famosas para compor o júri. Ele costuma
acontecer em clubes ou outros espaços, fora do bairro da Liberdade. A descrição que Agier
faz do concurso mostra ser este um momento especial para a participação feminina no
bloco: há mulheres no júri; o concurso é apresentado por uma mulher e o troféu é uma
escultura de Oxum, conhecida como a deusa da feminilidade (2000:137). Conforme visto
acima, o Dia da Mãe Preta é outro momento de homenagem às mulheres. De qualquer
forma, o que chama a atenção nesses eventos é justamente o fato de que há dias para
homenagear as mulheres, raras na diretoria do grupo.
72 “Xale ou manta que se enrola na cabeça à guisa de turbante” (Dicionário Aurélio Eletrônico – SéculoXXI).73 Tem como emprego aparecer em eventos promovidos pelo governo municipal trajada conforme descritoanteriormente.
268
Em 1981, em Carnaval Ijexá..., Risério já reclamava da ausência de participação
feminina nos blocos afro: “encerro esse nosso papo aqui expressando um desejo: o de que
as mulheres se movimentem e marquem presença na transa do afrocarnaval.” Para ele, o
papel das mulheres se limitava a tarefas determinadas pelos homens, em geral, ligadas a
“prendas domésticas e de escritório” (:128). Os trabalhos existentes sobre blocos afro de
Salvador, assim como a experiência em Ilhéus, mostram que pouco mudou desde então.
Embora Ribard (1999) comente a participação crescente das mulheres, a importância da
mulher no “Mundo Afro” em sua organização familiar e social, na política, na comunidade
e no terreiro (:431-2); embora afirme que é “cada vez mais e mais marcada a presença
feminina nos diferentes níveis da concepção, da produção e da gestão de algumas
entidades” (:333), o fato é que são poucos os exemplos que o autor pode dar. Ele cita Vera
Lacerda, presidente do Ara Ketu, que foi sua fundadora, e Cristina Rodrigues, dirigente do
Olodum, irmã do presidente do grupo. Entre grupos exclusivamente formados por
mulheres, ele cita o “Filhas de Oxum”, um afoxé criado como contraponto ao “Filhos de
Gandhi”, e a Banda Didá, fundada por Neguinho do Samba, ex-mestre de bateria do
Olodum (:333-4)74, que já havia tentado fundar uma banda feminina no Olodum que não
foi à frente.
E os próprios blocos afro de Salvador reconhecem a ausência de participação
feminina em seus quadros, pelo menos é o que diz um documento denominado “Carta de
Salvador”, resultante do I Encontro Nacional de Dirigentes de Blocos Afro, ocorrido em
novembro de 1993 e promovido pela FEBAB75. Na seção intitulada “A Situação dos
Blocos Afro”, há um tópico a respeito do assunto, onde está escrito: “a participação da
mulher no bloco afro ainda é pequena pelo machismo que impera em várias entidades”.
74 É provável que desde 1995, ano em que Ribard realizou sua pesquisa, outros grupos e bandas afro devemter surgido na capital baiana.
269
Porém, nas duas seções seguintes, chamadas “Nossas Propostas” [da direção da Federação]
e “Propostas dos Dirigentes para a FEBAB”, nas quais deveriam constar encaminhamentos
para os problemas levantados na seção anterior, não há nenhum relativo a mulheres.
Para Agier, contudo, uma das características mais marcantes do Ilê Aiyê é a forte
presença feminina. A partir de 1990, elas tornaram-se mais numerosas do que eles, em sua
opinião, por duas razões: a primeira porque o bloco criou uma imagem de si como
“tradicional”, com um grande número de mulheres mais velhas ligadas ao candomblé – as
“damas do Ilê”; a segunda razão é semelhante à argumentação de Ribard a respeito da
importância do papel das “mulheres baianas dos meios populares” na organização
doméstica, na criação de um “sentimento familiar”. A presença das ‘damas do Ilê’ dá ao
grupo “uma respeitabilidade moral e um ambiente familiar” que favorecem e permitem a
freqüentação de mulheres (2000:103). Apesar do número de mulheres que integram o
bloco, apesar da importância que o grupo concede à figura de Mãe Hilda e às mulheres em
geral em eventos, debates e homenagens, em 1995, a diretoria do Ilê era composta de
dezessete pessoas, sendo apenas quatro mulheres e destas, uma era irmã e a outra esposa de
Vovô (:95).
A observação de Risério quanto ao lugar ocupado pelas mulheres no interior dos
blocos afro – nas “prendas domésticas e de escritório” (1981:128) – ainda é válida para os
tempos atuais entre os grupos ilheenses. Além dos espaços sexualmente bem marcados da
percussão e da dança, conforme discutido páginas atrás, os espaços das tarefas mais gerais
e o das decisões, da organização do bloco, também os são. Em reuniões do CEAC ou nos
locais de encontro dos dirigentes dos blocos, as únicas mulheres presentes eram a dirigente
do Afoxé Filhos de Ogun, que às vezes estava acompanhada de alguma filha-de-santo, e
eu. No entanto, em visita a alguma atividade promovida por um dos blocos ou mesmo para
75 Ver Encontros 1. Uma cópia do documento foi-me cedida por Marinho Rodrigues, presidente do
270
conhecer ou conversar com dirigentes, as mulheres – mães, esposas, irmãs, vizinhas –
estavam sempre por perto, fosse na limpeza, na organização dos papéis, na preparação de
comidas para vender ou servir ou no cuidado com as roupas. Os depoimentos de alguns ex-
dirigentes, como os do Lê-guê Depá e do Força Negra, ressaltam e valorizam muito a
importância de suas mães e irmãs, especialmente no início do bloco, na confecção das
fantasias e na arrecadação de recursos através de trabalhos considerados tipicamente
femininos – a mãe do ex-dirigente do Força Negra, por exemplo, aprendeu a fazer
‘trancinhas’ numa oficina dada pelo Olodum em Ilhéus e assim conseguiu recursos para o
primeiro desfile do bloco.
No que tange à participação feminina, o Dilazenze ocupa uma posição um tanto
singular em relação aos demais blocos de Ilhéus. Assim como acontece com Mãe Hilda no
Ilê Aiyê, a mãe-de-santo do Tombency tem exercido um papel fundamental no
funcionamento do Dilazenze. O diferencial que sua presença imprime ao grupo é que sua
importância reside não apenas no seu “papel ritual”, como diria Agier, de ‘mãe’, ‘carnal’ e
‘de-santo’. Como já foi exaustivamente demonstrado aqui, D. Ilza é uma pessoa
‘carnavalesca’ e muito atuante, participando ativamente do dia-a-dia e das decisões do
grupo. A diretora do grupo de dança compõe, ao lado do presidente e do vice, que é
também mestre da bateria, uma espécie de trio de decisão do Dilazenze. Antes da
implantação do Projeto Batukerê, em 2000, o bloco possuía uma banda mirim, que tinha
uma mulher como mestre76, algo bastante raro. Desde seu início, a formação do grupo já
indicava um quadro de maior participação feminina: os rapazes que participavam da
bateria do Axé Odara e que tiveram a iniciativa de fundar um novo grupo, contaram com
irmãs, primas, namoradas e amigas da rua para a nova empreitada. A formação do grupo a
partir de uma base familiar e a liderança da mãe-de-santo, às vezes chamada por seus
Dilazenze, a quem, uma vez mais, agradeço.
271
membros de “nossa matriarca”, favorecem que a participação feminina seja mais intensa
no Dilazenze do que a que costuma ocorrer nos demais blocos, mas está longe de ser a
ideal. As tarefas domésticas continuam exclusivamente em mãos femininas; a
representação de organização e direção do bloco, nas masculinas.
Entre os blocos afro de Ilhéus, o Zambi Axé também merece destaque no que tange
à participação feminina. O grupo de dança a partir do qual foi fundado tinha uma mulher
como uma das principais lideranças, que também desempenhou um papel importante na
sua fundação e em seus primeiros anos. Ela foi presidente do grupo, coreógrafa, estilista e
até compositora. E, mesmo morando em Salvador nos últimos anos, continua a contribuir
com o grupo nos carnavais, segundo seu atual presidente.
Músicas e temas
Um dos elementos mais utilizados para caracterizar os blocos afro é o tema usado
em seus desfiles. O tema é o assunto, ou o ‘enredo’, sobre o qual o bloco afro tratará em
sua música e em suas alegorias e fantasias. No início do movimento dos blocos afro, eles
se referiam, sobretudo, aos países africanos. Segundo Gomes (1989:183; 185), o Olodum
foi o responsável pela expansão temática, passando a trabalhar também com países da
diáspora negra, inclusive com a história da população negra no Brasil, e até mesmo com
países que não fazem parte da África Negra, como Egito e Madagascar77, dois grandes
sucessos musicais do Olodum na segunda metade da década de 80.
É a partir da análise dos temas enfocados pelo Ilê Aiyê que Agier (2000:77) divide,
como já visto, a história do grupo em três fases, privilegiando mais ou menos os países
africanos como locais de ‘origem’ e explorando uma África exótica e o candomblé como
essa África no Brasil, na primeira fase; as lutas políticas dos países africanos, com ênfase
76 Infelizmente falecida em 2001.
272
sobre os movimentos de independência, na segunda; e o povo negro no Brasil a partir de
seus principais eventos históricos e suas lutas mais atuais contra o racismo, trabalhando
também com o apartheid na África do Sul e as lutas norte-americanas na terceira fase.
A divisão de ‘fases’ em relação aos temas feita por Ribard (1999:419-20) difere um
pouco daquela de Agier pela composição de cada uma delas, mas não dos temas em si.
Primeiramente, o enfoque dos blocos afro teria sido sobre o candomblé e sobre uma África
primitiva, original; no segundo momento, os temas concentraram-se sobre “os países e
‘culturas-irmãs’, lutas, heróis e movimentos políticos e culturais da população negra
africana e americana”; já no terceiro momento, o assunto dos grupos seria a situação atual
do “negro baiano” a fim de propor intervenções sobre a “realidade”.
Em geral, os blocos afro de Ilhéus seguem esse ‘padrão temático’ apontado pelos
autores acima: candomblé, países africanos, eventos e personagens históricos78. Alguns
temas já foram enfocados por mais de um bloco, como “Canudos”, “Revolta dos Búzios”,
“Quilombo”, entre outros. Também temas sobre orixás são bastante utilizados, mas talvez
o Dilazenze tenha sido o bloco que mais trabalhou o candomblé em seus desfiles: além de
ter feito homenagens a orixás, como Xangô, Oxumaré, Oxóssi e as Iabás (orixás
femininos), respectivamente nos anos de 1988, 1989, 1990 e 2003, por exemplo, o grupo
homenageou a antecessora da atual mãe-de-santo do Tombency, e conseqüentemente o
terreiro, logo em sua estréia em 1987, e em 1998 o tema foi a própria história do terreiro.
Há ocasiões em que o bloco exalta a si mesmo, como fez o Dilazenze em 2002,
comemorando seus 15 anos completados no ano anterior. Ou mesmo uma exaltação a todos
os blocos da cidade, como fez o atual dirigente dos Malês em 1988, quando ainda era
77 Cf. Ribard 1999:426-9, onde o autor transcreve e faz uma análise da letra de uma das músicas compostaspara o tema Madagascar, do Olodum, de 1988.78 É preciso fazer uma observação quanto à dificuldade de conseguir coletar essas informações junto aosblocos afro de Ilhéus, pois eles não possuem arquivos de seus temas e músicas. Na maioria dos casos, o únicoregistro é a memória dos dirigentes. Para sua dissertação de mestrado, Cambria (2002) fez um trabalho
273
diretor dos Gangas. Ele sempre lembra de, provavelmente, seu melhor tema e música – já
que também foi o compositor: “Afrocomunhão”, uma homenagem a todos os blocos afro
de Ilhéus.
Quando se conversa com diferentes pessoas sobre o movimento afro-cultural de
Ilhéus, como foi o meu caso, é possível perceber uma espécie de senso comum a respeito
dos temas. Quase que como jargões, pessoas de experiências distintas declararam opiniões
muito semelhantes. Pessoalmente ou através de relatos de integrantes dos grupos afro, ouvi
a mesma reclamação de que os blocos de Ilhéus não trabalham temas locais, não valorizam
o seu ‘povo’, a ‘sua história’. De fato, além de personagens importantes para cada bloco
em particular79, o tema ‘local’ mais trabalhado pelos blocos afro é a Revolta do Engenho
de Santana, evento histórico resumidamente apresentado em Encontros 2. É presumível
que quase todos os blocos, ao menos entre os mais antigos, já tenham se dedicado a
apresentá-lo. E isso acontece porque, em primeiro lugar, a revolta dos escravos do
Engenho de Santana é contada pelo prisma da resistência e da vitória, e ainda que ao final
os líderes tenham sido presos ou assassinados, simbolicamente o fato representa a origem
da força e da resistência do movimento negro de Ilhéus; em segundo lugar, há uma
produção historiográfica sobre o assunto, à qual os blocos podem recorrer para montar suas
apostilas.
No entanto, como os grupos poderiam trabalhar sobre “os negros da região” numa
cidade cuja ‘história’, como já foi visto em Encontros 2, não admite a existência de
escravidão, não havendo, portanto, produção sobre o tema? Como esperar que os grupos
afro explorem assuntos sobre os quais não há material a que possam recorrer? Essa
dificuldade foi sentida na pele por militantes do MNU que assumiram o grupo Força Negra
exaustivo de compilar o repertório do Dilazenze, talvez o único bloco em que isso seja possível, já que é oque possui um arquivo de documentos, ainda que com lacunas.
274
em 1997, após este ter sido desativado em função da conversão de seus líderes ao
protestantismo. A proposta dos novos dirigentes era a de fazer com que o grupo viesse a
explorar a presença de negros ‘angola’ na região, tanto como tema de carnaval quanto em
outros trabalhos no dia-a-dia. O argumento era baseado na hipótese de que a maior parte
dos escravos que se dirigiram para o sul da Bahia era de origem bantu e que isso tivesse
trazido especificidades para a ‘cultura negra’ local, já realçada nos terreiros de candomblé,
mas que poderia ser notada em outros elementos ainda não percebidos como herança dessa
origem. Embora o Força Negra não tivesse conseguido sequer montar um projeto sobre o
tema por falta de material disponível80, um dos seus principais líderes insistia na idéia de
que os grupos afro de Ilhéus deveriam explorar a ‘origem angola’ da população negra da
região, pois isso poderia ser ‘lucrativo’ para os grupos afro a partir da geração de um
trabalho distinto daquele produzido pelos blocos de Salvador, o que lhes possibilitaria
alguma competitividade com estes últimos no quadro geral do turismo do estado, além de
“elevar a auto-estima dos negros da região”81.
A mesma ‘queixa’ da falta de trabalho dos blocos com temas locais vem também de
um outro tipo de discurso: aquele que exige que os blocos prestem um serviço à
comunidade, que sua relevância para a ‘cultura local’ seria maior se eles pudessem “trazer
ensinamentos” para a população trabalhando a história da cidade como, por exemplo,
pessoas negras “ilustres” de Ilhéus ou que nela moraram. Não obstante as intenções
políticas das propostas, ambos os discursos têm, no fundo, a mesma concepção de que os
grupos afro devem ter outros objetivos além daquele de serem ‘carnavalescos’.
79 Neste ano de 2004, o Dilazenze homenageou Mário Gusmão, enquanto o Miny Kongo fez o mesmo porPai Pedro, falecido em 2003.80 Nesse caso é importante ressaltar que o grupo apresentava uma média de taxa de escolaridade bemdiferente dos demais blocos afro, já que vários de seus componentes estavam cursando o nível superior.81 Durante a reestruturação do CEAC em 1997, esse mesmo líder insistia que a entidade deveria constituiruma equipe de assessoria, também em pesquisa, para auxiliar os grupos.
275
A música é o “discurso” do bloco afro: “discurso de afirmação, de valorização, de
denúncia. (...) É um ato político”, é o que diz um dos seus dirigentes em Ilhéus. E isso é
tanto mais verdade se for considerado que as músicas dos blocos são compostas, em geral,
em função dos temas propostos para cada ano. São as ‘músicas-tema’. No Dilazenze, no
Rastafiry e, mais raramente, em alguns outros blocos de Ilhéus, elas são apresentadas nos
festivais de música que, em geral, ocorrem na mesma noite do concurso de Beleza Negra.
Os autores que trabalham com o movimento dos blocos afro de Salvador
classificam suas composições em ‘músicas-tema’ e ‘músicas-poesia’: as primeiras
compostas para os desfiles; as segundas não têm um tema imposto. Em geral, elas são
românticas, mas podem ser de denúncia ou, como diz Vovô, presidente do Ilê Aiyê,
“Existem muitas músicas românticas hoje no Ilê Aiyê. Existe umoutro discurso, Ilê é como um refúgio, um ponto de apoio. A músicapode falar daquele que foi abandonado, daquele que está enamoradode uma ‘Negona’ que ele encontrou no bloco... Essa música é da rua,ela fala da rua, das árvores, de uma mangueira...” (Ribard 1999:426).
Também com base em sua pesquisa com o Ilê Aiyê, Agier (2000) define ‘música-poesia’
como “uma composição sem tema imposto, mas onde o autor deve, entretanto, desenvolver
os valores (ideológicos, morais, estéticos, etc.) que ele reconhece no Ilê Aiyê” (:164). Seja
música composta para o desfile do bloco ou ‘música-poesia’, o importante é que ela seja
‘música negra’: denunciando discriminação racial ou injustiça social; enaltecendo heróis
negros; valorizando a origem ‘cultural’, seja pelo candomblé ou pelos países africanos; ou,
o que é mais comum na ‘música-poesia’, promovendo a auto-estima da população negra ao
falar da beleza e do encantamento da mulher negra, da alegria e do prazer de um desfile do
bloco, do valor de sua música etc.
Em sua dissertação de mestrado, cuja pesquisa de campo foi realizada junto ao
Dilazenze, Cambria (2002) busca definir o que seria ‘música negra’ para o grupo. O autor
chega à conclusão de que é aquela que fala “do negro, de sua realidade, de sua cultura.”
276
(:119). Em nota, diz que as músicas-poesia que se referem à “questão negra, compostas
fora do carnaval, de alguma forma, constituem uma ponte entre os dois tipos” (:119),
donde se poderia concluir que as músicas-poesia que não falam da questão negra não
seriam, então, música negra. Tomando a fala de Vovô, transcrita acima, letras de música
do Dilazenze e de outros blocos afro e a experiência de campo, não tenho dúvidas em
afirmar que as músicas de um bloco afro são sempre ‘música negra’82. Isso não significa
dizer que as músicas apresentadas pelos grupos afro em seus shows o sejam, pois “músicas
de axé, de pagode são sempre pedidas e a gente tem que tocar”. É evidente, como também
diz Cambria (:119), que “não é suficiente [a música] ter sido criada ou desenvolvida por
pessoas negras”, pois música clássica também poderia sê-lo, nem por isso seria ‘música
negra’. E um grupo pode até acusar um outro de não estar fazendo música negra se quiser
descaracterizá-lo como bloco afro, mas isso nunca seria dito enquanto discurso auto-
referido.
Se o Dilazenze explora mais freqüentemente temas ligados ao candomblé, o
Rastafiry é considerado o bloco mais ‘político’ por trabalhar temas históricos com um
enfoque mais social. Também em ‘música-poesia’, o Rastafiry costuma fazer mais “música
de protesto”, enquanto o Dilazenze compõe músicas mais românticas. Quando o grupo
conseguiu que uma de suas músicas fosse veiculada em rádios FM de Ilhéus, esta foi uma
música considerada romântica, preferida pelas gravadoras segundo um compositor de
bloco afro de Salvador em depoimento dado a Ribard (1999:230): “para que uma música
negra seja tocada, ela deve ser romântica”. E são justamente essas músicas que costumam
ser ‘ouvidas’ nos ensaios dos blocos e, como não são registradas, são ‘apropriadas’ por
blocos de trio ou bandas de axé, que mudam o ritmo e, às vezes, as letras83. É interessante
82 Evidentemente, um componente de um bloco pode vir a compor músicas cuja temática não seja negra, masnão composta para o grupo afro.83 Cf. Ribard 1999:302.
277
que Guerreiro exemplifique essa situação com um caso ocorrido com o compositor Rey
Zulu, que teve uma de suas músicas “roubada” por banda de trio e tocada em rádio antes
mesmo de ser registrada84. Anos atrás, Rey Zulu conheceu uma ‘música de protesto’ do
Dilazenze, quis gravá-la e um pequeno número de músicos do grupo foi a Salvador
participar da gravação. Sob a alegação de que poderia tornar a música mais comercial, o
componente do Olodum acelerou um pouco seu ritmo e modificou a letra, retirando seu
caráter de denúncia de racismo e transformando-a em música romântica.
A princípio, causa estranheza que existam blocos afro em Ilhéus que possuam a
palavra ‘reggae’ em seus nomes – ‘Danados do Reggae’ e ‘Leões do Reggae’ –, que
eventos chamados ‘Terça’ ou ‘Sexta’ ‘do Reggae’ sejam para apresentações de bandas afro
e que, por outro lado, bandas de reggae não façam parte do Conselho de Entidades Afro-
Culturais – CEAC, nem sejam incluídas no que se chama de ‘movimento negro’ da cidade.
Isso não significa que o reggae não seja ‘música negra’. As razões de sua não inclusão no
CEAC dizem respeito mais à natureza deste como entidade que agrega blocos afro e três
outros grupos quase que a ele impostos, como ver-se-á adiante, do que a uma classificação
de reggae como música negra ou não. Isso depende do contexto.
Em 1997, quando da reestruturação do Conselho e da definição de que grupos
poderiam fazer parte dele, chegou-se a cogitar a entrada de bandas de reggae na entidade.
Discutiu-se, então, a natureza do reggae como ‘afro’ ou não. Entre afirmações que
argumentavam pela mesma origem africana do reggae e do ‘afro’, seja por sua “concepção
etíope” ou pela semelhança baseada na “batida do ijexá”, que deu nome ao ritmo que se
tornou próprio dos blocos afro, o samba-reggae, foi vetada a participação de bandas de
reggae no Conselho porque elas nunca poderiam se tornar blocos afro. Por outro lado,
naquele mesmo ano, com o objetivo de arrecadar fundos para o carnaval dos blocos, o
84 Guerreiro informa que se trata da música “Elejigbó”, gravada mais tarde pela cantora Margareth Menezes e
278
CEAC decidiu pela realização de um grande show e o artista escolhido foi Edson Gomes,
maior representante do reggae na Bahia e um dos maiores no Brasil. Além da certeza de
que o evento seria um sucesso, havia também a expectativa de que o artista cobrasse um
cachê baixo porque seria um show em benefício de entidades negras, já que suas letras
“falam da realidade do povo negro” ou “são politizadas”, segundo alguns integrantes do
movimento, constituindo-se em protesto contra o racismo, contra a desigualdade social...
“Reggae é música de protesto”, disseram. Foram semanas de tentativas de negociação,
tanto com o artista quanto com a prefeitura, a qual deveria financiar parte dos custos do
show como forma de um primeiro investimento nos grupos afro, que a partir daí seriam
capazes de gerar seus próprios recursos. Mas Edson Gomes acabou realizando um grande
show em Ilhéus trazido por uma empresária branca com auxílio da prefeitura, sem
nenhuma participação dos blocos. Em 2000, houve um outro show de Edson Gomes na
cidade, realizado no bairro da Conquista85, cuja população é majoritariamente negra.
Porém, dessa vez, o reggae de Edson Gomes parecia bem menos com “música negra”, “de
protesto”: com invocações a Deus e aclamações ao “Senhor” a todo instante, foi como se
Edson Gomes perdesse sua condição de representante da população negra na luta contra o
sistema que a oprime, para falar numa linguagem própria ao estilo. Era reggae, mas já não
era tão ‘música de protesto’ assim...
que se tornou um grande sucesso (2000:147).85 Sobre o bairro da Conquista, seus estigmas e a relação com os blocos afro de Ilhéus, ver Encontros 2.
279
Nomes
É óbvio que um dos mais importantes símbolos ‘étnicos’ dos grupos afro são seus
nomes. O nome do grupo é o que primeiro aparece e o remete a algum dos elementos
aceitos na definição de bloco afro. Em Ilhéus, eles podem ser agrupados em três categorias:
candomblé, ‘negritude’ e preferências musicais.
Dos grupos com nomes referidos ao candomblé, apenas o D’Logun não é
diretamente ligado à religião. Os demais – Miny Kongo, Lê-guê Depá, Axé Odara e
Dilazenze – com mais ou menos intensidade, são ou foram vinculados a algum terreiro e a
força do bloco é imaginada a partir do significado do nome escolhido. E isso seja porque se
trata do orixá da cabeça do fundador ou porque é importante para o conjunto das pessoas
que o fundou, o que fará com que elas ou o bloco sejam protegidos (caso do Miny Kongo e
do Lê-guê Depá, respectivamente); seja porque o significado das palavras dentro do
candomblé representam coisas boas (como no caso do Axé Odara), ou ainda porque se
trata do nome de alguém que tem um significado muito especial para o grupo (como para o
Dilazenze).
A categoria ‘negritude’ envolve as idéias de ‘africanismos’ e de ‘resistência negra’,
cuja reunião se dá em função do significado único que elas encerram: é a força do ‘povo
negro’ que se quer dar ao bloco, esteja esta força na idéia de capacidade de luta – “Força
Negra” –, como guardião de uma origem africana – “Zimbabuê”, “Guerreiros de Zulu”,
“Raízes Negras” – ou em sua resistência a partir de movimentos históricos, como são os
casos dos “Gangas” (originados de Gangazumba, primeiro líder do Quilombo dos
Palmares) e dos “Malês” (da Revolta dos Búzios).
O nome do grupo pode revelar ainda sua preferência musical, como é o caso do
“Leões” e do “Danados” “do Reggae”. O “Rastafiry” também se enquadra nessa categoria,
280
porém, além da preferência pela batida do reggae – o grupo sempre afirmou uma
identificação com o Muzenza, bloco de Salvador conhecido também como o ‘bloco do
reggae’86, o nome representa também a admiração de seus fundadores pelo rastafarianismo,
embora nunca tenham sido praticantes, e, principalmente, por seus maiores líderes: na sede
do Rastafiry há um grande cartaz com a foto de Bob Marley na parede.
Carnaval
Por ser um evento em que são acionados de uma só vez vários elementos buscados
no que se denomina ‘cultura negra’ e que participam da composição dos blocos afro, o
carnaval é definido por diversos autores como um momento em que se assume ou se
produz uma ‘identidade étnica’, portanto, um lugar para o confronto ou para a interação de
‘identidades’.
O conceito de identidade não pode ser pensado sem a determinação de um ‘nós’ e
de um ‘outro’. No caso dos blocos afro, estes assumem o lugar do ‘nós’ enquanto a
‘sociedade’ ou ‘os blocos de trio’ assumem o lugar do ‘outro’. Sendo assim, não só o
desfile em si, como também o famoso ‘encontro’ dos blocos e sua disputa por horários e
audiência são momentos privilegiados na análise. O objetivo desta seção é discutir a
experiência dos blocos afro em Ilhéus sob esses mesmos prismas, comparando-a com o que
é observado por alguns dos autores que trabalham com o tema em Salvador.
À
‘O carnaval é a vitrine dos trabalhos comunitários dos grupos afro’ – afirmação
feita por Ribard (1999:26) que por já ser um clichê, o autor escreve o termo ‘vitrine’ em
português. Em minha dissertação de mestrado, reproduzi esta mesma frase, que me fora
dita por um representante do MNU em Ilhéus quando valorizava politicamente o trabalho
86 Ver Encontros 1.
281
dos grupos afro em suas comunidades durante todo o ano e argumentava que apresentar
esse trabalho para a sociedade era a função do carnaval (Silva 1998:105). Também ouvi a
frase de dirigentes de blocos afro, ressaltando a importância da festa para os grupos. E
talvez diversos outros autores, componentes de blocos, militantes do movimento negro,
jornalistas etc., já tenham feito tal observação.
Na acepção utilizada por Ribard, pelo representante do MNU em Ilhéus e, em
momentos específicos, por dirigentes dos blocos afro, o termo ‘vitrine’ significaria mesmo
uma pequena parte, uma ‘amostra’ de um trabalho que ocorre durante o ano nas
comunidades dos grupos afro e tem o desfile no carnaval como auge, como um momento
culminante daquele esforço87, cujo objetivo final deveria ser o de ‘aumentar a auto-estima’
tanto das pessoas envolvidas no trabalho, quanto da população negra de modo geral. O
desfile do bloco afro no carnaval, seria, então, percebido mais como um meio e não como
algo que tem um fim em si mesmo. Ele seria um ‘trabalho social’, como será visto no
próximo capítulo.
Ainda de acordo com Ribard, o carnaval seria um “meio para os blocos afro
poderem aparecer, ser visíveis através da apresentação e da expressão de um trabalho
cultural (...) e também de ser reconhecidos pelas instâncias oficiais e por patrocinadores,
ainda que esse reconhecimento seja apenas hipotético.” (1999:414). Essa também é uma
forma de ver o carnaval como vitrine, talvez no sentido mais usual do termo: o de se
mostrar para se fazer (re)conhecido e, assim, poder ser beneficiado ou conseguir
patrocínio. Chamando a atenção de que esse reconhecimento pode ser apenas hipotético, o
autor parece desejar informar que dificilmente há uma mudança real na obtenção de
recursos para o bloco a partir de uma melhor ou pior apresentação no desfile, seja junto ao
87 Costuma-se dizer o mesmo para os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, embora nesse caso, oobjeto em discussão sejam os carros alegóricos, as fantasias e adereços, que começam a ser confeccionados
282
governo, seja junto a patrocinadores. Mas no caso do Dilazenze em Ilhéus, pode-se dizer
que o carnaval, de fato, funcionou como ‘vitrine’ e trouxe benefícios para o grupo, ainda
que não exatamente financeiros. Depois de alguns anos sem desfile e alguns mais sem
concurso, os blocos voltaram a receber recursos da prefeitura em 1997, e em 1999
voltaram a competir. Deste ano até 2003, o Dilazenze foi o campeão. Mesmo que em
algumas edições do concurso sua vitória tenha sido por poucos pontos – numa delas,
apenas por meio ponto sobre o Miny Kongo na contagem final –, as vitórias consecutivas
combinadas com a implantação do Projeto Batukerê, a organização de outros eventos fora
do período do carnaval (Mostra de Cultura, Seminários, Semana de Folclore etc.) e uma
conseqüente maior presença na mídia compuseram uma tal configuração que fez com que
comentários a respeito da “superioridade” do Dilazenze em relação aos demais grupos
começassem a ser repetidos por seus membros e por representantes do governo, além dos
próprios jurados e mesmo membros de grupos menores e mais recentes. No carnaval de
2001, observações dos jurados nesse sentido foram registradas nos versos das planilhas de
apuração do concurso que, sendo repassadas ao grupo, só reforçaram a idéia e foram uma
das justificativas para que em 2004 o Dilazenze deixasse de concorrer, tornando-se hors
concurs.
Mas a palavra ‘vitrine’ pode expressar ainda uma outra percepção do carnaval que,
embora englobe as já apresentadas, parece primeira em relação a elas, tanto a partir da
proposta de constituição dos blocos quanto de sua prioridade atual. Todo o esforço
empregado nos preparativos para o carnaval, o interesse no concurso, os comentários
posteriores, a rivalidade existente entre os grupos em função da colocação no desfile... tudo
isso mostra que para os blocos afro, apresentar-se no carnaval é, antes de tudo, apresentar
um espetáculo e a proposta de mostrar-se diferente a partir de uma organização do tipo
com muitos meses de antecedência. Em alguns casos mais, em outros menos, diz-se que ali está o trabalho da
283
‘bloco de carnaval’ só tem sentido se o evento for concebido desse ponto de vista.
Evidentemente essa percepção não é exclusiva dos grupos afro, nem é nova. As escolas de
samba são o melhor exemplo de que o carnaval é um espetáculo – “o maior espetáculo da
terra”, como se costuma qualificar o desfile no ‘sambódromo’ do Rio de Janeiro –, mas
isso não se restringe a elas: qualquer agremiação de carnaval concebida a partir de um
formato que envolve fantasias, alegorias etc., uma tal forma de dançar ou de tocar, enfim,
que se constitui para ser visto, é um espetáculo. Mesmo entre grupos considerados
‘culturais’, como o ‘maracatu’, os ‘caboclinhos’, os vários tipos de blocos existentes no
país que têm a figura do boi como personagem central etc., a ‘preservação da cultura’ se
realiza na preparação, mas sobretudo, na apresentação do grupo frente a um público, na
qual cada componente deseja ser apreciado por outrem com a fantasia do bloco e sentir-se
bonito compondo o show a ser apresentado. No caso dos blocos afro, há aqueles que são
considerados os artistas de fato, como o mestre da bateria, os cantores, os componentes da
bateria e os dançarinos, as pessoas que se vestem como destaques... E na chamada ‘ala do
povão’, além da própria fantasia do bloco, os componentes buscam enfeitar-se com
acessórios que os tornam ainda mais ‘afro’, como colares, pulseiras, faixas na cabeça etc.
Tudo isso é bem diferente do que ocorre num bloco de arrasto ou num bloco de trio, nos
quais as pessoas usam a mesma camiseta e o que importa é a música, é estar no bloco.
Enquanto nos blocos afro se ‘desfila’, nesses outros o que importa é ‘pular’.
A oposição ‘carnaval-participação’, referindo-se ao carnaval baiano, invadido pelos
blocos de trio na década de 70, versus ‘carnaval-espetáculo’, que descreve o estilo de
carnaval do Rio de Janeiro, dominado pelas escolas de samba, tornou-se uma espécie de
senso comum no Brasil88, à qual foram agregados valores contidos em termos como
comunidade da escola.88 Mas não apenas: já em 1967, um autor uruguaio definia o carnaval montevideano como “carnaval deespetáculos” (Ver Carvalho Neto 1967 apud Frigerio 1996).
284
‘democrático’, ‘do povo’, em relação ao primeiro, e ‘para turista ver’, ‘para ganhar
dinheiro’, para o carnaval do Rio de Janeiro. Apesar do crescimento dos blocos afro e dos
‘novos afoxés’ em Salvador ao longo da década de 80, organizados como ‘espetáculos’89, e
da também crescente privatização dos trios elétricos, a imagem de carnaval da
participação e da democracia permaneceu. Em parte porque os grupos afro são vistos
como manifestações culturais majoritariamente formados por pessoas negras, portanto,
populares, e também porque “a música que emana dos trios abastece tanto associados dos
blocos como os foliões pipoca” (Guerreiro 2000:244), ou seja, quem está fora das cordas.
Por outro lado, a imagem do carnaval do Rio como ‘espetáculo para turista’ também foi
reforçada com a inauguração do Sambódromo em 1984, com a bem marcada setorização
do espaço pela diferença de preços dos ingressos e pela cada vez maior quantidade de
fantasias nas escolas destinadas a turistas90.
A ênfase na dimensão de espetáculo do carnaval dos blocos afro, ganha mais
sentido se colocada junto às definições a respeito do evento produzidas por alguns dos
autores com os quais este trabalho vem dialogando. Na introdução a este capítulo, foi
observado que a definição de bloco afro defendida pela grande maioria dos autores refere-
se a ele como entidade de ‘preservação’ de ‘cultura negra’, acompanhada de complementos
que sugerem que as atividades desenvolvidas pelo bloco, principalmente o carnaval, são
um meio de alcançar outros objetivos, geralmente relacionados a questões de caráter
étnico. Assim, as definições em torno do carnaval não poderiam seguir outro caminho.
Ainda que nem sempre de maneira explícita, as análises sobre o fenômeno
carnavalesco a partir da observação dos blocos afro de Salvador parecem dialogar com a
89 Como mostra uma matéria jornalística que elogia os grupos afro em função do “espetáculo montado paraser exibido e colher aplausos” e critica os blocos de trio por serem “culturalmente vazios” (Jornal A Tarde,09/02/86 apud Gomes 1989:182).90 Ver Sheriff (1999) em artigo de título bastante eloqüente: “The Theft of Carnaval: National Spectacle andRacial Politics in Rio de Janeiro” (“O Roubo do Carnaval: Espetáculo Nacional e Políticas Raciais no Rio deJaneiro”).
285
mais divulgada das teorias sobre o assunto no âmbito da antropologia brasileira, a de
Roberto DaMatta em Carnavais, Malandros e Heróis (1979). Simplificando-a
demasiadamente, trata-se de pensar o carnaval como um fenômeno que permite
ritualmente a inversão da realidade, “que suspende temporariamente a classificação precisa
das coisas, pessoas, gestos, categorias e grupos sociais (...). A transformação do carnaval
brasileiro é, pois, aquela da hierarquia cotidiana na igualdade mágica de um momento
passageiro.” (:132). O fenômeno da reafricanização do carnaval e dos blocos afro
possibilitaria, de fato, uma mudança da realidade, ao contrário do que postula DaMatta. É o
que parece dizer Antônio Risério quando afirma que há uma “força transformadora”
atuando no carnaval e que “não é verdade dizer que depois do carnaval tudo volta a ser
como era antes” (1981:19). Nisso também acreditam Agier (2000), para quem o carnaval é
um espaço de “invenção de um outro mundo” (:53), de “deformação da realidade” (:236)
que pode se prolongar no cotidiano da cidade (:29); e Ribard (1999), que concebe a festa
como um “espaço de contestação social” (:72), que “postula simbolicamente a
transformação do equilíbrio social e interétnico da sociedade” (:476). Há muitas distinções
entre as análises desses autores, mas nem Ribard nem Agier afirmam que há uma mudança
de fato na organização social da cidade. O carnaval seria um meio, o principal deles91, de
“afirmar” uma ‘identidade étnica coletiva’ para Ribard, ou de “ritualizar” uma ‘identidade’
de “elite negra”, no caso de Agier92, ao apresentar um ‘outro mundo’, no qual ‘os negros’
estariam ocupando um outro lugar na ‘sociedade’; o desfile seria uma forma de exprimir
reivindicações comuns à ‘comunidade negra’, propondo, assim, uma mudança nas
91 Agier trabalha com a idéia de que o carnaval é um “contexto ritual”: “um espaço-tempo fora do cotidiano,propício à simbolização, sem prejulgar as formas e a densidade dele (...): a simbolização ritual aí é diferente edesigualmente densa segundo os atores e os momentos (às vezes nulo e às vezes excessivo), e essasdiferenças de sentido reenviam à segmentação desse espaço segundo as categorias sociais e sócio-raciaispresentes na cidade e na festa” (2000:231)92 Agier toma o cuidado de não generalizar a idéia de que o carnaval é uma “distorção do real” através daritualização de identidades para todos que dele participam. Ele primeiramente diz que só os grupos afro o
286
‘relações interétnicas’ vigentes, como uma “resposta às formas particulares do racismo
brasileiro.” (Agier 2000:54).
Não considero possível pensar o carnaval como um fenômeno único, definido a
partir de valores ou comportamentos sociais que abrangeriam ‘a população’ ou ‘a
sociedade’ ou ‘o Brasil’, nem mesmo ‘a Bahia’ ou ‘o Rio de Janeiro’. Em Ilhéus, um
dirigente de bloco afro, ou mesmo um componente com responsabilidades em relação à sua
organização, como as costureiras por exemplo, podem viver poucos outros momentos de
carnaval que não sejam aqueles do desfile de seu bloco, aos quais se resume a festa. É
óbvio, então, que num mesmo momento, carnavais muito diferentes estejam sendo vividos
por um turista, por um folião de vários blocos de arrasto ou por pessoas que só vão assistir
aos shows das bandas de axé...
Antes de prosseguir, é preciso refletir a respeito da afirmação recorrente de que o
carnaval é um espaço privilegiado de encontro de ‘identidades’, expressas pelo bloco afro,
por um lado, e pela ‘sociedade’ por outro. Um primeiro ponto a ser observado é que só os
grupos afro possuem uma identidade. A idéia de encontro, nesse caso, vem do fato de que
uma identidade só pode existir frente a outras, como defende Agier (2000:225). Adiante,
ver-se-á que, às vezes, essa ‘outra’ identidade é corporificada nos blocos de trio, chamados
de ‘blocos de branco’, e as narrativas dos embates raciais são concentradas aí, mas ainda
assim a identidade permanece nos grupos afro.
O momento da apresentação do bloco afro no desfile de carnaval é quando estão
reunidos todos os elementos que o constituem como ‘afro’: música (letra e ritmo), dança,
indumentária, tema, alegorias, além de seu próprio nome. Há nesse instante uma produção
de subjetividade negra que afeta os componentes do bloco que, com exceção do Ilê, não
são exclusivamente pessoas consideradas negras, e que ‘racializa’ seus corpos através da
fazem e depois afirma que mesmo entre eles, os que mais ritualizam são os mais estruturados, aqueles
287
dança, dos acessórios, dos penteados... Tal subjetividade também pode afetar o público que
assiste ao desfile e pode fazer com que, tanto público quanto componentes, concebam o
desfile como momento de ‘afirmação’ de que ‘o mundo’ deveria ser de outra forma, de que
não deveria mais haver discriminação, de que as pessoas negras e sua cultura deveriam ser
valorizadas. A possibilidade disso vir a acontecer, de fato, mobiliza muitas pessoas em
torno dos grupos afro. Todavia, ao menos entre os grupos afro de Ilhéus, o que se espera
mesmo de um desfile é que o bloco seja bonito, admirado por quem o assiste. E cada
componente deseja colaborar para isso, fazendo-se bonito, dançando, tocando, cantando
bem. Deseja-se mesmo que o espetáculo seja bom.
Blocos afro e blocos de trio
Em Carnaval Ijexá..., em 1981, Risério queixava-se da privatização dos trios
elétricos (:113-4) como um fenômeno novo que começava a acontecer no carnaval de
Salvador: “de resto, alguns blocos de pessoas mais ricas, a fim de não se misturarem com a
crioulada, estão contratando pequenos (e lamentáveis) trios elétricos para tocar só para
eles, no espaço privativo do bloco, balizado por cordões” (:47). Os trios elétricos são
fenômenos já considerados antigos do carnaval baiano – o primeiro, de Dodô e Osmar, é
de 1949. E, pela diferença de estilo e de potência de som, desde o surgimento dos blocos
afro há conflitos quando ocorrem encontros entre eles. Mas os embates entre blocos afro e
blocos de trio foram acirrados a partir da privatização desses últimos, quando além de
potência e estilo, outras diferenças foram ressaltadas e colocadas em pólos opostos, como
‘cor’ e ‘classe social’, conforme descrito por Risério na citação acima quando o autor faz
referência a “pessoas mais ricas” que não desejam se misturar “com a crioulada”. Ao longo
da década de 80, os chamados ‘incidentes’ entre blocos afro e blocos de trio são
capazes de criar a imagem de uma elite negra, “o ponto forte do carnaval africanizado” (2000:55).
288
recorrentes: o encontro hipotético narrado por Gerônimo em “Macuxi Muita Onda” (“Eu
sou Negão”) pelo qual inicio o primeiro capítulo deste trabalho, de fato acontece.
O carnaval de Salvador ainda é divulgado como o ‘o mais democrático do Brasil’,
embora seja notória a segmentação social e racial existente. Notícias a respeito de práticas
racistas por parte dos blocos de trio são antigas – Gomes (1989) informa que no início dos
anos 80 já havia denúncias contra os blocos – e perduram até o presente. Em 1999, chegou
a ser aberta uma Comissão Especial de Inquérito sobre o assunto na Câmara de Vereadores
de Salvador, que ficou conhecida como CEI do Racismo. Na época, seis grandes blocos de
trio foram acusados de proibir a participação de pessoas negras, mas o Relatório Final da
CEI encaminhou solicitação ao Ministério Público que abrisse inquérito apenas contra um
deles, “A Barca”93. Também pesa contra o título de ‘democrático’ dado ao carnaval de
Salvador, o espaço cada vez menor do ‘folião pipoca’, imprensado entre as cordas dos
blocos e os camarotes e arquibancadas, ou seja, cada vez é menor o número de ‘não
pagantes’, de ‘povo’, que pode desfrutar do som do trio.
Os blocos afro são, acima de tudo, percebidos por seu caráter ‘étnico’, como fica
claro pelas afirmações da grande maioria dos autores que trabalham com esse objeto. Mas
é interessante notar que praticamente todos eles, assim como também faço, ao falar de
blocos afro tocam também nos blocos de trio, até apontam práticas racistas, mas não lhes
atribuem uma “natureza política ou conotação étnica”, como ressalta Guerreiro, mesmo
dizendo que esses blocos constituem “espaços brancos”, às vezes originados em “grêmios”
de escolas94, que angariam votos para políticos que os patrocinam e que alguns deles
exigem “foto e comprovante de residência” para a compra de seus abadás (2000:127),
93 No site www.uol.com.br/times/nytimes constava o relatório final original e o texto como foi apresentadopelo relator, com alterações não aprovadas pela comissão que atenuavam as acusações.94 “Esses jovens são, de modo geral, estudantes de escolas particulares e de cursinhos pré-vestibular, onde amaioria dessas organizações se originou. Atualmente, os grêmios das escolas particulares são dominadospelos blocos de carnaval e não por partidos políticos. Eles servem para cooptar novos foliões e para angariar
289
garantindo homogeneidade na cor e na classe social de seus associados. Assim, a
proposição de que não há ‘conotação étnica’ nesses espaços é derivada de uma concepção
que só atribui ‘símbolos étnicos’, ‘cultura’, ‘identidade’ a grupos minoritários, como já
observado antes neste trabalho. Porém, freqüentemente os blocos de trio assumem o lugar
do ‘outro’ na ‘construção da identidade negra’ do bloco afro.
Diferentemente da maior parte dos autores, Ribard (1999) confere uma ‘identidade’
ao folião de um bloco de trio famoso, considerando seu encontro com um folião de bloco
afro como o confronto de “dois mundos e duas identidades antinômicas”, no qual cada um
deles deseja “ser reconhecido a partir de sua origem sociocultural ou étnica” e “ocupar um
lugar na festa” (: 306), o que é propiciado pelas características do carnaval: “espaço de
interação entre indivíduos que, situados nas extremidades da escala social (...) não têm, ou
têm pouco, a ocasião de se encontrar em tempos ‘normais’.” (:72) e favorável à “projeção e
[à] participação de cada um, qualquer que seja seu estatuto e sua posição social na
sociedade.” (:141).
Existem inúmeros exemplos para relativizar e minimizar a segregação sócio-racial
da qual os blocos de trio, por um lado, e os blocos afro, por outro, seriam seus pólos.
Contra as dicotomias bloco afro/pobres/negros versus bloco de trio/ricos/brancos,
estabelecida também por Agier ao longo de sua obra, Moura (Moura e Agier 2000)
argumenta que há vários blocos de trio mais baratos do que alguns blocos afro, como o
Olodum e o Ilê Aiyê, e que por isso “congregam um grande número de associados negros”
(:369). Por outro lado, baseado em sua tese de que o desfile do Ilê Aiyê ritualiza uma
identidade de ‘elite negra’, o próprio Agier diz: “complemento inesperado do exercício
ritual, o custo da inscrição do bloco confirma a série ritualmente criada para o desfile. O Ilê
Aiyê é o mais caro dos blocos afro-brasileiros do carnaval e vê-se que é necessário que
votos para os políticos que eventualmente patrocinam os trios, transformando alguns professores de segundo
290
seja.” (:196). Segundo Ribard, na época de sua pesquisa, as fantasias dos grandes blocos
afro custavam em torno de duzentos reais, preço alto que permite que apenas uma classe
média, seja negra, branca ou ‘mestiça’, possa participar. Guerreiro também informa que,
com exceção do Ilê, que só admite a participação de pessoas negras, os demais blocos afro,
“cujas bandas têm trânsito na mídia, são compostos por associados branco-mestiços e, em
menor escala, pela classe média negra.” (2000:244). Além do mais, esses blocos também
viraram ‘blocos de trio’, ainda que ‘afro’, mas têm a mesma estrutura dos outros: trio
elétrico, abadás, cordas e ‘cordeiros’ negros95.
O primeiro incidente entre bloco afro e trio elétrico em Ilhéus ocorreu com o Miny
Kongo em 1984 ao encontrar-se com o trio elétrico de Dodô e Osmar. Na ocasião, não
houve maiores problemas porque o trio permitiu que o Miny Kongo o atravessasse e
Osmar ainda pediu desculpas. Como ainda é hoje, tratava-se de um trio elétrico que era
seguido pelos foliões, sem cordas ou associados.
Os encontros entre blocos afro e trios elétricos da década de 90 são bem diferentes
daquele de 1984. A partir de 1994, começam a surgir em Ilhéus os primeiros blocos de trio
da cidade, como “Pileque”, “Galera de Ilhéus”, “Borimbora”, “Dk um Cheiro”, “Eva”,
“Massicas”, “Chupa Rindo”... (Borges 2002:37-8). Organizados por jovens de famílias
ricas, todos, ou quase todos, os blocos de trio possuem ou possuíam sede na Av. Soares
Lopes, às vezes na própria casa da família, remanescente do auge da época cacaueira...
Em 1997, durante meu primeiro período de pesquisa de campo, os blocos de trio,
também chamados de “bloco de barão” ou “bloco de branco” pelos militantes do
movimento afro-cultural, estavam em alta. Os dois últimos ‘carnavais antecipados’, sob o
nome de “Ilhéus Folia” de 1996 e 1997, tinham sido exclusivamente promovidos por eles,
grau em donos de blocos carnavalescos.” (Guerreiro 2000:127).
291
foi o que se chamou de ‘privatização do carnaval’ e era dito que ambos foram grandes
sucessos.
Tal como acontece no carnaval de Salvador, a estrutura de bloco de trio do Ilhéus
Folia é de segregação, que Menezes (1998:83) chama de social, mas sem dúvida alguma é
também racial. Apesar de sua observação sobre cor só fazer referência aos seguranças (“na
maioria negros”), a informação sobre o preço do abadá (“que custa em torno de 200 reais”)
permite saber quem está do lado de dentro da corda e quem está do lado de fora96. Do
ponto de vista de um dirigente de bloco afro, bloco de trio é “só para rico e para negro
pobre e ousado”, que, segundo ele, se endivida durante todo o ano para desfilar num desses
blocos.
Nesse momento, eles eram bem mais numerosos e visíveis do que nas visitas
subseqüentes, pois permaneciam na mídia durante todo o ano: promoviam shows trazendo
atrações de fora, festas de fim de ano e “festas de camisa”. Essas últimas são atividades
particularmente interessantes em razão dos comentários gerados no meio dos blocos afro.
“Festas de camisa” são eventos em que o ingresso – e o consumo da festa, mas nem sempre
– é a compra de uma camisa do bloco, em 1997, entre trinta e cinqüenta reais, preços
considerados bastante altos. Apesar do preço e dos comentários de que pessoas negras não
eram bem tratadas, embora não houvesse proibição, os dias de ‘festas de camisa’
constituíam um ‘acontecimento’, ou seja, eram motivo de muitos comentários e agitação na
região do Dilazenze, seja porque as pessoas lamentavam não ter o dinheiro para ir, seja
porque algumas iam. O presidente do grupo reprovava essas pessoas, dizendo que algumas
“passa(va)m necessidades no dia-a-dia”, mas “não perde(ia)m uma dessas festas” porque,
95 Cordeiros são os seguranças responsáveis por ‘segurar a corda’ a fim de evitar que pessoas sem abadásentrem no bloco. Num capítulo intitulado “As Cordas”, Guerreiro informa que os grandes blocos de trioutilizam, em média, um segurança para cada três associados.96 O artista plástico colaborador do Dilazenze contou que uma de suas experiências com racismo em Ilhéus(ele é de outra cidade) se deu num Ilhéus Folia, quando foi proibido de entrar no espaço dos camarotes,mesmo sendo convidado de seu cunhado, um alto funcionário da Ilheustur.
292
segundo sua visão, elas gostavam de freqüentar esses espaços, sentiam-se mais importantes
por isso. Entretanto, numa reunião do CEAC em que os dirigentes buscavam uma forma de
arrecadar recursos para os blocos, alguém levantou a possibilidade de realizar uma festa de
camisa, afinal, era sabido que os blocos de trio costumavam ter muito lucro com elas. A
idéia foi rebatida com o argumento de que eles teriam que cobrar muito pouco pela camisa
e a festa acabaria não dando lucro, pois mesmo aqueles que pagavam caro para ir nas
“festas dos barõesinhos”, não iriam querer pagar nada para ir na “festa de negão”.
Em 1999, em minha segunda ida a Ilhéus, diante do anúncio de uma dessas festas,
fui informada de que houvera uma diminuição grande destas, pois os blocos diziam ter
prejuízo com elas. Soube também que o preço das camisas havia aumentado muito (de
trinta para setenta reais) sob a alegação de que estava indo “muita gente do morro”, “muita
gente feia” – disse um membro de bloco afro como se estivesse repetindo algo dito por
dirigentes de blocos de trio, como se houvesse aspas em sua fala.
Num primeiro momento, a implantação dos ‘dois carnavais’, o antecipado e o
cultural, em 1997, parecia resolver o problema do encontro entre os blocos. Segundo
Menezes (1998), a partir do depoimento de um dirigente de bloco afro,
“a separação do carnaval de Ilhéus acabou sendo ‘um bom negócio’para os blocos afro da cidade, que agora teriam mais destaque e nãoprecisariam ‘concorrer com os trios elétricos’, como ocorriaanteriormente, na época em que só havia o carnaval oficial e os blocosque ‘desfilam no chão e só com instrumentos de percussão’ ficavamdesprestigiados frente aos trios elétricos” (:85).
Mas não foi o que aconteceu realmente, pois, mesmo no ‘carnaval cultural’, a prefeitura
manteve trios pequenos, que continuaram causando problemas, como o relatado por Vale
de Almeida (2000) em sua experiência de desfilar no Dilazenze em 1998, quando houve
uma verdadeira discussão entre um dos membros do grupo e o vocalista do trio (:144).
293
Horário de desfile dos blocos
Agier (2000) apresenta a programação do carnaval de Salvador a partir de uma
classificação baseada em cor e classe. Durante a manhã, predominariam os blocos
organizados entre amigos, de pessoas fantasiadas – a que a imprensa se refere como o
antigo carnaval de rua –, formados pela “classe média mestiça”; depois do meio-dia, seria
o momento dos blocos de trio, nos quais a “presença de brancos é a mais numerosa” e são
formados pelas “classes média e superior da cidade” (:44); e à noite, seria o momento dos
grupos afro-brasileiros: “do ponto de vista da posição social dos participantes, é o
momento da chegada dos mais pobres no carnaval. E esse momento constitui, no conjunto,
uma festa à parte para os negros da Bahia, muito pouco presentes nas duas outras
modalidades.” (:48)97. Gomes (1989:182) reproduz um artigo jornalístico de 1986 que já
observava a existência de segregação racial definida na programação dos desfiles dos
blocos, mas só em 1987 ela seria oficializada: os trios elétricos só poderiam desfilar até as
19 horas (:183). Anos depois, a posição dos blocos, especialmente dos considerados
pequenos, só piorou, pois, segundo Guerreiro (2000), os blocos afro só desfilam de
madrugada, quando não há transmissão da TV e são poucos os espectadores. Em 1999, a
antecipação do horário do desfile dos blocos afro foi uma das reivindicações presentes na
CEI do Racismo, que acabou funcionando apenas para os cinco maiores blocos (Ilê Aiyê,
Olodum, Muzenza, Malê Debalê e Filhos de Gandhi98): no carnaval de 2000, foi
determinado que em dois dos três dias de desfile, houvesse uma intercalação entre blocos
afro e blocos de trio a partir das 19 horas na Passarela do Campo Grande (:223)99.
97 Ribard especula, em nota, que o horário do desfile dos blocos se deve ao padê de Exu que eles costumamrealizar, o que só pode acontecer após o pôr-do-sol (1999:447).98 O Ara Ketu, incluído por Ribard, por exemplo, entre os cinco maiores, está ausente da relação deGuerreiro, talvez por já desfilar no horário reservado aos blocos de trio, mas a autora não informa.99 No Relatório Final da CEI, consta a seguinte proposta: “Promover mecanismos que garantam ademocratização dos espaços da festa, no circuito oficial, (Barra/Ondina, Campo Grande /Sé e nos queporventura venham a ser criados) em especial quanto à ordem e horário do desfile das entidades
294
Independentemente da suposta configuração racial dos componentes dos blocos,
está-se tratando dos grupos em si, e não dos indivíduos e, desse ponto de vista, o fato do
desfile dos blocos afro ser tarde da noite é, segundo pessoas pertencentes aos grupos, como
disseram-me em Ilhéus, um indicativo do “desprezo” que a organização do carnaval tem
pelos blocos afro, embora, ao menos entre os dirigentes ilheenses, dificilmente esse
‘desprezo’ seja associado à discriminação racial. Assim como em outras situações como
pagamento de cachê, infra-estrutura para os shows..., são inúmeros os relatos de tratamento
diferenciado sempre ‘para pior’ em relação aos demais grupos, mas a palavra
discriminação é raramente usada e, quando acontece, ela é dirigida aos grupos afro como
categoria, não como ‘racismo’, ou seja, não por ser um grupo formado por pessoas negras.
Em Ilhéus, os grupos também se queixam do horário das apresentações, mas pelo
motivo inverso: eles se apresentam muito cedo. A organização do carnaval costuma iniciar
o desfile dos blocos afro por volta das dezoito horas, quando “não há ninguém na rua para
ver”, segundo um dos dirigentes. Sendo Ilhéus uma cidade cujo maior atrativo são suas
praias, e ainda durante o período do horário de verão em que só anoitece horas depois, os
componentes dos blocos afro alegam que as pessoas “só vão para as ruas mais tarde” e no
fim da noite as “ruas estão cheias”.
Observando-se a programação do carnaval ao longo dos anos, percebe-se que já
ocorreu do horário marcado para o início dos trios ser anterior ao horário de desfile do
último bloco afro. E, haja vista que este sempre sofre atrasos, não era raro haver também
em Ilhéus os famosos encontros entre o bloco afro e o trio elétrico. Nos últimos anos,
mesmo não tendo de concorrer com os trios, pois estes se apresentavam no ‘carnaval
carnavalescas, através do sorteio combinado com critérios que garantam a pluralidade e multiplicidade demanifestações e atores da festa: blocos de trio, blocos afro, afoxés, blocos de percussão, mudanças, levadas,trios elétricos independentes, grupos de foliões, pipocas etc.” (Relatório Final da CEI sobre Racismo noCarnaval de Salvador in www.uol.com.br/times/nytimes).
295
antecipado’100, conforme descrito em Encontros 3, o “horário nobre” é reservado aos
shows de bandas de axé music, “pagode” e de forró da região nos palcos montados pela
prefeitura ao longo da Avenida Soares Lopes.
Nos anos 80, quando ainda havia um bom número de afoxés, eles eram os primeiros
a desfilar, à tarde. Ainda era dia quando os blocos afro iniciavam seu desfile, logo após os
afoxés. Depois vinham os blocos de arrasto e, no “horário nobre”, as escolas de samba, a
maior atração do carnaval de Ilhéus até o início da década de 90. Em função do horário de
início do desfile dos blocos, nota-se na programação de cada ano uma hierarquia na
apresentação dos grupos afro: os primeiros a entrar na avenida sempre foram os afoxés,
seguidos dos blocos estreantes ou menores. Quando chegava o momento dos “grandes”, já
havia um público maior. Nos últimos anos, o desfile tem ocorrido em dois dias, o que faz
com que os menores grupos sejam distribuídos nos primeiros horários, começando com o
afoxé, com os pauzinhos ou com a levada da capoeira, mas ainda assim, grupos
considerados nem tão pequenos acabam desfilando ainda cedo.
Em algumas ocasiões, os já costumeiros atrasos do Dilazenze nos desfiles, ainda
que em tom de brincadeira, são ‘justificados’ como um ato de resistência à organização do
carnaval; é uma forma de impor-se no horário que se considera o ‘ideal’. Mas um atraso
muito grande também pode acarretar a ausência do público na avenida, já cansado de
esperar, ou uma situação de conflito, como desfilar em frente a um palco já em show, como
aconteceu em 2000. Não houve maiores problemas porque o palco estava localizado num
setor mais esvaziado da avenida, onde o grupo começa a se dispersar, e a banda que tocava
parou por alguns instantes e pediu aplausos para o bloco que passava.
À
100 Ilhéus teve dois carnavais entre os anos de 1997 e 2001. Nos dois anos seguintes, apenas o carnaval‘cultural’ aconteceu. Neste ano de 2004, também houve apenas um carnaval, mas foi antecipado em cerca deduas semanas em relação ao oficial, no qual trios e blocos afro voltaram a se apresentar nos mesmos dias.
296
Até aqui, este capítulo buscou apresentar os blocos afro a partir dos agenciamentos
que os constituem em seu desejo de diferir através da produção de uma subjetividade
negra. Tal produção se dá na relação dos blocos com o candomblé ou com elementos a ele
vinculados, assim como nas relações estabelecidas ou recusadas com outras religiões,
especificamente com as igrejas católica e evangélicas. A proposta de perceber o mundo por
um viés que se define como ‘negro’ é construída em atividades cotidianas do grupo, mas
principalmente no carnaval, momento propício para produzir um ‘território negro’ e
mostrar-se e, especialmente na visão de analistas, ser percebido como um ‘outro’.
Todo o esforço em conceber uma forma outra de ver, de estar no mundo, de
singularizar-se, faz parte de um movimento que vai na direção de mudanças, de que é
possível “imaginar outras fórmulas de organização da vida social, do trabalho, da cultura.
Os modelos de economia política não são universais.”, como diz Guattari (1986:121). A
isso, pode-se chamar “luta”, “resistência”... Por outro lado, ao organizar-se como entidade
racialmente orientada, o bloco afro corre o risco de sofrer, como instituição, o exercício de
práticas que também são racialmente orientadas, produzidas por outra forma de
subjetividade, justamente aquela contra a qual os grupos desejam produzir uma
“subjetividade dissidente”. O racismo aqui não se dá pela cor da pele, individualmente,
mas por uma postura, um posicionamento enquanto entidade organizada em torno da
questão racial. Este é o tema da próxima seção.
Bloco afro e racismo
A fim de defender o Ilê Aiyê das acusações de racismo que sofria por parte da
imprensa e de intelectuais em função da interdição à participação de não negros em seu
desfile, Risério escreveu que o que há no Ilê é “racismo institucional”, não “racismo
297
individual”. A distinção é atribuída a Carmichael “numa conferência realizada em Londres,
anos atrás”. Para ‘provar’ que as pessoas do grupo não são racistas, Risério faz uso de
argumentos semelhantes aos que são recorrentes entre não negros quando querem negar
seu racismo (em geral, evidenciado em comentários ou atos anteriores): “membros do Ilê
transam à vontade com pessoas brancas, em relações que vão da amizade ao envolvimento
amoroso e sexual.” (:45).
O parágrafo acima não tem a intenção de introduzir uma discussão sobre a presença
ou a ausência de racismo no Ilê, assim como esta seção não pretende analisar se os
membros dos blocos afro de Ilhéus sofrem racismo individualmente ou se as pessoas com
as quais eles lidam em seu dia-a-dia são racistas ou não. Experiências pessoais e de
pesquisa, de autores e de militantes do movimento negro, atestam que dificilmente as
pessoas admitem que, pessoalmente, sofreram racismo ou que o praticaram, embora relatos
de discriminação racial tenham sido feitos aqui e ali ao longo da pesquisa. A proposta,
então, é oferecer ao leitor descrições de situações em que os blocos afro sofreram práticas
racistas enquanto entidades, tanto como prestadoras de trabalhos artísticos para setores
ligados ao turismo e ao entretenimento, aí incluídos órgãos do governo, quanto na sua
relação com a política partidária, onde novamente se encontra o governo.
Antes de prosseguir, é preciso esclarecer ainda que a definição de que as situações
que se seguem constituem práticas racistas é oriunda do meu entendimento sobre elas e
sobre a própria concepção de racismo. Como foi adiantado na discussão anterior a respeito
dos horários dos blocos no desfile, o reconhecimento de que o grupo afro é
‘menosprezado’ ou ‘maltratado’ não significa necessariamente reconhecer que há aí uma
situação de discriminação racial, e é possível que algumas das pessoas que protagonizaram
os exemplos abaixo não concordem com essa forma de qualificá-los. Elas poderiam
argumentar que bandas de pagode ou de reggae também são formados por pessoas negras
298
e, em inúmeras vezes, elas ocupam o lugar do outro termo nas comparações que levam os
grupos afro a afirmar que a forma de tratamento que lhes dão é pior do que a dispensada a
‘outros’. Todavia, ainda que não possa discutir absolutamente nada a respeito de bandas de
reggae e de pagode, sustento a formulação com base nos argumentos de que: (i) esses
grupos podem ter pessoas negras em sua composição mas isso não é determinante de sua
definição, que se dá a partir do estilo musical, que nem sempre é concebido como ‘negro’;
(ii) as bandas afro, ainda que estejam constituídas apenas como grupos musicais, ou seja,
não se expressem como pertencentes a um movimento negro, apresentam em suas músicas
e em sua estética uma concepção negra, assim apresentada e assim percebida; (iii) a
argumentação está fundamentada num entendimento de racismo como uma visão de
mundo e uma prática que estabelecem lugares para pessoas, para ‘culturas’ em função do
quanto elas não são ‘o padrão’ ou do grau de seu afastamento frente ao padrão. Desse
ponto de vista, práticas que contribuam para manter os grupos afro numa posição de
minoria, que evitem seu movimento em direção a mudanças, são práticas de racismo.
À
Os blocos afro surgiram inicialmente como grupos carnavalescos, assim, desfilar no
carnaval era seu único objetivo. Mas os elementos que compõem o momento de desfile dos
blocos, como a dança afro e a música, foram ao longo do tempo ganhando autonomia em
relação ao carnaval, a ponto de alguns grupos nascerem antes como bandas afro ou grupos
de dança para só depois se tornarem blocos afro. A autonomia dessas atividades fez com
que fosse possível transformar esses subgrupos no interior do bloco em grupos artísticos,
que estabelecem relações de prestação de serviços com agências de turismo, hotéis, casas
de show, produtoras de eventos e a própria prefeitura nas mais diferentes ocasiões101. Essas
101 Mesmo quando não há essas subdivisões oficialmente e é o grupo que fecha o contrato, não é o bloco quese apresenta, mas uma seleção de pessoas que compõem o bloco.
299
relações são especialmente etnicizadas, pois se baseiam na compra e venda de uma forma
de arte gestada a partir de elementos entendidos como ‘cultura negra’.
Como já ressaltado anteriormente, a política de turismo em Ilhéus não apresenta
grande investimento numa ‘cultura afro-baiana’, como em Salvador. Como aposta num
turismo diferencial a fim de não competir com a capital, o investimento turístico da cidade
dirige-se para Jorge Amado e suas obras, perfeitamente articulados com o cacau, produto-
imagem de Ilhéus102. Apesar disso, há algum espaço para os grupos afro, especialmente
porque, turisticamente, a cidade precisa também ser ‘baiana’ e as imagens da Bahia,
definidas por Salvador, também devem estar aí disponíveis. Mas esse espaço é limitado e
determinado por quem gerencia o turismo na cidade, o que faz com que o mercado de
trabalho para os grupos afro seja escasso e bastante competitivo. Essas condições
justificam ‘economicamente’ os baixíssimos cachês, o que não significa negar o caráter
racista envolvido nessas situações, explicitado também por uma série de comportamentos e
discursos que atingem os grupos.
Os relatos feitos pelos dirigentes dos grupos afro sobre suas apresentações nos
hotéis da cidade são todos bem semelhantes e parecem não mudar muito ao longo dos
anos. Os blocos afro da cidade são contratados, ainda que cada vez mais raramente, pelos
grandes hotéis de luxo para apresentações noturnas para os hóspedes, especialmente na alta
temporada de verão. Grupos maiores ou menores seguem um modelo semelhante de show,
formado por percussionistas, cantores e dançarinos. Logo que conheci o Dilazenze, seu
presidente comentou essas apresentações com orgulho, como sinal do sucesso do grupo.
Com o passar do tempo, foi possível perceber que elas constituíam um trabalho para o
grupo, necessário, mas muito longe de ser um orgulho. A começar pelos cachês,
extremamente baixos. Entre 1997 e 2001, eles não mudaram muito de valor: sempre entre
102 Ver Menezes 1998.
300
cem e cento e cinqüenta reais, a serem divididos, em geral, para um número que variava de
dez a quinze pessoas por apresentação, sendo às vezes ainda necessário usar uma parte
para a manutenção dos grupos, por exemplo, com reposição de peles dos instrumentos ou
variação do guarda-roupa dos dançarinos. Esse valor correspondia, em geral, a quatro
horas de show, que poderiam se multiplicar em muitas mais, considerando o tempo entre o
momento em que o grupo saía da sede (ou do local marcado) e o retorno. Num dos hotéis,
um dos mais caros e badalados do país, era preciso esperar que todos os funcionários
terminassem seus trabalhos, já de madrugada, pois o ônibus que traria o grupo seria o
mesmo que fazia o transporte dos empregados. Outro motivo de reclamação dos grupos era
a estrutura para seus shows: péssimas acomodações nos camarins, comida de qualidade
ruim – sempre abaixo do que pedido pelos grupos na assinatura do contrato – e desrespeito
às exigências dos grupos quanto aos locais de apresentação, o que constitui um problema
em especial para dançarinos, obrigados a correr riscos em pisos inapropriados.
Apesar de tudo isso, no verão os hotéis ainda representam (ou representavam) uma
fonte de trabalho para os grupos, cujas péssimas condições de trabalho são garantidas pela
competitividade entre eles: quando um grupo reclama e não as aceita, outro é convidado e
assume o lugar, até que também aquele passe a questionar a situação e outro seja chamado,
chegando novamente ao primeiro. Assim, a maior parte dos blocos afro de Ilhéus já
passaram em momentos alternados por todos os hotéis que costumam contratá-los.
Um outro ‘trabalho de verão’ dos grupos são os ‘receptivos’, que consistem na
apresentação de pequenos shows para turistas que desembarcam no porto. Para esses
trabalhos, os grupos são contratados por agências de turismo em convênio com a Ilheustur,
sendo esta última a responsável pelo pagamento do cachê, o dobro daquele pago pelos
hotéis, mas que, em compensação, pode atrasar em um ano ou mais, ou mesmo não ser
301
pago em função de acordo de um novo trabalho. Condições ruins de transporte e infra-
estrutura – “às vezes nem água tem” – também são reclamações constantes dos grupos.
Em algumas ocasiões, quando os grupos afro são procurados pela própria Ilheustur
para outro tipo de trabalho, por outros órgãos da prefeitura e até por empresas ou pessoas
que supõem ter uma relação com algum tipo de afinidade com eles, o que era ‘compra’ e
‘venda’ de serviços, pode se transformar em ‘troca’. A prefeitura pode oferecer passagens
para Salvador, peles para os instrumentos, ‘som’ para os ensaios dos grupos, divulgação de
programação... Mas, diante de argumentos que alegam a existência de ‘poucos recursos’ ou
que um projeto, que deverá ser lucrativo, ‘está só começando’ ou que os grupos devem
‘ajudar’ a pessoa ou a instituição tal, a ‘moeda de troca’ mais oferecida aos grupos são
“umas cervejinhas”. Ao longo da pesquisa, foram inúmeros os momentos em que os mais
variados grupos, desde os maiores até outros formados recentemente, eram convidados
para uma apresentação e quando perguntavam pelo cachê, a resposta era que seria dada
uma “caixa de cerveja” e, muitas vezes, isso ainda era dito sem muita certeza de que se
poderia consegui-la. Segundo o presidente do Dilazenze, “isso só acontece com bloco
afro”.
Mas a situação pode ser ainda pior. Além das inúmeras vezes em que se oferece
algo ‘em troca’ dos serviços dos grupos, ainda que sejam ‘cervejinhas’, há outras em que
não se oferece absolutamente nada. Na verdade, o grupo deve “se sentir honrado por ter
sido selecionado” para aquele evento, o que lhe ‘dá’ a “oportunidade de divulgar o seu
trabalho”, mesmo quando o interlocutor está se referindo ao Dilazenze, ao Rastafiry ou até
mesmo ao Miny Kongo, os três considerados grandes e este último, na época da pesquisa,
com quase vinte anos de existência.
Os exemplos seriam inúmeros entre aqueles que presenciei e aqueles que me foram
relatados, mas alguns são especialmente reveladores da visão que se tem dos grupos. Em
302
1999, pessoas importantes no ‘meio cultural’ ilheense, o diretor do Teatro Municipal de
Ilhéus e um diretor/produtor de teatro, chamaram o Dilazenze para uma reunião. Elas
disseram que estavam planejando uma “cena” como parte das atrações oferecidas pelo
governo municipal para o réveillon. A ‘cena’ envolveria percussão e dançarinos dos blocos
Dilazenze e Rastafiry – “só negros” – e cantores consagrados da cidade, sendo o repertório
composto de “cantos da raça negra”, como “músicas de candomblé”, sugestão de uma das
pessoas. Os grupos deveriam usar roupa branca, sendo os próprios blocos responsáveis
pelo ‘guarda-roupa’, já que “não é possível que os grupos afro não tenham roupa branca”,
disse um dos responsáveis pelo ‘convite’. Aliás, não se tratou de um ‘convite’, pois em
momento algum foi perguntado se os grupos gostariam de participar. Na conversa, um dos
responsáveis disse que “as pessoas [entenda-se os habitantes ilheenses] não gostam de
bloco afro, mas apreciam as apresentações que os grupos fazem nos eventos da cidade”. A
“cena” imaginada por eles exigia um grande contingente de participantes, em torno de
trinta, que deveriam ser recrutados em ambos os blocos. Não houve nenhuma menção a
cachê, mesmo sendo um ‘trabalho’ na noite do Ano Novo. Perguntei por que eles pensaram
nos grupos afro para essa apresentação. O diretor do Teatro Municipal falou sobre Ilhéus
ser uma cidade muito preconceituosa – “herança do cacau” –, que “é preciso brigar com
muita gente” para dar espaço para os grupos afro e, com um trabalho como esse, ele queria
“mostrar para a cidade o quanto o trabalho dos negros é bonito”.
Outro episódio ocorreu na entrega do Troféu Jorge Amado de Cultura, um prêmio
anual do governo municipal que homenageia quem trabalha pela ‘cultura’ na cidade. No
ano de 2001, a produtora do evento procurou o Dilazenze no dia mesmo em que ele
aconteceria porque queria um percussionista “alto e forte, tipo negão mesmo” para tocar
atabaque para Oxóssi, orixá de Jorge Amado. O presidente do grupo propôs um de seus
irmãos e perguntou sobre o cachê. Um pouco espantada, a produtora disse que se ele
303
quisesse um cachê, ela veria o que seria possível conseguir. Até o momento do espetáculo,
‘nenhum cachê foi possível’ e o percussionista não foi.
Até mesmo na inauguração do Memorial da Cultura Negra103, um espaço que
deveria funcionar para e pelos grupos afro, eles se sentiram discriminados. Durante toda a
programação da noite, as atrações principais eram bandas de pagode, deixando que os
blocos afro se apresentassem apenas momentos depois da assinatura do contrato de aluguel
do local, logo em seguida voltaram as bandas de pagode. Segundo dirigentes dos grupos
afro, as bandas de pagode tinham uma ‘topic’ como transporte, enquanto eles tinham uma
caminhonete; as bandas de pagode tinham cerveja e cachorro quente, enquanto os blocos
afro tinham refrigerante e um “sanduichinho” de manteiga ou maionese, e um dos grupos
afro nem ficou sabendo que teria direito a água e refrigerante. Como disse o presidente do
Dilazenze, “os donos da festa foram só convidados”. Numa segunda inauguração naquele
mesmo ano, no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, novamente a programação
foi basicamente de bandas de pagode. Contra os protestos dos dirigentes dos grupos afro, o
secretário de administração municipal, responsável pelo evento, tentou justificar dizendo
que “pagode também é coisa de negão!”
Em datas de comemorações importantes para o movimento negro, como o Dia de
Zumbi dos Palmares, mas também em outras datas, como o Dia das Crianças e na Semana
do Folclore, entidades filantrópicas e colégios, mesmo particulares, costumam solicitar que
os grupos se apresentem e apelam para ‘a causa’, digamos assim, para não pagar por isso.
Às vezes, oferecem um lanche e o trabalho é quase sempre aceito. Em alguns casos, há
uma relação de cooperação entre as entidades ao longo do tempo, não sendo o lanche a
103 Na verdade, tratava-se da assinatura do contrato de aluguel do espaço, mas o evento foi chamado deinauguração. Ver-se-á adiante que esta inauguração, ocorrida em maio de 2000, foi só a ‘primeira’ dealgumas outras.
304
justificativa para o trabalho. Em outros, ele se justifica pela própria apresentação, uma
forma de “ensaiar” em tempos de trabalho escasso.
A seguir, serão apresentados dois casos que podem, como quase tudo, ter mais de
uma leitura. O primeiro deles, costuma ser elaborado como um dos momentos mais
importantes dos blocos afro na cidade, quando fizeram muito sucesso. Trata-se do que
ficou conhecido como a Usina. O segundo, a Caminhada Cultural de Ilhéus, em 2001,
assim como a de 2000, mostra a importância dos grupos afro quando se pensa em ‘cultura
popular’ na cidade. Sem eles, o evento não aconteceria. Todavia, aqui ambos são exemplos
bastante concretos de exploração do trabalho dos blocos por uma elite que domina os
espaços e recursos da ‘indústria do entretenimento’.
Os “bons tempos” da USINA
Nos anos 80, o sucesso dos blocos afro em Ilhéus estava concentrado nos grupos de
dança. Nos anos 90, especialmente depois do estouro internacional do Olodum, foram as
bandas afro que passaram a ocupar a cena de atividade principal dos blocos fora do ‘tempo
de carnaval’. No início dos anos 90, e durante toda a década, os grupos surgiam a partir de
bandas, e não mais de grupos de dança, como na década anterior. E, como bandas, o
‘grande momento’ dos grupos de Ilhéus foi a “época da Usina”.
A “Usina” foi como ficou conhecido um projeto de apresentação de bandas afro às
terças-feiras num galpão de uma antiga fábrica, onde atualmente funciona uma igreja
evangélica, em frente ao Terminal de Ônibus de Ilhéus. Segundo um panfleto do projeto104,
Usina era o nome da primeira fábrica de chocolates do Brasil, fundada em 1928, na rua
conhecida como Rua da Usina. O panfleto informa que o Espaço Usina, inaugurado em
1994, seria um centro cultural, com oficinas de artesanato, arte, exposições, além de
104 O acesso a um exemplar foi possível graças ao ótimo acervo pessoal de Marinho Rodrigues, ondeencontra-se preservada boa parte da história do movimento afro-cultural de Ilhéus.
305
lanchonete funcionando durante todo o dia, um bar à noite e um palco para shows variados.
Na verdade, a apresentação dos blocos era um projeto do Espaço Usina e chamava-se
“Terça do Reggae”. A cada semana, duas bandas eram convidadas a tocar e, embora se
chamasse ‘Terça do Reggae’, as atrações eram as bandas afro. Segundo dizem pessoas que
pertenciam aos blocos ou que vivenciaram aquele momento, o evento foi um grande
sucesso, ou para usar o termo de um dirigente, foi um “grande modismo”: “todo mundo
ia”. A estimativa de público era de duas a três mil pessoas. “E o lugar estava sempre cheio,
em plena terça-feira, para ver bandas afro.” Com exceção dos eventos envolvendo shows
da Semana da Consciência Negra, quando diversos grupos se apresentam no mesmo dia,
por exemplo, este foi o único momento em que componentes de todos os grupos afro se
reuniram para assistir uns aos outros. “Era arena neutra” e, informação considerada
importante para que isso viesse a acontecer, o projeto foi organizado por “pessoas
brancas”, ou seja, não se tratava de um evento produzido por um dos blocos, o que seria
motivo para os demais não comparecerem, do ponto de vista de alguns dirigentes.
Embora tratasse de um projeto de “pessoas brancas”, havia um quê afro, tanto no
logotipo do panfleto quanto no texto que diz que o lugar “ganhou (...) a ginga dos ritmos
negros.” De acordo com as informações que obtive, o projeto começou com o investimento
de capital de umas pessoas que, naquele momento de sucesso dos blocos de Salvador,
como o Olodum e o Ara Ketu, “sacaram que os blocos afro eram um grande lance, um
grande negócio”. Produziram o local para a realização de shows e convidaram as bandas
dos blocos, que recebiam um cachê fixo por apresentação. A cada dia, havia uma banda
principal e uma banda convidada, com cachês maiores e menores respectivamente. Além
do cachê, as bandas recebiam o transporte e “uma cota de cravinho” (bebida alcóolica).
Não é possível dizer quanto tempo durou o projeto, quantas bandas se apresentaram. O que
306
se diz é que a Usina lotava enquanto não havia cobrança de ingressos, justamente porque
era freqüentada pelos moradores das comunidades dos blocos.
Depois de algumas semanas de entrada gratuita, quando o projeto já havia se
tornado um ‘sucesso’, os organizadores começaram a cobrar ingressos, “a um ou dois reais,
dependendo da banda”. Segundo o presidente do Dilazenze, os organizadores do evento
tinham um grande lucro com ele: recebiam pelos muitos ingressos vendidos, faturavam
com a venda de cerveja e pagavam um pequeno cachê às bandas, cujo valor era de sessenta
reais, de acordo com uma cópia do contrato firmado entre as bandas e os organizadores105.
O projeto acontecia justamente no momento em que os grupos afro estavam em seu melhor
momento. O presidente do Dilazenze conta que no dia marcado para o show do grupo, por
exemplo, ainda ficaram muitas pessoas do lado de fora, sem conseguirem ingresso, porque
o “local estava lotado”. Nessa época, em função de seu sucesso na cidade e na região, o
grupo era chamado de “Olodum de Ilhéus”: “teve fama, fazia muitos shows, ganhava
dinheiro com isso”. Na verdade, o início dos anos 90 é considerado o melhor momento
para todos os blocos em termos de realização de shows, de promoção artística. Alguns
chegaram a ter música tocada em rádios da região a partir de fitas ‘demo’.
Naquele momento da Usina, no auge do projeto, os grupos acreditavam que
poderiam ser mais valorizados e reivindicaram condições diferentes de contrato. Quando
eles perceberam que apenas os organizadores levavam vantagem com o evento às custas de
seu trabalho, mas que pouco recebiam por isso, desistiram de tocar. As atrações passaram a
ser bandas de reggae e, com pouco tempo, o espaço foi desativado. “Acabou porque o forte
do negócio eram os blocos afro. E o público era de negão.”
105 O texto que consta do contrato não deixa claro se este valor era dado a cada uma das bandas ou se deveriaser dividido entre as duas. Literalmente, a cláusula diz que: “Em cada terça, a Usina compromete-se a pagar aquantia de R$ 60,00 (sessenta reais) para os cachês da banda. A primeira abrirá a noite sempre às 19 horas etocará até as 21 horas; A banda principal entrará às 21 e tocará até as 23 horas, ficando a seu critério se deveestender o tempo de apresentação.” (Projeto Terça do Reggae).
307
A Caminhada Cultural
Um outro episódio é interessante porque reflete elementos da relação dos grupos
com a prefeitura, com a TV local e com hotéis da cidade. Desde o início da década de 90,
acontece em Salvador um evento chamado “Caminhada Axé”, reunindo grupos afro,
afoxés, academias de capoeira, baianas... Trata-se de um grande desfile das entidades pelas
ruas, caracterizando a abertura do calendário turístico de verão da capital. Em Ilhéus, em
2000 foi a primeira vez que houve a “Caminhada Cultural”, uma espécie de reprodução
local do evento de Salvador organizado pela prefeitura de Ilhéus e pela TV Santa Cruz,
emissora regional sediada na cidade de Itabuna – note-se que não há no nome do evento
nenhuma referência à ‘cultura negra’ como acontece em Salvador, embora os blocos afro
representem quase a totalidade dos grupos que compõem a Caminhada.
Segundo o presidente do Dilazenze, neste primeiro ano de Caminhada, a
organização do evento pediu a participação de todos os blocos afro através do Conselho de
Entidades Afro-Culturais. Os responsáveis disseram que não havia verba, mas que se a
caminhada fosse um sucesso, no ano seguinte seria diferente. Assim, a única forma de
pagamento prometida foi “um retorno da mídia” através da realização de um videoclipe
com todas as entidades que seria apresentado num programa regional da emissora. Mas
isso não aconteceu. Além disso, os blocos afro souberam que outros grupos, como um de
dança da Universidade Estadual de Santa Cruz e um outro chamado “pastorinhas de
Olivença”, por exemplo, foram pagos para desfilar.
No ano de 2001, a organização da Caminhada enviou convites individualmente às
entidades para uma reunião com representantes de todos os grupos participantes. Antes,
porém, os blocos afro se reuniram para combinar o que pediriam como pagamento e
reivindicar um outro tipo de tratamento aos grupos. O primeiro encaminhamento foi que os
308
organizadores deveriam negociar com o CEAC como entidade de representação dos
grupos. Novamente o presidente do Dilazenze deu como exemplo a relação dos blocos com
o sindicato dos estivadores, responsável pela organização da Lavagem da Catedral. Ele
disse que “antigamente, eles contratavam as entidades e nunca davam nada”. As entidades,
então, foram, aos poucos, deixando de participar do evento, mas “de dois anos para cá, o
CEAC passou a negociar e acabou conseguindo camisas, água e cerveja.” A união das
entidades deveria ser demonstrada na reunião, para que nenhuma ficasse vulnerável, pois
foi dito que no primeiro ano do evento, um representante da prefeitura ameaçou não dar a
verba do carnaval para a entidade que se recusasse a participar do evento.
Os grupos, então, fizeram uma relação de itens a serem solicitados como forma de
pagamento pela participação: camisetas padronizadas; transporte para os grupos; água
mineral, cerveja e refrigerante; retorno real da mídia, ou seja, cobertura televisiva dos
eventos dos grupos, incluindo os ensaios dos blocos; cópias de fitas de vídeo da
Caminhada para todos os grupos e uma grande quantidade de peles para os instrumentos.
Em troca, os grupos ofereceriam a participação de 600 pessoas.
A primeira reunião de organização do evento foi ocasião de um embate direto entre
os grupos afro e os representantes da TV e da prefeitura, embora outras entidades também
estivessem presentes (grupos de dança da UESC, um colégio particular e um curso de
inglês, uma associação de baianas). Num primeiro momento, quando só havia
representantes da prefeitura – o da TV ainda não havia chegado –, as entidades reclamaram
da falta de apoio do governo municipal, que respondeu dizendo que os grupos afro
deveriam trabalhar o ano todo para “não terem que depender da prefeitura, como acontece
hoje em dia”, que eles deveriam “aprender a andar com as próprias pernas”. Este é sempre
o argumento utilizado nas ocasiões em que o poder público é cobrado pelos blocos. Na
verdade, é também o que dizem pessoas ligadas a partidos políticos de oposição ao
309
governo ou do movimento negro ‘político’, críticos da relação, às vezes muito estreita,
estabelecida entre governo e movimento afro-cultural, a qual impediria, desse ponto de
vista, a independência política dos grupos.
Quando finalmente o representante da TV chegou, os blocos afro cobraram as
promessas de cobertura da mídia. Ele respondeu que isso não aconteceu por “culpa dos
blocos”, pois estes não fizeram as solicitações e que, além disso, as pessoas deveriam “ter
bom senso para mostrar coisas interessantes”, pois a imprensa não poderia “mostrar
qualquer coisa”. À medida que a reunião prosseguiu, as demais entidades foram se
retirando e o clima tornou-se mais tenso. O representante da TV disse que o objetivo da
Caminhada era “social” porque sua intenção era reunir grupos folclóricos – como seria
atestado no próprio evento, praticamente só os grupos afro são os tais “grupos folclóricos”
– e apresentá-los para a comunidade, para os turistas. Diante da argumentação dos grupos
de que a TV poderia conseguir patrocinadores para atender às reivindicações, ele disse que
não se poderia ‘vender’ o evento, pois ele não podia ser econômico. No fim da discussão, o
representante da emissora comprometeu-se apenas com a água mineral e com o “retorno da
mídia” e terminou dizendo que a tarefa de arrecadar recursos para sair na Caminhada seria
dos grupos e que “um dia os grupos daqui [de Ilhéus] conseguirão exigir coisas, mas isso
leva tempo...”.
Depois da reunião, os dirigentes dos blocos conversaram sobre como deveriam agir.
Havia visivelmente uma vontade geral de não participar, mas todos exigiam o consenso,
pois se apenas um ou dois blocos se recusassem, estes ficariam “marcados” pela prefeitura.
Outro consenso era a idéia de que os blocos, mais uma vez, seriam “usados”, pois só eles
faziam a Caminhada acontecer. E falou-se em discriminação contra os blocos, que a TV e a
prefeitura só agiam daquela forma porque estavam lidando com blocos afro. Por fim,
310
tiraram como encaminhamento que as entidades deveriam estar juntas, pois era certo que a
TV e a prefeitura procurariam por elas, fazendo ofertas para cada uma separadamente.
Esta breve reunião dos dirigentes aconteceu numa praça em frente ao Teatro
Municipal de Ilhéus e próxima à Casa de Jorge Amado, onde ocorreu a anterior. Num café
próximo, estava uma professora da UESC, responsável por um dos grupos de dança
convidados para a Caminhada conversando com uma outra professora e com o
representante da TV. Ela conhece o Dilazenze e chamou o presidente do grupo para junto
de si quando os dirigentes se dispersaram. Apresentou-o, então, formalmente ao
representante da emissora, que elogiou o trabalho realizado pelo Dilazenze, disse-lhe que a
TV sempre dá cobertura ao grupo, que a Caminhada do ano anterior fora muito bonita em
função do Dilazenze e lhe deu seu cartão, dizendo que ele poderia procurar pela TV
quando precisasse. Começou, então, com o próprio Dilazenze o que seu presidente havia
alertado que aconteceria com todos os grupos: eles seriam abordados individualmente. No
decorrer das semanas, outras abordagens da prefeitura oferecendo trabalhos ao grupo
Dilazenze foram interpretadas como formas de pressão, como a indicação do Dilazenze
para realizar a festa de réveillon de um hotel de luxo (no qual o grupo já havia se
apresentado várias vezes) por parte da esposa do prefeito e ofertas para o grupo fazer todos
os ‘receptivos’ por parte do presidente da Ilheustur106.
Ao fim de semanas entre telefonemas e reuniões, nos quais ficou claro que a TV
não cederia em nada (apenas daria água, como já fora firmado desde o primeiro encontro),
os grupos conseguiram que a prefeitura lhes garantisse uma determinada quantidade de
peles para os instrumentos, embora fosse abaixo daquela reivindicada. Assim, os grupos
também combinaram entre si que levariam um número de pessoas muito abaixo do
106 O réveillon no hotel não foi acertado porque o valor oferecido pelo cachê estava bem abaixo do imaginadopelo grupo para um dia tão especial, em que os componentes do grupo teriam de abrir mão de estar com suas
311
prometido: cada grupo deveria se responsabilizar por desfilar com pelo menos vinte
componentes, o que daria cerca de 200 pessoas, e não as 600 inicialmente oferecidas. O
número final foi ainda bem abaixo desse, pois alguns grupos levaram ainda menos pessoas
e outros sequer compareceram, mas a constatação final ao assistir à Caminhada Cultural foi
que sem os grupos afro, ela não aconteceria. Além deles, havia uma fanfarra de uma escola
particular e pequenos grupos, em geral de menos de dez pessoas: dois grupos de dança da
universidade, um curso de inglês, uma academia de capoeira, atores trajados como
personagens de uma peça que estava se apresentando no Teatro Municipal e algumas
baianas que pertenciam a uma entidade chamada Centro Afro Brasileiro, na verdade, um
terreiro de umbanda que presta serviços à prefeitura abrigando portadores de doenças
mentais.
Ainda durante o dia da Caminhada, ocorreu um episódio interpretado como racismo
por membros do Dilazenze. Este grupo e o Miny Kongo foram convidados a dar
entrevistas convidando a população de Ilhéus para a Caminhada no noticiário local. A
gravação fora marcada na Praça da Catedral, em frente a um dos hotéis mais famosos da
cidade. Enquanto os grupos se organizavam – os respectivos grupos de dança e alguns
percussionistas – um homem, posicionando-se em nome do hotel, proibiu que a gravação
fosse realizada ali. A equipe da TV chegou a argumentar que seria uma propaganda para o
estabelecimento, mas o homem continuou firme dizendo que aquilo atrapalharia a entrada
dos hóspedes, o que de forma alguma era verdade. Este foi um contra-argumento empírico
à insistência do representante da TV nas negociações com os blocos de que estes deveriam
procurar o patrocínio dos hotéis e pousadas da cidade, ao invés de apelar para a TV ou para
o governo.
famílias para trabalhar. Como relatado anteriormente, dos muitos receptivos previstos, só 2 ou 3aconteceram, pois a prefeitura não teve dinheiro para pagar os demais.
312
À
Além de apresentações e cachês, há outras situações em que são manifestos o que é
visto como descaso e desrespeito aos blocos afro. Seriam incontáveis os casos de longas
esperas nas ante-salas de pessoas do governo nos mais diversos cargos, de acordos não
cumpridos, de cancelamentos de verbas e de eventos sem avisar previamente... Tudo isso
faz parte do dia-a-dia dos grupos, o que às vezes é percebido como má vontade ou
desprezo de uma determinada pessoa, que pode ser especificamente alguém que “não gosta
de bloco afro” e a ele(a) são atribuídos todos os obstáculos para o sucesso de alguma ação,
mas também pode ser um(a) secretário(a) ou um(a) segurança, de quem pode mesmo se
dizer que é racista ou que quer exercer mais poder do que realmente tem... explicações que
costumam ser aplicadas a funcionários públicos que atendem à população. Outras vezes, os
problemas são vistos como resultado de burocracia, característica da prefeitura: “eles
[governo de maneira geral] são muito enrolados”, dizem... E, em raras vezes, essas atitudes
são percebidas como ‘discriminação’: “isso só acontece porque é com bloco afro”. E, de
fato, seria mesmo muito difícil distinguir quando a razão do desrespeito é uma e não outra.
Por isso, este aspecto das relações será deixado de lado e o foco deste trabalho recairá a
seguir sobre a relação dos grupos com a política partidária.
O assédio de políticos aos grupos afro é sempre muito grande. O artista plástico
colaborador do Dilazenze, cuja trajetória de vida é, desde sua juventude, estreitamente
vinculada à política partidária “de esquerda”, certa vez resumiu bem a razão de todo esse
assédio: “conseguir reunir duzentas, trezentas pessoas, é um ato de extrema habilidade. O
diretor de bloco afro consegue colocar essa quantidade de gente dentro de um único
projeto. É isso que faz todo político ficar doido!”. E é isso que faz também com que todo
dirigente de bloco afro, mesmo aqueles com menor visibilidade, cujo único trabalho é o
desfile no carnaval, seja uma liderança comunitária e, conseqüentemente, seja ‘dono’ de
313
votos, ainda que apenas em tese. Isso significa dizer que muitas vezes os grupos afro são
procurados por políticos que os concebem tal como se pensa uma outra organização social
qualquer: um time de futebol, uma associação de moradores, um clube esportivo ou de
lazer, uma entidade filantrópica, um terreiro de candomblé, uma igreja etc. Buscam-se os
votos que podem ser controlados por um líder daquele conjunto. No caso dos blocos afro,
esse conjunto pode ser grande e abranger milhares de pessoas, se forem contabilizados os
votos dos componentes e de familiares, amigos... Na contabilidade política anterior à
eleição, há sempre o ‘milagre da multiplicação dos votos’, quando as pessoas costumam
ser ‘donas’ de vários votos além do seu próprio. Há tempos Risério já escrevia que “o que
podemos dizer da classe política institucionalizada – do PDS ao PMDB, passando por PT,
PDT etc. – é que ela percebeu (...) que a penetração nas entidades afrocarnavalescas pode
ser extremamente lucrativa em termos eleitorais”, fazendo de um afoxé ou de um bloco
afro “uma espécie urbana de curral eleitoral” (1981:120).
Mas os blocos afro de Ilhéus oferecem um ‘atrativo’ a mais: a possibilidade,
imaginada tanto por eles quanto por alguns políticos que os procuram, de reunir todos os
blocos em torno de uma única candidatura, já que estes encontram-se organizados no
CEAC, um órgão de representação e, supostamente, de controle dos grupos, o que faria
desta pessoa o ‘candidato do movimento negro’. Virtualmente, esta posição poderia dar ao
candidato os votos de todos os componentes dos grupos, cerca de duas mil pessoas,
número mais do que suficiente para eleger um vereador em Ilhéus, mesmo sem contar com
a multiplicação dos votos.
Concretamente, nunca houve em Ilhéus um candidato a vereador que conseguisse
ser mesmo “o candidato do movimento negro”. O momento em que isso esteve mais
próximo de acontecer foi em 1992, quando Mirinho, ligado ao sindicato dos estivadores e
ao candidato a vice-prefeito, Ronaldo Santana, também negro, tentou reunir todos os
314
grupos afro em torno de sua candidatura e da chapa majoritária, encabeçada por Antônio
Olímpio, que veio a vencer as eleições. A narrativa deste processo por parte de dirigentes
dos grupos, inclui a ‘cor’ do candidato a vice como um primeiro fator de aproximação dos
blocos. No entanto, a aglutinação dos grupos afro em torno da candidatura de Mirinho e de
Antônio Olímpio teve como mote principal a promessa deste último de que construiria um
Centro Afro-Cultural para os grupos afro de Ilhéus. Sendo Mirinho o intermediário dos
grupos junto ao prefeito, sua eleição era considerada necessária para a concretização da
promessa. Mirinho não foi eleito, nem mesmo foi publicamente apoiado por todos os
grupos, como disse um dos dirigentes de bloco afro: “Mas quando chegou na hora,
apareceu político com dinheiro e a gente só via os blocos se dispersando.” O Centro Afro-
Cultural não foi construído e essa história só seria retomada anos depois, com o Memorial
da Cultura Negra, assunto a ser tratado adiante107. Em 1996 e em 2000, um outro candidato
ambicionou a posição de representante do movimento afro-cultural: Gurita foi candidato a
vereador e, especialmente na segunda candidatura, tentou articular todos os grupos afro ao
seu redor. Se no caso de Mirinho havia o Centro Afro-Cultural como algo específico para
os blocos, na campanha de Gurita não havia nada que o identificasse com o movimento
afro-cultural, exceto a palavra “cultura” em seu slogan, incluída posteriormente à
divulgação de faixas em que constavam apenas as palavras “juventude” e “esporte”, pois
sendo professor de educação física e diretor da Divisão de Esportes da Secretaria de
Educação, estes seriam os campos nos quais estavam concentradas suas ‘bases’. Embora se
apresentasse como candidato do movimento negro, suas alianças com os grupos nunca
passaram por propostas diretamente voltadas para a população negra ou mesmo para o
movimento, sendo, então, baseadas no que conseguisse ‘ajudar’ ou no que ‘prometesse
ajudar’ a cada um dos grupos, como, em geral, são as alianças que as entidades fazem com
107 Relato e análises mais aprofundadas desse episódio encontram-se em Goldman 2000.
315
quaisquer candidatos, mesmo os considerados brancos. E assumir essa posição foi tanto
mais possível a partir do momento em que o gerente de ação cultural, que era do PT e do
MNU, deixou o cargo e Gurita passou a ser o intermediário do governo junto aos blocos.
Além disso, a estratégia política de Gurita passou pela fundação de blocos afro, como o
Guerreiros de Zulu, em 2000, já em plena campanha108, e na estruturação de alguns outros
como o Zambi Axé e o Danados do Reggae.
É importante frisar que esta não é uma postura exclusiva de candidatos
considerados “da direita”. Não é possível afirmar com certeza porque seria necessária uma
pesquisa específica, mas é muito provável que nunca tenha havido um candidato em Ilhéus
cuja campanha fosse baseada num programa voltado para, ou que sequer mencionasse,
questões pertinentes à população negra, embora fossem muitos os que buscaram o apoio
dos blocos, que constituem o setor mais expressivo do movimento negro da cidade.
Observando superficialmente a política local109, percebe-se que ao buscar o apoio
dos blocos afro, os candidatos negros estabelecem relações etnicizadas para dentro, para o
conjunto do bloco, como afirmações de valorização da cultura negra ou relato de trabalhos
anteriores no meio afro-cultural. No caso de candidatos sobre os quais pode-se ter dúvidas
quanto à sua cor, apelos ao famoso ‘pé na cozinha’ ou ‘na África’, são constantes. Esses
candidatos pretendem construir uma forma de identificação com o grupo que ajude a
garantir votos para além do apoio dos dirigentes. No entanto, essa identificação não
aparece para fora, pois não há propostas nem discurso voltados para a população negra;
nunca se é, então, um candidato negro, independentemente da cor da pele.
108 Na verdade, a fundação do bloco ocorreu em abril de 2000, durante uma reunião de campanha de Guritana casa de um dos fundadores, os quais ele já conhecia por sua participação anterior no Zambi Axé. O grupojá era uma banda afro e foi sugestão de Gurita que ele se organizasse como bloco, insistindo sobre suacapacidade para tanto. Ele ainda ajudou o grupo na parte mais burocrática de fundação do bloco e levou-opara os primeiros trabalhos em eventos de campanha do governo.109 Um estudo aprofundado dela a partir do ponto de vista dos integrantes dos blocos afro é realizado porMarcio Goldman há vários anos. Até o momento, encontram-se publicados os seguintes artigos sobre o tema:Goldman 2000 e 2001. Encontra-se no prelo um livro como produto de seu extenso trabalho de pesquisa.
316
Apesar disso, é muito comum a participação artística de blocos afro em comícios,
em convenções, em eventos políticos em geral. Suas apresentações são uma atração ao
mesmo tempo que uma demonstração de apoio àquele candidato, sendo difícil desvincular
uma situação da outra, mesmo quando os grupos insistem que estão ali por trabalho. Esse
trabalho, aliás, é geralmente muito mal pago, assim como todos os outros. E o próprio
apoio dos blocos é baseado em ‘trocas’ que consistem em promessas de emprego para
dirigentes ou familiares destes, cestas básicas para os próprios dirigentes ou para pessoas
do bloco, material para obras, caixas de cerveja para eventos do grupo, camisetas etc., nada
diferente do que se costuma ‘trocar’ por voto em qualquer lugar do país. E é interessante
que seja este o tema das últimas linhas de Risério em Carnaval Ijexá.... Descrevendo o
assédio dos políticos sobre os blocos afro pela proximidade das eleições, o autor diz: “E
não é preciso dizer o quanto esta investida política tem sido, aqui e ali, inescrupulosa, ao
ponto de partidos oferecerem salários a jovens líderes da periferia, em troca de apoio nas
próximas eleições. O que, de resto, nem sempre é recusado.” (1981:156). Mas a oferta de
salário ainda pode ser muito: certa vez, em Ilhéus, um vereador ofereceu uma cesta básica
a um dirigente de bloco afro para que ele fosse seu assessor parlamentar. Neste caso, foi o
próprio dirigente em questão que percebeu a atitude como uma prática racista e,
dignamente, recusou a oferta interpretada como ofensa.
É muito recorrente o discurso de que os blocos afro aceitam participar de políticas
de apadrinhamento, de clientelismo e que nunca conseguem ser independentes dos
governantes, submetendo-se a eles o tempo todo. Por mais que cada um dos setores que o
reproduzem pensem estar dizendo algo que identifica o problema dos blocos e propondo
uma solução – a saber: tornar-se independente financeiramente – este é, na verdade, um
discurso dito em uníssono: autores que trabalham com o tema110, integrantes do
110 Ver, só para citar alguns, Ribard (1999:394), Agier (2000:115) e Moura (Moura e Agier 2000:371).
317
movimento negro político, os próprios dirigentes dos blocos, comerciantes quando são
solicitados para patrocínio, governo quando é cobrado pelos blocos, e até mesmo políticos
que têm essa prática, especialmente quando vêem outros agindo assim e temem ‘perder
terreno’. É unânime, ao menos em termos de discurso, a opinião de que os blocos afro
devem ser auto-sustentáveis. Mas isso não acontece nem mesmo nos grandes blocos afro
de Salvador, que às vezes são beneficiados com doações de terrenos, subvenção do
governo, patrocínio de ongs internacionais e de grandes empresas, dependendo do bloco e
do formato assumido. Na verdade, a auto-sustentabilidade de um bloco afro é algo inviável
se for considerado que seria preciso imaginar que cada uma de suas apresentações, que
exigem dedicação exclusiva de seus componentes para que a performance seja de alta
qualidade, fosse vendida por um valor altíssimo, capaz de sustentar os integrantes dos
grupos, a manutenção dos equipamentos, a variação do guarda-roupa, os projetos sociais
que acaso houvesse e ainda financiar o carnaval. Poder-se-ia contar ainda com a venda de
fantasias, mas apenas se fosse um bloco para turistas, não um bloco afro situado numa
comunidade de baixa renda. E, ainda assim, aqueles que o fazem, como o Olodum e o Ilê
Aiyê, cujas fantasias saem pelos mesmos preços dos abadás dos caros blocos de trio, não
são auto-sustentáveis, pois também precisam doar fantasias para suas comunidades, cujos
moradores não têm como pagá-las.
A observação feita no início desta seção de que é difícil qualificar de racismo
algumas atitudes dirigidas aos blocos afro como grupos artísticos vale com ainda mais
ênfase no que diz respeito às práticas envolvidas nas relações entre grupos afro e a política,
ou mais exatamente, os políticos. A criação e a manutenção de um bloco afro é uma luta
que já é desigual em sua essência: sem condições de auto-sustentação, formado, em geral,
por pessoas com pouca renda e, na maioria das vezes, desempregada – até porque para que
um grupo seja realmente ativo, ele precisa que algumas pessoas estejam disponíveis para
318
ele – e no meio de comunidades muito carentes. Isso faz com que se dependa sempre de
outrem, o que torna os blocos afro um espaço extremamente favorável para a atuação da
política partidária, tanto no intuito de angariar votos quanto no de formar lideranças que
reproduzam localmente a estrutura de poder existente. E é preciso mantê-los assim para
garantir que essa estrutura continue a existir. Dessa forma, utilizando o mesmo raciocínio
anterior, sustento que práticas que visem parar o movimento dos grupos, mantê-los no
lugar que lhes foi imposto como seu, são práticas racistas.
Os blocos afro são, pelos motivos expostos acima, extremamente dependentes dos
órgãos governamentais. E quanto mais ativos e maiores, mais dependentes são. Os
pequenos grupos, aqueles que “só aparecem no carnaval”, utilizam os recursos da
prefeitura apenas nessa ocasião, enquanto os demais buscam verbas e apoios em diversos
momentos do ano, intensificando muito a relação entre o bloco e o governo, ou com
determinadas pessoas no governo. Ao longo dos últimos anos, desde o início da década de
90 quando os grupos afro começaram a se organizar em conjunto, algumas pessoas negras,
ora mais, ora menos vinculadas ao movimento afro-cultural, foram colocadas ou se
colocaram em posições estratégicas de mediação entre os grupos afro e o governo.
Invariavelmente, essas pessoas não obtiveram sucesso no que se propuseram a fazer, ou
seja, não conseguiram fortalecer os grupos e melhorar suas condições de negociação com o
governo. O primeiro dessa lista é Mirinho, principal articulador do apoio dos grupos afro à
eleição de Antônio Olímpio em 1992 e candidato a vereador derrotado. Por sua ligação
com Ronaldo Santana, vice-prefeito eleito, Mirinho ganhou um cargo na prefeitura e
deveria ser o representante dos blocos junto ao governo, tanto mais porque, no mesmo
período, ele foi eleito presidente do CEACI. Mas não houve ganho algum para os blocos
na gestão de Antônio Olímpio; ao contrário: em seus últimos dois anos de governo, os
grupos não tiveram nem os subsídios para desfilar no carnaval. Anos depois, dirigentes do
319
movimento consideraram Mirinho um obstáculo para chegar ao governo: era preciso passar
por ele para qualquer solicitação que os grupos viessem a fazer; o governo não lhe cedia
nada, assim, os grupos também não obtinham nada.
Em 1997, em função da aliança do PT com o PSDB nas eleições majoritárias do
ano anterior, Moacir Pinho, petista, militante do movimento pela posse da terra e do
movimento negro, em Ilhéus desde 1993 e considerado o principal representante do MNU
na cidade, recebeu o cargo de ‘gerente de ação cultural’. Apesar do título abrangente de
seu cargo, sua função era tratar das relações entre o governo e os grupos afro, até porque
todos os outros setores da ‘cultura’ necessariamente estavam nas mãos da “equipe de
Adriana”, primeira-dama e uma espécie de ‘chefe-maior’ de toda a política cultural do
município. E, no caso de Moacir, havia um agravante em sua relação com os blocos afro:
ele nunca havia pertencido a um deles. Não é leviano afirmar que ele “não entendia nada
de bloco afro” como alguns dirigentes costumavam dizer – ele mesmo reconheceu isso
uma vez ou outra. Ainda mais do que nos tempos de Mirinho, ele era oficialmente
designado para atender aos grupos, tentar resolver e encaminhar seus problemas. Mais de
uma vez Moacir foi comparado a Mirinho como um obstáculo aos grupos. Mais de uma
vez, foi lembrado que tanto quanto Mirinho, o governo não apoiava nenhuma ação de
Moacir: ele não tinha autonomia de recursos – e mesmo aqueles solicitados eram negados
–, ele não tinha funcionários à sua disposição, ele não tinha uma sala própria... Seu cargo
era figurativo. Em entrevista a Vale de Almeida (2000), Val, militante do movimento
negro político, embora não vinculado ao MNU, diz que é uma forma de racismo dar cargos
políticos, dar visibilidade a quem seria do movimento negro e não repassar recursos, pois,
dessa forma, ‘queima-se’ a liderança – e ele referia-se justamente a Moacir: “É racismo, é
uma forma de queimar, porque aí os negão (sic) vão procurar Moacir e ele tem que dizer
que não tem dinheiro para fazer nada.” (:117). A análise de Val é corretíssima e a situação
320
já era assim percebida tanto pelo próprio Moacir quanto pelos dirigentes dos grupos. E
parece ser este o mesmo racismo que atualmente dá a Marinho Rodrigues, presidente do
Dilazenze, o cargo de diretor do Memorial da Cultura Negra e não lhe repassa nenhum
recurso, assunto a ser abordado adiante.
Da lista de intermediários dos blocos afro junto ao governo, ainda resta fazer
referência a Gurita. Desde 1997, ele se mantém em cargos com relativo poder na
prefeitura, que lhe dão visibilidade e trânsito em diversos setores ligados ao esporte e à
cultura negra. Apesar de suas tentativas de se eleger vereador terem sido frustradas, ele é
visto e/ou se comporta como representante dos grupos afro nas negociações com o
governo, o qual costuma contar com ele quando deseja ter os grupos para alguma
atividade, por exemplo. Ao mesmo tempo, vê-se claramente que Gurita não possui o apoio
que desejaria ter do governo. Mesmo contando com seu intermédio, as solicitações dos
grupos não são atendidas, audiências com o prefeito não são marcadas, os recursos não são
disponibilizados. No governo, atualmente Gurita é a pessoa mais próxima dos grupos, mas,
tanto quanto os outros, não possui poder – e não brigaria por ele, senão já teria perdido o
emprego – para mudar coisa alguma. O papel exercido por ele num caso exemplar de
tentativa de uso dos grupos afro pelo governo é bem revelador.
O Caso John
No dia 20 de julho de 2000, o deputado estadual do PT/BA, Paulo Anunciação,
estava em Ilhéus (havia passado também por Itabuna) reunindo-se com sindicalistas,
especialmente com servidores municipais. Havia uma reunião na sede da Secretaria de
Serviços Públicos e o deputado estava acompanhado de um candidato a vereador do
mesmo partido, também sindicalista. Quando soube da assembléia o secretário municipal
de Serviços Públicos, John Ribeiro, irmão do então prefeito Jabes Ribeiro, dirigiu-se ao
321
local e consta que agrediu física e moralmente Paulo Anunciação. O deputado conta que
foi ameaçado de morte, pois John apontou-lhe uma arma e o ofendeu racialmente. Uma
jornalista que acompanhava a assembléia, segundo foi noticiado por um boletim
informativo eletrônico do PT, relatou que John disse a Paulo que ele era um vagabundo.
Quando Paulo se identificou como deputado, o secretário duvidou e disse: “deputado não
tem esta cara”, talvez por Paulo Anunciação ser negro e usar cabelo rasta. A Polícia Militar
foi chamada e, em seguida, Paulo Anunciação fez queixa contra John Ribeiro.
O episódio pouco repercutiu no noticiário de Ilhéus. Eu mesma só soube porque no
dia 24 encontrei um militante do PT que me contou o que acontecera. Dois dias depois,
Gurita ligou para o presidente do Dilazenze solicitando sua presença para uma reunião com
todos os blocos afro no dia seguinte. Nesse primeiro telefonema, o motivo da reunião não
fora divulgado. Gurita apenas dissera que era de interesse dos blocos. Quando contei ao
presidente do Dilazenze o que soubera, ele percebeu que se tratava de uma reunião para
pedir o apoio dos grupos a John e disse que não iria, mostrando-se, então, muito indignado
com Gurita, tanto por estar se sentindo usado quanto pela situação de ver “um candidato
que se diz do movimento negro, ao invés de ficar do lado do que foi agredido por racismo,
fica do lado de quem agride”.
No dia da reunião, Gurita novamente ligou para confirmar a presença do Dilazenze.
Marinho disse que não compareceria para apoiar a John. Gurita disse que a reunião não
tinha somente este objetivo e que seriam tratados vários outros assuntos, inclusive o
Projeto Batukerê. Como será visto no próximo capítulo, aquele era um momento crucial
para o Batukerê: ele havia começado há alguns meses, mas a verba que fora prometida pela
prefeitura até então não havia sido liberada e a cada dia as relações entre a prefeitura e o
Dilazenze tornavam-se mais tensas, especialmente com as pessoas do governo mais
envolvidas nas negociações da verba: Gurita e um funcionário importante da Ilheustur.
322
Diante da ‘pressão’ feita por Gurita alegando que se trataria também do Projeto
Batukerê, Marinho hesitou bastante e ficou em dúvidas quanto a ir ou não à reunião. Se o
Dilazenze fosse, certamente seria acusado pelos mais diferentes setores de ser um bloco
afro defendendo alguém que estava sendo acusado de racismo. Por outro lado, temia perder
o apoio da prefeitura ao projeto. Acabou não indo.
No dia 30 de julho, foi publicada nos jornais locais uma “nota de esclarecimento”,
que ocupava uma página inteira, assinada por John Ribeiro. Evidentemente, a nota dava
uma outra versão para os fatos, negava as acusações do uso de arma de fogo e de palavras
racistas e terminava dizendo: “Quem me conhece, conhece a minha história de vida, de
homem negro e trabalhador, sabe que seria incapaz de tal atitude.” (A Região, 30/07/00).
Em alguns momentos, o prefeito Jabes Ribeiro já disse ter um ‘pé na cozinha’, ou seja, ter
ascendência negra, mas nunca se auto-classificou como seu irmão nesta oportunidade.
Dias depois, o presidente do Dilazenze foi comprar açúcar num pequeno comércio
ao lado de sua casa e encontrou uma pilha de panfletos emoldurados com desenhos de
motivo afro, cujo título era “O Movimento Negro Está com Jabes”. O panfleto não citava o
episódio com o irmão do prefeito, mas dizia que as entidades do movimento negro de
Ilhéus estavam apoiando Jabes, então candidato à reeleição, e relacionava o que Jabes teria
feito pelo movimento, citando inclusive a criação do Conselho Municipal do Negro,
tentativa frustrada de criação de um conselho em 1997 que não foi à frente. Os panfletos
deveriam ter sido entregues a Marinho, como este não estava, o portador deixou-os no
balcão desse comércio. Ele foi enviado para todos os grupos, a fim de que estes os
distribuíssem em suas comunidades.
Segundo Gurita, o documento fora aprovado pelas pessoas que compareceram
àquela reunião (representantes de dois grupos) e que ele sabia que as entidades estavam
mesmo com Jabes, ou seja, não era necessário consultar ninguém. O presidente do
323
Dilazenze, com o auxílio de outras pessoas, especialmente financeiro, redigiu um
documento assinado pelo CEAC, do qual ele ainda era o presidente, que se não chegava a
afrontar e negar o apoio ao prefeito, pelo menos reiterava a autonomia do CEAC e dizia
que até aquele momento, a entidade não havia se decidido por nenhum candidato. Foram
impressos mil exemplares e o panfleto foi distribuído pela cidade, gerando muitos
comentários. No dia seguinte, logo cedo, Gurita compareceu à sua casa. Inicialmente,
atribuiu o panfleto a lideranças do MNU e do PT. Como o presidente do Dilazenze
assumiu inteiramente ‘a culpa’, caso contrário estaria afirmando, como Gurita parecia
querer dizer, que ele fora manipulado, Gurita desculpou-se pelo que fez, deixou cinqüenta
reais para “ajudar” na merenda do Batukerê – até então era impossível conseguir sua
colaboração, solicitada em mais de uma vez – e despediu-se dizendo que tentaria liberar
junto ao prefeito uma parte da verba prometida para o projeto. O fato foi que naquele
mesmo dia, à tarde, o Dilazenze recebeu um telefonema com a liberação de mil reais, um
terço da primeira parcela do convênio. Todos relacionaram o panfleto divulgado pelo
Dilazenze ao dinheiro liberado. E era bom pensar assim. Aquela era uma das poucas vezes
em que parecia que uma batalha havia sido ganha, ainda que não fosse esta a intenção do
documento.
Cerca de duas semanas depois, haveria uma reunião de pais do Projeto Batukerê.
No lançamento do projeto, em maio daquele mesmo ano, Gurita prometera doar cestas
básicas para todas as famílias participantes como parte de sua campanha política. A
reunião teria, então, este objetivo. Diferentemente das vezes anteriores, John Ribeiro
também compareceu. Entre discursos e pedidos de voto para Jabes e para Gurita, John
afirmou que tinha um “voto de gratidão” com o Dilazenze, cuja diretoria “mesmo sem
querer saber se era verdade”, o “apoiou publicamente”. Terminou seu discurso pedindo
votos para “o negão” Gurita, “o candidato das áreas negras da cidade.” Como a TV e
324
especialmente as rádios, quase todas ‘do governo’, não exploraram muito o assunto da
acusação contra John, ninguém pareceu entender muito bem do que ele estava falando.
Este caso, pelo receio do presidente do Dilazenze de ter os recursos do Batukerê
negados por não ir à reunião convocada por Gurita, assim como aquele da Caminhada
Cultural quando, diante da proposta de recusa ao desfile, era necessário garantir que todos
os grupos cumpririam o acordo para que nenhum deles fosse punido pela prefeitura,
mostram o quanto a dependência dos blocos em relação ao poder público orienta grande
parte de suas ações. Ameaças em relação à não liberação da verba do carnaval são
constantes e, ao menos uma vez, que perdurou por alguns anos, foi cumprida. O Bloco
Afro Gangas surgiu no Alto do Basílio, um dos mais pobres de Ilhéus, sob a liderança de
Pelé, também líder comunitário. Logo em seus primeiros anos de organização, o grupo
acompanhou a comunidade numa manifestação reivindicando água para o bairro que
ocorreu na Praça da Prefeitura, no centro da cidade. Durante todo o governo daquele
prefeito, o bloco não recebeu mais os recursos para sair no carnaval.
A observação de campo, assim como relatos de membros dos grupos sobre
acontecimentos anteriores e posteriores ao período da pesquisa, poderiam fornecer diversos
exemplos de desprezo e de subestimação dos grupos afro por parte da grande maioria dos
políticos locais, de outros setores sociais, como o comércio e o turismo, e até mesmo de
algumas pessoas que se colocam no campo do movimento negro político. Por razões
óbvias, é claro que estas últimas não desvalorizam os blocos afro porque seus componentes
são negros, contudo, ao afirmarem que os grupos afro só “sabem tocar tambor”, que “são
manipulados pelos políticos” e, até mesmo em poucos casos, que “não gostam de estudar”,
estão dizendo que a grande maioria das pessoas negras age dessa forma, enquanto aqueles
‘politizados’ do movimento negro político, em geral pessoas com níveis de escolaridade
mais altos, que lêem e discutem com muito mais freqüência, são como os outros deveriam
325
ser. Não há nessa observação um desejo de apologia à recusa ao estudo ou à discussão
política. O problema é que, muitas vezes, pessoas que se consideram mais ‘esclarecidas’
também entendem que, por isso, são mais ‘capazes’, e acabam caindo na lógica da ‘lei de
mercado’ que afirma que ‘vence quem se esforça’.
Todos esses setores compartilham uma série de estereótipos a respeito dos grupos
afro, muitos também compartilhados por estes últimos, especialmente quando se trata de
acusações mútuas através das quais um grupo imputa a outro características que costumam
ser utilizadas por quem os qualifica como uma totalidade. Assim, os motivos dos
‘fracassos’ políticos dos grupos afro são, em geral, atribuídos a seu “imediatismo”, seu
“individualismo”, à “desunião” entre os grupos – às vezes legitimada em função da
dificuldade de recursos –, à “facilidade de ser enganado”, de se “aceitar qualquer coisa” em
troca de apoio... Enfim, os problemas dos grupos são gerados por suas incapacidades ou
por seus defeitos, os quais são indissociáveis da imagem de blocos afro que só querem
“tocar tambor”, “fazer música”, que é o que ‘o negro sabe fazer’, segundo outro estereótipo
reproduzido em toda a diáspora africana. E é pela existência socialmente compartilhada
desses estereótipos que relações efetivas de dominação são forjadas, anulando o
movimento afro-cultural enquanto potencial oposição e minimizando seu poder de
pressionar o governo e os demais setores por melhores condições de trabalho e de respeito.
O estereótipo é sempre uma “arma discursiva de poder” (Herzfeld 1996:157), pois
contribui para garantir a manutenção de uma tal relação de dominação. Entretanto, sabe-se
que esta, por definição, não é unilateral e os atores sociais reagem às ações baseadas em
estereótipos “em uma variedade de maneiras informadas tática e etnograficamente
interessantes” (:164). Essas reações fazem desses blocos um movimento no sentido
inicialmente proposto, aquele do mobilizar-se para mudar, de mover-se de um lugar ou de
326
uma situação em que não se está satisfeito em direção a outros melhores, ainda que sejam
concebidos assim apenas a priori.
Todas as atividades até aqui relacionadas com a proposta de diferir realizadas pelos
grupos afro são parte desse movimento, pois trata-se do desejo de mudança de uma dada
concepção de mundo. Mas esse movimento pode se estabelecer em formas consideradas
mais efetivas por também serem organizadas a partir da atribuição de estereótipos: porque
os blocos afro são ‘politicamente fracos’, ‘facilmente manipulados’, ‘desunidos’,
‘individualistas’, é preciso fortalecê-los, o que pode acontecer unindo-os em torno de uma
entidade de representação, por exemplo, como o Conselho de Entidades Afro-Culturais. O
desejo de ter um Centro Afro-Cultural sob o controle dos grupos tem o mesmo sentido.
Esses são dois exemplos a serem detalhados a seguir de movimentos dos blocos afro de
Ilhéus. No entanto, a idéia de ‘movimento’ não significa melhor ou pior. Os encontros são
muitos e, a cada agenciamento, há ganho ou perda de potência, para um, para outro, para
muitos ou para todos.
O Conselho de Entidades Afro-Culturais
É muito difícil precisar datas e acontecimentos no que se refere ao surgimento das
primeiras formas de organização das entidades afro de Ilhéus. Todos os documentos se
perderam e só se pode contar com as ‘memórias’ das pessoas. Estas às vezes são confusas;
outras vezes, a confusão provém das diferentes prioridades que cada uma delas deu aos
acontecimentos e da forma como os registrou. Não é intenção deste trabalho homogeneizar
as lembranças e propor uma ‘história’ ‘coerente’ do movimento, contudo, buscar-se-á
apresentar as informações de forma a permitir que se forme um suposto fio ligando os
acontecimentos.
327
No carnaval de 1987, em Salvador, acontecia o estouro do Olodum com a música
“Faraó” e, através dele, os blocos afro ganhavam mais espaço na mídia e passavam a ser
conhecidos nacionalmente. Em Ilhéus, os grupos começavam a se fazer mais presentes e
também buscavam mais espaço, no carnaval e fora dele. Naquele ano, desfilaram sete
blocos contra quatro em 1986. Os três estreantes na Avenida Soares Lopes foram o
Rastafiry, o Dilazenze e o Gangas. Com exceção do primeiro, fundado ainda em 1982, os
outros haviam surgido no ano anterior.
O ano de 1987 foi também de expectativas e preparação para o Centenário da
Abolição, que aconteceria no ano seguinte. Por todo o país, grupos ligados aos movimentos
negros começavam a se organizar, fosse para comemorar, fosse para refletir e/ou protestar.
O ano de 1988, então, foi de grande efervescência também no meio afro de Ilhéus, quando
surgiram duas organizações que dariam origem ao Conselho de Entidades Afro-Culturais
de Ilhéus.
A primeira dessas organizações denominava-se Movimento Negro Unificado do
Sul da Bahia. Ao contrário do que seu nome indica, não havia nenhuma relação desta
entidade com o Movimento Negro Unificado, o MNU, a essa altura já constituído
nacionalmente. Embora a entidade tenha conseguido agregar todos os blocos afro então
existentes e pessoas que não se sentiam vinculadas a nenhum bloco, mas que desejavam
participar da discussão a respeito do movimento negro na cidade, apenas duas pessoas são
apontadas como responsáveis por sua organização, ambas não mais moradoras de Ilhéus e,
na época, integrantes do Axé Odara, mais exatamente seu então presidente e um outro
homem que, segundo dizem alguns, era uma espécie de ‘empresário’ do grupo. Como já
observado antes, talvez pela presença inicial de Mário Gusmão, o Axé Odara tinha um
caráter mais ‘politizado’ do que os demais grupos. Um dos seus ex-integrantes afirma que
havia uma divergência interna acirrada entre aqueles que pretendiam fazer do grupo uma
328
entidade de discussão e ação política do movimento negro e outros que preferiam o
formato de bloco afro e de grupo de espetáculos. A presença de uma pessoa identificada
como ‘empresário’ do grupo denota que a segunda opção predominou.
O ‘empresário’ do Axé Odara chamava-se João Carlos e era conhecido como
‘Gaúcho’, apelido que revela uma característica importante: ser ‘de fora’ da cidade.
Gaúcho chegara a Ilhéus havia pouco tempo e, aparentemente, não tinha muitos vínculos
com a cidade, tanto que a deixaria pouco tempo depois. A cor de Gaúcho é uma outra
característica que costuma ser ressaltada pelas pessoas: ‘branca’ para alguns e “quase
mulato” para outros. Essas informações poderiam ser irrelevantes não fosse pelo destino da
entidade, atualmente lembrada mais pelas acusações que pesam sobre seus organizadores,
especialmente sobre Gaúcho, do que por seus possíveis feitos.
Além de Gaúcho, Caíto, presidente do Axé Odara, e Mirinho, que naquele
momento não pertencia a nenhum grupo mas que viria a ser uma pessoa muito importante
para o movimento negro de Ilhéus, são considerados os organizadores do MNU-Sul da
Bahia. A responsabilidade de cada um deles varia de acordo com o interlocutor e de sua
opinião sobre a entidade. O próprio Mirinho afirma ter efetivamente participado dela, cuja
sede era o sindicato dos estivadores de Ilhéus, no qual ele militava111. Embora não
pertencesse a nenhum grupo, Mirinho tinha “acesso a todos”, por amizade e porque
assessorava os blocos na organização burocrática preparando atas, ofícios, documentos112.
Cumprindo este tipo de assessoria também para a nova entidade, ele foi seu secretário.
Afastado do movimento negro desde meados da década de 90, no momento da pesquisa
111 Mirinho formou-se em direito pela universidade local há não muito tempo, mas, segundo conta, foi‘universitário’ por muitos anos, talvez desde essa época. Em sua entrevista, ele diz que freqüentou colégiosparticulares em Ilhéus, condição rara para pessoas negras, certamente por ser de família de estivadores, quechegaram a formar uma pequena classe média negra na cidade durante várias décadas do século XX,enquanto o cacau sustentou o município. Seus avôs materno e paterno foram fundadores do sindicato dosestivadores em 1919, profissão seguida pelos demais homens da família e por ele mesmo.
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Mirinho pertencia ao Partido Liberal (PL) e era assessor de um vereador. Meu contato com
ele se limitou a uma entrevista, e talvez por isso, ele não levantou nenhum ‘problema’ em
relação à organização. Segundo conta, seu fim deveu-se à criação do CEACI de dois a três
anos após o surgimento do MNU-Sul da Bahia por esta entidade ser de caráter regional,
enquanto a nova teria um compromisso exclusivamente com os blocos afro de Ilhéus, o
que seria uma necessidade destes. Porém, há outras formas bem diferentes de se falar sobre
o Movimento Negro Unificado do Sul da Bahia.
Algumas pessoas com as quais conversei consideram Gaúcho o “mentor”, o
“idealizador” da entidade, e já haveria em sua proposta inicial “objetivos escusos”,
“pessoais”, enquanto Caíto, do Axé Odara, seria uma espécie de “laranja”, alguém que
estava sendo “usado” por Gaúcho, assim como Mirinho, que dava o suporte técnico e a
infra-estrutura cedendo o espaço do sindicato e tinha a confiança de todos os grupos.
É difícil fazer afirmações a respeito das atividades do Movimento Negro Unificado
do Sul da Bahia: ora parece um grupo de discussão, ora parece formado exclusivamente
para promover apresentações dos grupos e gerar dinheiro para os principais organizadores,
ou somente para Gaúcho, dependendo da versão. De toda forma, com exceção do
depoimento feito por Mirinho, o fato mais recordado por todas as pessoas que fizeram
referência à entidade foi o grande show do Ginásio de Esportes.
Em 1988, o MNU-Sul da Bahia convocou todos os blocos afro então existentes para
uma grande apresentação no Ginásio de Esportes. Havia a proposta de que o dinheiro
arrecadado com os ingressos seria dividido entre os grupos para “fazer caixa”, ou seja,
financiar o carnaval. Segundo conta o presidente do Dilazenze, ele pressentiu que “havia
armação” e o grupo não participou. Algumas outras pessoas dizem ter pensado o mesmo,
112 Além de Mirinho, outras pessoas com nível de escolaridade mais elevado cumpriam este mesmo papeljunto aos grupos afro. Na verdade, ainda hoje os grupos necessitam e desejam poder contar com pessoas quecolaborem nessas tarefas que exigem uma maior habilidade com a escrita e com procedimentos burocráticos.
330
comentava-se na época sobre as “más intenções” do presidente daquela entidade. Apesar
disso, os grupos participaram e o Ginásio estava lotado: era período de campanha eleitoral
e grande parte dos ingressos foi comprada por candidatos para distribui-los, carimbando
seu nome atrás. De acordo com a estimativa do presidente do Dilazenze, haveria ali cerca
de cinco mil pessoas. O show foi mesmo um sucesso, mas nenhum grupo teve qualquer
participação na receita do evento: segundo contam, Gaúcho fugiu da cidade com ela. Isso
torna relevantes as informações dadas anteriormente de que ele não era da cidade e de que
não pertencia ao movimento – era apenas ‘empresário’ –, não sendo nem mesmo
considerado negro. Depois desse evento, como era de se esperar, o MNU-Sul da Bahia foi
desarticulado.
No mesmo ano de 1988, uma outra entidade foi articulada em Ilhéus buscando o
engajamento do movimento negro da cidade nas reflexões e eventos do Centenário da
Abolição. Na verdade, tratava-se de uma comissão coordenada por Luiz Carilo, presidente
do Lê-guê Depá, e formada por representantes de blocos afro, por componentes do MEPI
(Movimento Estudantil Promocional de Ilhéus) e por outras pessoas interessadas na
discussão113. Essa comissão manteve contato com pessoas em Salvador, especialmente
com Mário Gusmão, que na época trabalhava com Gilberto Gil na Secretaria de Cultura.
Seu objetivo básico era tomar conhecimento dos eventos promovidos, do material
elaborado para as discussões e repassar aos grupos em Ilhéus, promovendo debates e
eventos na cidade. Por não contarem com nenhum tipo de apoio financeiro, as viagens à
capital eram pagas por pessoas da própria comissão que possuíam recursos. E, também por
falta de apoio, quase nada foi realizado na cidade no ano do Centenário da Abolição.
113 Tanto Marinho, presidente do Dilazenze, quanto João César, ex-presidente do Força Negra e consideradorepresentante da vertente mais ‘política’ do movimento negro ilheense, comentam terem participado de umacomissão nos mesmos moldes, embora citem integrantes bem diferentes. Tais informações me fazemacreditar que se trata do mesmo grupo de pessoas.
331
Essa comissão funcionou como um “embrião” do futuro CEACI. A partir dela, uma
outra comissão seria formada, desta vez para articular uma outra entidade a exemplo do
Conselho de Entidades Negras da Bahia, o CENBA, de Salvador. Foram realizadas
reuniões na Catedral, no Terreiro Tombency, no Colégio Vitória (os dois últimos situados
no bairro da Conquista)... O Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus, o CEACI,
teria sido fruto dessa articulação, formalizado em 1989 com a eleição de Bob Jal, do Miny
Kongo, para presidente, e Gilmar Rodrigues, que, embora fosse irmão dos fundadores do
Dilazenze, considerava-se sem grupo na ocasião, segundo conta. Apesar de haver
informações divergentes, a eleição de Bob Jal não foi consensual; havia uma outra chapa
formada por Caíto, do Axé Odara, e por César, do Rastafiry. Aparentemente, depois de
perder a eleição, Caíto levou seu grupo para a cidade de Porto Seguro e não retornou mais
a Ilhéus.
Por motivo de doença de sua esposa, Bob Jal teria se afastado da presidência do
CEACI, cargo então assumido por Gilmar. Seis meses depois, o primeiro presidente teria
tentado retornar, mas o Conselho não permitiu e Gilmar permaneceu no cargo até 1993,
quando houve a segunda eleição da entidade.
Assim, o carnaval de 1990 foi o primeiro cuja responsabilidade de dividir os
recursos repassados pela prefeitura entre os blocos coube ao Conselho. O mesmo
aconteceu em 1991. Antes da existência do Conselho, a prefeitura repassava os recursos a
cada entidade, mas os representantes dos grupos então considerados menores dizem que
havia controle das grandes entidades sobre a verba. Elas determinavam que grupos
poderiam receber e quanto a partir do que fosse disponibilizado pela prefeitura. Os
recursos para o primeiro carnaval do Dilazenze, por exemplo, em 1987, foram conseguidos
diretamente com o então presidente da Ilheustur por intermédio de um dos irmãos mais
velhos dos organizadores, naquele momento não participando mais de nenhuma entidade.
332
Segundo o presidente do Dilazenze, o Rastafiry também foi beneficiado (e possivelmente
também o Gangas) e esses grupos receberam cerca de dez por cento do valor então
destinado ao Lê-guê Depá, ao Miny Kongo e ao Axé Odara.
No carnaval de 1992, o então prefeito João Lírio, sucessor de Jabes Ribeiro, não
teria liberado recursos para os grupos, segundo afirmam alguns representantes do blocos
afro. A ausência de informações sobre desfile dos blocos no Jornal Diário da Tarde desse
ano ratifica a informação, assim como a movimentação do CEACI nas eleições de 1992,
embora esta seja mais uma especulação do que uma afirmação, já que nunca ouvi ninguém
vincular os fatos.
Naquelas eleições para prefeito, Jabes Ribeiro era novamente candidato. Se
vencesse, seria seu segundo mandato e a continuação de um mesmo governo, já que João
Lírio fora o sucessor escolhido por ele (naquele momento, ainda não era permitida a
reeleição do Executivo). Anteriormente, Jabes governara de 1983 a 1988, liberando
recursos para os grupos em todos os anos. Mas em 1992, por uma articulação em torno do
candidato a vice-prefeito de Antônio Olímpio, adversário de Jabes Ribeiro, os grupos em
peso fizeram oposição a Jabes, ‘história’ a ser melhor contada adiante. Mirinho, que fora
secretário da primeira tentativa de organização das entidades, o Movimento Negro
Unificado do Sul da Bahia, foi o principal articulador do apoio dos grupos a Antônio
Olímpio e foi também candidato a vereador naquelas eleições. Até então sem pertencer a
nenhum grupo, em 1992 Mirinho participou da fundação de um novo bloco afro, o
D’Logun, numa iniciativa conjunta com pessoas que integravam o Raízes Negras, bloco
fundado em 1990. O D’Logun deu a Mirinho uma base comunitária para a campanha,
embora ele conte que já realizava trabalhos comunitários via igreja católica, e lhe deu um
grupo para que ele pudesse ser candidato à presidência do CEACI no ano seguinte.
333
Antônio Olímpio venceu as eleições, mas não Mirinho. Ele tornou-se suplente de
vereador e passou a ocupar um cargo na Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio,
cujo secretário era o vice-prefeito. E, apesar de nem todos os grupos terem feito campanha
para Mirinho, aparentemente o CEACI encontrava-se unido, pois não houve a formação de
uma outra chapa. Em 1993, as três grandes entidades já não eram Lê-guê Depá, Axé Odara
e Miny Kongo. Só esta última continuou em atividade. Na nova formação do Conselho, o
D’Logun ocupou a presidência com Mirinho – a entidade era pequena, mas Mirinho era a
grande liderança do momento; a vice-presidência ficou com o Dilazenze; o tesoureiro e o
diretor de patrimônio eram do Rastafiry e o secretário pertencia ao Miny Kongo.
Mirinho considera que a concomitância entre estar participando do governo e ser
presidente do Conselho foi muito interessante para o movimento. De fato, os anos de 1993
e 1994 foram de grande visibilidade para os blocos afro de Ilhéus, são seus “bons tempos”.
De acordo com o ex-presidente do CEACI, sua presença no governo e mesmo a ocupação
da cadeira de vereador em algumas ocasiões – quando o titular entendia que ele teria mais
condições de discutir questões ligadas ao movimento negro ou ao Porto –, pode não ter
sido forte o suficiente para garantir o cumprimento de algumas ‘promessas de campanha’,
como o Centro Afro-Cultural e empregos para integrantes dos blocos, mas pôde garantir
que os grupos tivessem acesso a recursos de infra-estrutura para shows – “havia dois
palanques à minha disposição para os grupos, além de gambiarras, som e outras coisas” – e
passagens para participar de encontros em Salvador114.
Todavia, não se pode esquecer que o sucesso dos blocos afro de Ilhéus era um
reflexo do que ocorria em Salvador. Este era um momento que os blocos afro estavam em
alta no país e o Olodum já era conhecido internacionalmente. 1993 foi o ano da reforma do
Pelourinho, da inauguração da Fábrica de Carnaval do Olodum (Guerreiro 2000:166), do
334
lançamento de seu disco que viria a receber o Disco de Ouro no ano seguinte (Schaeber
1998:152), também lançamento de um disco do Ara Ketu (Guerreiro 2000:296)... Enfim, a
identificação entre os blocos afro de Ilhéus e o Olodum significava trabalho e visibilidade
para os primeiros.
Ao longo do governo Antônio Olímpio, o CEACI foi sendo desmobilizado e
perdendo sua força. Em primeiro lugar, porque não foi cumprida a principal promessa de
campanha do então candidato para os blocos afro e sua principal motivação para
mobilização, o Centro Afro-Cultural. Depois, vieram os problemas com os carnavais. No
ano de 1994, a prefeitura transferiu o carnaval da Av. Soares Lopes para a Av. Litorânea,
no bairro do Malhado, o que já provocou um primeiro esvaziamento deste. Nos dois anos
seguintes, o governo municipal não só não liberou recursos para os grupos, como também
só realizou o chamado ‘carnaval antecipado’. Além disso, desde 1994, Mirinho afastou-se
da presidência do CEACI e Marinho Rodrigues, o vice-presidente, assumiu o cargo, mas
com a entidade totalmente desarticulada. Afinal, não havia nem mesmo o dinheiro do
carnaval para mobilizar os grupos afro em torno de algum objetivo comum.
Se no início dos anos 90, os blocos afro de Ilhéus refletiram o sucesso dos grupos
de Salvador, especialmente do Olodum, em meados da década eles passaram a refletir
também a decadência do mais famoso bloco afro do país. O Olodum passou por uma grave
crise institucional que gerou a saída de Neguinho do Samba, mestre de bateria do grupo e
reconhecido como o inventor do samba-reggae, em 1996, e o afastamento de João Jorge da
presidência do grupo, que saiu da mídia, perdeu credibilidade, desativou seus trabalhos
sociais e passou a ter mais sucesso no exterior do que na Bahia115. Além disso, as bandas
de axé ou pagode explodiram e tomaram todos os espaços. Os blocos afro já não eram
114 Em 1993 ocorreram pelo menos dois encontros de dirigentes de blocos afro em Salvador, um estadual eoutro nacional, já citado anteriormente, dos quais representantes dos grupos de Ilhéus compareceram.115 Ver entrevista de João Jorge Rodrigues no Jornal Correio da Bahia, 27/04/99.
335
requisitados para apresentações. Some-se a isso a falta de apoio aos blocos afro do governo
municipal ilheense e ter-se-á uma idéia da conjuntura extremamente desfavorável em que
estes se encontravam no ano eleitoral de 1996.
Sem poder de articulação e, conseqüentemente, de negociação, os grupos afro se
dispersaram e ‘apoiaram’ ou “trabalharam para” os mais diferentes candidatos. Jabes
Ribeiro, candidato a prefeito, contava naquele momento com o apoio de duas pessoas que
poderiam estabelecer relações com o movimento negro: Gurita, então candidato a
vereador, que até conseguiu o apoio de alguns grupos para sua própria candidatura; e
Moacir Pinho, liderança do Movimento Negro Unificado em Ilhéus, dessa vez sim, uma
subseção do MNU estadual existente no município desde 1993, com a chegada de Moacir,
mas sem estabelecimento de relações com os blocos afro até a campanha eleitoral de 1996.
O apoio de Moacir e do MNU a Jabes se deu em função da coligação entre seus partidos,
PT e PSDB, respectivamente. Se as presenças de Gurita e de Moacir não foram decisivas
para que Jabes tivesse o apoio da maioria dos blocos afro, essas pessoas serão importantes
para a relação posteriormente estabelecida entre o novo prefeito, então eleito para seu
segundo mandato, e os grupos afro, especialmente no primeiro ano de governo e na
rearticulação do Conselho de Entidades Afro-Culturais.
Já no início de seu novo mandato, em 1997, Jabes Ribeiro ‘reativou’ os grupos afro
voltando a realizar o carnaval oficial, agora chamado de “cultural”, e liberando recursos.
Não à toa, ele foi chamado de “Carnaval do Resgate”. Poucos grupos tiveram condições de
desfilar em função da desmobilização experimentada nos anos anteriores e alguns se
uniram a outros116.
Dirigentes dos grupos afro disseram que a distribuição dos recursos foi muito
confusa, principalmente porque ficou a cargo de Moacir, nomeado gerente de ação cultural
116 Cf. Anexo 4.
336
da Fundação Cultural de Ilhéus, cuja função seria a de intermediar a relação entre governo
e blocos afro. Dado que Moacir não tinha contato com os grupos e eram poucas as
informações que possuía a respeito do movimento, a distribuição da verba do carnaval foi
uma negociação com cada entidade e destas com pessoas que consideravam influentes no
governo e que, de fato, intervieram no processo, gerando vários problemas entre elas e em
sua relação com Moacir Pinho.
A partir dessa experiência do carnaval de 1997 e, evidentemente, com base no
desejo do movimento, tornou-se uma espécie de demanda do governo a rearticulação do
Conselho. Segundo diziam Moacir e Gurita, agora mais próximo dos blocos por fazer parte
da ‘equipe de Adriana’ – esposa do prefeito que controlava o que fosse pertinente à
‘cultura’ de Ilhéus –, Jabes Ribeiro avisara que só negociaria os recursos do carnaval com a
entidade, não mais com cada um dos grupos. Porém, haja vista que os documentos do
CEACI não poderiam ser recuperados, pois estavam desaparecidos havia alguns anos,
optou-se por criar uma nova entidade, que passaria a ser chamada de CEAC – Conselho de
Entidades Afro-Culturais. Assim, ao longo daquele ano, mais intensamente nos meses de
setembro e outubro, foram realizadas reuniões com representantes de todas as entidades
reconhecidas como blocos afro, mesmo algumas que nunca haviam desfilado, dois afoxés e
uma academia de capoeira, cuja participação no Conselho foi “defendida” pela primeira-
dama. Apesar do nome do Conselho referir-se a um conjunto de ‘entidades afro-culturais’,
desde que começou a ser elaborado, ainda na década de 80, seu objetivo foi o de reunir
blocos afro e não qualquer organização que pudesse ser descrita pelo termo ‘afro-cultural’.
A participação dos dois afoxés no novo Conselho foi uma concessão porque eles não
poderiam ser abrigados em nenhuma outra entidade e porque atendiam aos requisitos
básicos de terem relação com ‘cultura negra’ e de serem entidades carnavalescas.
337
O estatuto do CEAC define-o como “uma entidade de representação das entidades
afro-culturais na organização do carnaval de Ilhéus”, o que significa dizer que, para
pertencer ao Conselho, é preciso que o grupo em questão seja um bloco afro, isto é, que
tenha o carnaval como prioridade de sua existência. No momento de elaboração do estatuto
para a nova entidade, chegou-se a debater intensamente se bandas afro também poderiam
compor o Conselho. Enquanto uns alegavam que não deveriam porque bandas não
desfilam no carnaval e, portanto, não realizam trabalhos comunitários, outros defendiam o
‘trabalho social’ das bandas. Na verdade, tratava-se de uma discussão em torno da
integração ou da exclusão de determinadas pessoas que pertenciam a determinadas
entidades, pois todas as bandas em questão desejavam tornar-se bloco afro, tão logo
dispusessem de recursos para comprar instrumentos suficientes para uma bateria. E foi o
que aconteceu. Por outro lado, em algumas ocasiões, instituições que realizam trabalhos
sociais com crianças pobres de bairros periféricos de Ilhéus já manifestaram desejo de
desfilar como bloco afro no carnaval, integrando-se ao CEAC. Essas entidades são, em
geral, ignoradas, embora nenhuma delas tenha realmente investido na empreitada. Isso
acontece porque elas podem até ‘sair como’ bloco afro, mas não o são, elas não são
prioritariamente carnavalescas.
Concluído o novo estatuto, houve então a eleição da diretoria, proposta sob a forma
de uma “coordenação executiva” por Moacir Pinho, que desejava aplicar no CEAC uma
estrutura organizacional semelhante à do MNU. Além da ‘coordenação executiva’,
constava dessa estrutura um Conselho Fiscal e a Assembléia Geral, composta por dois
representantes com direito a voto de cada entidade filiada. A participação do governo na
eleição do novo Conselho não se restringia ao fato de ter sido uma demanda sua e por ter
Moacir coordenando o processo. Membros do MNU, Moacir entre eles, assumiram o Força
Negra em função da conversão de seu ex-presidente. O MNU desejava aproximar-se dos
338
blocos afro e desenvolver um trabalho mais ligado à ‘cultura’ através de um bloco. Assim,
muitas vezes, Moacir parecia estar mais presente como Força Negra ou como MNU do que
como ‘Fundação Cultural’. O governo tinha, na verdade, Gurita como alguém que o
representava mais efetivamente. Toda a discussão a respeito de bandas e blocos visava
incluir ou excluir Gurita, que se apresentava como representante de blocos recém-criados,
ainda considerados bandas afro, já que não haviam desfilado. Além das presenças de
Moacir e de Gurita, o governo cedeu os espaços de discussão, a estrutura para a elaboração
do estatuto117 e um coquetel para o dia da posse da nova diretoria, realizado no mesmo dia
da eleição.
A nova composição da diretoria foi a seguinte: a coordenação executiva coube ao
Dilazenze; a coordenação de finanças ao Miny Kongo; a de organização, ao Rastafiry; a de
comunicação ao Força Negra e a coordenação de eventos ao Zambi Axé, representado por
Gurita. Naquele momento, o Conselho possuía 15 entidades filiadas: 12 blocos afro (entre
blocos e bandas que viriam a sair como blocos), 2 afoxés e a levada da capoeira.
A posse da nova diretoria ocorreu no dia 25 de outubro. Durante algumas semanas,
enquanto buscavam formas de angariar recursos para o carnaval, as assembléias
mantiveram-se cheias. Além da imposição de que só negociaria com o CEAC, outra
determinação do governo é que ele não ‘daria’ mais recursos para os grupos e sim
estabeleceria uma “parceria” com eles, ou seja, o governo poderia auxiliar os grupos na
geração de recursos, mas estes deveriam se auto-financiar. E contra o discurso do prefeito
que dizia não querer mais ser “paternalista” para com os grupos, estes afirmavam que não
se tratava de paternalismo, mas de um contrato, pois ao liberar recursos para o desfile dos
117 A digitação final do estatuto, a impressão e as fotocópias foram feitas com muita dificuldade e pode-seclassificar todo esse processo como racismo nos moldes expostos em seção anterior por ter sido, por parte dapresidência da Fundação Cultural, um boicote ao trabalho de Moacir e dos blocos afro. Por não terfuncionários à sua disposição, todas essas tarefas simples e, supostamente, fáceis, eram tratadas como favoresque a Fundação estava prestando, sendo necessário fazê-las depois do expediente. Eu mesma cheguei a
339
grupos, o governo municipal estava pagando por suas apresentações. Por outro lado, como
afirmei anteriormente, buscar independência do governo é um desejo constante dos grupos,
mas está longe de ser tarefa fácil. Logo os grupos se dispersaram e só voltaram a se reunir
nas proximidades do carnaval de 1998 para estabelecer a divisão dos recursos, a qual foi
novamente confusa, pois as decisões tomadas em conjunto pelo CEAC com a Fundação
Cultural foram atropeladas tanto por Moacir, que sem ter condições de colocar o Força
Negra na Avenida distribuiu seus recursos entre grupos que não pertenciam ao Conselho,
quanto pelo presidente da Ilheustur que mudou valores a fim de beneficiar grupos sob sua
proteção118.
Em 1998, Moacir Pinho deixou o governo, assim como fizeram as demais pessoas
do PT que ocupavam cargos em função da coligação, pois esta foi desfeita pela
aproximação de Jabes Ribeiro de Antônio Carlos Magalhães e pelo seu apoio à reeleição
de Fernando Henrique Cardoso à presidência e não a Lula, candidato pelo PT. Os anos de
1998 e 1999 foram de pouca atuação do CEAC e os planos de articulação das entidades em
torno de uma série de projetos não foram realizados. No ano 2000, o CEAC voltaria a
ganhar destaque na política local e na mídia pelo retorno do Centro Afro-Cultural à cena. E
não se pode desconsiderar que era, novamente, ano de eleições municipais.
Como será descrito adiante, o processo de implantação do Centro Afro-Cultural,
que acabou recebendo o nome de Memorial da Cultura Negra de Ilhéus, começou em abril
de 2000 e ‘terminou’ (as aspas serão entendidas posteriormente) em dezembro de 2002.
Ainda na gestão de Marinho Rodrigues, presidente do Dilazenze, como coordenador
executivo do CEAC, ocorreram a assinatura do convênio entre a prefeitura e o Clube 19 de
ajudar, digitando e revisando o estatuto, além de insistir junto aos funcionários responsáveis que as tarefasfossem cumpridas.118 Uma descrição mais detalhada da rearticulação do CEAC encontra-se em Silva 1998.
340
Março que seria alugado para este fim e, meses depois, a primeira inauguração, já com a
promessa de que o presidente do Dilazenze seria o administrador do espaço.
Rege o estatuto do CEAC aprovado em 1997 que o mandato da coordenação
executiva é de três anos. No final de 2000, houve uma primeira tentativa de eleição
organizada pelo presidente do Rastafiry, ainda coordenador de organização da entidade
pela eleição anterior. Por irregularidades, reais ou assim interpretadas, a convocação para
esta eleição não foi válida. Uma nova eleição foi marcada para março do ano seguinte, com
duas chapas concorrendo, uma encabeçada pelo Rastafiry e outra pelo D’Logun, que já não
desfilava há alguns anos mas seu representante era alguém atuante na política partidária
local como assessor de um vereador (como Mirinho, que também foi presidente do então
CEACI pelo D’Logun e vinculado a um partido político). A estrutura organizacional e
administrativa que consta do estatuto do CEAC não foi seguida pela chapa do D’Logun,
que acabou vencendo a eleição. Na verdade, ela nunca foi, de fato, considerada e, desde os
primeiros momentos, Marinho, eleito coordenador executivo em 1997, já era chamado de
‘presidente’. Assim, em 2001, o CEAC passou a ter a seguinte composição: a presidência
coube ao D’Logun; a vice-presidência ao Dilazenze; a tesouraria ao Zambi Axé e a
secretaria ao Leões do Reggae. Esta é a atual composição do Conselho119, que
recentemente voltou a ser chamado de CEACI por alguns, já que a nova entidade não foi
regularizada. O extrato de seu estatuto foi publicado no Jornal Oficial do município logo
após a eleição de 1997, mas não houve o registro em cartório. Na realidade, até há pouco
tempo, o Dilazenze era o único grupo em situação regular entre os blocos afro de Ilhéus,
situação alcançada em função da realização do Projeto Batukerê, da necessidade de captar
recursos e das exigências burocráticas daí advindas.
119 Recentemente, já em 2004, houve uma nova eleição para o CEAC, em que o presidente do D’Logun foireeleito contra uma outra chapa encabeçada pelo Dilazenze na pessoa de seu vice-presidente. Desde a sua
341
A atual gestão do CEAC foi, sem dúvida, a que teve a maior visibilidade na mídia.
Em 2001, ocorreu na cidade o I Encontro de Dirigentes de Entidades Afro-Culturais que,
embora não tenha sido organizado pelo presidente do Conselho, a entidade apareceu como
promotora e, como resultado do encontro, foi elaborada uma carta de reivindicações ao
governo municipal que teve uma “boa repercussão”, como disseram120. Foi um dos raros
momentos de afrontamento dos grupos ao governo municipal, pois a carta pedia apoio e o
cumprimento de promessas. Mas o CEAC também foi para a mídia, especialmente para as
emissoras de rádio121, pelas denúncias de corrupção feitas por membros de alguns grupos
afro contra a diretoria do Conselho. Contudo, o longo processo de implantação do
Memorial da Cultura Negra, com suas várias inaugurações, contribuiu muito para deixar o
Conselho em constante evidência.
O Memorial
A intenção desta subseção é reunir informações que se encontram espalhadas ao
longo do texto e tentar tornar mais inteligível o que é e o que representa atualmente o
Memorial da Cultura Negra para os grupos afro de Ilhéus.
Aparentemente, a história do Memorial começa na campanha eleitoral de 1992 para
a prefeitura de Ilhéus com a promessa de construção do Centro Afro-Cultural. Quando essa
‘história’ começa a ser contada pelos integrantes dos blocos afro, o relato não apresenta um
autor para a idéia do espaço, trata-se de um “compromisso” assumido por um dos
candidatos a prefeito com os grupos afro através de Mirinho, então candidato a vereador.
fundação, ainda como CEACI, esta é a primeira vez em que o Dilazenze não participa da diretoria doConselho.120 Uma nota sobre a realização do encontro chegou a sair num jornal de circulação estadual.121 Episódio descrito por Sílvia Nogueira em sua comunicação “Falar na Rádio como Estratégia Política: UmRetrato Etnográfico do Racha entre Entidades Afro-Culturais de Ilhéus”, apresentada no Fórum de Pesquisa“Políticas e Subjetividades nos ‘Novos Movimentos Culturais’”, na 24ª Reunião Brasileira de Antropologia(Olinda, 12 a 15 de junho de 2004). A autora, também doutoranda do PPGAS/Museu Nacional – UFRJrealizou pesquisa sobre as emissoras de rádio de Ilhéus e sua tese encontra-se em fase de redação.
342
Goldman (2000) faz uma descrição detalhada de todo esse processo e, a partir das
informações obtidas, apresenta o Centro Afro-Cultural como
“um prédio destinado a abrigar, expor e vender a ‘cultura afro’ local,onde academias de capoeira, blocos afro, vendedores de artesanato,mães e pais-de-santo jogando búzios, dividiriam um espaço quereceberia uma grande quantidade de turistas. Além de dar visibilidadeà ‘cultura afro’ local, o Centro funcionaria, pois, como umaimportante fonte de renda para os grupos e pessoas que fazem parte domovimento afro-cultural de Ilhéus.” (:320).
Ronaldo Santana, então candidato a prefeito que assumiu esse compromisso com os
grupos afro, aliou-se a Antônio Olímpio, considerado com mais chances de se eleger e
tornou-se seu vice-prefeito. O apoio dos grupos permaneceu porque o compromisso de
construção do Centro Afro-Cultural foi mantido por Antônio Olímpio. Integrantes de
diferentes grupos afro que participaram daquele processo, invariavelmente, afirmam que os
grupos trabalharam unidos pela eleição de Antônio Olímpio e que teriam sido responsáveis
por cerca de oito mil votos.
Apesar de Mirinho, principal articulador do apoio das entidades afro a Antônio
Olímpio, ter sido eleito presidente do CEACI em 1993 e ter participado do governo com
um cargo na secretaria destinada ao vice-prefeito, especialmente a partir do segundo ano de
mandato, aqueles foram anos difíceis para o movimento afro-cultural de Ilhéus. Somente
em 1995, depois de muita pressão dos grupos afro, segundo contam, o então prefeito doou
aos grupos um terreno que pertenceria ao governo municipal para a construção do Centro.
A doação foi um grande fato político: a prefeitura e os grupos organizaram uma grande
festa, a imprensa foi convocada e o prefeito fez, como pessoa física, a primeira doação em
dinheiro a fim de iniciar uma campanha de arrecadação para a compra do material para a
construção do Centro Afro-Cultural de Ilhéus. No entanto, a doação do terreno foi feita
antes de passar pela Câmara de Vereadores, que vetou o projeto. O Centro teria sido a
primeira grande conquista do movimento negro de Ilhéus a partir de um projeto político
343
único, através do qual os grupos teriam demonstrado poder de mobilização e seriam
considerados uma força política importante no município.
A frustração do projeto do Centro e a falta de apoio do governo Antônio Olímpio
ao carnaval e aos grupos, dispersou o movimento. Nas eleições de 1996, os grupos foram
procurados pelos candidatos a prefeito. Algumas pessoas contam que numa reunião de
negociação de apoio a Jabes Ribeiro, o candidato que venceu aquelas eleições, os grupos
apresentaram seus ‘oito mil votos’ como capital e foram desafiados por ele a mostrá-los
elegendo um vereador que fosse seu representante, justamente Gurita, que se apresentava
como membro do movimento negro e que teria o apoio do prefeito para reapresentar o
projeto da construção do Centro na Câmara de Vereadores ‘se eleito fosse’. Alguns grupos
até apoiaram Gurita, mas também “trabalharam” para outro candidato a prefeito.
Gurita não obteve os votos necessários para sua eleição e ficou como suplente de
Gildo Pinto, candidato eleito que assumira a base eleitoral do D’Logun, que apoiou
Mirinho nas eleições de 1992. Gurita disse que se conseguisse assumir a cadeira em algum
momento, encaminharia o projeto do Centro. Mas Gildo Pinto também pretendia fazê-lo.
Contudo, consta que o projeto teria sumido da Câmara, dessa forma, nenhum dos dois o
apresentaria.
Ainda em 1997, o Centro Afro-Cultural voltou a ser comentado numa Sessão
Especial da Câmara por ocasião da Semana da Consciência Negra, sessão esta convocada
pelo único vereador eleito pelo PT e foi dele mesmo que veio a notícia de que a construção
do espaço estaria prevista no orçamento do município para o ano seguinte, segundo lhe
informou Moacir Pinho, ainda no cargo de gerente de ação cultural da Fundação Cultural
de Ilhéus.
Em 1998, nada aconteceu em relação ao Centro Afro-Cultural, a não ser que o
vereador Gildo Pinto, de acordo com o presidente do Dilazenze, teria conseguido encontrar
344
o projeto de 1995 e desarquivá-lo, o que motivou uma nova conversa com o prefeito, que
teria se comprometido a levá-lo adiante. Em 1999, em nova conversa a respeito do tema, o
prefeito teria dito que a Petrobrás estaria construindo um Centro Cultural em Ilhéus e que
um bom espaço em seu interior poderia ser utilizado pelo CEAC provisoriamente como o
Centro Afro-Cultural, enquanto este não era construído pela prefeitura. Mais uma vez,
nada aconteceu, até porque nem mesmo a Petrobrás construiu seu Centro Cultural.
Em abril de 2000, a idéia do Centro Afro-Cultural começou a ficar mais concreta.
No dia 26 de abril, representantes de todos os grupos que compunham o Conselho, as
academias de capoeira e os terreiros de candomblé foram convidados a participar de uma
reunião convocada pela prefeitura cujo assunto seria a “potencialização social da cultura
afro”. Quinze minutos após o horário marcado, havia apenas representantes de três grupos
do CEAC, entre eles seu presidente, um representante do governo, Gurita, e um fotógrafo
da Assessoria de Imprensa esperando para fotografar o prefeito, além de mim. Pela
presença do fotógrafo, deduz-se que o anúncio de que a prefeitura estava para alugar um
espaço para a promoção de atividades afro-culturais deveria se tornar um fato político, mas
para isso seria preciso que todos os convidados comparecessem. A reunião foi adiada e
marcada outras duas vezes, e acabou acontecendo no dia 02 de maio, ainda que com
poucos participantes: cinco representantes de grupos do Conselho e dois de terreiros de
candomblé. Nesta reunião, houve também a participação do então secretário de
administração. Na ocasião, o governo revelou que já havia um acerto com o proprietário do
Clube 19 de Março para alugá-lo.
O Clube 19 de Março é originalmente um clube de dominó, ou seja, lugar onde as
pessoas se reúnem para jogar dominó, ao que parece, uma organização comum no interior
da Bahia e uma prática bastante difundida na cidade. Ao fim da tarde, em função talvez do
grande número de desempregados, é muito comum ver grupos de pessoas, especialmente
345
homens, nas praças ou mesmo nas calçadas das ruas, jogando dominó e um outro tanto
deles assistindo ao jogo. Propriedade de família negra, com a maior parte de seus sócios
negros, o Clube 19 de Março é, ainda hoje, um espaço de lazer voltado para a população
negra. Sua localização, nas imediações da Av. Itabuna e no início de uma das ruas que
sobem para o bairro da Conquista, é privilegiada desse ponto de vista, pois não está longe
do Centro da cidade ao mesmo tempo em que pode ser facilmente freqüentado pelos
moradores do bairro ‘mais negro’ da cidade. O espaço possui dois andares e até hoje não se
sabe ao certo se a prefeitura alugou todo o clube ou só o andar inferior – nenhum membro
dos grupos afro nunca viu o contrato. Na prática, o Memorial, que até este momento ainda
não tinha este nome, funciona no andar térreo e as atividades do clube no superior.
Numa outra reunião com um outro representante do governo, desta vez em função
da implantação do Projeto Batukerê, integrantes do Dilazenze tomaram conhecimento de
que o espaço estava sendo denominado de “Casa da Cultura Afro”. No dia 19 de maio,
cerca de duas semanas após a reunião com os grupos, houve um evento relativamente
grande para a assinatura do contrato de aluguel. Vários telefonemas dos representantes do
governo diretamente envolvidos no projeto para o presidente do CEAC insistiam que ele
deveria convocar e apelar para presença do maior número possível de integrantes dos
blocos afro. No entanto, a programação do evento foi toda de bandas de pagode.
Um palanque foi armado em frente ao Clube. Em torno dele, faixas que não foram
confeccionadas pelos grupos agradeciam em seu nome: “Jabes é Axé – Entidades Afro”
(assinando); “Dilazenze – Rastafiry – Miny Kongo – Zambi Axé – Danados do Reggae –
Filhos de Ogum agradecem ao Pref. Jabes Ribeiro o Memorial da Cultura Negra”;
“Obrigado Jabes pelo Centro da Cultura Negra – Moradores da Av. Itabuna” (assinando);
Maria de Lurdes 2000 parabeniza o Pref. Jabes Ribeiro pela iniciativa do Memorial da
Cultura Negra”; “Obrigado Prof. Gurita por nos representar – Assoc. Desportiva das Ruas
346
A B C” (assinando)... Só as faixas já seriam capazes de mostrar que o evento foi um grande
comício, mas além delas houve presença de vereadores e candidatos ao cargo e discursos
de alguns deles, além do secretário de administração e, é claro, do prefeito. Em nome dos
blocos afro, o presidente do CEAC foi convidado a assinar o convênio, mas foram
requisitadas também as assinaturas de pais e mães-de-santo presentes, cuja participação no
processo foi restrita a esse momento.
As faixas também revelam que ainda havia uma certa confusão entre os nomes
propostos para o espaço, mas o de Memorial da Cultura Negra já estava decidido pelo
secretário de administração. E de nada valeram os protestos posteriores de membros dos
grupos afro, pois parece que o nome já constava do convênio e não poderia ser mudado.
Nos meses subseqüentes, pouco aconteceu em relação ao Memorial. O lançamento
da candidatura de Gurita, no próprio Clube 19 de Março em julho de 2000, foi uma
oportunidade para o prefeito referir-se ao Memorial como algo em prol do movimento
negro de Ilhéus que seria plenamente viabilizado em seu segundo mandato. Os meses se
passaram e a campanha eleitoral também. Praticamente todos os grupos afro apoiaram
Jabes Ribeiro, que foi reeleito. Quanto ao Memorial, a única iniciativa tomada a seu
respeito foi uma pintura externa com motivos afro. Sua inauguração, ou a primeira delas,
ocorreu no dia 20 de Novembro daquele ano, Dia da Consciência Negra.
Em fevereiro de 2001, em reunião com o prefeito, o presidente do Dilazenze foi
informado de que seria o administrador do Memorial, cuja nomeação sairia no fim do mês,
mas nesse momento não se sabia a que órgão do governo o espaço ficaria ligado. Dizia-se
que poderia ser à Fundação Cultural. Por outro lado, uma nova secretaria que começava a
funcionar no novo mandato requisitava o Memorial para si. Tratava-se da Secretaria de
Esportes e Cidadania, cujo secretário era um político antigo da cidade, ex-presidente da
Câmara e com cinco mandatos de vereador, mas que não havia sido reeleito no pleito de
347
2000. Além disso, um outro interessado no Memorial, Gurita, também não eleito, era o
subsecretário de Esporte dessa secretaria. Segundo um dos dirigentes dos blocos afro, a
secretaria teria sido concebida em substituição a uma promessa de campanha do prefeito ao
deputado federal Pastor Reginaldo, que tem as cidades de Ilhéus e Itabuna como base
eleitoral. Este teria solicitado a Jabes que implantasse em seu governo uma Secretaria de
Assuntos Afro, a ser chefiada pelo mesmo político, seu aliado na cidade. O prefeito, então,
propôs esta outra, que seria mais abrangente, mas que poderia atender ao público desejado
pelo deputado.
Desde sua inauguração, o Memorial passou a ser utilizado para aulas de capoeira de
uma academia e para aulas de dança afro dadas por um componente do Leões do Reggae a
crianças de sua comunidade. Esta foi a informação do presidente do bloco, que afirmou
que as aulas faziam parte de seu ‘trabalho social’. Também passaram a ser realizadas nele
algumas reuniões do CEAC. Durante todo o ano de 2001, foram feitas promessas de obras
no espaço e de nomeação do presidente do Dilazenze como seu administrador. Sua
preocupação, além de seu emprego, evidentemente, era que houvera primeiramente um
evento de assinatura do convênio, depois o espaço fora pintado e inaugurado e ainda não
estava funcionando. Isso poderia denotar “incompetência” dos grupos afro “para a
sociedade”, já que ninguém sabia o que estava acontecendo. Nesse momento, era a
Secretaria de Esporte e Cidadania a responsável pelo Memorial, mas por ser uma secretaria
nova, alegava que não tinha recursos disponíveis para dar encaminhamento às obras
necessárias e muito menos à contratação do administrador.
A carta resultante do I Encontro de Dirigentes de Blocos Afro de Ilhéus fazia
referências ao Memorial e informava a população das condições em que este se encontrava
e do não cumprimento das promessas de obras feitas pelo governo. Aparentemente, isso
fez com que a primeira dama fosse até o espaço e solicitasse uma vez mais – isso já havia
348
acontecido outras vezes – um relatório sobre o que ainda era necessário fazer para que o
Memorial começasse a funcionar. O prefeito disse ao presidente do Dilazenze que havia
determinado que a cozinha – uma das propostas é que houvesse um restaurante de comida
afro-baiana no Memorial – fosse instalada até o dia 20 de Novembro. Isso alertou os
grupos afro de que o prefeito desejaria, com a instalação da cozinha, fazer uma nova
inauguração e que o movimento afro-cultural já estava “virando piada” na cidade. A
cozinha não foi instalada e apenas uma feijoada foi realizada no Memorial durante a
Semana da Consciência Negra daquele ano, com pouca participação do governo.
As obras imprescindíveis para o funcionamento do Memorial – instalação da
cozinha e banheiros, além de ‘boxes’ para que cada grupo afro pudesse expor e vender
produtos – só foram mesmo realizadas no ano seguinte. No aniversário da cidade, em
junho de 2002, com a presença de autoridades importantes do Estado da Bahia, como o
governador César Borges, o senador Antônio Carlos Magalhães, além do então candidato a
governador, Paulo Souto – 2002 foi novamente ano de eleições –, o Memorial foi
reinaugurado. No entanto, ele permaneceu fechado até janeiro de 2003, pois só em
dezembro o presidente do Dilazenze foi finalmente nomeado administrador do lugar,
embora com salário 50% menor do que o recebido por pessoas com cargos equivalentes ao
seu. E, diferentemente do que fora acertado, desde a real abertura do Memorial, a
prefeitura não repassou sequer um centavo para o seu funcionamento.
Pela falta de investimento da prefeitura, por rixas internas ao movimento negro,
pela ausência de uma política deliberada de mobilização dos grupos e pela própria falta de
estrutura destes, o Memorial tem funcionado, mas está longe de alcançar os objetivos
inicialmente propostos para o Centro Afro-Cultural. Depois de uma primeira tentativa de
administrar em conjunto o restaurante, os grupos então responsáveis desistiram dele, que
foi “assumido” pelo Dilazenze. Na verdade, apenas este grupo tem feito uso do Memorial
349
com exposição de produtos e promovendo boa parte de suas atividades nele. Outros grupos
ocuparam seus boxes com fotos, mas apenas isso. Muito pouco para algo tão desejado.
À
Conforme anunciado na introdução deste capítulo, seu objetivo foi apresentar os
blocos afro de Ilhéus como ‘territórios negros’, mas no sentido de ‘territórios existenciais’,
nos quais se produz um modo de subjetivação negro a partir de sua relação com o
candomblé como ‘fonte’ de ‘cultura negra’ e das diversas atividades promovidas pelos
blocos, especialmente aquelas que objetivam a preparação para o carnaval e o próprio
desfile, no qual mais se expressa seu desejo de singularidade. Esta forma de se colocar no
mundo permite aos grupos afro sua constituição enquanto movimento, ou seja, enquanto
produtor de uma vontade de sair de um lugar em direção a outro vislumbrado como
melhor. Contudo, também torna possível que a maioria aja sobre eles impedindo tal
movimento a partir de sua singularidade de grupos racialmente organizados. A isso
denomina-se racismo.
A própria apresentação dos processos de singularização produzidos pelos blocos
afro como territórios negros permitiu entrever que outras formas de subjetivação são
produzidas nos mesmos processos, como as que geraram o Projeto Batukerê e a formação
dos blocos como grupos de dança ou bandas, que fazem de seus componentes artistas. A
idéia de que as atividades, a estética, a música, enfim, os blocos afro surgiram a partir do
desejo de diferir, da produção de uma “subjetividade dissidente” (Guattari 1986),
encaminha a discussão para pensar sobre que desejos e modos de subjetivação estão em
jogo nessas outras formas de conceber o bloco afro. Em termos gerais, este é o objetivo do
próximo capítulo.
350
Encontros 5
BLOCO AFRO: CAPTURAS
“Criatividade. Delito cada vez menos freqüente.”(Galeano 2000)
O Grupo Cultural Olodum, de Salvador, constitui o exemplo mais extremo de uma
tensão que afeta todos os blocos afro que conseguem atuar além do período carnavalesco e,
de maneira especial, aqueles que possuem uma base comunitária. O caso do Olodum pode
ser chamado de extremo não só porque ele é o bloco afro mais conhecido do Brasil, mas
principalmente porque ele se tornou famoso pelas duas vertentes seguidas e expôs a tensão
entre elas, criando mesmo a idéia de que aí existe uma oposição. Entre os grandes blocos
afro de Salvador, o Ilê Aiyê é tido como o representante mais famoso da vertente
associativa, comunitária e o Ara Ketu é o grupo musical, são os artistas1. É provável que
haja uma tensão também nesses blocos, mas eles fizeram opções claras, a partir das quais
criaram imagens de si que direcionam suas ações e fazem-nos manter uma linha em nome
da própria sobrevivência do bloco2, ainda que tenham de ceder vez por outra: o Ilê Aiyê,
1 Numa entrevista publicada no Jornal Correio da Bahia (27/04/99), pergunta-se a João Jorge se o “Olodumestaria hoje mais próximo da visão de negritude do Ilê Aiyê ou do Ara Ketu”, o que demonstra umreconhecimento dessa oposição.2 Penso ser legítimo especular que se o Ilê Aiyê introduzisse instrumentos eletrônicos e adotasse o formato detrio elétrico, por exemplo, ele perderia muito do que garante seu sucesso, que é sua singularidade baseadanuma idéia de ‘pureza’.
351
por exemplo, criou um bloco alternativo para turistas e pessoas brancas e o Ara Ketu,
diferenciando-se das bandas de axé music, mantém uma escola comunitária. O caso do
Olodum é especial porque ele já fez opções distintas e tanto na forma associativa –
investindo nos ‘trabalhos sociais’ com a comunidade – quanto como grupo artístico, o
bloco alcançou sucesso, embora não tenha conseguido mantê-lo de maneira estável. A
experiência do Olodum mostra que as duas posições são dificilmente conciliáveis: no
momento em que uma está em alta, a outra parece cair. É preciso fazer escolhas sempre.
Embora opostas, ambas as opções são produzidas por uma mesma forma de
subjetivação. Tanto no caso dos ‘trabalhos sociais’ dos grupos afro quanto na vontade de
seus membros de obter renda com suas atividades artísticas, têm-se aí formas do que
Guattari chama de “subjetividade capitalística” (Guattari e Rolnik 1996:15) produzindo o
desejo de ‘incluir’ quem supostamente está ‘fora’, ou seja, aqueles que estariam excluídos
do ‘sistema’ e de seus ‘benefícios’, assim como o desejo de ‘estar incluído’, de buscar
esses mesmos benefícios para si e para outros através do trabalho como artista e/ou dos
imaginados prestígio e poder de ser ‘dono de bloco’, ou ainda fazendo do bloco uma
empresa que produz lucro.
É preciso deixar claro que a afirmação de que tais desejos são produzidos por um
modo de existência ‘capitalístico’ não significa negar a atuação de outras formas de
subjetivação. Retomando ainda mais uma vez o que já foi bastante ressaltado ao longo
deste trabalho, tudo é produzido a partir de encontros, agenciamentos dos mais diversos
fluxos que são, por sua vez, produzidos a partir de tantos outros agenciamentos. Entretanto,
é próprio do capitalismo agir por sobrecodificação e integração diferencial através da
captura de modos de subjetivação dissidentes3. Assim, agenciamentos produzidos pelo
candomblé, por uma idéia ampla de família, pela criação de um novo território existencial
3 Questão a ser retomada adiante.
352
ou simplesmente por uma dada concepção de lazer geram desejos de ‘solidariedade’, de
‘comunidade’; tais desejos podem vir a ser capturados por uma visão de mundo ou
subjetividade definida pela idéia de onguização4 do mundo, fruto da subjetividade
capitalística tanto quanto ‘o mercado’, que captura desejos de ‘arte’, de ‘música’, de
diferir. O que é interessante notar e guardar neste momento da exposição é que, como não
poderia deixar de ser, a subjetividade capitalística transforma todos esses desejos em
trabalho: trabalhos que podem ser chamados de ‘artísticos’ – embora sejam comumente
chamados apenas de ‘trabalho’ – ou ‘trabalhos sociais’.
A proposta deste capítulo é, então, descrever os agenciamentos que constituem os
blocos afro tanto em seu caráter ‘associativo’ quanto ‘artístico’ ou ‘empresarial’. A
primeira seção apresentará os elementos que são levados em conta por membros do bloco
para concebê-lo como um ‘coletivo’, como um ‘grupo’ de fato. Desse ponto de vista, um
bloco afro é definido por suas atividades comunitárias, as quais, como pode ser percebido
na trajetória do Dilazenze, vão ganhando novos significados à medida que o grupo entra
em novos agenciamentos. Assim, uma mesma atividade que num primeiro momento
acontecia pela ‘festa’ ou para angariar recursos para o bloco, no momento seguinte pode
ganhar o objetivo de ‘aumentar a auto-estima’ da comunidade e ser pensada como um
‘trabalho social’ do grupo e, algum tempo depois, pode ser uma estratégia para ‘promover
a inclusão social’ de crianças e adolescentes – ‘forma’ pensada a partir da implantação do
Projeto Batukerê.
A segunda seção deste capítulo será dedicada, então, ao Projeto Batukerê: que
encontros o produziram, como se deu seu desenvolvimento, que relações e tensões
4 Estou chamando de ‘onguização’ a uma forma de subjetivação que homogeneiza a ação, fazendo com queos mais diversos tipos de organização, não apenas as denominadas ‘organizações não-governamentais’, taiscomo entidades filantrópicas, religiosas, comunitárias e governamentais, formulem suas práticas e objetivossegundo um modelo considerado característico dessas organizações. Sendo uma forma de subjetivação, elatambém atinge a mídia – e é maciçamente propagada por ela – e a todos nós, fazendo-nos pensar o mundoatravés de valores como ‘voluntariedade’, ‘solidariedade’, ‘participação’ etc. O tema será retomado adiante.
353
decorrentes do projeto perpassam o Dilazenze. Nesse caso, o grupo não é percebido apenas
por seu caráter ‘associativo’, mas, fundamentalmente, ‘social’ no sentido de um grupo que
trabalha para uma coletividade e não diretamente por si mesmo.
A princípio, a definição de um bloco afro por seu caráter coletivo (associativo ou
social) pode parecer ‘natural’ já que ele geralmente surge de uma coletividade, de um
“espaço social”, como ressaltado no capítulo anterior. Entretanto, os blocos afro também
costumam ter um ‘dono’ e podem privilegiar seu desenvolvimento como um grupo de
artistas ou como fonte de renda para alguns membros. Nesse caso, são enfatizados seus
aspectos ‘artístico’ ou ‘empresarial’, investimentos que costumam gerar tensões com o
bloco como coletividade ou para cuidar da coletividade. Apesar desses aspectos serem tão
‘naturais’ aos grupos afro quanto seu caráter associativo, já que um bloco afro surge como
entidade carnavalesca e necessariamente artística, eles costumam ser moralmente
reprovados. Algumas das implicações dessas posições serão enfocadas na terceira seção.
Bloco afro: “forma associativa”
“Eu estou falando essas coisas porque, como o Olodum é muito citadocomo exemplo de sucesso, é preciso que a gente saiba exatamente queo sucesso tem um preço5. Sucesso tem as dificuldades, sucesso tem asperdas. À medida que o Olodum cresceu, se organizou, andou pelomundo inteiro, ganhou muitas coisas, mas perdeu muito. Muitaspessoas que chegaram ao Olodum pela forma associativa, pelo seucaráter de uma organização do movimento negro, de cultura afro-brasileira, depois continuaram no Olodum pensando no Olodum comoum emprego público.” [grifo meu] (Vários 1999:62).
A “forma associativa”, termo pinçado da citação acima de João Jorge Rodrigues,
presidente do Olodum, é como, em geral, nasce o bloco afro: fruto do desejo de pessoas
que compartilham um espaço social de família, de vizinhança, de futebol, de associação de
5 Trecho retirado de um debate sobre a economia do carnaval do qual João Jorge participava em 1998. Nessedebate, a intervenção de João Jorge seguiu-se à de Marcelo Dantas, possivelmente o autor mais citadoquando se trata de pensar sobre o “sucesso” do Olodum como uma empresa. Assim, vários trechos de sua
354
moradores ou mesmo de amigos que saíam juntos no carnaval em algum outro tipo de
bloco ou até em outro bloco afro. Mas o termo pode significar mais do que um ‘formato’ se
estiver fazendo referência a um bloco afro, especialmente depois que “a crise de
identidade” do Olodum estabeleceu que pode haver ‘formas’ diferentes de orientar o bloco,
o que fica claro nas palavras de seu presidente:
“A base do Olodum é a cultura, a educação, a cidadania e umamúsica originária de tudo isso. (...) No semestre passado, voltamos afazer ensaios gratuitos aos domingos, no Largo do Pelourinho,realizamos uma vasta programação sobre os 200 anos da Revoluçãodos Búzios, começamos a publicar de novo o Jornal do Olodum,gratuitamente, e acabamos de inaugurar o prédio novo da EscolaCriativa Olodum.
(...) Não é possível se aproximar da visão do Ara Ketu, hoje, poisisso significaria o fim do Olodum como organização. Falo isso porquepassamos recentemente por uma crise de identidade. Sempre noscaracterizamos como um bloco de negros com mestiços e brancos, queatua como um braço forte do movimento negro brasileiro, para fazerduras denúncias sociais, ter uma ligação na luta contra a violênciapolicial e ser uma expressão da população negra pobre e sem voz.Esse é o nosso perfil.
(...) No show business, negritude significa possibilidade de ganhardinheiro e se dar bem. Essa palavra, no entanto, deveria significaroutra coisa: consciência negra, atitude, gesto político, diferencial decomportamento, visão estratégica para a população negra...” (Correioda Bahia, 27/04/99).
A citação acima é composta de trechos selecionados de uma entrevista de João
Jorge quando ele voltava a ocupar o cargo depois de alguns anos afastado da presidência6.
Sua ‘missão’ seria reerguer o bloco, que na década de 90 foi “abalado por uma crise
organizacional que esvaziou suas pretensões socioculturais”, conforme consta da
apresentação da entrevista. Percebe-se nesses trechos que João Jorge evidencia uma
oposição entre o Olodum enquanto associação, organização e o Olodum como uma
empresa; entre o Olodum constituído como um movimento social e o Olodum grupo
musical.
fala, como o supracitado, constituem respostas às colocações anteriores de Dantas (Vários 1999:51-6). Vertambém Dantas 1994; 1996 e Fischer 1993.6 Note-se que João Jorge Rodrigues nunca se afastou totalmente da direção do Olodum.
355
Em 1997, era discussão recorrente entre os blocos afro de Ilhéus a aprovação ou
não das mudanças ocorridas no Olodum: dever-se-ia buscar os caminhos do Olodum
conhecido pelos trabalhos comunitários ou do Olodum daquele momento, famoso por se
tornar uma empresa geradora de empregos, mas também de renda e de lucro, e por ser uma
banda que excursionava pelo país e pelo mundo, vendia muitos discos e ganhava altos
cachês? A opção pela segunda tendência parecia bem mais atraente aos blocos afro de
Ilhéus, embora qualquer declaração nesse sentido estivesse sempre cercada de muitas
ressalvas. Mas naquele momento, essas escolhas eram apenas especulativas, pois nenhum
dos blocos precisava realmente fazê-las: ser um grupo musical de sucesso ou investir em
trabalhos sociais não eram caminhos excludentes porque havia poucas possibilidades de
realização de um ou de outro.
O momento atual é um pouco diferente, ao menos para o Dilazenze, que se encontra
frente a duas propostas de investimento que correspondem a formas distintas de concepção
de bloco afro: por um lado, há um trabalho social com crianças e adolescentes da
‘comunidade’ através de oficinas de atividades concernentes ao grupo, como dança afro e
percussão; por outro, um grupo de samba/pagode formado por componentes do Dilazenze
que se apresenta em shows. Na disputa por espaço no interior do bloco, cada um desses
projetos foi assumido como prioritário por grupos diferentes, opondo, como no caso do
Olodum, o bloco afro como movimento comunitário e voltado para os ‘trabalhos sociais’
ao bloco afro como grupo formado por artistas que almejam fazer dele um meio de
sobrevivência financeira. Por ser o único bloco afro de Ilhéus a apresentar tais
possibilidades, ainda mais do que nos capítulos anteriores o Dilazenze será o foco das
descrições e análises desta última parte do trabalho.
Apesar da ‘forma associativa’, com raras exceções, os blocos afro possuem ‘donos’.
Em geral, o dono de um bloco é seu fundador (ou um deles) ou alguém que o herdou ou
356
“assumiu”; sua função no interior do bloco comumente é a de presidente, além de ser seu
representante na maioria das situações de encontro dos blocos afro. Alguns ‘donos’
afirmam que seus blocos estão mesmo “registrados” em seus nomes, ou seja, o grupo é de
sua propriedade, como se fosse uma empresa.
A longevidade do bloco afro geralmente depende da capacidade de seu ‘dono’ de
geri-lo com eficácia e de garantir sua base comunitária. É claro que há grupos que já
nascem com alguns elementos, ao menos em tese, favoráveis a uma vida longa, como uma
família extensa ou com uma ligação estreita com um terreiro de candomblé, ou ambos,
como o Ilê Aiyê e o Dilazenze. Porém, estes blocos são exemplares para mostrar que nada
é determinante e o que é apontado como algo que pode ajudar o bloco num momento,
como a família, pode também ser considerado prejudicial ao seu desenvolvimento.
Bloco afro e família
No capítulo anterior, ao definir os blocos afro como ‘territórios negros’, busquei
enfatizar que antes de serem “espaços sociais negros” no sentido proposto por Agier
(1992:71), os grupos afro são espaços sociais7. Em geral precedido por algum outro tipo de
organização, ainda que apenas de um grupo de amigos, o bloco já costuma nascer com um
caráter associativo forte, tanto mais se sua base de sustentação for uma família numerosa e
moradora da mesma região, o que não é raro nas comunidades situadas em periferias. Os
casos do Ilê Aiyê, em Salvador, e do Dilazenze em Ilhéus, são exemplares desse tipo de
situação e se assemelham nas vantagens e nos problemas que a presença intensa da família
pode provocar.
Agier (2000) conta que Mãe Hilda, mãe do presidente do Ilê Aiyê, instalou-se na
rua do Curuzu com seus pais em 1938, no mesmo lugar que se encontra até hoje. Ela teve
cinco filhos, sendo Vovô, presidente do grupo, o mais velho deles e, aparentemente, todos
357
são moradores do local, onde ainda habitam netos, outros familiares e amigos (:113). Na
mesma casa funcionava até recentemente a sede do grupo8 e o terreiro de candomblé Ilê
Axé Jitolu, do qual Mãe Hilda é a mãe-de-santo.
No caso do Dilazenze, não posso datar exatamente quando a antiga chácara onde
hoje estão situados o terreiro Tombency Neto, a sede do grupo e as moradias da mãe-de-
santo, seus irmãos e filhos foi comprado por seus pais, mas é certo dizer que a família o
ocupa desde, pelo menos, finais dos anos 30. Ela teve quatorze filhos, dos quais,
atualmente, doze habitam o mesmo terreno ou suas imediações, que também constituíam a
chácara antes do desmembramento dos terrenos. Além disso, alguns netos já constituíram
família e também moram no local. O mesmo se passa com alguns dos irmãos da
‘matriarca’ do Dilazenze, o que significa dizer que uma grande parte da vizinhança guarda
relações de parentesco entre si.
Essas informações têm o propósito de enfatizar que nos casos do Dilazenze e do Ilê
Aiyê, há, anteriormente à formação do bloco, uma base comunitária que é tanto familiar
quanto dada pelo candomblé. No Dilazenze, qualquer atividade de reunião da família
torna-se uma grande festa. E isso dá ao grupo a garantia de ter sempre um bom público em
suas atividades, especialmente se forem para crianças: filhos, sobrinhos, primos e filhos de
sobrinhos e primos dos diretores do grupo já formam um contingente considerável.
A base familiar do Dilazenze é apontada por muitas pessoas, inclusive por
dirigentes de outros grupos afro de Ilhéus, como a responsável pela longevidade do grupo.
Quando ocorrem conflitos internos, eles são resolvidos com a intervenção materna – ou
divina nos casos mais difíceis9. E, diferentemente do que ocorreria numa outra situação, o
fato de tratar-se de uma família faz com que o rompimento de alguém com o bloco
7 Ver Encontros 4.8 Uma nova sede de amplas dimensões foi inaugurada há poucos meses em frente à antiga.9 Ver Encontros 4 para um exemplo que permite essa afirmação.
358
provoque o afastamento da pessoa, o que costuma ser momentâneo, mas não uma
segmentação que levaria à formação de um novo grupo e, assim, a um rompimento
definitivo.
A análise que Agier faz da importância da família para a longevidade do Ilê Aiyê
cabe perfeitamente para o Dilazenze. O autor diz que:
“O ancoradouro da rede nessa casa (de Vovô) é um dos nós da históriado Ilê Aiyê. A família tende a fechar o grupo num movimentocentrípeto – freando de uma certa maneira a tendência ‘natural’ dasredes a se expandir em estrelas sucessivas – tudo nele dando uma basesólida, estrutural, para durar. Esse dilema entre a rede e a família, aabertura e o fechamento – e, de uma certa maneira, entre a alteridade ea identidade – se reencontrará em toda a vida da futura associação IlêAiyê, provocando comentários críticos, conflitos, rupturas, masassegurando também a perenidade do bloco.” (Agier 2000:67).
Ainda de acordo com Agier, o sentimento de unidade numa associação
carnavalesca depende da eficácia de “grupos rituais” de “criar identidade e ligações sociais
fortes” entre seus membros. Termos como “casa”, “comunidade” e “família” teriam essa
função (2000:87). Para Agier, parte do sucesso do Ilê Aiyê vem de sua capacidade de se
fazer conceber como uma grande família, uma “família simbólica”. A composição dessa
imagem de ‘família’ dar-se-ia em função, entre outras coisas, da “figura ritual e social” de
Mãe Hilda (:105), da numerosa presença feminina que daria ao Ilê uma forte idéia de
tradição e ênfase nos valores morais, ou seja, “uma respeitabilidade moral e um ambiente
familiar” (:103) e de uma relação familiar dos membros entre si – em 1992, 72,8% dos
associados possuíam ao menos um parente no bloco (:105).
Entretanto, Agier também atribui à forte presença familiar a existência de uma
tensão no Ilê Aiyê entre permanecer ligado ao lugar, às relações e aos valores de origem e
tornar-se, de fato, uma “instituição” “econômica (uma empresa no sentido liberal), social
(uma associação direcionada a seu bairro) e política (um componente do movimento negro
brasileiro)” (2000:114). Seu argumento é que o mesmo “espírito de família” que envolve
359
os associados em função do caráter indissociável entre o grupo, o terreiro, as casas em que
vivem o presidente e sua família, também representaria um obstáculo à presença da
entidade “na vida da cidade”, ou seja, como uma instituição atuante em relações que
estariam para além da família e do bairro. Aliás, especialmente no que concerne às relações
políticas do bloco, para Agier a tensão estaria representada na permanência de
“características familiares” tais como “personalização de poder, luta das redes, atração
pelas soluções clientelistas, economia sem transparência”10 que estariam em oposição aos
“princípios universalistas da política”. Tais características ‘explicariam’ “as dificuldades
políticas, assim como estratégicas e organizacionais dos agrupamentos de base associativa,
local ou familiar, em geral.” (2000:115)11.
No Dilazenze, quando se deseja homenagear ou agradar alguém, diz-se que a
pessoa “já faz parte da família Dilazenze”. E se é alguém que passa a colaborar com o
grupo, brinca-se dizendo que a pessoa “é um agregado”, ou seja, alguém que vive no grupo
como se fosse da família. Assim como no Ilê, também no Dilazenze essas declarações
remetem a uma ‘família simbólica’, embora nem tão simbólica assim: neste grupo, a quase
totalidade da diretoria e dos principais membros são da mesma família; nos anos 80, entre
os quinze diretores do Ilê, estavam Vovô, sua mãe (“madrinha do bloco”), sua irmã, seu
irmão, sua esposa e um cunhado (Agier 2000:67) e em 1995, além do próprio Vovô e de
sua esposa, também sua mãe, um irmão e uma irmã ainda faziam parte da diretoria do
bloco e duas irmãs trabalhavam como professoras na Escola Mãe Hilda (Agier
2000:100;113).
10 No original “l’économie souterraine”.11 A atribuição de Agier de “características familiares” a relações políticas que, segundo sua argumentação,claramente deveriam ser diferentes, é uma forma usual de produzir explicações para práticas sociais que nãoseguem os ‘modelos’ esperados. As práticas políticas são especialmente propícias para essa forma deabordagem, na qual se afirma que ‘a política’ deveria funcionar conforme regras e conceitos que compõem ‘osistema’ e, diante de uma outra forma de ‘funcionamento’, esta é explicada por características muitoparticulares dos agentes sociais (ver Goldman e Sant’Anna 1999 para uma crítica a este tipo de abordagemnos estudos sobre o voto no Brasil).
360
Costuma-se dizer que o sucesso do Dilazenze deve-se, em parte, à sua “forte base
familiar”. Por outro lado, a organização do grupo sobre uma estrutura totalmente familiar
pode ser apontada como um problema. Uma situação paradigmática ocorreu durante um
curso de formação de lideranças promovido por uma empresa privada em parceria com a
prefeitura de Ilhéus12. Especificamente neste dia, o Grupo Dilazenze estava representado
por três pessoas: o presidente, o vice-presidente – seu irmão – e o artista plástico que
costuma colaborar com o grupo13. Uma das dinâmicas consistia em que representantes das
entidades apresentassem o que entendiam como os pontos forte e fraco de sua organização.
O artista plástico do Dilazenze repetiu o que é uma espécie de senso comum sobre o grupo
a respeito dos benefícios de sua “forte base familiar”. A apresentação do que seria o ponto
fraco seria após um intervalo, durante o qual o presidente do grupo fez uma pequena
repreensão ao artista plástico dizendo-lhe que o enaltecimento da família poderia dar a
entender que o Dilazenze é um grupo fechado, que dificulta a inserção de não membros da
família, ao que este último retrucou dizendo ser ele mesmo um exemplo do contrário.
Entretanto, ambos, em diferentes situações, reconheceram o quanto é difícil para alguém
não pertencente à família interferir na direção do grupo. O próprio artista plástico só
conseguiu fazê-lo por algum tempo por ter se tornado o principal interlocutor do presidente
do Dilazenze. Acrescente-se ainda que nos momentos de conflito interno, é relativamente
comum as pessoas que não fazem parte da família serem acusadas de provocar intrigas
entre os familiares, o que, em geral, acaba por afastá-las do grupo.
12 Trata-se do “Projeto Maxitel Comunidade Líder”, um curso promovido por essa empresa telefônica emconvênio com prefeituras e organizado por uma empresa de consultoria em administração. A Secretaria deAção Social em conjunto com a empresa de consultoria selecionou dez entidades do município para o curso,desenvolvido em módulos ao longo do segundo semestre de 2001, sendo o Dilazenze o único grupo afro, naverdade, o único grupo ‘cultural’, embora ele tenha sido escolhido claramente em função do Batukerê. Asdemais entidades eram filantrópicas ou associativas, como a de diabéticos ou das associações de moradoresde Ilhéus.13 Tratava-se do primeiro dia do curso. Tendo chegado em Ilhéus naquela semana para o último período detrabalho de campo, fui convidada pelos participantes do Dilazenze a ocupar a quarta vaga a que eles tinham
361
No retorno do intervalo do curso, foi solicitado que as entidades falassem sobre seu
ponto fraco. O vice-presidente do Dilazenze declarou que também era a família,
argumentando que, no caso do Projeto Batukerê, muitos pais das crianças são irmãos ou
primos dos dirigentes do grupo e não dão apoio ao projeto: “a própria família não apóia
como deveria”. Mas esta não foi a única ‘queixa’ em relação à ‘família’ colocada pelo
vice-presidente. Por ocasião de uma reunião da diretoria do Dilazenze, ele também disse
que o fato de serem todos da mesma família “atrapalha[va]” muito o grupo, pois “ninguém
se sente na obrigação de ser formal, profissional... Fica um ti-ti-ti e ninguém conversa
direito”, disse ele numa crítica direta ao presidente.
Em suma, dependendo do ponto de vista, a família pode mesmo ser o ‘ponto forte’
– “base”, público nos eventos, obstáculo para a segmentação – ou o ‘ponto fraco’ do
Dilazenze – dificuldade de integração de pessoas de fora, informalidade excessiva, intrigas
familiares, indissociação entre os espaços do grupo e da família.
Além da “base familiar” do Dilazenze, também o Terreiro Tombency Neto costuma
ser apontado como um elemento importante para perenidade do grupo e de sua forte
relação com a comunidade. A representação do terreiro como local de abrigo, de caridade e
de família não é exclusividade do candomblé; ela é própria da maior parte dos templos
religiosos. Mas a figura da mãe-de-santo extrapola o domínio religioso. Assim, tanto o Ilê
Aiyê quanto o Dilazenze, como outros diversos grupos afro, foram beneficiados pela
aglomeração de pessoas e pelas relações estabelecidas a partir do candomblé. As idéias de
família e de solidariedade mútua necessariamente permeiam a organização dos terreiros. E,
dada a indivisibilidade dos espaços entre eles e os blocos citados, além das presenças
muito ativas das mães-de-santo na formação desses, é presumível supor que ambos já
tenham nascido com redes suficientemente numerosas capazes de garantir suas existências
direito: seria uma forma de observar o curso – vontade que eu manifestara – e de me capacitar para auxiliá-
362
e o público de qualquer atividade. Referindo-se ao Ilê Aiyê, Moura chama a atenção para a
relação com a estrutura organizacional do candomblé que faz com que algumas funções
sejam abarcadas pelo bloco, como “distribuir comida a crianças mais pobres, manter uma
pequena escola com subsídios governamentais ou não-governamentais e, sobretudo,
garantir uma referência forte de identificação para seus associados históricos.” (Moura e
Agier 2000:371).
Bloco afro e trabalhos sociais
Retomando uma das citações do presidente do Olodum, a afirmação de que “a base
do Olodum é a cultura, a educação, a cidadania e uma música originária de tudo isso”
(Correio da Bahia 27/04/99), dá a entender que ‘cultura’, ‘educação’ e ‘cidadania’ seriam
uma forma de ‘resultado’ da música, algo gerado por ela. As cobranças feitas aos blocos
afro de Ilhéus por parte de representantes de organizações não-governamentais, do
governo, de partidos de esquerda e de movimentos negros chamados de políticos têm essa
concepção como premissa, como se a proposta original dos diretores do Olodum fosse a
realização de trabalhos com a comunidade, sendo o bloco afro a forma de fazer a
intervenção. Tratando-se do bloco afro mais famoso e importante do país, o Olodum torna-
se, então, o modelo do que é um bloco afro e de como ele deve agir.
Antes do Dilazenze implantar o Batukerê, o Olodum era a principal referência do
que um bloco afro deveria ser em função do trabalho social realizado pela entidade com
crianças e adolescentes da comunidade do Maciel/Pelourinho em Salvador. Pessoas não
pertencentes aos blocos afro de Ilhéus costumavam cobrar destes que tivessem o mesmo
trabalho feito pelo Olodum, sem sequer levar em consideração as diferenças de estrutura
entre os grupos de Ilhéus e o mais famoso bloco afro do Brasil. A fim de refutar a idéia de
que esse trabalho seria inerente à definição de bloco afro, o que é recorrentemente
los na redação do projeto final de captação de recursos para a entidade previsto pelo curso.
363
argumentado nas críticas aos grupos ilheenses, o presidente do Dilazenze lembra e enfatiza
que os trabalhos sociais do Olodum começaram por uma “necessidade” do bloco de
garantir a segurança dos freqüentadores dos ensaios, ameaçada pela violência local.
O primeiro trabalho social do Olodum foi a Banda Mirim que, de acordo com um
depoimento reproduzido por Nunes (1997:93), teria sido uma iniciativa de Neguinho do
Samba, mestre de bateria do bloco e ‘inventor’ do samba-reggae14. A Banda Mirim passou
a fazer parte do projeto “Rufar dos Tambores”, o primeiro do grupo, criado em 1984 pouco
depois do Bloco Olodum passar a ser chamado de Grupo Cultural Olodum. Em 1991 foi
criada a Escola Criativa do Olodum como um desenvolvimento do projeto anterior, que em
1994 chegou a implantar o ensino formal de 1a a 4a séries (:53). Esta foi uma experiência
de curta duração, pois a partir de 1997, “em virtude das muitas dificuldades”, a Escola
voltou a oferecer somente cursos informais, como teoria musical, dicção de voz, percussão,
dança, teatro de bonecos, mas também inglês, fotografia e informática (:130).
Entre dirigentes dos blocos afro de Ilhéus, também costuma-se dizer que os
primeiros convênios do Olodum teriam beneficiado bastante o grupo e garantido parte de
sua infra-estrutura de bloco e banda através, por exemplo, do uso de instrumentos
adquiridos pela Banda Mirim. Nesse caso, é notória a intenção de atribuir um interesse
outro além da preocupação social às ações do Olodum. Já nos anos 90, o que se vê é que o
sucesso do ‘Olodum empresa’ inverteu a situação e os projetos sociais é que passaram a
depender dos recursos gerados pela banda e foram, assim, colocados em segundo plano15.
14 Ver Encontros 1.15 Em sua dissertação de mestrado sobre o grupo, Nunes mostra que os problemas financeiros gerados pelaEscola Criativa trouxeram à tona a seguinte polêmica: “as ‘empresas comerciais’ (Fábrica, Boutique) devemsustentar a ‘empresa social/cultural’? (Escola)” (1997:130). Importa ressaltar que sua pesquisa foi realizadanum bom momento do Olodum como empresa e como grupo musical: justamente em 1996, quando MichaelJackson, um dos artistas mais famosos do mundo, gravou parte de um clipe com o Olodum no Pelourinho soba direção de Spike Lee. A autora conta que depois do clipe o Olodum foi convidado a participar deprogramas na TV e todo o seu estoque de mercadorias acabou, sendo as camisetas utilizadas pelo ‘astro pop’durante a gravação as mais procuradas. O próprio Spike Lee, diretor de cinema norte-americano engajado naluta anti-racista e dono de uma loja ‘étnica’, teria encomendado cem camisetas (:115).
364
Isso acabou gerando uma crise no grupo. Em 1996, Neguinho do Samba afastou-se do
Olodum alegando a falta de interesse deste nos projetos sociais: “na realidade, todos os
blocos afro mudaram. Deixaram de lado o social e partiram para o comercial.” (A Tarde
10/08/96 apud Nunes 1997:128). Em 1999, quando João Jorge voltou a ocupar o cargo de
presidente do grupo, sua principal tarefa era reativar os trabalhos socioculturais do
Olodum.
Apesar das críticas ao ‘Olodum empresa’ e da retomada de um perfil mais social do
grupo em fins dos anos 90, tornou-se importante para os dirigentes dos blocos afro de
Ilhéus ressaltar o que seria um “outro lado” dos projetos sociais do Olodum – que eles
traziam benefícios diretos para o grupo – como parte do argumento de que os blocos afro
não se definem pela realização de trabalhos sociais. Invariavelmente, dirigentes dos grupos
afro de Ilhéus manifestam a vontade de realizá-los – mesmo aqueles que mal conseguem
organizar-se para desfilar no carnaval dizem que gostariam de fazer algum trabalho com
sua comunidade –, mas concordar que um bloco afro tem essa obrigação seria admitir
fracasso ou incompetência na própria constituição como bloco afro no caso daqueles que
não promovem tais trabalhos.
O Dilazenze é o único bloco afro de Ilhéus reconhecido por pessoas ligadas a
partidos de esquerda, ao movimento negro político, a organizações não-governamentais e
também ao governo municipal como promotor de “trabalhos sociais”. Mas tal
reconhecimento só foi adquirido depois que o grupo conseguiu implementar e manter o
Projeto Batukerê. A partir dessa iniciativa, o bloco tornou-se uma referência para essas
mesmas pessoas do que se espera de um bloco afro. A frase “todos os blocos afro deveriam
ter um projeto como o do Dilazenze” e outras de sentido semelhante passaram a estar
presentes em todos os discursos dirigidos a blocos afro e a respeito deles. O padre
responsável pela pastoral afro, por exemplo, disse que em função do Batukerê, o Dilazenze
365
estaria “fazendo, pensando como o Ilê Aiyê e o Olodum”16, o que para ele significa “estar
preocupado com a questão de ser negro e defender sua identidade”. Em Ilhéus, assim como
em outras cidades brasileiras, a existência de uma elite branca bem marcada em relação a
uma população majoritariamente negra faz com que a pobreza seja ainda mais negra, ou
seja, ‘ser negro’ é ainda mais identificado com ‘ser pobre’. Assim, atualmente, nas falas de
representantes do movimento negro político, do governo ou de outras entidades, é implícita
a idéia de que quando o movimento negro se organiza, exige-se que seja para tratar da
pobreza, da miséria social e que ‘defender a identidade negra’ é dar assistência à população
negra. Ver-se-á adiante neste trabalho a defesa de que este é um discurso relativamente
recente e fruto de uma nova visão de mundo regida pela idéia de inclusão.
Apesar da posição de destaque assumida pelo Dilazenze, seu presidente continua a
insistir que “os blocos afro não têm a obrigação de realizar trabalhos sociais. Como o
Olodum começou a fazer isso, passaram a achar que todo bloco afro tem de fazer trabalho
comunitário. Bloco afro é entidade carnavalesca.” E não há nenhuma contradição entre a
opinião do presidente do Dilazenze, um dos mais enfáticos defensores de que os blocos
afro “não têm a obrigação de realizar trabalhos sociais” e a posição assumida por este
grupo em função do que o Projeto Batukerê passou a representar. Sua ênfase na negação da
obrigatoriedade do bloco afro realizar trabalhos sociais reflete sua preocupação de garantir
a autonomia dos blocos afro, pois defini-los a partir de sua relação com a comunidade, de
seus trabalhos sociais é uma forma de lhes impor o que ser e o que fazer: “eu defendo que
[o trabalho comunitário] seja uma coisa do próprio processo de organização, de
crescimento [do bloco] junto à comunidade (...).” Contudo, se esta colocação for associada
às mudanças ocorridas no Dilazenze após a implementação do Projeto Batukerê e a uma
visão de que mesmo as apresentações da banda e do grupo de dança, assim como as
16 O Olodum mantém a Escola Criativa, fundada em 1991, e o Ilê Aiyê trabalha diversas atividades
366
atividades de preparação para o carnaval, podem ser definidas como “trabalhos sociais”, tal
como argumenta o presidente do Dilazenze, conclui-se que um grupo afro não pode ser
definido a partir deles, mas ele se torna um grupo melhor se puder realizá-los.
Os “trabalhos sociais” do Dilazenze
As aspas duplas no título desta subseção indicam que a expressão ‘trabalho social’
é realmente usada pelos membros do Dilazenze. Os significados que lhe são atribuídos
podem ser bem variados e incluem desde a própria existência do bloco afro até o Projeto
Batukerê, este sim amplamente reconhecido como tal. De maneira geral, costuma-se
empregar a expressão para designar quaisquer atividades realizadas pelo grupo que visem
“elevar o sentimento de auto-estima’ e a melhoria da qualidade de vida da comunidade
e/ou dos membros do bloco” (Silva 1998:138)17.
Pela definição acima, sob a rubrica de ‘trabalho social’ encontra-se toda atividade
realizada pelos blocos afro. Sua própria existência já seria um ‘trabalho social’ em função
do bloco conseguir aglomerar um certo número de pessoas em torno de ações – tais como
tocar, dançar, cantar etc. – que valorizam uma ‘cultura’ concebida como diferente da
dominante e, portanto, específica da maioria da população que compõe aquela
comunidade. O principal benefício do bloco afro seria, então, o de promover a elevação do
sentimento de auto-estima das pessoas com as quais atua.
Em 1997, quando estive em Ilhéus pela primeira vez para a pesquisa de campo que
resultaria em minha dissertação de mestrado, a relação entre bloco afro e ‘promoção de
educativas no Projeto de Extensão Pedagógica, iniciado em meados dos anos 90 (Silva 1997).17 A título de ilustração de que as categorias sociais podem assumir significados bastante distintos, aexpressão ‘trabalhos sociais’ já fizera parte de uma pesquisa anterior realizada por mim e por MarcioGoldman sobre a campanha eleitoral de um candidato a vereador num município do interior do Estado do Riode Janeiro. Nesse contexto, ‘trabalho social’ era definido pelo candidato e por seus assessores como“serviços” que o candidato prestava à comunidade: “se uma pessoa morre, ele [o candidato] consegue a urna;se alguém está com fome, ele consegue uma cesta básica... Isso é trabalho social.” A “doação de remédios, otransporte de doentes, a instalação de água corrente” também eram ‘trabalhos sociais’ (Goldman e Silva1999:153).
367
auto-estima’ era o argumento central evocado pelo presidente do Dilazenze para afirmar
que todo bloco afro realiza “trabalhos sociais” em suas atividades de preparação para o
carnaval, mesmo que estes se resumam aos ensaios da bateria e do grupo de dança, além do
próprio desfile. Desse ponto de vista, até as apresentações da banda de show do bloco afro
são uma forma de fazer ‘trabalho social’, desde que sua música seja ‘negra’, que valorize a
‘cultura’ e a ‘população’ negras.
Porém, há atividades que são mais diretas em seu objetivo de promover a auto-
estima da população negra e que nem todos os blocos afro praticam. A ‘Noite da Beleza
Negra’, por exemplo, é um momento bastante especial nesse sentido por valorizar os
aspectos fenotípicos, os ‘alvos’ mais explorados pelo racismo. O Festival de Música que
antecede o carnaval também é especial pela valorização de ritmos e temas ligados à
população negra e/ou à comunidade do bloco. Mas esses eventos são também um ‘trabalho
social’ por proporcionarem lazer para a vizinhança do bloco. O mesmo pode ser dito em
relação a apresentações de bandas afro, festivais de sorvete ou de cachorro-quente,
comemorações do Dia das Crianças e os próprios ensaios do grupo.
Também constitui um ‘trabalho social’ a oferta de atividades de lazer para a
comunidade em função da ausência de oportunidades e de locais próprios para isso nos
bairros onde estão situados os blocos. Mas não apenas por isso. Como visto
anteriormente18, o acesso ao lazer é restrito àqueles que possuem recursos e que
freqüentam as áreas centrais da cidade, o que constitui uma forma de segregação – espacial
e visivelmente racial – e contribui para diminuir a auto-estima da população que habita os
bairros periféricos. Assim, quando o lazer proporcionado pelo bloco afro é justificado
também pela elevação da auto-estima de sua comunidade, a atividade ganha a conotação de
produtora do desejo de diferir a partir da perspectiva de que aí existe uma forma de
18 Ver Encontros 2.
368
segregação e, como tal, deve ser transformada numa proposta de singularização, do bloco
afro espacialmente proposto como um território existencial no sentido definido no capítulo
anterior. Nesse caso, mais do que oferecendo opções de lazer a quem não as tem, o
‘trabalho social’ do bloco afro estaria na valorização da comunidade, na afirmação de sua
importância e de sua singularidade frente a uma cidade que a discrimina e segrega.
Seguindo esse mesmo raciocínio, o sucesso do bloco nas atividades promovidas e o
afluxo de pessoas de outros bairros, assim como a divulgação do nome do bloco na
imprensa, também são concebidos como um “benefício social” do grupo à sua
comunidade, como disse um dirigente de bloco afro de Ilhéus, pois torna-a conhecida e faz
com que as pessoas “tenham orgulho do lugar onde se vive”, aumentando-lhes, assim, o
‘sentimento de auto-estima’ (Silva 1998:122).
Promover o sentimento de auto-estima é um objetivo presente na maior parte das
atividades dos blocos afro, mas há algumas em que a idéia de ‘trabalho social’ como uma
contribuição, uma ajuda do grupo à sua comunidade é ainda mais explícita. No Dilazenze,
antes da implantação do Batukerê, a formação e a manutenção das bandas mirim e juvenil
ensaiando durante todo o ano era uma forma de “ocupar” as crianças e os adolescentes, que
“se não estivessem ensaiando, estariam na rua roubando, usando drogas ou se
prostituindo”, de acordo com o presidente do Dilazenze (Silva 1998:120)19. O mesmo
argumento vale para as oficinas de dança afro e de percussão por manterem os jovens
próximos do bloco e “afastados da marginalidade”.
A carência dos bairros onde os blocos estão localizados também justifica várias das
atividades relacionadas acima, pois um grupo afro “deve ajudar sua comunidade”. Além de
“dar ocupação” a crianças e adolescentes, aumentar a auto-estima da população e oferecer
momentos de lazer, há outras formas do bloco ‘ajudar’. Uma delas é atuando “em nome da
369
comunidade”, ou seja, reivindicando melhorias e serviços para a região ou sendo um ponto
de apoio para intervenções governamentais no bairro. Quanto ao primeiro aspecto, trata-se
de algo concebido mais na chave da possibilidade do que efetivamente praticado em
Ilhéus. O único exemplo concreto que costuma ser citado em função desse tipo de atuação
entre os blocos afro da cidade ocorreu logo no início dos Gangas, grupo do Alto do Basílio,
em finais da década de 80, quando o bloco participou de uma manifestação de
reivindicação por água para o bairro e sofreu represálias por parte do governo municipal na
ocasião, deixando de receber recursos para desfilar no carnaval por alguns anos.
Por outro lado, a atuação dos blocos afro como apoio para intervenções
governamentais no bairro é bem mais freqüente (embora estas não o sejam tanto),
sobretudo no caso do Dilazenze em função deste possuir uma base comunitária e uma sede,
a qual funciona como espaço para reuniões, para a execução de programas educativos com
crianças etc. Não é raro a sede do grupo ser solicitada para distribuição de cestas básicas,
para cadastramento de moradores para algum programa social ou, por exemplo, para a
realização de programas da Secretaria Municipal de Saúde.
Além das formas de atuação citadas acima, o Dilazenze ainda promove – ou
concebe como uma proposta de atividade viável, embora poucas vezes realizada – eventos
que têm a ‘caridade’ como um motivador importante. Exemplos desse tipo de atividade são
as gincanas – “sempre beneficentes” –, cujas tarefas envolvem arrecadação de alimentos e
de agasalhos para alguma instituição ou campanha. Ajudar a comunidade em função de sua
carência é uma das justificativas mais comuns da maioria dos blocos afro para esse tipo de
trabalho social. Contudo, no caso do Dilazenze, a “vontade de ajudar as pessoas” é uma
“herança familiar”, um “ensinamento” deixado por D. Roxa, mãe e antecessora da atual
mãe-de-santo do Terreiro Tombency, tanto por sua “bondade”, por sua “solidariedade”,
19 Outros blocos afro de Ilhéus têm ou tiveram em algum momento bandas mirim e juvenil com base no
370
quanto pelo fato de ser um terreiro de candomblé. Segundo relata o presidente do
Dilazenze, seu neto, D. Roxa fazia distribuição de cestas básicas para famílias carentes do
Alto dos Carilos, dava “esmolas às segundas-feiras” e “ajudava qualquer um que chegasse
no terreiro”. A caridade era uma qualidade pessoal de D. Roxa, mas também algo que é
dito existir – ou “deveria existir” – naturalmente num terreiro de candomblé.
À
Retomando a discussão com a qual iniciei o capítulo anterior, os blocos afro
costumam ser definidos como entidades carnavalescas de valorização, preservação e
divulgação de ‘cultura negra’. Seu surgimento foi gerado a partir de agenciamentos
produzidos em diferentes encontros, que por sua vez também geraram outras formas de
movimentos negros. O que havia de comum entre esses grupos era o desejo de diferir
através de um modo de existência negro. ‘Assumir a negritude’ era, então, singularizar-se.
E, tal como foi defendido antes neste trabalho, valorizar, preservar e divulgar ‘cultura
negra’ valem pela singularização que produzem, sem que seja necessário haver uma outra
finalidade.
A experiência de alguns anos de pesquisa com dirigentes de blocos afro de Ilhéus
mostrou que, se por um lado, defende-se que o bloco afro seja uma entidade carnavalesca
no sentido proposto no parágrafo acima, por outro lado é cada vez mais notória a
necessidade de atribuir outras funções ao bloco. ‘Realizar atividades recreativas e
beneficentes’, ‘ajudar as pessoas’ e ‘dar ocupação a crianças e adolescentes’ são práticas
antigas que “os blocos afro sempre fizeram”, como diz o presidente do Dilazenze. Práticas
e discursos permanecem aparentemente semelhantes ‘ao que sempre foi feito’, mas é
possível perceber novas formas de subjetivação dando-lhes novos significados.
mesmo propósito de ‘ocupar as crianças e os adolescentes’, como o Rastafiry e o Guerreiros de Zulu.
371
Documentos do Dilazenze e conversas com seus membros mostram que desde que
foi fundado, o grupo vem realizando ensaios, apresentações, gincanas, comemorações de
Dia das Crianças, oficinas de percussão e de dança afro etc. Cada uma dessas atividades
possuiria um objetivo em si mesma: o ensaio prepararia o bloco para o carnaval e
promoveria a arrecadação de recursos, assim como as apresentações; as gincanas e as
comemorações poderiam ser atividades recreativas e beneficentes, afora o fato de que
qualquer atividade no Dilazenze, especialmente se for dirigida a crianças, é uma grande
festa de família e vale por isso; as oficinas também preparariam as pessoas para o carnaval
e para as apresentações do bloco, além de aglutinar outros membros e/ou comprometer
melhor os já simpatizantes.
Em 1997, uma determinada conjugação de acontecimentos provocou uma mudança
na concepção dessas atividades. Como foi ressaltado antes, as opções do Olodum e suas
conseqüências para a definição de bloco afro eram intensamente discutidas pelos grupos de
Ilhéus; a elaboração de um novo estatuto do Conselho de Entidades Afro-Culturais
(CEAC), que estava sendo ‘re-fundado’, também obrigava a refletir sobre o que era
pertinente a um grupo afro ou não; e a aproximação do Movimento Negro Unificado
através do gerente de ação cultural da prefeitura que coordenou todo o processo de
rearticulação do CEAC e que tentava direcionar a discussão para uma concepção de bloco
afro política e socialmente engajada, foram acontecimentos que afetaram as percepções
que se tinha do que deveria ser um bloco afro.
Não se trata de afirmar que a percepção de que as atividades do bloco têm por
objetivo elevar a auto-estima da população tenha surgido naquele momento. Aprender a
gostar de si e a se valorizar, rejeitando a imputação de inferioridade – inerente à prática do
racismo –, são pressupostos básicos para ‘assumir a negritude’, lema dos movimentos
negros, pelo menos, desde os anos 70. A mudança estaria no desejo de relacionar as
372
atividades do bloco afro, e sua própria existência, com idéias como “trabalho social”,
“trabalho comunitário”, “contribuição com a comunidade”, “projeto político”, cujos
significados são abarcados por uma concepção ampla de cidadania que, especialmente a
partir dos anos 90, se impôs como uma forma de estar no mundo que todos deveriam
‘praticar’.
Como procurei mostrar em trabalho anterior (Silva 1998), ainda que naquele
momento os grupos afro de Ilhéus não utilizassem o termo ‘cidadania’ para definir o
objetivo de suas atividades, estas seriam práticas que, embora sob outros nomes, poderiam
ser também assim denominadas. O conceito de cidadania circula em diferentes espaços e
interage com os atores sociais, fazendo com que estes se apropriem dele – não exatamente
da categoria – e dêem significado a práticas distintas que, no caso do movimento afro-
cultural de Ilhéus, podem, simultaneamente, ser abarcadas por outras categorias, como as
que passaram a denominar as atividades dos grupos afro justificadas pelo objetivo de
elevar a auto-estima da comunidade: “trabalho social”, “trabalho comunitário”,
“militância” etc. Reflexões posteriores àquele trabalho levam agora a concluir que é certo
que os blocos afro de Ilhéus, assim como os representantes do movimento negro chamado
político, como o então gerente de ação cultural da prefeitura e dirigente do MNU local,
estavam sendo afetados pelo que pode ser chamado de processo de cidadanização.
Simplificada e resumidamente, pode-se afirmar que a categoria cidadania pode
abrigar muitos significados conforme o contexto histórico20, porém, de qualquer forma,
esses são sempre sustentados pela noção de igualdade: ser cidadão é fazer parte de um
mundo de iguais, ainda que definido de diferentes formas. Os direitos básicos, que
20 A noção de cidadania é um objeto historicamente construído e passível de ser observado em uso naspráticas sociais e, por isso mesmo, perdeu e agregou significados ao longo do tempo. A obra de T. H.Marshall (1967) é a principal referência quando se trata de reconstituir a forma como se deu a construção doconceito hegemônico de cidadania, definido pela posse de ‘direitos básicos’ classificados em civis, políticos esociais.
373
constituem a noção, são o que garante a participação dos indivíduos que possuem o status
de cidadão nos sistemas econômico e político vigentes, mas também determinam como se
dará tal participação. Por isso, a cidadania é o maior “mecanismo regulador” do Estado
(Santos 1997:240). Primeiramente passando a abranger grupos sociais que estavam
excluídos das relações de produção, cada vez mais a cidadania foi invadindo as relações
cotidianas e o status de cidadão deixou de ser atribuído apenas àqueles que se enquadram
em determinadas características – como possuir documentos, por exemplo – e passou a
designar também modelos de comportamento: ‘respeitar o trânsito’, ‘não jogar lixo no
chão’, ‘fazer trabalho voluntário’, ‘doar alimentos para campanhas beneficentes’, ‘fazer
sexo seguro’... tudo isso faz alguém ser cidadão. É esse processo que torna todas as ações
passíveis de serem observadas pelo prisma do ‘fazer a sua parte’ para o bem coletivo que
está sendo chamado de cidadanização21.
Afirmar, então, que grupos afro de Ilhéus, assim como grupos ligados ao
movimento negro político, foram afetados pelo processo de cidadanização significa dizer
que eles passaram a ter a preocupação de que suas atividades pudessem ser observadas
desse ponto de vista. Ainda que sob outras designações, isto é, sem utilizar a palavra
cidadania, as atividades dos grupos deveriam resultar em práticas de cidadania. Assim
sendo, ‘elevar a auto-estima da população negra’ é um ‘trabalho social’ do bloco afro
porque é uma forma de ‘contribuir com a comunidade’, de ‘fazer algo’ por ela22.
No decorrer desse processo, intensificaram-se os agenciamentos dos grupos afro,
especialmente do Dilazenze, com o que vou chamar, por ora, de ‘forma-ong’. Ainda em
1997, houve uma tentativa de formar uma organização não-governamental envolvendo os
21 A noção de cidadania pode ser pensada, assim, como um dos principais dispositivos da “sociedade decontrole”, termo usado por Deleuze para designar o mundo em que vivemos atualmente (Deleuze 1992).22 É preciso frisar que não se trata de ‘cálculo’ ou de ‘consciência’ ou ‘inconsciência’ do grupo afro em suapreocupação com os resultados de suas ações. ‘Ser afetado’ diz respeito a entrar em agenciamentos queproduzem novas formas de viver o mundo, involuntariamente.
374
quatro blocos afro sediados no bairro da Conquista. Tendo tomado conhecimento de que o
Dilazenze e o Rastafiry possuíam projetos para oferecer oficinas de dança afro, percussão,
artesanato e outras atividades para crianças e adolescentes, o idealizador da ong – alguém
não pertencente a nenhum dos blocos – propôs a criação da entidade unindo esses grupos e
ainda o Raízes Negras e o D’Logun. A ong seria formada por representantes dos quatro
grupos e por ele como assessor. Segundo sua proposta, ao invés de buscar recursos para
implementar os projetos de cada um dos blocos, a ong deveria propor um grande projeto
como uma creche ou um pré-escolar, o qual facilmente obteria recursos das agências
financiadoras em função da necessidade desse tipo de serviço na comunidade e da
realidade carente do bairro. O projeto não foi à frente por diversos motivos23, mas vale
ressaltar que o desinteresse dos blocos pela entidade, entre outras coisas, devia-se ao fato
de que as atividades propostas não possuíam nenhuma afinidade com os objetivos dos
grupos. Além do mais, a idéia da formação de uma outra entidade não parecia fazer muito
sentido senão como emprego para o assessor, que esperava ser remunerado por isso. Os
dirigentes dos grupos almejavam obter recursos para suas entidades individualmente, a fim
de desenvolver seus projetos junto às suas comunidades.
Ao longo dos dois anos seguintes, eu e Marcio Goldman fizemos algumas consultas
junto a instituições nacionais e internacionais para saber como seria possível obter
financiamentos para o Dilazenze. Essa experiência revelou que para entrar no mundo das
ongs é preciso uma competência bastante específica, a qual não possuíamos (e não
possuímos)24.
23 Uma descrição detalhada do episódio encontra-se em Silva 1998:127-131.24 Sem querer aprofundar questão a respeito das relações travadas entre pesquisadores e pesquisados, nossaparticipação foi uma solicitação do grupo a partir da interação durante e após nossos diferentes momentos depesquisa de campo e deve ser lida na mesma chave exposta no capítulo anterior a respeito da dificuldade dosgrupos afro de acesso aos meios, no caso, contatos que nos forneceram nomes de instituições, computadores,boa redação em português e em inglês.
375
As exposições acima a respeito da proposta de fundação da ong e da busca por
agências financiadoras tiveram o propósito de mostrar que aos poucos uma proposta
alternativa de atuação dos blocos afro foi sendo percebida cada vez mais próxima. Não se
deve esquecer ainda as campanhas televisivas que apelavam para a cidadania ou para a
solidariedade, muitas vezes encabeçadas por grandes organizações não-governamentais, e
a chegada e/ou divulgação do trabalho de entidades desse tipo em Ilhéus. Se o Dilazenze já
tinha a preocupação em ‘contribuir com a comunidade’, a cada vez mais intensa
aproximação com a ‘forma-ong’ vai indicar o que e como fazer. Desses novos
agenciamentos, vai surgir o Projeto Batukerê, assunto da próxima seção.
O Projeto Batukerê
O Projeto Batukerê começou a tomar corpo em novembro de 1999, ainda sem nome
e sem muita clareza do que se pretendia fazer; não se sabia nem mesmo se seria um projeto
com crianças. Pensava-se na busca de recursos para desenvolver alguma atividade que já
fizesse parte do Dilazenze e que atendesse a alguma de suas necessidades. Pensava-se
também que o que quer que fosse desenvolvido, isso deveria gerar renda tanto para o
Dilazenze quanto para as pessoas que se envolvessem no projeto. Os critérios de
necessidade do grupo e de geração de renda estavam sempre juntos, pois imaginava-se que
se uma tal coisa fosse necessidade do Dilazenze, certamente seria de outros blocos e,
assim, o grupo teria a quem vender – um ‘mercado’. A partir desse raciocínio, foram
inicialmente imaginadas uma escola de música, incluindo uma fábrica de instrumentos
musicais que poderiam vir a ser adquiridos pelos demais blocos e por outros grupos, e uma
academia de dança, não somente dança afro, mas especializada nela, que cobraria
mensalidades módicas de quem pertencesse a grupos afro e preços mais altos de pessoas de
classe média e de turistas.
376
A vontade de promover projetos sociais ou profissionalizantes no Dilazenze não
nasceu em 1999. Outros já haviam sido formulados, embora sem sucesso. Sua realização
dependia de doações que eram solicitadas ao governo e ao comércio local através de
ofícios, cujo modelo básico era constituído de uma rápida descrição da atividade proposta e
do orçamento, no qual eram incluídos o material necessário a ser utilizado e remuneração
para os instrutores. Na verdade, tratava-se do mesmo modelo usado pelo Dilazenze para
solicitar patrocínio para seus eventos. Projetos e cursos mais longos eram difíceis de pôr
em prática, mas o grupo sempre conseguiu realizar oficinas, em geral de dança afro e de
percussão, além de seminários, ‘mostras culturais’, festas em comemoração ao Dia das
Crianças, gincanas etc. Contudo, transformar essas atividades em ‘projeto social’ deveu-se,
ainda que não exclusivamente, a novos encontros que possibilitaram novas formas de se
pensar sobre isso, os quais serão descritos a seguir.
Em novembro de 1999, o presidente do Dilazenze encontrava-se envolvido, direta
ou indiretamente, em três projetos sociais que passavam pela Secretaria Municipal de
Assistência Social, mas eram financiados pelo governo federal ou pelo Unicef (Fundo das
Nações Unidas para a Infância e Adolescência). Também o artista plástico que colabora
com o grupo, principal interlocutor do presidente do Dilazenze, começava nesse mesmo
momento a participar de um projeto social com crianças de um distrito de Una, município
vizinho a Ilhéus. Financiado pela prefeitura e vinculado à Secretaria Municipal de
Educação, o projeto oferecia oficinas de arte, capoeira, dança... e foi importante como
modelo para ajudar a pensar na estrutura que o Projeto Batukerê viria a ter.
Um dos projetos promovidos pela prefeitura de Ilhéus do qual o presidente do
Dilazenze participou chamava-se ‘Capitães de Areia’, em homenagem ao romance
homônimo de Jorge Amado, e era realizado no bairro Teotônio Vilela, um dos mais pobres
do município e, depois de um crescimento rápido e muito recente, um dos mais populosos
377
também. O gerenciamento do projeto estava a cargo da secretária de Assistência Social,
nesse momento cotada para ocupar a vice-prefeitura na chapa de reeleição do então
prefeito Jabes Ribeiro25. A indicação do presidente do Dilazenze para o cargo de instrutor
de percussão foi feita por Gurita, então candidato a vereador apoiado pela secretária. Esta
concedeu-lhe parte das indicações dos instrutores assim como das crianças que seriam
atendidas pelo projeto. Uma outra parte seria indicada por um outro candidato, também
apoiado por ela.
As pessoas mais próximas do presidente do Dilazenze costumavam dizer que seu
trabalho era “muito bom”, pois tinha um salário de trezentos e cinqüenta reais para
trabalhar por duas horas por dia, quatro dias por semana, fazendo algo que “gostava muito”
e que ainda dava tempo para “cuidar do Dilazenze”. Esse trabalho trouxe-lhe a expectativa
de “entrar no circuito”, pois a secretária garantiu que o indicaria para outros projetos
semelhantes até que tivesse “condições de [lhe] conseguir um emprego fixo”.
O projeto Capitães de Areia deveria atender a crianças que estivessem fora da
escola, inclusive aquelas com dependência química, dando-lhes ocupação durante todo o
dia, alimentação e uma cesta básica para cada família, benefício que prosseguiria no ano
seguinte apenas se a criança fosse matriculada na escola. A idéia era que através do
fornecimento de alimentação, cesta básica e atividades, o projeto conseguiria evitar que as
crianças fossem ou voltassem para as ruas.
O projeto foi inaugurado com grande pompa, presença do prefeito, matérias nos
jornais locais. No entanto, quase um mês após seu início, somente a oficina de percussão,
cujo instrutor era o presidente do Dilazenze, e a de futebol, a cargo do ex-dirigente do
grupo Força Negra que se tornou evangélico, estavam funcionando com regularidade. E,
embora tenham trabalhado por alguns meses, receberam apenas um salário. Além disso, as
25 A secretária de Assistência Social acabou não sendo candidata à vice-prefeitura e candidatou-se ao cargo
378
crianças que freqüentavam o projeto não eram aquelas para as quais ele fora criado.
Tratava-se de filhos e filhas de pessoas ligadas ao coordenador do projeto.
A participação do presidente do Dilazenze no Capitães de Areia foi um grande
estímulo para que ele começasse a pensar que o grupo teria condições de fazer algo
semelhante. O desejo cresceu depois que ele teve acesso ao projeto em sua forma escrita e
avaliou que não seria “tão difícil assim” redigir uma proposta. No mesmo novembro de
1999, o Dilazenze foi procurado para fornecer um instrutor de percussão para um outro
projeto promovido pela prefeitura, mas desta vez em convênio com um orfanato localizado
no bairro da Conquista. O instrutor indicado foi o mestre de bateria do grupo, mas a
participação do Dilazenze deveria ir além: novamente a secretária de Assistência Social
sugeriu que Gurita indicasse as crianças a serem atendidas e o presidente do Dilazenze, que
conhecia melhor o bairro, deveria ajudar na tarefa de escolhê-las.
Nesse mesmo momento, o Dilazenze também foi procurado para participar de um
projeto financiado pelo Unicef em “parceria” com a prefeitura, sendo os blocos afro do
bairro da Conquista e a associação de moradores os demais “parceiros”. O nome do projeto
era “Bem-Viver” e sua “clientela” seriam crianças carentes das comunidades dos blocos
afro da região – Dilazenze, Rastafiry, D’Logun e Raízes Negras –, envolvidos no projeto
através de um morador do bairro e amigo de uma das representantes do Unicef em
Salvador, o mesmo que propôs a fundação da ong que uniria os blocos afro sediados na
Conquista alguns anos antes. Ele afirmava ter poder de articulação e mobilização junto aos
blocos afro, o que lhe possibilitou ser um dos coordenadores do projeto em Ilhéus,
recebendo remuneração pela função26, juntamente com funcionários da Secretaria de
Assistência Social. Além disso, ainda de acordo com os dirigentes dos blocos, consta que
de vereador, mas não foi eleita. Sobre o processo eleitoral de 2000 em Ilhéus, ver Goldman 2001.
379
ele elaborou ou ajudou a redigir o projeto e se colocou como intermediário entre a
secretaria e os blocos afro. Segundo teria dito aos dirigentes dos blocos, o objetivo do
projeto seria “combater as drogas” através da oferta de atividades para as crianças, as
quais, inicialmente, deveriam ser profissionalizantes e de “reforço escolar”, ou seja, o
projeto não previa oficinas de dança ou percussão, capoeira e outras coisas que os blocos
estariam acostumados a fazer, o que logo foi identificado pelos dirigentes dos blocos com a
mesma posição assumida por ele no episódio da fundação da ong. Para um dos dirigentes,
mais uma vez essa postura revelava que ele “não gosta de blocos afro”.
Também não foi bem vista pelos dirigentes dos blocos a recusa do coordenador do
Bem-Viver de repassar o projeto em sua forma original para seu conhecimento sob a
alegação de que eles não “entenderiam a linguagem”. E, embora fosse dito que havia
dinheiro para o projeto, o valor a ser pago aos blocos afro era ínfimo, pois cada um deveria
ceder dois instrutores, mas o pagamento seria feito à entidade: cem reais mensais para cada
uma.
As negociações entre o coordenador do projeto e o Dilazenze continuaram entre o
bimestre final de 1999 e todo o primeiro semestre de 2000, sem nunca chegar a um
consenso. Com o tempo, foi aceito que o Dilazenze trabalhasse com oficinas de percussão
e de dança afro, as mesmas que já faziam parte do Projeto Batukerê, a essa altura já em
andamento. Mas para atender a um número maior de crianças além daquelas já inscritas no
Batukerê, o Dilazenze exigiu que o Bem-Viver fornecesse o material para as aulas e
merenda também para o Batukerê como forma de compensar o trabalho, o que continuou a
ser negado pelo projeto. A situação chegou ao limite quando o coordenador do Bem-Viver
afirmou que não poderia comprar material algum e pediu que a esposa do presidente do
26 Sendo professor da rede municipal, ele pôde ser cedido para essa função, contudo, segundo diziamdirigentes dos blocos afro participantes, seu salário quase triplicou durante o período em que se dedicou aoprojeto.
380
Dilazenze ficasse responsável pela merenda, oferecendo uma cesta básica pelo serviço.
Esta atitude foi a ‘gota d’água’ para o interrompimento das negociações.
Em resumo, apenas o Rastafiry trabalhou para o projeto por pouco tempo com uma
oficina de construção de instrumentos musicais, mas não havia dinheiro para a compra de
material e logo também não havia merenda. De qualquer forma, a aproximação do
Dilazenze do Projeto Bem-Viver, que não possuía concretamente uma base, uma estrutura,
mas conseguira financiamento do Unicef, fez alguns de seus membros imaginarem que um
projeto bem feito teria grandes chances de obter recursos.
Ainda em novembro de 1999, ocorreu a visita a Ilhéus, e mais especificamente ao
Dilazenze, de uma pessoa atuante no movimento negro carioca, próxima do mundo das
ongs e naquele momento no processo de fundação de sua própria entidade voltada para
assuntos relativos à população negra27. Sua visita gerou uma grande expectativa em função
do seu know-how para escrever um projeto e dos seus possíveis contatos junto a agências
financiadoras de grande porte28, com os quais o Dilazenze esperava poder contar. No
entanto, as conversas iniciais logo deixaram expostas as diferenças das concepções ali
presentes: enquanto o presidente do Dilazenze sugeria uma academia de dança e uma
escola de música para gerar “emprego e renda” para quem faz dança e música no bloco, o
representante da ‘forma-ong’ sugeria uma fábrica de reciclagem de plástico, que geraria
“emprego e renda para a comunidade”.
O resultado dessa primeira troca de idéias foi a formulação de um projeto que
recebeu o significativo nome de OGAM – “Organizando Através da Música”, sugerido
pelo visitante carioca, evidentemente, pois era ele o representante da ‘forma-organização
27 Essa primeira visita acabou gerando um vínculo importante junto ao terreiro, pois em menos de um ano elejá era ogã confirmado da casa.28 Entre suas experiências de trabalho estavam o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas –IBASE, uma das organizações não-governamentais mais importantes do país, e o Grupo Cultural AfroReggae, entidade conhecida por sua atuação como grupo musical (Banda Afro Reggae) e por seu trabalhojunto a crianças e adolescentes em grandes favelas da cidade do Rio de Janeiro.
381
não-governamental’. O projeto seria constituído em três fases: uma primeira de
estruturação administrativa do Dilazenze, outra de aulas e seminários com consultores
convidados29 dirigidos a futuros monitores, e uma terceira de multiplicação de
conhecimento, quando os monitores ofereceriam oficinas a jovens da comunidade. Essas
oficinas podem ser classificadas em profissionalizantes e de formação, entendendo-se por
este último termo o que é concebido como importante que membros de uma entidade do
movimento negro saibam. Eram assim classificadas as oficinas de história, da África e do
Brasil, e de religião, com enfoque sobre o candomblé angola. As oficinas de caráter
profissionalizante eram as de música, de dança afro, de arte e de montagem de espetáculo.
Pode-se dizer que as três primeiras eram freqüentemente realizadas no Dilazenze, mas
ganharam o perfil de ‘profissionalizantes’ em função do que foi proposto como ementa
para elas, algo bem diferente do que era comum se fazer no bloco: no caso da oficina de
música, as aulas abordariam noções teóricas, harmonia percussiva e técnicas de registro; no
caso da dança afro trabalhar-se-iam noções de argumento, roteiro e coreografia; a oficina
de arte ensinaria a trabalhar com escultura, gravura, fotografia artesanal e serigrafia. E a
oficina de montagem de espetáculo, esta nunca antes pensada no grupo, daria noções
básicas de iluminação, sonorização e cenografia.
O projeto acima não saiu do papel, mas ele foi a base para que um outro começasse
a ser pensado, pois, pela primeira vez, fora discutido no Dilazenze um projeto dentro do
modelo reconhecido como ‘correto’ para as agências financiadoras. Foi assim que em
março, logo depois do carnaval, o Batukerê começou a ser formulado. Mas antes de
descrevê-lo, é preciso passar pelo carnaval de 2000 e pela disposição manifesta pelo
governo de patrocinar esse tipo de projeto, o que, sem dúvida, foi um grande estímulo
naquele momento.
29 A maior parte de acadêmicos ou de técnicos já envolvidos com organizações não-governamentais de
382
O Dilazenze foi o campeão do carnaval de 2000. No sábado seguinte, o governo
municipal ofereceu um almoço às agremiações carnavalescas, durante o qual o grupo foi
bastante homenageado por seu bicampeonato (é preciso lembrar que no atual carnaval de
Ilhéus, só os blocos afro concorrem entre si). Em seu discurso, o prefeito valorizou o
carnaval cultural, com o qual disse ter “um compromisso”, e convidou os blocos afro para
uma “parceria”: “[aqueles] que quiserem fazer trabalhos sociais, podem contar com a ajuda
da prefeitura.”
Dias depois, teve início uma série de reuniões entre o Dilazenze e um funcionário
importante da Ilheustur, que ficara encarregado pelo prefeito, segundo disse, de organizar
os blocos afro para eventos comemorativos pelos 500 anos do Brasil. Foram concebidos
dois eventos de participação dos blocos afro: um deles seria uma semana de “cultura afro”,
cujo nome seria “Mama África Festival” e durante a qual ocorreria o 2o Encontro de
Entidades Afro de Ilhéus, no mês de junho; e o outro seria uma exposição sobre o
movimento negro de Ilhéus no Centro de Convenções na semana de comemorações do
aniversário da cidade, entre os dias 28 de junho e 02 de julho. Nenhum dos dois eventos foi
concretizado, mas essas reuniões foram uma espécie de ratificação do interesse do governo
em “colaborar com os blocos afro” declarado pelo prefeito durante o almoço após o
carnaval. O texto abaixo é bastante elucidativo de como a “parceria” entre o governo e o
grupo estava sendo concebida, ao menos para o primeiro; ele foi redigido pelo mesmo
funcionário da Ilheustur quando da inauguração do Projeto Batukerê como um release
enviado aos meios de comunicação. O texto afirmava que
“o Projeto Batukerê é [era] fruto de uma iniciativa do prefeito JabesRibeiro, que durante o último carnaval, propôs que a beleza e a forçado Dilazenzi (sic) (campeão do carnaval 2000) fosse (sic) colocada aserviço de um projeto social capaz de mudar a difícil realidade dacomunidade dos Carilos.”
grande porte.
383
Aos poucos, o Projeto Batukerê foi, então, ganhando forma30. É claro que havia um
desejo de realizar um bom trabalho com as crianças da comunidade, ocupá-las e ‘formá-
las’ também para o Dilazenze. Mas havia também uma preocupação muito grande em
garantir que as pessoas envolvidas no projeto, os instrutores, tivessem uma remuneração,
pois o grupo poderia acabar perdendo seus “profissionais”, já que, como disse seu
presidente, “as pessoas têm oportunidades fora do Dilazenze e ele não tem como
competir”. Assim, seria preciso dar “condições para que as pessoas trabalhem: estrutura e
condições financeiras para que as pessoas possam se dedicar”. Com base nesse raciocínio,
o Batukerê deveria ser constituído pelo que os principais “profissionais” do Dilazenze
pudessem oferecer e ser remunerados por isso. Dessa forma, o Projeto Batukerê ofereceria
as seguintes oficinas: dança afro, sob a responsabilidade da coreógrafa e diretora do grupo
de dança e de uma outra bailarina fundadora do grupo; percussão, a cargo do mestre de
bateria e também vice-presidente do grupo; arte, a ser dirigida pelo artista plástico do
grupo e capoeira em função da proximidade de um mestre de capoeira angola que se dispôs
a fazer esse trabalho mesmo antes do Batukerê. Além dos quatro profissionais, o projeto
ainda deveria prever remuneração para o coordenador, que seria o próprio presidente do
Dilazenze e que já cumpriria naturalmente a função; para a esposa do mestre de bateria que
já atuava como secretária do grupo e faria o trabalho pelo projeto, e para a esposa do
presidente, que atuaria na preparação da merenda, por ser reconhecidamente uma ótima
cozinheira e pela experiência de trabalho em lanchonetes e restaurantes.
Naquele momento, o que levou à concepção do Batukerê foi a idéia de que
formalizar um projeto e conseguir patrocínio para ele seria a única forma de ser
30 Aquele momento foi favorável à formulação do Projeto Batukerê também pela possibilidade de acesso adeterminados recursos, como o computador, por exemplo. Pelo já exposto no capítulo anterior, é de seimaginar que, a partir do momento em que esse acesso torna-se possível e há alguém disposto a colaborar,haja uma mudança da relação dos grupos com a produção escrita que os projetos exigem. Assim, eu e meucomputador também participamos do processo.
384
remunerado pelo que já se fazia; seria uma forma de obter uma renda para sobreviver
através do trabalho que seria feito de qualquer jeito, que já era voluntário há anos, muito
antes disso virar “cidadania”. Mas esse ponto será retomado adiante.
Batukerê e governo municipal
Nas conversas iniciais entre o Dilazenze e a prefeitura, representada pelo
funcionário da Ilheustur, ficou estabelecido que o governo municipal sustentaria o projeto
com valores que variavam de dois a três mil reais por mês e ainda forneceria cestas básicas
através de um programa social da prefeitura, implantado naquele ano – e que teve a
duração de poucos meses – chamado Cesta-Escola, sobre o qual é fácil deduzir que se
tratava da doação de uma cesta básica mensal a cada família que possuísse crianças na rede
municipal de educação. Além disso, o Dilazenze fez um orçamento solicitando oitocentos
reais para o lançamento do projeto. Uma parte da verba seria usada na confecção de
bermudas e de camisas com o símbolo do projeto para as crianças e adolescentes, enquanto
uma outra parte cobriria as despesas do coquetel de lançamento, para o qual seriam
esperadas quase duzentas pessoas entre os participantes, seus familiares e convidados.
Já num segundo momento, a prefeitura mudou a proposta inicial do convênio,
oferecendo um montante total de dez mil e quinhentos reais para a realização do Batukerê,
que seria dividido em três parcelas, com a seguinte distribuição: três mil reais em maio,
três mil e quinhentos reais em junho e quatro mil reais em julho. Havia, ainda, a proposta
de que os salários dos instrutores viriam de ‘bolsas’ fornecidas pela universidade através
de um convênio já existente com o governo municipal, o que logo foi descartado pois,
evidentemente, era preciso ser universitário para ter direito às bolsas. A solução possível
seria tirar o valor dos salários da verba da prefeitura, diminuindo a compra de material
inicialmente previsto para o projeto.
385
Prevista inicialmente para o fim de abril, a inauguração foi adiada numa primeira
vez para o dia 11 de maio devido à dificuldade de fazer com que a prefeitura liberasse o
recurso solicitado para a sua realização, o que acabou só acontecendo quando o grupo
conseguiu que a encomenda das camisas fosse feita em nome da própria Ilheustur, que se
viu, então, obrigada a pagar. As bermudas foram confeccionadas pelas costureiras do
Dilazenze mediante uma promessa de pagamento com o mesmo recurso da prefeitura. O
material utilizado foi uma sobra de tecido comprado para as fantasias do carnaval.
No dia 13 de maio, a secretária de Assistência Social compareceu ao Dilazenze
levando cestas básicas para serem distribuídas às famílias já cadastradas do Batukerê.
Nesse momento, ela ainda era pré-candidata à vice-prefeitura31 e estava apoiando Gurita
para vereador, que também aparecia como ‘distribuidor’ das cestas.
Uma nova data para o lançamento do projeto foi acertada. Seria no dia 26 de maio,
com a presença do prefeito. No dia marcado ele não compareceu, mas estiveram presentes
a então secretária de Assistência Social, Gurita, o funcionário da Ilheustur encarregado das
negociações iniciais e duas pessoas ligadas ao Serviço de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE) de Ilhéus, sendo uma delas Luiz Carilo, ex-dirigente do Lê-guê Depá
que trabalhava como consultor da entidade, cuja presença foi uma surpresa muito festejada.
O convite à participação do SEBRAE fora proposto e articulado pelo funcionário da
Ilheustur a partir de sua expectativa e concepção de que um trabalho como o Batukerê
geraria “emprego e renda” para a comunidade, ou como disse em seu discurso: “esse é um
caminho profissional para essas crianças porque a Bahia é exportadora de cultura.” O
discurso do representante do SEBRAE seguiu pelo mesmo caminho, porém, com ainda
mais ênfase na idéia de trabalho social como gerador de emprego: “cada um de vocês
[apontando para as crianças] se veja como um empreendedor, como um empresário. Eu
31 O nome da vice-prefeita só foi publicamente anunciado no dia 28 de junho de 2000 (Goldman 2001:64).
386
estou vendo vários futuros empresários aqui.” Gurita também ressaltou que o Dilazenze, a
prefeitura e o SEBRAE estariam “dando profissionalização” àquelas crianças. A palavra
‘cidadania’ também foi repetida algumas vezes por essas pessoas, sempre acoplada à idéia
de ‘emprego e renda’. O funcionário da Ilheustur, por exemplo, afirmou que o próximo
carnaval seria a “comemoração da cidadania”, com o desfile das crianças do Batukerê
como uma ala do Dilazenze.
Diferentemente das demais pessoas que discursaram, o presidente do Dilazenze não
se referiu a ‘emprego e renda’ e ‘cidadania’ como objetivos do projeto naquele momento.
Seu enfoque foi sobre a violência que atingia o bairro, especialmente a sub-região do
Dilazenze, e de como o Batukerê poderia ser útil dando “ocupação” às crianças e aos
adolescentes, tanto mais porque a ‘violência’ vinha de pessoas próximas, adolescentes que
os organizadores do projeto viram crescer32. Manter as crianças ocupadas, passando
manhãs e tardes na escola e no projeto era uma forma de evitar que elas tivessem mais
contato com aqueles rapazes, dos quais algumas crianças eram irmãs. Ao longo do projeto,
as pessoas realmente se preocupavam em manter as crianças mais próximas daqueles
adolescentes “debaixo da vista” para que elas não viessem a ter o mesmo comportamento.
O Projeto Batukerê efetivamente começou a funcionar no dia 29 de maio, ainda
sem a liberação da verba prometida pelo governo municipal. Nas primeiras semanas, o
projeto contou com doações e com alguns ingredientes das cestas básicas levadas por
Gurita e não distribuídas na ocasião porque as famílias não compareceram. Ao longo de
todo o mês de junho, houve várias tentativas inúteis de conseguir a liberação da primeira
parcela do convênio que, na verdade, nunca foi assinado. Ele só existiu como proposta da
prefeitura.
32 Episódios freqüentes de violência protagonizados por esses adolescentes vinham dominando as conversas eas preocupações de todos ao longo de várias semanas.
387
Ao mesmo tempo em que buscava o financiamento do governo, o Dilazenze
também procurava por empresários e comerciantes. Foram redigidos inúmeros ofícios
solicitando material para as oficinas e auxílio em dinheiro ou em mercadoria para a
merenda. Dos mais de vinte ofícios distribuídos, somente uma papelaria atendeu doando
algum material. A essa altura, em meados de julho, já havia uma dívida com a padaria, que
fornecera pão para o projeto por alguns dias e não havia mais cestas básicas. Somente
poder-se-ia contar com as doações, que já não sustentavam o projeto. Comentando sobre o
auxílio de grandes empresas aos blocos afro de Salvador, Ribard (1999) diz, em nota, que
os pequenos comerciantes ajudam os grupos “em nome da solidariedade étnica” (:396). No
caso específico do Batukerê, o que se poderia dizer sobre o fato de os comerciantes locais
não ajudarem? Seguindo o raciocínio de Ribard, poder-se-ia falar de ‘racismo’ ou de
‘rivalidade étnica’, já que não existiria a “solidariedade étnica”? Difícil dizer isso sobre os
que não ajudam e mesmo sobre os que ajudam em outras ocasiões. O Dilazenze, assim
como outros blocos afro, está sempre demandando auxílio e muitas vezes os comerciantes
cedem mercadorias porque isso faz parte de uma relação estabelecida com o bairro ou com
as entidades locais, o que os faz doar pães tanto para o grupo afro quanto para o asilo de
idosos sustentado pela igreja católica. Mas eles também podem ajudar em função de quem
solicita a ajuda – às vezes, discute-se no grupo quem vai procurar por que comerciantes, se
existe uma relação de amizade ou de consumidor que poderia facilitar a negociação...; e
ainda porque os comerciantes podem vir a ser beneficiados se houver alguma perspectiva
do grupo obter algum recurso, o que lhe possibilitaria pagar por algum produto.
No dia 23 de julho, deu-se o lançamento da candidatura de Gurita no andar superior
do Clube 19 de Março, o mesmo onde foi abrigado o Memorial da Cultura Negra. Durante
um discurso de apoio ao candidato, o presidente do Dilazenze voltou a falar do Projeto
Batukerê como forma de combater a violência e disse que contava com a ajuda do prefeito,
388
ali presente e também candidato à reeleição. Sua fala converteu-se, então, em mote para o
discurso do prefeito, que elogiou o Dilazenze e seu presidente e disse que “violência não se
resolve com polícia, mas com capoeira, com samba, com movimento afro, com escola... e
com o Batukerê do Dilazenze.” Ao despedir-se do presidente do grupo, o prefeito lhe disse
que o dinheiro seria liberado no dia seguinte. Mais uma vez isso não aconteceu.
O funcionário da Ilheustur que vinha intermediando o processo desistiu dele e disse
que se afastaria. A partir daquele momento, seria preciso falar diretamente com o prefeito.
Tentativas de audiência sucederam-se em vão. Até que em fins de julho e início de agosto,
ocorreu o episódio descrito no capítulo anterior sobre a acusação de racismo contra o
secretário de Serviços Públicos municipal, e irmão do prefeito, seguido da distribuição de
um panfleto de apoio ao secretário elaborado pela prefeitura em nome das entidades afro.
Como resposta, o presidente do Dilazenze, também presidindo o CEAC, elaborou um outro
documento negando o “apoio incondicional” ao governo que fora atribuído ao Conselho no
panfleto anterior redigido pela prefeitura. O desfecho do episódio foi a liberação de mil
reais para o Batukerê no dia seguinte ao lançamento do panfleto, logo que o governo
constatou que a autoria era do presidente do Dilazenze. Quando o grupo soube da
liberação, entendeu que se tratava de um “cala boca” e relutou um pouco em aceitar, com
medo de que se tornasse ainda mais difícil reivindicar o restante da verba prometida. E o
que o grupo temia, foi o que aconteceu: durante o ano de 2000, nenhum outro recurso foi
conseguido pelo Batukerê.
Apesar da verba liberada pela prefeitura ter sido muito abaixo do necessário para a
continuação do projeto, ele prosseguiu até o fim do ano, ainda que sem merenda e sem
material para as oficinas. Nos meses de janeiro e fevereiro de 2001, as crianças e os
adolescentes do Batukerê foram reunidos para desfilar como uma ala do Dilazenze,
freqüentando oficinas especialmente voltadas para esse fim, com ensaios para a coreografia
389
da ala, percussão e confecção de suas próprias fantasias. A participação das crianças no
desfile havia sido planejada como uma forma de mostrar o resultado do trabalho do ano
todo; seria o Dilazenze na forma de ‘bloco afro como entidade de trabalhos sociais’, tão
valorizada em tantos meios. Seria também uma espécie de ‘contrapartida’ do grupo para a
verba doada pela prefeitura, uma forma de fazer propaganda desta. E apesar da pouca
contribuição dada pelo governo municipal, o fato do grupo ter conseguido manter o
Batukerê e fazê-lo desfilar, acabou sendo mesmo uma propaganda, pois a realização do
projeto foi totalmente vinculada à ajuda da prefeitura, pelo menos assim foi percebido
pelos outros blocos afro.
Em 2001, o Projeto Batukerê foi retomado em abril, novamente a partir do
compromisso do governo municipal de colaborar com ele. Desta vez, o intermediário foi o
então secretário de Esporte e Cidadania, que fora procurado pelo presidente do Dilazenze e
pelo novo presidente do Conselho de Entidades Afro-Culturais, que lhe era politicamente
próximo. Segundo o próprio secretário, ele teria se “encantado” com o projeto quando o
visitou em março, num dia em que as crianças foram reunidas especialmente para a sua
visita já que o projeto ainda não havia sido retomado. E, embora sua secretaria não tivesse
recursos próprios por ter sido criada naquele ano e, portanto, não houvesse orçamento
previsto para ela, ele conseguiria fechar um convênio entre a prefeitura e o Dilazenze.
Na verdade, o Projeto Batukerê seria o primeiro projeto apoiado pela Secretaria de
Esporte e Cidadania, que até aquele momento apenas patrocinava alguns eventos
esportivos, mas nada além disso. Segundo disse o secretário, o Batukerê seria “o pontapé
inicial (...) da parte [da secretaria] relativa à cidadania”, que estaria “inserida” em todas as
oficinas do projeto. Assim, no dia 08 de abril, durante a posse da nova diretoria do CEAC,
que ocorreu no Terreiro Tombency, o secretário garantiu a assinatura do convênio nos
seguintes moldes: ele teria a validade de seis meses, renovável por mais seis, e seriam
390
repassados três mil reais ao Dilazenze, em três parcelas de mil reais nos meses de maio,
junho e julho. Na ocasião, o então secretário fez um discurso muito elogioso ao Dilazenze
e ao Projeto Batukerê, levantando as mesmas idéias tantas vezes ressaltadas quanto à
importância de se ter um projeto social para que o bloco afro não seja apenas carnavalesco.
Disse que quando viu o nome do projeto, pensou que seria “mais uma entidade que tratava
única e exclusivamente do carnaval”, porém, a partir de sua leitura e posteriormente de sua
visita, ‘abraçou-o’ e fez sua defesa perante o prefeito, argumentando que a prefeitura não
gastaria muito, posto que “a maior parte do custo desse projeto está, efetivamente, sob a
responsabilidade de Marinho [presidente do Dilazenze] e dos seus familiares e da equipe
que o ajuda.” Ou seja: a viabilização do projeto é estreitamente vinculada ao trabalho
voluntário.
Apesar dos esforços do secretário de Esporte e Cidadania, o convênio só foi
efetivamente assinado em junho e, em função do atraso na liberação dos recursos, a parcela
correspondente aos três primeiros meses foi de mil, seiscentos e setenta reais. A segunda
parcela, prometida para agosto, teve o valor de mil, seiscentos e trinta reais e só veio a ser
liberada em fevereiro de 2002.
Ao longo dos anos seguintes, o Batukerê continuou em atividade, embora muito
precariamente, pois nenhum outro recurso foi obtido, afora uma doação de instrumentos
musicais e de um sistema de som em outubro de 2003. Esta foi feita por uma fundação com
sede em Salvador vinculada a um banco. Quando do primeiro contato com a instituição, o
Dilazenze solicitou o que havia de mais urgente para a manutenção do projeto: recursos
para a merenda, material para as oficinas e salários para os instrutores. Porém, seguindo
uma espécie de regra geral das agências financiadoras desse tipo de projeto33, a fundação
33 Bartholdson (2000) faz uma rápida análise de duas organizações não-governamentais de Salvador e de suarelação com agências financiadoras. Ele mostra que a que adere aos programas das agências sempre obtémrecursos, enquanto a outra, que deseja preservar sua autonomia, tem muito mais dificuldades para receber
391
alegou que só financiaria recursos permanentes, o que excluía merenda e, principalmente,
salários. Foi iniciativa sua a doação dos instrumentos e do sistema de som, cujo valor total
ficou em cerca de dez mil reais.
O Dilazenze vem estabelecendo contatos com agências financiadoras de projetos e
organizações não-governamentais já há algum tempo e torna-se cada vez mais clara a
impossibilidade de financiamento do trabalho das pessoas, que é, na linguagem usual do
mundo das ongs, chamado de “contrapartida” do grupo. A idéia de ‘contrapartida’ revela
que o desejo de realização de um trabalho social, desse ponto de vista, deve ser um desejo
do grupo de ‘contribuir com a sociedade’, de ‘promover cidadania’, de ‘ajudar sua
comunidade’ etc. O trabalho voluntário seria a forma de ‘fazer a sua parte’, numa espécie
de jargão existente no meio, e as agências entrariam com os recursos estritamente
materiais e, às vezes, de formação: é preciso ensinar aos grupos como eles devem agir.
Apesar de todas as dificuldades, o Batukerê permaneceu em atividade, o que se
deve menos ao trabalho voluntário dos instrutores do que à sua capacidade de criar um
desejo de continuidade do projeto desencadeado entre as próprias crianças e adolescentes.
Embora nunca o tenham abandonado definitivamente, os instrutores originais foram
deixando de trabalhar regularmente no Batukerê logo que este começou a se desestruturar
com a falta de merenda e de materiais para as oficinas e, evidentemente, quando as
esperanças de remuneração foram se esvaindo. Contudo, o pouco tempo de bom
funcionamento do projeto foi suficiente para gerar nas crianças e adolescentes participantes
uma vontade de que ele não deixasse de existir, e talvez este tenha sido seu grande mérito.
Aos poucos, especialmente os adolescentes foram assumindo as funções de instrutores. No
caso da percussão, por exemplo, inicialmente um sobrinho do mestre de bateria, de cerca
de vinte anos, foi designado para ocupar o seu lugar, mas quando este também não pode,
financiamentos e, quando isso acontece, ela sofre a intervenção direta das agências, que tentam moldá-la
392
um outro sobrinho adolescente, ainda mais novo, cumpre a função. Porém, no caso das
oficinas de dança e de criatividade, esse desejo ficou ainda mais claro porque elas foram,
de fato, assumidas pelas crianças, numa organização própria, sem interferências de adultos.
É bem verdade que o instrutor responsável pela oficina de criatividade, por exemplo, de
vez em quando realiza algum trabalho específico direcionado para algum evento, mas a
oficina permanece em atividade mesmo em sua ausência. As crianças e adolescentes
compõem músicas, criam coreografias, montam e ensaiam peças de teatro com temas
sociais... Pode-se especular que uma tal disposição seja gerada pelo agenciamento de
fluxos produzidos pelas próprias atividades de percussão e de dança afro realizadas pelo
Dilazenze, das quais as crianças almejam, um dia, participar34, mas também por terem sido
afetadas por um novo modo de subjetivação, o mesmo que fez com que o Batukerê viesse a
existir.
O espaço de funcionamento do Batukerê também deve ser levado em conta na
composição dos agenciamentos que produziram esse desejo de continuidade do projeto nas
crianças e adolescentes. As oficinas são realizadas tanto na quadra do Dilazenze, que é
aberta, quanto no barracão do Terreiro Tombency, especialmente para as aulas de dança
em função do piso – mais apropriado do que o da quadra – e quando está chovendo.
Ambos são espaços ‘quase’ públicos: o primeiro por ser local de passagem para várias
moradias e o segundo pelo livre acesso às crianças da família. Além disso, é preciso
observar, tanto a quadra quanto o barracão são ótimos locais para se estar e para brincar.
Assim, um outro mérito do projeto foi o de ter tornado o espaço do Dilazenze ainda mais
‘social’ do que já o era. Desde o início do Batukerê, a quadra e o terreiro estavam sempre
ocupados por muitas crianças, o que ora era comentado com orgulho pelos adultos como
segundo seus padrões.
393
um efeito positivo do projeto, ora constituía uma reclamação, pois era preciso ‘mandar as
crianças para suas casas’. O Batukerê tornou-se parte do cotidiano dessas crianças e
adolescentes como um momento de sociabilidade e de lazer, o que, sem dúvida, é muito
bom para o futuro do Dilazenze.
As relações de vizinhança e de parentesco entre os participantes do Batukerê
também favorecem esse desejo de continuidade. Em 2001, pôde-se constatar que cerca de
80% dos freqüentadores do projeto moravam na própria Av. Brasil, onde estão situados o
Dilazenze e o Terreiro Tombency, ou em suas imediações, e que 70% deles ingressaram no
projeto no ano anterior. De modo geral, são filhos e filhas de pessoas que guardam relações
entre si de parentesco ou de amizade ou de proximidade do Dilazenze ou do terreiro. Como
foi ressaltado antes, a base familiar que sustenta o Dilazenze também é a base do Batukerê.
Deve-se considerar ainda nessa disposição das crianças, tanto para assumir o
Batukerê quanto para aceitar que outras crianças o assumam, um modo de subjetivação
produzido pela escola. Há um desejo de organização baseado na ‘forma-escola’ a partir do
binômio aluno-professor, que é a forma de organização que se conhece, que assegura a
continuidade do modelo que já estava implantado no projeto. Algumas crianças assumiram
o lugar dos instrutores e outras aceitaram os ‘novos’ professores.
Concepções do Batukerê
O modelo escolar do Batukerê já estava presente em sua concepção a partir da
exigência de que os participantes deveriam estar freqüentando a escola para fazerem parte
do projeto. Essa exigência costuma ser característica de grande parte dos projetos sociais
de mesmo tipo, pois acredita-se com essa medida estar contribuindo para a diminuição da
34 Para que esses adolescentes continuem à frente das oficinas do Batukerê, foram tomadas duas providênciasem 2003: a primeira foi mudar o limite da idade máxima de quatorze para dezesseis anos; a segunda foiincorporar esses adolescentes nos grupos de dança afro e de percussão do Dilazenze.
394
evasão escolar, problema grave que afeta a população mais pobre do país inteiro35. Na
primeira reunião de pais do Projeto Batukerê, cerca de dois meses após o seu início, foram
dados exemplos tanto de crianças que passaram a freqüentar e a ter melhor rendimento na
escola, quanto daquelas que “pioraram” e por isso recebiam ameaças dos pais de que se
não “melhorassem” seriam obrigadas a sair do projeto.
No entanto, no caso do Batukerê, a ‘forma-escola’ se impôs também por outras
vias. Especialmente entre as mulheres ligadas ao projeto (instrutoras de dança afro, a
secretária e a responsável pela merenda), era cultivado um jeito de ser bastante professoral,
com alguns dos dispositivos disciplinares da escola, como a ‘lista de chamada’ ou ‘diário’,
‘notas’ em redações e pequenos trabalhos, exigências de comportamento... Uma das
instrutoras chegou a ir até a algumas das escolas freqüentadas pelas crianças para saber
sobre seu “comportamento” e “rendimento” junto aos professores.
Encaixa-se também nessa ‘forma-escola’ uma idéia levantada em diversas ocasiões,
tanto por parte dos próprios instrutores como também de pessoas do governo ou próximas
ao Dilazenze, de que o projeto deveria oferecer, além das oficinas, aulas de ‘reforço
escolar’ ou ‘redação’. Desse ponto de vista, caberia a ele funcionar como um complemento
à escola. Evidencia-se o mesmo sentido nas propostas feitas por militantes do MNU
graduados em história e professores desta disciplina que se aproximaram do projeto
dispostos a dar aulas sobre história da África, ausente dos currículos escolares. Aqui, como
na proposta do projeto elaborado em 1999 pelo Dilazenze junto com o militante do
movimento negro do Rio de Janeiro descrita anteriormente, enfatiza-se o caráter ‘étnico’
35 Sem querer entrar no mérito da discussão, mais apropriada para especialistas em educação, essa exigênciaparece baseada na suposição de que ela pode funcionar como uma forma de ‘compensação’ ou de ‘castigo’: aescola é ruim, mas se a criança for capaz de suportá-la, ela poderá participar dos projetos, que costumamoferecer atividades mais agradáveis; ou a escola é ruim e se a criança não conseguir suportá-la, então,também não poderá participar dos projetos.
395
que deveria ter o Batukerê por ser promovido por uma entidade do movimento negro. O
modelo escolar favorece a preocupação com a educação formal.
Mas a ‘forma-escola’ é só uma das vertentes de concepção do Batukerê. Uma outra
que não se opõe propriamente a essa é a do Batukerê como um espaço de
profissionalização. Não há dúvidas de que de todas as oficinas originalmente oferecidas
pelo projeto, a de percussão é a que pode ser melhor encaixada na proposta de formar
profissionais, especialmente em Ilhéus, onde as oportunidades para dançarinos são bem
mais raras do que para percussionistas, que podem ser contratados por bandas de pagode,
de axé ou de forró, sem deixar de levar em conta a esperança de que as bandas afro farão
sucesso novamente e proverão sustento financeiro para seus percussionistas. E o mestre de
bateria do Dilazenze, instrutor da oficina de percussão do Batukerê, ainda que nem sempre
esteja empregado, é um exemplo de profissional da percussão, tendo trabalhado em
diversas bandas na cidade e formado algumas outras, inclusive aquela em que está atuando
no momento (formada exclusivamente por componentes do Dilazenze).
Essa diferença entre concepções foi o que provocou a mudança do nome da oficina
de ‘artesanato’, pensado inicialmente, para ‘criatividade’. A idéia de oficina de artesanato
pressupunha a produção de artefatos que poderiam vir a ser vendidos pelas crianças. Em
geral, é de onde se espera que venha a tal ‘geração de emprego e renda’ e de ‘auto-
sustentabilidade’ de projetos sociais como esse. Justamente o responsável pela oficina,
artista plástico que costuma colaborar com o Dilazenze, possui uma concepção bastante
diferente do que deveria ser o Batukerê. Para ele, o projeto não deveria ser nem
profissionalizante nem um complemento à escola, mas uma alternativa a ela. Assim, sua
proposta de trabalho não pretendia ensinar a fazer objetos que pudessem ser vendidos
posteriormente, mas proporcionar às crianças um certo investimento na estética a partir da
pintura, do manuseio de diferentes materiais, de diferentes formas... A ampliação da idéia
396
de oficina de artesanato para criatividade também lhe permitiu trabalhar com teatro e
expressão corporal, especialmente diante da falta de materiais básicos como papel, tesoura,
cola, tinta etc.
Um exemplo muito claro de choque entre essas concepções ocorreu no início de
2001. O coordenador do Batukerê foi procurado por uma moça que ensinava a fazer
artesanato em cerâmica. Ela ensinaria às crianças a técnica de se fazer um tipo de
artesanato muito comum nas lojas dos locais turísticos de Ilhéus, cujos motivos, em geral,
são produtos da região como o cacau, ou da Bahia, como o coco e o berimbau, por
exemplo. Ela ofereceu seus préstimos, mas não gratuitamente. Mesmo sabendo que o valor
do recurso prometido pela prefeitura não seria muito alto e que a contratação da artesã
desagradaria aos demais instrutores, pois até aquele momento eles não haviam recebido
nenhum pagamento por seu trabalho, o coordenador do Batukerê optou por contratá-la
baseado na idéia de que seu curso seria útil tanto para as crianças do Batukerê quanto para
os adultos do Dilazenze. Era a concepção do Batukerê profissionalizante se sobrepondo às
demais36. Haja vista que a verba prometida pela prefeitura não só atrasou como foi
reduzida a pouco mais da metade e que as dívidas já eram grandes com alguns
comerciantes, o descontentamento das pessoas que recomeçaram o trabalho no Batukerê
esperando receber alguma coisa por isso foi ainda maior quando perceberam que uma parte
do pouco dinheiro recebido pelo projeto seria pago à artesã. E, no fim das contas, a oficina
pouco valeu para as crianças, que nem mesmo ficaram com os objetos produzidos nas
poucas aulas.
Apesar das diferentes concepções dos responsáveis pelo Batukerê, a proposta
profissionalizante é a que mais parece adequá-lo às idéias presentes na mídia, no governo,
36 Nessa época, uma matéria sobre o Batukerê publicada no jornal da Fundação Cultural de Ilhéus –FUNDACI (Pauta, junho/2001) informava que o projeto contava com oficinas de criatividade e de artesanatoe cerâmica, valorizando seu caráter profissionalizante.
397
nas organizações não-governamentais e até mesmo no movimento negro político sobre o
que deve ser um projeto social. Por isso, no release enviado aos meios de comunicação
quando do lançamento do Batukerê, foi essa a concepção que prevaleceu. Nele constava
que o objetivo do Batukerê seria: “fornecer alternativa ocupacional, educacional e
profissionalizante para crianças e adolescentes dessa comunidade [dos Carilos],
desenvolvendo neles conhecimentos artísticos e práticos que possam proporcionar-lhes
futura capacitação profissional.”
A profissionalização é uma característica inerente aos projetos sociais. Quando se
trata de projetos com crianças carentes, a arte é o principal recurso empregado, seja como
‘cultura popular’ sob o argumento de que já faz parte do mundo daquela comunidade – se
forem projetos ligados a blocos afro ou escolas de samba, busca-se formar percussionistas
–, seja como ‘cultura erudita’, com base na proposta de que é preciso oferecer o que
aquelas crianças não teriam acesso por si mesmas – nesses casos, costuma-se ensinar balé
ou música clássicos.
Entre os blocos afro, é também o Olodum o grande exemplo de sucesso dessa
concepção:
“(...) pode-se dizer que o Olodum apresentou-se, para algunsmoradores do Pelourinho, como uma alternativa de vida, umapossibilidade de ascensão social, de status e prestígio. Muitosmeninos, hoje integrantes da Banda Show Olodum, moravam noPelourinho ou arredores, não tinham perspectivas de trabalho e, nodizer do Maestro Neguinho do Samba, muitos deles, que poderiam“estar cheirando cola ou então roubando, fazem música. Nuncasonharam nem com Feira de Santana e, hoje, conhecem Nova York,Miami, conhecem o mundo quase inteiro e ainda recebem seu cachêcomo artista.” (05/03/96)” (Nunes 1997:56).
Contudo, sabe-se que, apesar dos esforços dos responsáveis por esses projetos, um número
insignificante de pessoas conseguem tornar sua profissão aquilo que lhes foi ensinado, já
que não é possível para o ‘mercado’ absorver tantos artistas. Como não se trata de
revolucionar, mas de incluir, é preciso dar ao mercado o que se supõe que ele esteja
398
procurando. Mais uma vez o Olodum, antenado com os imperativos da ‘forma-ong’, é
referência. Como disse seu presidente quando reassumiu o grupo em fins da década de 90:
“Queremos que a Escola Criativa Olodum seja de cultura e tecnologia.Não queremos mais formar pobreza. Não vamos dar mais nenhumcurso em que as pessoas não possam vir a trabalhar depois. Não dámais para ser só percussionista ou dançarino. Vamos oferecer cultura?Sim, mas com inglês, informática, administração...” (Correio daBahia, 27/04/99).
E há sempre quem reivindique que o Projeto Batukerê seja semelhante.
O Projeto Batukerê na mídia
Em meados de julho de 2000, o Dilazenze enviou informações (releases) para
emissoras de rádio e TV locais sobre o Projeto Batukerê com a intenção de divulgá-lo, mas
também de tornar mais eficiente a pressão sobre o governo municipal para a liberação da
verba prometida. Alguns dias depois, foi marcada a primeira matéria com uma das
emissoras de TV e no mesmo dia, à tarde, o presidente do Dilazenze daria entrevistas em
duas rádios. Depois, outras rádios e uma emissora de TV contribuíram na divulgação do
projeto, embora nem sempre favoravelmente, especialmente no caso das TVs, quando não
se pode, no momento da gravação, ter controle sobre o que vai ao ar.
Na primeira matéria da TV, a repórter procurou enfocar o projeto como uma
realização não só do Dilazenze, mas também do terreiro, solicitando, inclusive, que se
montasse um “altarzinho” com imagens de orixás no barracão, onde parte da matéria foi
gravada. Não se pode dizer se em função de um preconceito contra o candomblé ou contra
blocos afro, houve uma primeira conseqüência desagradável por parte de um pai que,
separado da esposa e morando em outra cidade, reconheceu a filha na TV e ameaçou pedir
a guarda desta sob a alegação de que sua ex-esposa estaria permitindo que a menina
freqüentasse “ambientes ruins” como o Batukerê. Como era de se esperar, a menina deixou
de participar do projeto.
399
A segunda matéria para a TV é exemplar de uma distorção grave, mas significativa
em relação à forma como esses projetos sociais são usualmente concebidos para lidar com
“crianças em situação de risco social”, segundo a linguagem utilizada pela mídia e por
ongs e agências financiadoras. A matéria foi feita por uma outra emissora que entendeu e
descreveu o projeto como atendendo a “crianças carentes” que seriam “vítimas da droga ou
da prostituição infantil”. E mesmo diante da negação de que o projeto envolvesse crianças
nessa situação, o repórter insistia em querer entrevistar um menino ou uma menina que
tivessem sido “tirados” dessa “vida” pelo Batukerê. Nenhuma criança foi entrevistada, mas
a matéria foi ao ar com esse viés, o que fez com que vários responsáveis procurassem pelos
instrutores do projeto para esclarecimentos37. E o Dilazenze chegou mesmo a ser
insistentemente procurado por instituições de atendimento a meninos e meninas de rua para
que estes fossem inseridos no Batukerê, o que era sempre recusado, tanto porque o
presidente do grupo não queria ver o projeto vinculado a esse trabalho quanto porque ele
considerava necessário que houvesse profissionais capacitados para isso.
Especialmente ao longo de seus dois primeiros anos, o Projeto Batukerê e,
conseqüentemente, o Dilazenze ganharam projeção na mídia e o trabalho do bloco passou a
ser valorizado em função do projeto. A citação a seguir, retirada de uma matéria sobre o
projeto num jornal publicado pela Fundação Cultural de Ilhéus, é só um registro de algo
que passou a ser repetido por membros do governo, por pessoas ligadas ao movimento
negro político e outras ligadas a entidades filantrópicas ou organizações não-
governamentais: “[o Dilazenze] não limita suas atividades apenas ao carnaval, mas
multiplica-as o ano inteiro, através desta grande iniciativa, possibilitando aos jovens
37 O Olodum teve um problema semelhante quando fez um convênio com o Projeto Axé, sendo que este eramesmo o objetivo do trabalho: inserir meninos e meninas de rua na Escola Criativa do Olodum. SegundoNunes (1997:60), mães de crianças que já participavam do Olodum “não queriam que seus filhos fossemconfundidos com meninos de rua.”
400
daquela comunidade a construção coletiva da cidadania e a esperança de um futuro
melhor.”38
O Batukerê para o Dilazenze
A projeção que o Batukerê deu ao Dilazenze foi importantíssima para provocar
mudanças em suas relações com o governo e com outros setores sociais de Ilhéus. Mas é
preciso pensar também sobre os efeitos do projeto para dentro do grupo. Dependendo do
contexto, ele pode ser mais ou menos valorizado, a ele podem ser atribuídos benefícios ou
problemas do Dilazenze, e uma tal variação pode ocorrer a partir de um mesmo
interlocutor.
Logo que começou a funcionar, o Batukerê foi muito valorizado, especialmente
pelos moradores próximos e pelos pais das crianças e dos adolescentes atendidos. Não era
a primeira vez que o Dilazenze realizava um trabalho com crianças, mas o fato de ser um
projeto diário, em que as crianças usavam uniforme, que possuía uma placa com o nome,
que foi inaugurado com a presença de autoridades do governo municipal, foi mostrado na
TV... Tudo isso dava ao projeto uma dimensão diferente daquela que se costumava ter nas
atividades do Dilazenze.
Por outro lado, principalmente no início, não era incomum ouvir comentários que
tornavam o Batukerê equivalente a outros projetos já desenvolvidos pelo grupo,
especialmente diante de pessoas ou situações que o valorizavam de maneira excessiva, ou
seja, frente a afirmações que ao engrandecerem muito o novo projeto, acabavam
minimizando demais o que já havia sido feito até então. Era como se só a partir do
Batukerê o Dilazenze tivesse ganhado ‘consciência’, tivesse se tornado um bloco afro tal
como todos deveriam ser. Nesses momentos, o presidente do Dilazenze costumava dizer
38 Pauta, junho/2001.
401
que o Batukerê tinha apenas uma aparência de algo mais organizado, mas não era muito
diferente de outras atividades que o grupo já realizara:
“eu não sei se o que o Dilazenze faz hoje não é o que o Dilazenzefazia há anos. Só porque se criou um projeto que a gente colocou:‘esse é o projeto social do Dilazenze’, que é o Batukerê... Mas opessoal continua achando que a percussão do Dilazenze, que otrabalho de dança... que isso não é projeto social.”
Em termos de objetivos, o Batukerê pode não ser muito diferente de outros
projetos, como o da banda mirim por exemplo; porém, sua aparência – como bem disse o
artista plástico colaborador do Dilazenze, “o Batukerê é um projeto que tem as
características de todos os projetos, então, aí eles enxergam como social” – e a visibilidade
ganha tornaram o Projeto Batukerê realmente importante para o Dilazenze. Isso pode ser
constatado, em primeiro lugar, na continuidade do projeto apesar de todas as dificuldades.
Ele está em seu quarto ano de funcionamento e entrando agora em novas relações com
organizações não-governamentais que poderão projetá-lo ainda mais e lhe fornecer
recursos como merenda e materiais para as oficinas39. Mas dentre muitas outras situações,
duas podem ilustrar bem a dimensão da importância que o projeto tomou para as pessoas
do Dilazenze.
Em 2001, o Dilazenze completou 15 anos. Como visto anteriormente, não é muito
comum no grupo que a escolha do tema do carnaval seja por votação, mas isso aconteceu
num encontro do Dilazenze em novembro daquele ano, quando se decidiu que no carnaval
de 2002 o bloco exaltaria sua própria história em seus 15 anos de existência. Dado que o
tema era de conhecimento de todos os possíveis compositores, não foi elaborada
exatamente uma apostila, mas um pequeno texto. Nele, ressaltavam-se os trabalhos do
Dilazenze na ‘comunidade’, mas não especificamente o Batukerê, como se pode ver neste
39 Além disso, tal como em 2000, quando o Batukerê foi criado, este é novamente um ano de eleiçõesmunicipais. Assim, o governo voltou a oferecer cestas básicas, ausentes desde antes das eleições de 2000, enegociações com um candidato a vereador devem resultar em novos uniformes para os participantes doprojeto.
402
trecho retirado do texto: “outro importante aspecto do trabalho do Dilazenze é sua
profunda ligação com a comunidade onde atua. Diversos projetos sociais foram e
continuam sendo desenvolvidos pelo grupo em benefício dos moradores da Conquista,
especialmente de suas crianças e adolescentes.” (Grupo Cultural Dilazenze 2001).
Contudo, das cinco músicas que concorreram no Festival de Música do Dilazenze em
2002, cuja vencedora seria cantada durante o desfile, quatro fizeram referência ou citaram
o Batukerê como um momento importante da história do grupo. E esta não foi a primeira
vez que o projeto foi ‘cantado’. No carnaval de 2001, cujo tema era “Dilazenze – Angola –
Bahia”, um dos compositores também mencionou o Batukerê40.
Uma outra situação em que a importância do Projeto Batukerê foi muito destacada
pelos membros do Dilazenze ocorreu no mesmo encontro citado acima em que se escolheu
o tema do carnaval 2002. O encontro ocorreu no dia 03 de novembro de 2001 com a
presença de cerca de trinta pessoas entre diretores, componentes do grupo de dança e da
bateria e colaboradores. Segundo seus organizadores, o resultado esperado do encontro
deveria ser a identificação dos problemas enfrentados pelo Dilazenze e a apresentação de
propostas visando soluções e novas perspectivas que orientariam o planejamento do grupo
para o ano seguinte. Assim, como primeira atividade, foi proposta uma dinâmica de
grupo41 cujo objetivo seria identificar os principais problemas do Dilazenze. O item “falta
de verba para o Batukerê” foi eleito como o principal problema do grupo, sendo que os
40 As letras dessas músicas encontram-se no Anexo 5. Agradeço mais uma vez a Vincenzo Cambria que mecedeu as letras das músicas produzidas pelo Dilazenze, compiladas por ele para sua dissertação de mestrado(ver Cambria 2002).41 A dinâmica consistiu na divisão da plenária em quatro grupos que deveriam discutir a respeito dosproblemas enfrentados pelo Dilazenze. Em seguida, a coordenação solicitou que cada participanterelacionasse dez problemas e elegesse os três mais importantes. De volta à plenária, cada pessoa citou um dosproblemas selecionados por ela. Depois de uma primeira rodada de intervenções, as pessoas que assim odesejassem poderiam citar outros problemas, o que resultou num total de 45. Estes foram relacionados numquadro e cada pessoa foi convidada a eleger cinco dentre aqueles e lhes conceder notas de 1 a 5, de acordocom a importância que cada um deles tivesse para a entidade. Aqueles que recebessem as maiores pontuaçõesno final da dinâmica seriam considerados os piores problemas do grupo. Essa dinâmica foi aprendida pelosorganizadores no curso de formação de lideranças comunitárias patrocinado por uma empresa de telefoniamencionado anteriormente.
403
dois seguintes em ordem de prioridade também foram justificados em função do projeto:
“falta de aproveitamento da quadra [do bloco]” e “falta de eventos para arrecadar fundos
para o Dilazenze” eram problemas fundamentalmente porque se o grupo tivesse recursos
próprios não precisaria depender de ninguém para manter o Batukerê.
Um segundo momento do encontro foi dedicado às sugestões de soluções e
propostas de encaminhamentos para o Dilazenze. Novamente as pessoas foram divididas
em grupos para que elaborassem cartazes em que as gravuras escolhidas deveriam refletir
suas propostas e anseios para o bloco. Como era de se imaginar, todos os grupos fizeram
sugestões voltadas para o Batukerê: em todos os cartazes, havia fotos de crianças sorrindo
ou em situação de pobreza que foram ‘explicadas’ pela importância do projeto para as
crianças da comunidade. As propostas dos grupos para o Batukerê foram:
Grupo 1: “Fortalecer o projeto Batukerê para que as crianças da comunidade
tenham melhores perspectivas de trabalho para o futuro.”
Grupo 2: “Procurar o apoio de alguma pessoa influente que seja padrinho (ou
madrinha) do projeto Batukerê.”
Grupo 3: “Enriquecer o trabalho com as crianças do projeto Batukerê com
atividades ligadas ao artesanato, ao esporte e ao reforço escolar.”
Grupo 4: “Expandir os trabalhos sociais do Dilazenze para atender às necessidades
não só das crianças e dos adolescentes, mas também dos adultos da comunidade.”
(Grupo Cultural Dilazenze 2001)
A mesma dinâmica permitiu tornar mais visíveis os desejos dos componentes do
Dilazenze em relação ao seu desenvolvimento enquanto ‘grupo artístico’. Algumas
propostas foram feitas nesse sentido. Entretanto, também nessas percebe-se a imposição do
Batukerê, ou dos trabalhos sociais de modo geral, como prioridade do grupo. É preciso
observar que uma tal ‘imposição’ não é obra de uma pessoa ou de um grupo, ou seja, não
se trata de fazer prevalecer um desejo sobre outros. Há até alguns momentos em que as
diferentes concepções de bloco afro são colocadas em disputa, porém, no caso em questão,
404
quando o bloco está sendo pensado coletivamente, o que se vê é um novo modo de
subjetivação, é aquele processo de cidadanização, perpassando todo o grupo. Não se trata
também de dizer que as pessoas não desejam ter sucesso, ser reconhecidas como artistas. O
que se passa é que enquanto ideal de bloco afro – e é isso o que uma dinâmica como essa
apresenta –, não há divergências nessas concepções; é como se o desejo de sucesso não
pudesse vir sozinho, como se isso não fosse ‘correto’: as pessoas devem poder sobreviver
de seu trabalho no bloco como artistas que são, mas é bom que isso esteja a serviço de algo
considerado ‘maior’, ou seja, algo como o ‘trabalho com a comunidade’. Nas propostas
formuladas nos grupos visando o crescimento do Dilazenze como grupo artístico percebe-
se que isso significa também “gerar recursos para a entidade” a fim de torná-la
independente, buscando solucionar, assim, os principais problemas apontados na dinâmica
anterior. As propostas formuladas pelos grupos foram as seguintes:
Grupo 1: “Reativar a banda musical para estimular e dar visibilidade ao talento de
jovens músicos e compositores do grupo e, ao mesmo tempo, gerar recursos para os
projetos da entidade.”
Grupo 2: “Resgatar e profissionalizar a banda musical para gerar recursos e ter uma
base já pronta para a bateria do bloco para o carnaval”; e “realizar oficinas de dança
permanentes que, além de fornecer novos dançarinos para o grupo de dança,
possam gerar recursos para a entidade.”
Grupo 3: “Procurar um produtor que possa captar recursos de forma mais eficaz e
vender os trabalhos da entidade”; e “ter uma banda musical permanente tentando
melhorar a qualidade do trabalho desenvolvido (ex. trabalhar mais a voz).”
Grupo 4: “Valorizar o trabalho musical do Dilazenze visando a profissionalização
de seus integrantes mas sem esquecer das oficinas com as pessoas da comunidade.
É importante que essas últimas sejam desenvolvidas durante o ano todo.” (Grupo
Cultural Dilazenze 2001).
Ao longo dos últimos três anos foram realizadas diversas tentativas de obter
recursos junto a diferentes instituições, governamentais ou não, para o Batukerê. À medida
405
que os recursos não vieram, o projeto perdeu um pouco sua importância, embora nunca
tenha sido realmente interrompido. Parte disso aconteceu também porque os principais
instrutores, assim como o coordenador do projeto, passaram a ter outras ocupações ou
mudaram da cidade. Esse período em que o Batukerê continuou a existir graças, em grande
parte, ao empenho das próprias crianças e adolescentes, corresponde a um momento em
que o Dilazenze passou a ter destaque também sob outros aspectos, um que pode ser
chamado de ‘empresarial’ e um outro ‘artístico’, ambos impulsionados pelo seu
envolvimento no Memorial da Cultura Negra.
Bloco afro: ‘forma’ grupo artístico e ‘forma’ empresa
Em termos sociológicos, o bloco afro é uma organização social de difícil definição.
Em geral, ele é concebido como um movimento social em função do grande número de
pessoas que ele é capaz de aglutinar e, principalmente, porque o foco da análise é jogado,
às vezes exclusivamente, sobre o que seria seu caráter étnico e de luta contra o racismo.
Isso faz com que muitos pesquisadores privilegiem este aspecto e ignorem ou façam outros
parecerem ‘problemas’: como conceber que um grupo do movimento social não tenha a
democracia como objetivo e mantenha o mesmo presidente por anos a fio? Só mesmo
atribuindo-lhe características que não deveriam fazer parte deste “universo”, como as
“familiares” que Agier atribui ao Ilê Aiyê para explicar suas relações políticas (Agier
2000:115).
Também causa estranheza quando alguém que tem essa concepção a respeito de
bloco afro ouve algum dirigente referir-se à sua entidade como “meu bloco” ou algum
outro membro informar que o “dono do bloco” é ‘fulano’. No início da pesquisa, eu mesma
estava incluída entre as pessoas que não compreendiam esse tipo de atitude e presenciei
outras vivendo a mesma experiência. Conhecendo-se melhor o movimento afro-cultural,
406
percebe-se que não há nada de estranho nisso, pois um bloco afro sempre tem um ou
alguns donos e o termo não é nada incomum no vocabulário dos grupos: tanto Ribard
(1999:334) quanto Agier (2000:111) citam-no em suas obras42, cujas pesquisas foram
realizadas junto aos blocos afro de Salvador.
Ainda que todo bloco afro tenha um ‘dono’ e isso seja reconhecido e aceito pelos
seus membros, dependendo do contexto, o caráter coletivo do grupo pode ser reivindicado
por pessoas que internamente se colocam como oposição ao presidente com o intuito de
produzir mudanças. Por outro lado, esse discurso pela coletividade também pode ser
assumido pelo próprio ‘dono’, fazendo com que seu “trabalho” seja um “sacrifício” pelo
bloco, não um desejo seu. E, recorrentemente, o caráter comercial ou empresarial do bloco
é reprovado por militantes de partidos de esquerda ou do movimento negro político.
A tensão entre o bloco afro como propriedade de alguém e como coletividade ou
concebido como ‘movimento social’ pode ser agravada quando entra em cena o grupo afro
sendo formado por artistas que colocam suas carreiras e o desejo de prover seu sustento
financeiro através deste ‘trabalho’ como prioridade. Esses aspectos e tudo o mais que foi
visto até aqui complicam a definição de bloco afro.
Em diversos momentos ao longo deste trabalho, foi enfatizado que o bloco afro
nasce de um desejo de singularização, de uma vontade de diferir através da produção de
um novo modo de subjetivação, que é dissidente em relação à subjetividade capitalística
porque é negro. Encontros 4 buscou mostrar como o bloco afro produz e é produzido pela
singularidade negra. No entanto, o desejo de produzir um novo modo de existência não
acontece sozinho, pois ele se encontra com ou é capturado por aquilo mesmo de que ele
buscava diferir-se. E, assim, a singularização do bloco afro é transformada em trabalho e,
42 Ambos os autores traduzem a palavra ‘dono’ como ‘proprietário’ ou ‘chefe’, propriétaire ou patron, nosoriginais em francês.
407
conseqüentemente, em mercadoria, tornando-se ‘reconhecível’, familiar para o modo de
subjetivação capitalista.
Nas seções anteriores deste capítulo, viu-se que as atividades do bloco afro, ainda
que continuem produzindo uma outra forma de viver o mundo, são afetadas por novas
subjetividades, passam a ser concebidas como ‘trabalho social’ e acabam ganhando um
formato próprio, o da ‘forma-ong’. Mas o desejo de singularização do bloco afro, expresso
pela música, pela dança, pela estética, por uma arte singular, também pode ser capturado
pela subjetividade capitalística de uma outra forma, a forma ‘trabalho’, seja artístico ou
empresarial.
Esta seção pretende refletir sobre alguns desses aspectos levantados nos parágrafos
acima pensados na chave do desejo de se estar incluído e nas tensões geradas por ele em
relação com os demais desejos que criam um bloco afro.
Bloco afro como ‘trabalho’
Durante uma reunião relativamente recente, uma discussão entre o presidente e o
vice-presidente do Dilazenze explicitou um impasse que acompanha o grupo há anos – e de
maneira especial os protagonistas da cena: um bloco afro seria um grupo de artistas ou
não? O vice-presidente reivindicava que sim; o presidente dizia que não, que o Dilazenze
era “um bloco que desenvolvia um trabalho artístico, cultural e social”. A questão
levantada está no cerne da discussão sobre que concepção de bloco afro deve predominar
no grupo e volta à tona toda vez que há uma possibilidade de mudança, ou seja, quando há
algum indício de que o Dilazenze poderá vir a fazer sucesso também com sua música, não
somente com seu carnaval e, situação bem mais recente, com seus trabalhos sociais.
O mote para a retomada da questão foi a reativação do Sambadila, um grupo de
samba de roda formado por componentes do Dilazenze. Criado no início da década de 90
408
meio por acaso quando tocava por lazer num bar perto da quadra do Dilazenze, na época
inexistente, o grupo Sambadila logo passou a ser requisitado para ser atração neste mesmo
bar e em outros, chegando a se apresentar em restaurantes na orla da cidade. “Fazia o
maior sucesso”, contou o presidente do grupo. Com o advento dos “bons tempos” das
bandas afro por volta dos anos de 1993 e 1994, o grupo foi deixado de lado. Em 2003, o
Sambadila voltou a se organizar para tocar na própria quadra do Dilazenze quando o bar do
grupo, que estava fechado havia algum tempo, voltou a funcionar.
Com a nomeação do presidente do Dilazenze para ser o administrador do Memorial
da Cultura Negra de Ilhéus em fins de 2003, o Sambadila começou a se apresentar nas
noites de sexta-feira e tornou-se a principal atração do espaço. Dado que o governo
municipal não faz repasse de verbas para o Memorial, o presidente do Dilazenze entendeu
que ele era pago para ser administrador do lugar, mas os eventos realizados lá seriam de
responsabilidade de quem os propusesse. Assim, a programação das sextas-feiras, chamada
de Sexta Cultural, era um evento do Dilazenze: na sua visão, era o Dilazenze que vendia
bebida e comida; era o Dilazenze que se apresentava no show e, então, era o Dilazenze que
lucrava.
Mas as pessoas que compunham o Sambadila entenderam que o grupo era formado
por pessoas que participavam do Dilazenze, mas não era o Dilazenze. Por isso, o
administrador do Memorial, ou o Dilazenze, deveria lhes pagar um cachê. Ao mesmo
tempo, o grupo passou a ser convidado para se apresentar em outros lugares e levava seus
instrumentos, de propriedade do bloco.
Diferentemente de outros momentos em que problemas semelhantes foram
levantados, aquele era bastante especial e delicado, pois o que estava em jogo era que os
interesses eram realmente conflitantes e envolviam dinheiro e ‘carreiras’. Por um lado, os
artistas do Sambadila acusavam o presidente do Dilazenze de não pensar no grupo, pois
409
ele estava recebendo um salário como administrador do Memorial em função de “tudo” o
que o Dilazenze havia lhe “dado” e, ao negar ajuda ao Sambadila, ele estaria impedindo
que outras pessoas do grupo também fossem beneficiadas pela ‘boa situação’ do bloco. Por
outro lado, o presidente do Dilazenze acusava o Sambadila de estar “tirando proveito” do
grupo, “usando” seu nome e seus instrumentos, mas não querendo colaborar com ele,
explorando-o como se fosse um contratante qualquer. Além disso, os componentes do
Sambadila estariam “esquecendo” que se o grupo estava sendo chamado para outras
apresentações era porque o Dilazenze havia lhes proporcionado isso.
Em situações bastante específicas, acusados poderiam concordar com acusadores,
isto é, os componentes do Sambadila diriam que o Dilazenze lhes formou e que o nome do
grupo ajuda a conseguir apresentações, enquanto o presidente do bloco diria que se ele está
ocupando o cargo de administrador do Memorial, ele deve isso ao Dilazenze. No entanto, o
discurso do “sacrifício” pelo grupo é muito mais recorrente. Tanto o presidente do
Dilazenze quanto o mestre de bateria podem passar horas comentando sobre todo o seu
“esforço pelo grupo” e o quanto isso nunca lhes “rendeu nada”.
O vice-presidente do Dilazenze é também seu mestre de bateria e é considerado um
dos melhores, senão o melhor, de Ilhéus. É ogã confirmado do Terreiro Tombency desde
pequeno e tornou-se mestre de bateria quando o presidente do Dilazenze assumiu este
cargo, pois, na fundação do grupo, este último era o mestre. Um outro irmão seu já havia
ocupado a função em outro bloco afro e todos os seus irmãos, com exceção de um que foi
feito no santo, também são ogãs, ou seja, tocam atabaques durante as cerimônias e sempre
tocaram em blocos de carnaval, do tipo afro ou não. Apesar de ser de uma família de
percussionistas, só o vice-presidente fez uma carreira como músico, ainda que esta seja
bastante instável. Mais de uma vez ele esteve à frente da criação de bandas não vinculadas
ao Dilazenze e já foi contratado por outras maiores, de axé music ou de forró. Vez por
410
outra ainda é chamado para participar de alguma apresentação ou substituir algum músico,
mas dificilmente encontra-se empregado.
O presidente do Dilazenze também é percussionista, mas suas atuações costumam
ser limitadas ao bloco, quando necessário, e ao terreiro, também como ogã. Foi vocalista e
percussionista da banda do Dilazenze, mas sua ‘carreira’ aconteceu como presidente do
grupo, cargo que ele ocupa há cerca de dezessete anos e que, se já era um líder do
movimento afro-cultural, ganhou ainda mais notoriedade com a visibilidade que o
Batukerê deu ao Dilazenze. Atualmente ele é administrador do Memorial da Cultura
Negra, o que lhe garante um salário enquanto a prefeitura o mantiver contratado. Chegou a
ser cogitado para ser candidato a vereador nas eleições de 2004, mas recusou a indicação.
Os irmãos representam duas concepções distintas de bloco afro, embora possam
compartilhá-las quando não estão em disputa direta e possam ser muito mais abertos para a
concepção oposta do que pode parecer nesta exposição, necessariamente objetiva, portanto,
simplista. Em comum, ambos anseiam por viver de seu trabalho no bloco, seja chamando-o
de ‘cultural’, tal como o presidente do Dilazenze concebe sua função43, seja como ‘artista’,
na visão do vice-presidente. O presidente do Dilazenze pensa o bloco como parte do
movimento negro e como entidade de divulgação da cultura negra, o que inclui eventos
‘culturais’ e ‘sociais’; para ele é importante que o grupo continue realizando trabalhos
sociais e recebendo a ‘admiração’ de outros setores a fim de permanecer como liderança
frente a outros grupos. Sua vida é pensar e dirigir o Dilazenze e o movimento afro-cultural
de Ilhéus, buscando os frutos que a posição de líder pode lhe dar, financeiramente ou não.
O vice-presidente investe principalmente no Dilazenze como grupo musical. Sua
carreira é como artista, como músico. Seu trabalho pelo grupo deveria lhe permitir “viver
43 Segundo Agier (2000), quando Vovô, presidente do Ilê Aiyê, assumiu o bloco como seu presidentedefinitivo, ou seja, quando Apolônio, o outro fundador, deixou o grupo, ele saiu de seu emprego numaempresa química e assinou sua carteira como ‘produtor cultural’ (:79).
411
de música”, não apenas como instrutor, mas com apresentações, que poderia dar emprego a
outras pessoas. Esta deveria ser a prioridade do Dilazenze. Comparando as duas visões
com a discussão colocada no início deste capítulo a respeito do Olodum, poder-se-ia dizer
– ressaltando que não há nenhum juízo de valor nessa proposição – que o presidente do
Dilazenze tenderia para o Olodum dos trabalhos sociais, enquanto o vice-presidente
defenderia o Olodum do sucesso musical.
De forma alguma este é um problema exclusivo do Dilazenze. O capítulo anterior
mostrou que a maioria dos blocos afro de Ilhéus nasceu a partir da formação como grupos
de dança e outros como bandas afro. É importante notar que mesmo sendo prioritariamente
entidades carnavalescas, a maior parte do tempo e do esforço dos grupos afro é investida
com vistas a incrementar suas atividades ‘artísticas’ ao longo de todo o ano. Os grupos afro
são necessariamente formados por artistas ou artistas são formados nos grupos afro, e eles
esperam fazer de sua arte sua profissão. Esse desejo pode gerar diferentes conseqüências,
sendo responsável por muitos movimentos do movimento afro-cultural.
Mais uma vez, o grande exemplo para a concepção de bloco afro como grupo
musical é o Olodum. Alguns de seus componentes, especificamente aqueles que fizeram
parte da banda principal ou da diretoria do grupo no auge do sucesso, tornaram-se o
modelo de carreira para todo músico de bloco afro. Através deles, os grupos afro passaram
a representar uma chance de mobilidade social, mesmo que membros do movimento afro-
cultural de Ilhéus comentem que alguns poucos músicos, de fato, tenham conseguido
‘ascender socialmente’44.
Na verdade, a expectativa de ‘fazer carreira’ por parte do músico do bloco afro não
está no próprio grupo, mas em outros tipos de bandas, principalmente de axé. Costuma-se
44 Assim, parece um certo exagero Schaeber (1999) dizer que “com o sucesso da música, estes gruposculturais [blocos afro] começaram a oferecer estratégias de sobrevivência para negro-mestiços, com a
412
dizer que o músico de bloco afro só passa a ser respeitado quando vai buscar outras
bandas. O próprio mestre de bateria do Dilazenze diz que era “discriminado” quando só
tocava em bloco afro e que só teve seu “trabalho reconhecido” quando foi para outra
banda, ainda que antes lhe dissessem que ele era “muito bom”. Em Ilhéus, são inúmeros os
casos, especialmente de vocalistas de bandas afro, que tentam trabalho em outros grupos
musicais. E, quando conseguem, não costumam voltar a cantar em bloco afro, pois isso
significaria “rebaixar-se”, segundo contam alguns dirigentes referindo-se à forma de
pensar desses músicos. Os pequenos blocos afro seriam locais de formação de músicos
para outras bandas, no caso dos blocos de Ilhéus, ou mesmo para blocos maiores, como
acontece com os blocos afro de Salvador (Ribard 1999:354)45.
Nas situações de impasse como a que ocorre no Dilazenze, uma das soluções mais
comuns é a saída dos líderes artistas – especialmente se o ‘dono’ do bloco não o for – para
fundar outro bloco afro, no qual poder-se-ia executar o que era pretendido no anterior46. A
fundação de um bloco afro envolve vários motivos, mas quase todos os grupos têm como
fundadores pessoas que não tinham muito destaque como músicos no bloco anterior e
passam a tê-lo no seu bloco. Ribard constata o mesmo em Salvador: “(...) seguindo o
percurso individual de pessoas ‘formadas’ ou tendo pertencido a esse quadro [do Ilê Aiyê],
pode-se seguir, de maneira mais ou menos direta, o percurso de criação de um certo
número de entidades afro existentes.” (1999:342).
Uma outra solução de trabalho para os artistas dos grupos afro é a formação de
bandas paralelas, às vezes de samba, como no caso do Sambadila, ou mesmo de axé music,
ampliação de atividades fora do circuito de carnaval. Os blocos afro, num primeiro momento, oferecempossibilidades de mobilidade social através das ‘típicas’ carreiras de música e cultura.” (:65).45 Ribard diz ainda que quando um músico formado por um bloco pequeno consegue trabalho num blocogrande, ele se torna um “orgulho” para seu bloco de origem. Além disso, esse dado é usado como argumentodos blocos menores para reivindicarem auxílio por parte dos blocos grandes (1999:355). Talvez isso ocorraem Salvador em função da distância existente entre os cinco maiores e os demais blocos afro.
413
pois “é o que o povo gosta de ouvir”, como disse um dirigente que acabava de fundar uma
banda assim. Um dos dirigentes de Ilhéus disse que era preciso apelar para esse tipo de
música para se ter trabalho, pois a banda afro só faz sucesso em Ilhéus se estiver fazendo
sucesso em Salvador: “quando o Olodum estoura, a gente tem trabalho”. Um outro
presidente de um bloco cuja atividade além do carnaval resume-se a apresentações de sua
banda em hotéis, disse que era preciso tocar axé porque “é o que o povo pede”, mas que ele
fazia questão de “entremear com o afro para ir mudando o gosto do povo”.
Ver uma banda afro tocando axé pode ser motivo de comentários de reprovação por
parte de militantes do movimento negro e até de outros dirigentes de blocos afro, que
concebem seu trabalho como “voltado para a tradição”, mais “fiel” ao que seria a música
característica do bloco afro. No entanto, mesmo estes reconhecem que seria preciso tornar
o ‘afro’ mais comercial e aqueles que tocam axé dizem que gostariam de tocar somente
‘afro’, mas precisam ‘vender’ seu trabalho. Em todos esses casos, com mais ou menos
convicção, a música do bloco afro é concebida como produtora de subjetividade negra,
mas o desejo de diferir é capturado pelo modo de existência capitalístico, e a música tem
de ser transformada em trabalho para ser vendida, o que se torna possível quando sua
capacidade de diferir é minimizada e ela é incluída e passa a ser reconhecida pelo sistema.
À
A produção da Sexta Cultural no Memorial da Cultura Negra deu ao Dilazenze uma
outra possibilidade até então inexistente para os blocos afro de Ilhéus, a de experimentar a
forma ‘empresa’. Obviamente não se trata de uma empresa nos moldes administrativos,
mas o evento exige que o Dilazenze gerencie diferentes atividades, para as quais é preciso
que ele mobilize um pequeno número de pessoas que têm obrigações como se fossem
46 Conforme visto no início deste capítulo, o Dilazenze apresenta características – como a forte base familiar,a relação religiosa... – que impedem esse tipo de solução para o grupo e o mantêm coeso, o que, de um certo
414
funcionários e recebem gratificações por isso. Este é um outro aspecto do bloco afro que se
opõe a pensá-lo exclusivamente sob o viés do movimento social, pois dirigentes e
componentes, ao menos aqueles mais próximos que participam do dia-a-dia do grupo,
esperam que ele seja capaz de gerar empregos e de pagar a quem lhe presta serviços.
A novidade da experiência não está no pagamento das pessoas. A exemplo de
outros blocos afro de Ilhéus, aqueles que participam mais intensamente e com maiores
responsabilidades dos preparativos do carnaval recebem uma “gratificação”, cujo valor
depende do orçamento do carnaval e do dinheiro repassado pela prefeitura. Mas esse é
sempre um momento complicado e de muita negociação. Aqueles que defendem o bloco
afro como uma empresa que deve pagar por serviços prestados costumam entrar em
conflito com aqueles que insistem no bloco como uma entidade da qual as pessoas
participam em função de um sentimento de ‘pertencimento’ em relação a ele. No caso do
Dilazenze, o fato de serem essas pessoas da mesma família torna tudo mais difícil, pois,
por um lado, exige-se que o ‘trabalho pelo grupo’ seja ainda mais dedicado; por outro,
argumenta-se que “por ser todo mundo da família”, a ‘gratificação’ deveria ser maior.
A novidade da experiência no Memorial está mesmo na proposta: o trabalho do
Dilazenze deve gerar prestígio para o grupo e para o administrador do espaço, mas deve
mesmo representar uma fonte de renda e de emprego. O presidente do Dilazenze orgulha-
se de poder, pela primeira vez, empregar algumas pessoas no bar, na limpeza e na
segurança do lugar, além de conseguir gerar recursos para pagar uma secretária para o
grupo e manter uma conta telefônica que serve ao grupo e ao Memorial. Disse que desde
da fundação do Dilazenze, sempre sonhou que era possível “sobreviver fazendo cultura”,
“viver daquilo que as pessoas estavam produzindo.”
ponto de vista, tornam a situação do grupo ainda mais complicada.
415
Apesar da satisfação pela experiência, novamente o Olodum aparece como um
exemplo, sob um determinado ponto de vista, mal sucedido desse caminho. Segundo o
presidente do Dilazenze, a extrema profissionalização do grupo de Salvador teria
provocado o afastamento da “comunidade”: “começaram a entrar pessoas que eram
profissionais, funcionários, que eram pagas para fazer aquilo, não tinham compromisso
com o trabalho do Olodum.” E a partir dessa nova experiência, um problema há tempos
existente torna-se ainda mais explícito: trata-se da posição de ‘presidente’ ou de ‘dono’ do
bloco.
Além de empregar pessoas e de gerar lucros, o bloco afro costuma ter a estrutura
organizacional de uma empresa, obviamente num plano muito superficial. Salvo em alguns
raros casos, seu presidente é seu fundador ou um deles, às vezes com seu nome registrado
em cartório como proprietário do bloco. Ainda que outras pessoas possam geri-lo, as
principais decisões são suas. Esse é o caso, por exemplo, do Miny Kongo, que pode ser
assumido por pessoas diferentes dependendo do momento, mas o ‘dono’ é seu fundador,
que disse já ter pensado em “passar o grupo no cartório para as mãos” do principal
dirigente do bloco na época da pesquisa.
Ainda que o bloco seja registrado como uma ‘associação’ ou ‘grupo cultural’, o que
exige a existência de um estatuto que rege a realização de eleições periodicamente,
dificilmente elas ocorrem de fato. Para atualizar a documentação de um grupo, elas podem
ser simuladas, mas nem mesmo isso acontece. Em Ilhéus, por exemplo, apenas o Dilazenze
possui sua documentação em dia47. Em relação a Salvador, Ribard constata em sua
47 Em função de ser o único grupo em situação legal, em 2003 o Dilazenze recebeu todo o recurso docarnaval em seu nome – cerca de cinqüenta mil reais –, o qual seria repassado para os demais blocos. Porisso, o grupo foi acusado por um vereador de oposição de ser usado pela prefeitura para desvio de verbas. Apartir de então, a prefeitura exigiu que todos os grupos se regularizassem se quisessem receber recursos dogoverno municipal.
416
pesquisa que só o Malê Debalê seria um grupo democrático por realizar eleições para a sua
diretoria (1999:337)48.
Em virtude do bloco afro ser concebido, especialmente entre pesquisadores e
militantes políticos, como uma entidade comunitária, é estranho aos ouvidos a informação
de que um bloco “foi passado” para alguém ou a frase “[fulano] me deu o bloco”, mas
essas situações são muito recorrentes na história do movimento afro-cultural de Ilhéus. Em
geral, exceto em casos como o do Miny Kongo, ser o dono do bloco significa representá-lo
no Conselho das Entidades Afro-Culturais, receber o dinheiro do carnaval, decidir sobre o
desfile do bloco, vender o bloco (ou a banda) para apresentações e organizar outras
atividades recreativas ou de finanças. Por isso, quando se dá o bloco para alguém, cobra-se
que isso seja feito “em cartório” já que envolve dinheiro e o antigo dono pode querer
“tomar o bloco de volta”. Também pode acontecer do dono do bloco querer “deixá-lo nas
mãos” de alguém em quem confie para retomá-lo quando voltar de uma viagem, ou de um
emprego que vai lhe tomar muito tempo... Ao menos em Ilhéus, o modelo de bloco afro
como ‘comunidade’ é a exceção, não a regra.
O Dilazenze é o grupo que apresenta peculiaridades em relação aos demais
blocos49. Isso não quer dizer que sua estrutura organizacional não seja de ‘dono’.
Entretanto, mais uma vez a forte presença da família faz a diferença também nesse aspecto.
O presidente do Dilazenze lembra com orgulho de ter ouvido Mário Gusmão elogiar o Lê-
guê Depá para sua mãe porque ela referia-se ao grupo dizendo “nosso bloco” e não “meu
bloco”. A característica familiar do Dilazenze impede qualquer afirmação de propriedade
do bloco, mas não impede um certo ‘sentimento’ de propriedade, tanto por parte do
48 Nos outros quatro grandes blocos de Salvador, seus presidentes são os ‘donos’ dos blocos, talvez comexceção do Olodum, embora depois da experiência de João Jorge longe da presidência e das conseqüênciasdisso para o grupo, tudo indique que não haverá mudanças tão cedo.49 Entre os outros blocos afro de Ilhéus, talvez o Guerreiros de Zulu não tenha uma estrutura de ‘dono’ etenha uma relação de representação com a comunidade, já que é mais recente e foi fundado por três amigos.Os demais, mesmo aqueles mais novos, possuem líderes que são donos ou herdeiros de donos.
417
presidente quanto de outros componentes que, na maior parte do tempo, agem como se o
bloco lhe pertencesse. A reivindicação de democracia interna só acontece em momentos
muito circunstanciais. A nova experiência vivida pelo Dilazenze como ‘empresa’ na
produção da Sexta Cultural no Memorial da Cultura Negra é um deles.
O presidente do Dilazenze julga que manter o grupo sob seu controle é a melhor
forma de garantir sua eficiência, haja vista a sua experiência na função e seu
conhecimento. Além disso, sua concepção de bloco afro impediria o grupo de tornar-se
uma empresa nos moldes do Olodum e garantiria sua posição como um grupo de cultura
negra, conforme sua crítica citada páginas atrás. Outros componentes liderados pelo vice-
presidente do grupo, que reivindicam uma mudança na diretoria, pensam que o grupo
poderia ser mais eficiente, poderia lucrar mais se tomasse outras diretrizes.
O interessante nessa contenda é que o presidente do Dilazenze pretende defender o
grupo como bloco comunitário mantendo-se no cargo; por outro lado, em nome da
eficiência do bloco empresa, a ‘oposição’ reivindica a “democracia” do bloco como
movimento social. Mas a ‘democracia’ que pode existir num bloco afro tem de ser bem
entendida: dificilmente o bloco realmente muda de mãos, pois, como diz Moura, “em todo
bloco afro, quando se fala em ‘democratização’, trata-se da divisão de alguns cargos e
encargos entre os notáveis fiéis ao grupo nuclear, que normalmente é aquele que fundou o
bloco ou o resgatou de uma crise histórica.” (Agier e Moura 2000:371). Qualquer disputa
necessariamente vai ocorrer entre aqueles considerados legítimos para assumir a direção do
bloco.
Apesar desses aspectos do bloco como empresa e de ser controlado, em geral, por
uma pessoa, a discussão colocada no final deste capítulo não pretende negar o caráter
comunitário do bloco afro. Em primeiro lugar, a posição de ‘dono’ de bloco tem muito de
sua importância baseada no fato de que dirigir um bloco afro pode implicar uma grande
418
influência sobre um número considerável de pessoas que se aproximam do grupo. Isso faz
dos dirigentes dos blocos afro líderes e, como ressaltado no capítulo anterior, ‘alvos’
preferenciais para o investimento de políticos, facilitado pelo desejo do dirigente de
perenidade no poder do bloco e que este pode proporcionar. Mas não apenas por isso: tal
como foi enfatizado no capítulo anterior, um bloco afro constitui um território existencial
onde pessoas entram em devir negro e viver isso vale a pena, para componentes e para
dirigentes, ainda que seja somente durante o desfile do carnaval, como acontece com a
maior parte dos grupos de Ilhéus.
À
O bloco afro nasce de encontros de fluxos que produzem uma nova forma de estar
no mundo. É um ‘território negro’ porque produz um modo de existência negro, que é
outro, é dissidente do dominante. Daí, do desejo de dissidência em relação a uma forma de
subjetivação dominante que oprime, que discrimina, que faz sofrer, nascem novas músicas,
novos ritmos, uma nova estética, novas maneiras de usar o tempo, novas concepções do
que está à volta: uma nova possibilidade de vida. Este foi o tema do capítulo anterior.
Este capítulo pretendeu mostrar que a subjetividade capitalística afeta as pessoas
sem cessar, capturando os processos de singularização gerados pelo desejo de diferir que
produzem o ‘território negro’ do bloco afro. Através de outros desejos, o de ‘incluir’
pessoas ou de se sentir ‘incluído’, ela transforma as atividades dos blocos afro em
mercadorias que podem ser vendidas agora ou no futuro (tratando-se da
‘profissionalização’ de crianças e adolescentes). Não se trata aqui de condenar tais ações.
Esta não é uma questão pertinente, pois esses aspectos constituem os blocos afro tanto
419
quanto sua singularidade50. Se utilizo a idéia de ‘captura’ é porque o desejo de diferir vem
primeiro – afinal, as pessoas poderiam tentar ‘ser incluídas’ por outras vias mais fáceis do
que a do bloco afro –, mas uma vez concebido dessa forma, a venda da arte e das
atividades dos grupos torna-se uma de suas características e, cada vez mais, seus ‘trabalhos
sociais’ também. Assim os blocos afro têm sido definidos.
50 “Há sempre algo de precário, de frágil nos processos de singularização. Eles estão sempre correndo o riscode serem recuperados, tanto por uma institucionalização, quanto por um devir grupelho. Pode acontecer, porexemplo, de um processo de singularização ter uma perspectiva ativa a nível do agenciamento e,simultaneamente, a esse mesmo nível, fechar-se em gueto.” (Guattari e Rolnik 1986:53).
420
Conclusão
“Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nósperdemos completamente o mundo, nos
desapossaram dele. Acreditar no mundosignifica principalmente suscitar
acontecimentos, mesmo pequenos, que escapemao controle, ou engendrar novos espaços-tempos
(...). Necessita-se ao mesmo tempo de criação epovo.”
(Deleuze 1992:218)
Cada um dos capítulos deste trabalho teve o objetivo de descrever o movimento
afro-cultural de Ilhéus, ou mais exatamente o que é um bloco afro no contexto deste
movimento. Para entender seu surgimento em Ilhéus foi preciso começar pela descrição
dos agenciamentos que tornaram possível o nascimento do primeiro bloco afro, assim
como de toda uma nova forma de ver e de viver o mundo a partir dos encontros que
‘reafricanizaram’ o carnaval e a vida de Salvador. Os segundo e terceiro capítulos foram
dedicados a pensar sobre os fluxos que passavam em Ilhéus e que, em agenciamentos com
aqueles de Salvador, produziram o Miny Kongo e o Lê-guê Depá, os primeiros blocos afro
da cidade. Já os dois capítulos seguintes concentraram-se na descrição stricto senso do que
compõe um bloco afro, primeiramente a partir do que o singulariza pela produção de uma
forma de subjetivação negra e, em seguida, de sua captura pela subjetividade capitalística
através da homogeneização de suas atividades: tudo é transformado em ‘trabalho’ –
artístico ou social.
Considerando-se o que foi discutido em Encontros 1 a respeito da novidade do
surgimento do primeiro bloco afro – o Ilê Aiyê – enquanto forma de expressar, de dar
421
visibilidade a um desejo de mostrar-se diferente e de, assim, propor mudanças na forma de
experimentar o ‘mundo’, a transformação das atividades do bloco afro em ‘trabalho’
representa o aniquilamento dessa produção de singularidade.
Como salientado no primeiro capítulo, os movimentos negros, entre eles os blocos
afro, também foram chamados de “novos movimentos sociais” por proporem a diferença
como base para as reivindicações, para novas lutas fora da esfera da produção. O problema
é que também os movimentos sociais podem ser ‘modelizados’ segundo discursos e
práticas. Isso fez com que desde o início os blocos afro fossem criticados e condenados por
não agirem como se espera de um ‘movimento social’, por enfatizarem a ‘cultura’ em
detrimento da ‘política’. E tem sido assim. A maior parte das críticas ao movimento afro-
cultural de Ilhéus vem de militantes de movimentos negros que concebem a política como
seu campo privilegiado de ação, mas elas também podem ser feitas por políticos de
partidos de esquerda ou de direita, por representantes do governo e por outros setores que
mantêm relações com os grupos afro, como, por exemplo, entidades que desenvolvem
trabalhos sociais que criticam os blocos afro quando estes cobram por suas apresentações1.
Do ponto de vista de sua posição de minoria, tanto o mercado que sobrecodifica as
atividades artísticas dos grupos afro e transforma-as em trabalho – o qual é preciso vender,
isto é, cobrar pelas apresentações – quanto a ‘forma-ong’ que modela e transforma em
‘trabalhos sociais’ suas atividades cotidianas constituem formas de reduzir a potência do
movimento afro-cultural, retirando sua capacidade de entrar em um devir-minoritário, de
devir-negro2.
1 Ver Encontros 4.2 Deleuze e Guattari entendem ‘minoria’ como “conjunto ou estado” (1997:88) em relação a uma ‘maioria’,entendida não como “uma quantidade relativamente maior, mas a determinação de um estado ou de umpadrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias: homem-branco, adulto-macho, etc. Maioria supõe um estado de dominação, não o inverso.” (:87). “Minoritário” é“devir ou processo” (:88); é o meio de singularizar-se e de não ser maioria nem minoria, de escapar doenquadramento por um padrão, seja dentro dele (maioria) ou em relação a ele (minoria).
422
No entanto, só a primeira forma de captura do bloco afro, que o faz desejar ‘incluir-
se’ no mercado, costuma ser criticada. A segunda captura – efetuada pela ‘forma-ong’ – ao
contrário da primeira, parece adequar o bloco ao que se espera dele, conforme visto no
capítulo anterior a partir da implantação do Projeto Batukerê pelo Grupo Cultural
Dilazenze. Isso ocorre porque também os movimentos negros políticos, os movimentos
sociais, os militantes de ‘esquerda’ tanto quanto os representantes de governo, os
empresários, enfim, todos são (somos) afetados por uma nova forma de subjetivação
produzida pelo capitalismo: a onguização.
A partir de uma rápida análise de como tanto os blocos afro quanto o movimento
negro político de Ilhéus estão sendo afetados pela onguização, ao final deste trabalho cabe
refletir sobre essa nova proposta de atuação dos movimentos negros.
À
Logo no início do Miny Kongo, em 1980, aproximaram-se do grupo pessoas que
pensavam o bloco afro como um meio de aglutinar a população negra para discutir
questões relativas ao racismo e a outras formas de opressão. Não havendo espaço para esse
tipo de discussão no bloco, boa parte dessas pessoas participou da fundação do Axé Odara
que, como visto em Encontros 3, tinha um perfil muito mais ‘político’: foi o primeiro a
promover protestos no ‘13 de Maio’ (data da abolição da escravidão no Brasil), a
comemorar o ‘20 de Novembro’ (aniversário da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos
Palmares) e o aniversário de independência de Angola, a oferecer palestras sobre a
temática racial etc.
Após sua fundação, o Axé Odara não tardou a se transformar num grupo voltado
para a realização de espetáculos, o que acabou por afastar os ‘militantes’, ou seja, aqueles
que concebiam o grupo como um veículo de atuação do movimento negro político.
423
Algumas dessas pessoas ainda participaram de uma primeira tentativa de fundar um grupo
do Movimento Negro Unificado em Ilhéus em 1988, no bojo das comemorações do
centenário da Abolição. Diante do fracasso do empreendimento, alguns militantes
continuaram atuando isoladamente e outros participaram da fundação do MNU de Ilhéus
alguns anos mais tarde3.
Do final dos anos 80 até 1997, dirigentes dos blocos afro e pessoas consideradas
ligadas a grupos do movimento negro político pouco se relacionaram, a não ser em debates
em escolas e outros eventos relativos ao 13 de Maio ou ao 20 de Novembro – as únicas
datas em que a população negra recebe atenção e as entidades negras têm visibilidade.
Nessas ocasiões, quando representantes dos blocos afro e membros do movimento negro
político eram chamados para a mesma mesa, as acusações eram mútuas e de mesmo teor
ano após ano: enquanto o movimento negro político dizia que o movimento afro-cultural
não tinha ‘consciência política’, que só queria ‘fazer festa’, ou seja, que suas atividades
não ajudavam a mudar a realidade da população negra, os grupos afro acusavam o
movimento político de não conseguir atingir a massa, de ser muito intelectual, de só ficar
fazendo reuniões e de querer dirigir e “usar” os blocos... Discussões em tudo semelhantes
àquelas que existiam entre grupos do movimento negro político e grupos chamados de
culturais – ou culturalistas, como forma de acusação – especialmente nos anos 70 e 80 no
Rio de Janeiro, em Salvador ou em outros lugares onde esses grupos estivessem presentes.
As histórias de vida das pessoas ligadas ao movimento negro político têm em
comum uma passagem pelo Partido dos Trabalhadores (PT) ou uma aproximação deste nos
anos 80 e/ou 904, sendo que algumas ainda pertencem a ele, outras estão ou passaram por
3 Além do movimento afro-cultural, do MNU, da pastoral afro da igreja católica e de grupos negros formadosno interior de igrejas evangélicas, em Ilhéus há também uma seção do UNEGRO, mas de reduzidavisibilidade.4 O PT surgiu, e assim continuou por vários anos, com uma imbricação muito forte com o “movimentopopular”, o interior do partido reproduzindo os diversos movimentos existentes na sociedade através dos seus“núcleos de base”.
424
outros partidos e outras ainda afastaram-se de partidos políticos. De qualquer maneira,
todas eram – e ainda são – identificadas com o PT por membros dos blocos afro. Essa
identificação fazia com que qualquer aproximação dessas pessoas do movimento afro-
cultural fosse entendida como uma aproximação político-partidária: seria o PT querendo
“usar politicamente” os blocos afro.
Por outro lado, pessoas do movimento negro político costumam dizer que os
representantes dos grupos afro são “despolitizados” ou “se deixam usar pelos políticos”,
subentendidos como de partidos de direita, e que praticam com eles uma relação
clientelista, imediatista, ... que, enfim, os dirigentes dos blocos afro não teriam
“consciência política”.
Então, para os grupos afro-culturais, o movimento negro seria “político demais”
porque “mistura tudo com política” e, na verdade, “não gosta e não sabe nada de cultura
negra”; para os representantes do movimento político, os blocos afro “não sabem nada de
política”, “se deixam usar” para poderem “tocar tambor e ter o dinheiro do carnaval”.
Com base em sua pesquisa sobre política “do ponto de vista” do movimento afro-
cultural de Ilhéus, Goldman (2000) conclui que o que se denomina política é, sobretudo, o
que os “políticos fazem”, ou seja, uma “atividade” (:318) que transcorre em qualquer lugar
considerado mais ou menos legítimo. Concordando com o autor, pode-se afirmar que
sendo política algo que se faz, ela constitui, então, um meio para conseguir outras coisas:
para uns ela pode trazer enriquecimento, emprego para amigos e familiares, prestígio junto
a outros políticos mais influentes e outros ganhos pessoais; para outros, a política pode ser
o modo de obter melhorias para uma comunidade ou para um grupo específico de pessoas
(portadores de deficiências, estudantes, trabalhadores de uma tal categoria etc.), por
425
exemplo5. Quando o próprio dirigente do bloco afro ‘faz política’, seu objetivo pode ser
um emprego para ele ou para alguém da família, a reforma da quadra, o patrocínio do
carnaval ou de algum evento... ‘Fazer política’ não seria algo muito bom, especialmente
nesses casos, quando se admite que “é preciso fazer política” como se fosse um último
recurso no intuito de alcançar algo muito necessário. Por isso, a afirmação por parte de
membros dos blocos afro de que as pessoas do movimento negro são políticas demais é
uma acusação, e sua aproximação é algo que deve ser rejeitado ou tomado com cuidado,
pois todas as suas ações em relação aos blocos seriam para ‘fazer política’.
Já o movimento negro político conceberia a política como uma esfera da vida
social. Sendo um domínio, é preciso desejar ‘participar’ dela a fim de poder influenciar o
aspecto final que ela assume; especialmente ao longo dos anos 80 e 90, demandava-se a
‘participação política’ das pessoas como sua forma de contribuir para um ‘país melhor’,
por exemplo. Assim, política não é algo que se faz, mas uma espécie de lugar onde todos
deveriam querer atuar; não se faz política, participa-se dela para transformá-la. Nesse
sentido, ‘política’ parece poder ser objetivamente definida. Dessa forma, dizer que os
dirigentes dos blocos afro ‘não têm consciência política’, que ‘se deixam usar pelos
políticos’ significa dizer que eles não estão ‘participando’ como seria esperado de um
grupo de movimento social, cujo objetivo deveria ser o de provocar uma mudança na
‘política’ almejando modificar as ‘relações de poder’ e, com elas, a ‘sociedade’. Política,
então, não seria um meio, mas seu próprio fim.
Em relação à cultura, haveria uma inversão na forma como ela é concebida por
esses diferentes movimentos negros. Se para os blocos afro a política é uma atividade, algo
que se faz, ao contrário, a cultura seria um domínio da vida social, o qual é preciso viver.
Quando um bloco afro se define como um grupo de preservação da cultura negra, ele está
5 E, evidentemente, um mesmo ‘político’ pode ‘trabalhar’ por todas essas coisas, o que, aliás, é o que
426
dizendo que cada uma de suas atividades (desfile de carnaval, músicas, apresentações de
dança, forma de se vestir, temas enfocados...), é uma manifestação de cultura negra – algo
que existe e que os blocos afro mostram para as pessoas como ela é a fim de não a deixar
desaparecer. Este é seu valor. ‘Cultura negra’ seria, então, um modo de vida e as
atividades dos blocos afro são uma forma de criar um novo território existencial que
produz esse modo de vida. Assim, não basta ‘ser negro’ para viver a ‘cultura negra’; é
preciso desejar vivenciá-la, experimentá-la no dia-a-dia do bloco, que deve, por isso e para
isso, existir o ano todo. Partindo dessa perspectiva, representantes dos blocos afro podem
dizer que as pessoas do movimento negro ‘não sabem nada de cultura negra’ porque não a
vivem, já que não vivem sua música, sua dança, sua religião.
Agora, tomando o ponto de vista do movimento negro político, a cultura negra é
que é uma atividade; é alguma coisa que os blocos afro fazem, especialmente quando se
pensa o bloco afro como um grupo formado por pessoas que desejam sobreviver de ‘fazer
cultura’: cultura negra torna-se, então, uma atividade que se vende. Por ser concebida
como uma atividade, a cultura negra é reivindicada pelos movimentos negros políticos
como algo que deveria ser um meio, um instrumento para levar as pessoas a quererem
participar da política e esta deveria ser a sua principal função.
Sistematizando e, é claro, simplificando: para representantes dos blocos afro, a
política seria uma atividade e um meio; enquanto a cultura seria uma dimensão da vida
social e teria uma finalidade em si mesma. Já para o movimento negro político, a política é
que teria uma finalidade em si e seria uma dimensão da vida social; a cultura seria uma
atividade e deveria ser um meio.
Como consta do capítulo anterior, em 1997 o Movimento Negro Unificado (MNU)
de Ilhéus, o grupo de maior expressão do movimento negro político da cidade, aproximou-
geralmente ocorre.
427
se dos blocos afro através do gerente de ação cultural da Fundação Cultural de Ilhéus, seu
mais importante representante. Essa aproximação influenciou tanto os blocos afro quanto o
próprio MNU, ao menos o representante em questão, considerado seu porta-voz. Seus
discursos apresentaram mudanças sutis, mas estas evidenciaram que ambos os grupos
estavam sendo afetados pelo que chamei de processos de cidadanização no capítulo
anterior.
As ‘mudanças sutis’ fizeram-se notar principalmente na aceitação dos argumentos
do outro grupo, que naquele momento pareciam fazer mais sentido do que antes. Assim, o
MNU ainda insistia na participação política dos grupos afro-culturais, mas sua ênfase
passou a estar na organização das pessoas envolvidas pelo bloco afro através das
atividades que objetivavam ‘elevação de auto-estima’ – argumento dos blocos afro para
justificar sua importância social, ainda que somente por existirem. Além de fazer nascer ou
fortalecer o desejo de ‘ser negro’, de ‘assumir a negritude’, o MNU passou a entender as
atividades dos grupos afro como um meio de levar as pessoas a se valorizarem mais e,
conseqüentemente, a buscarem soluções para seus problemas, que poderiam não passar
pela intervenção na política – o importante é a organização das pessoas em torno do grupo
afro.
Por sua vez, os blocos afro, ainda mais do que antes, passaram a enfatizar a
promoção das atividades culturais que antes eram criticadas pelo movimento negro político
também pela noção de auto-estima: elevar a auto-estima das pessoas era a contribuição que
o bloco poderia dar à sua comunidade. Assim, mesmo que um bloco não promovesse
eventos ‘sociais’ para sua comunidade – o que seria sua ‘função’, de acordo com os
representantes do MNU –, suas apresentações, ensaios e o desfile no carnaval já seriam seu
‘trabalho social’, sua forma de contribuir. O raciocínio de que qualquer atividade do bloco
428
afro poderia ser concebida como ‘trabalho social’ já era uma forma de admitir que esta
deveria ser uma preocupação sua.
Todo esse processo, cujo início em 1997 corresponde apenas a um momento de
maior evidência, seguiu intensificando-se. A implantação do Projeto Batukerê pelo Grupo
Cultural Dilazenze em 2000 foi produto dos encontros deste, conforme a descrição do
capítulo anterior, com o que chamei de ‘forma-ong’. Seu desenvolvimento, ou apenas o
‘desejo de’ realizá-lo quando ainda era uma idéia, produziu mudanças nas formas de
interação do Dilazenze com outros grupos sociais. A partir do Batukerê, o grupo passou a
ser visto como um modelo, uma referência do que um bloco afro deveria ser, pois agora
estaria “cumprindo sua função social”, como disse o padre responsável pela Pastoral Afro.
As mudanças nas relações do governo, de entidades filantrópicas e principalmente
do movimento negro político com o Dilazenze e nos discursos a seu respeito demonstram
que todos estão sendo afetados por uma nova forma de subjetivação gerada pelo
capitalismo, a onguização.
No caso de militantes do movimento negro político que sempre criticaram os
grupos afro por sua ‘falta de consciência política’, a mudança de perspectiva em relação ao
Dilazenze é notória na procura pelo grupo para propor atividades conjuntas e convênios
com o Batukerê, o que evidentemente só é possível porque esses militantes realizam
atividades semelhantes. Muitos deles estão afastados da militância política stricto sensu e
atualmente dedicam-se a participar de organizações que trabalham com comunidades
carentes, quase sempre em projetos de educação e de geração de emprego e renda.
Tais mudanças nas relações entre o Dilazenze e o movimento negro político não
significam que eles estejam mais próximos ou unidos em torno de objetivos comuns;
tampouco que suas concepções a respeito de cultura e de política mudaram completamente.
A onguização, como uma nova forma de subjetivação, gera novas práticas e agrega novos
429
significados ao que já existe. Ao serem afetados por ela, esses grupos passam a conceber
suas práticas por outros prismas.
Para o movimento afro-cultural, especificamente para o Dilazenze que tem
experimentado com mais intensidade essa nova forma de subjetivação, a cultura negra
continua sendo vivida e tendo uma finalidade em si mesma, além de ser lembrada como
forma de promover a auto-estima; porém, mais do que isso, à cultura negra é atribuída
capacidade de produzir uma ‘intervenção social’, como se costuma dizer. A ‘inclusão
social’ é o principal objetivo do projeto: o Batukerê “tira as crianças da rua e lhes dá uma
profissão”. E a política ainda é um meio para conseguir outras coisas, mas fazer o Batukerê
continuar a funcionar é prioridade: faz-se política para isso.
Já para as pessoas do movimento negro político, agora envolvidas em entidades
formadas como ‘organizações não-governamentais’ ou em convênios com elas, a cultura
continua sendo um meio, tanto que a ‘cultura negra’ faz parte dos projetos em aulas de
dança afro, percussão e capoeira, que “atraem” e “seguram” crianças e adolescentes – estes
são seus objetivos. Mas a política não é mais somente uma esfera privilegiada da vida
social tendo uma finalidade em si mesma – lugar e razão da luta. Ela também se torna um
meio porque deve ser instrumento para melhorar a vida das pessoas de uma tal
comunidade, atendidas por um tal projeto, organizadas para um tal objetivo, e não mais
para mudar ‘a sociedade’.
À
Se o desejo de singularização que criou o bloco afro relaciona-se com a proposta de
uma forma distinta de experimentar o mundo, os desejos de ‘incluir’ e de ‘estar incluído’
capturam a singularidade e relacionam-se com a idéia de aceitação do mundo tal como ele
430
existe6. Luta-se para participar dele ou para fazer outros participarem, não para modificá-
lo. Desejos criados pelo mercado capitalista, que sempre teve na inclusão sua principal
forma de expansão. Ele descodifica os fluxos, desterritorializa-os, para logo depois
sobrecodificá-los, isto é, fazer com que os fluxos descodificados passem por um mesmo
fluxo. É o mesmo que dizer, como o fazem Hardt e Negri, que tudo passa a ser visto de
uma “perspectiva monetária”: “não existe nada, nenhuma ‘vida nua e crua’, nenhum
panorama exterior, que possa ser proposto fora desse campo permeado pelo dinheiro; nada
escapa do dinheiro.” (2001:51). O capitalismo não admite um ‘lado de fora’, nada lhe é
exterior:
“(...) o mercado capitalista é uma máquina que sempre foi de encontroa qualquer divisão entre o dentro e o fora. Ele é contrariado porbarreiras e exclusões; e floresce quando inclui mais e mais em suaesfera. O lucro só pode ser gerado pelo contato, pelo compromisso,pelo intercâmbio e pelo comércio. A realização do mercado mundialconstituiria o ponto de chegada dessa tendência. Em sua forma ideal,não há exterior para o mercado mundial: o globo inteiro é seudomínio.” (Hardt e Negri 2001:209)7.
Sendo as ‘organizações não-governamentais’ produto da subjetividade capitalística,
sua lógica de atuação é a mesma do capitalismo: incluir. Mas ‘inclusão’ significa também
serialização, modelização, não-singularização. Hardt e Negri sustentam que agindo a partir
de “imperativos éticos e morais” (2001:54), as ongs são “as mais poderosas armas de paz
da nova ordem mundial (...). Essas ONGs8 movem ‘guerras justas’ sem armas, sem
6 “O que faz a força da subjetividade capitalística é que ela se produz tanto ao nível dos opressores quantodos oprimidos.” (Guattari e Rolnik 1986:44).7 Reproduzo a seguir a nota que os autores vinculam ao trecho citado por desejar fazer o mesmo tipo deressalva: “Há indubitavelmente zonas de privação dentro do mercado mundial onde o fluxo de capital e debens é reduzido ao mínimo. Às vezes, essa privação é determinada por uma explícita decisão política (comonas sanções comerciais contra o Iraque), e outras vezes é decorrência da lógica implícita do capital global(como nos ciclos de pobreza e inanição na África subsaariana). Em todos os casos, entretanto, essas zonasnão constituem um lado de fora do mercado capitalista; na realidade, funcionam dentro do mercado mundialcomo degraus mais subordinados da hierarquia econômica global” (Hardt e Negri 2001:467, nota 12).8 Os autores referem-se “principalmente às organizações globais, regionais e locais dedicadas a obras desocorro e à proteção de direitos humanos, como Anistia Internacional, Oxfam, e Médicos sem Fronteiras.”(Hardt e Negri 2001:54). É claro que há diferentes tipos e propostas de atuação de organizações não-governamentais e não se trata de desqualificar seu trabalho, no entanto, essas diferenças não são relevantespara a minha argumentação, já que meu interesse é em sua proposta mais ampla de organização socialmovida pelo desejo de intervenção e inclusão social, comum a todas.
431
violência, sem fronteiras”; agem em nome de uma ‘cidadania universal’ baseada em
“necessidades universais” e “direitos humanos” (:55), que elas ajudam a estabelecer quais
são diante de um mundo que está dado. Termos como ‘globalização’, ‘mundo globalizado’
ou ‘o mercado’ são recursos que evocam a impossibilidade de se fazer diferente e
naturalizam a forma que as coisas têm, assim como, evidentemente, os valores contidos
nesse mundo. A ‘rede mundial de computadores’, a internet, é o maior símbolo da
globalização; ter acesso a ela é, então, a melhor forma de alguém ou de um grupo se sentir
incluído neste mundo. Depois de outras necessidades consideradas mais básicas, como o
acesso à comida e à escrita, por exemplo, o conhecimento de informática é tomado como
algo essencial para qualquer pessoa, ao menos é o que se pode concluir a partir da
observação de inúmeros programas sociais de “inclusão digital” implantados por ongs ou
por governos, da valorização dos meios de comunicação a esses projetos e, voltando à
experiência de campo, da vontade de diversas pessoas de que o Projeto Batukerê viesse a
oferecer esse ‘cursos de informática’.
Nos anos 60 e 70, os novos movimentos sociais foram o produto de inúmeros
processos de singularização. Como diz Guattari (1986), “o que caracteriza os novos
movimentos sociais não é somente uma resistência contra esse processo geral de
serialização da subjetividade, mas também a tentativa de produzir modos de subjetividade
originais e singulares.” (:45). A onguização, como uma forma de subjetivação que afeta os
blocos afro, o movimento negro político, os movimentos sociais, os governos – e cada um
de nós – paralisa os processos de singularização e diminui a possibilidade de invenção de
outros modos de existência porque ela busca impedir a emergência do intolerável, pois só
ele pode suscitar revoluções:
“Nossas relações habituais com o mundo se revelam convençõesarbitrárias, que nos protegem do mundo e o tornam tolerável para nós:e aí está o compromisso intolerável com a miséria de toda natureza eos poderes que a alimentam e propagam. Nossos interesses se
432
inclinam, é claro, sempre para o lado da obediência. Os esquemassensório-motores, respostas totalmente prontas a situações desofrimento sempre singulares e evolutivas, são testemunhas de umainteriorização da repressão [...]. Os clichês da luta ou da compaixãoparecem chegar, hoje, a seu paroxismo, ainda mais vergonhoso pelofato de manifestarem uma fantástica capacidade de adaptação aoodioso e a suas causas (vergonha também de nós mesmos, já que essemundo é o nosso).” (Zourabichvili 2000:349).
Ao contrário dos novos movimentos sociais, a onguização – “interiorização da repressão”,
seguindo a citação de Zourabichvili – modela, serializa, nos diz como ‘reagir’, e sempre da
mesma maneira9, aos problemas do mundo para torná-lo mais tolerável, o que significa um
mundo em que um número cada vez maior de pessoas tenha os mesmos desejos: participar
e fazer participar do sistema capitalista. Nesse aspecto, como salientou Zourabichvili na
citação acima através da idéia de “clichês da luta ou da compaixão”, movimentos políticos
ou filantrópicos – e as organizações não-governamentais se encaixam em ambos os tipos –
criam formas de adaptação ao mundo, não de mudanças.
O modelo de atuação imposto pela onguização é o de supressão de carências,
detectadas, evidentemente, por quem supõe não as ter, pelos já ‘incluídos’. São as
deficiências, ‘o que falta’, que impedem algumas pessoas (mesmo que sejam bilhões) de
participarem desse mundo, então, é preciso cuidar de tais carências a fim de incluí-las.
Como, desse ponto de vista, o mundo é assim e não há outra forma de vida possível fora
dele, ou ao menos uma que seja considerada boa, torna-se uma ‘obrigação moral’ de quem
participa dele ‘ajudar’ os excluídos. Nesse sentido, atuar numa ong passa a ser mais
importante do que ser militante de um partido político.
Uma formulação de Peter Gow (1999) a respeito do desejo de antropólogos de
promover a alfabetização de grupos indígenas ajuda a situar melhor o problema. Sem
entrar no mérito da questão, o fato é que as pessoas que implementam projetos de
9 É a isso que Zourabichvili chama de “clichês”, ou seja, “tudo o que vemos, dizemos, vivemos, e até mesmoimaginamos e sentimos já está, definitivamente, reconhecido; carrega, por antecipação, a marca da
433
alfabetização indígena consideram que a aquisição da escrita é uma “coisa boa” para os
grupos e que se trata de uma ação “politicamente desejável” e “eticamente obrigatória”10.
Gow se pergunta, então, qual é a concepção de política que permeia a defesa desse tipo de
ação. Para ele, trata-se de um modelo baseado na visão do mundo como sendo constituído
por problemas sobre os quais é preciso agir; essas ações constituem pessoas como
‘agentes’, aquelas que fazem, e tornam outras ‘pacientes’: umas e outras são
hierarquicamente ordenadas. Os ‘pacientes’ são dados por suas ‘deficiências’ e os agentes
pela ação para ajudar os primeiros a superá-las. Assim, segundo o modelo, a ação política
está na ‘agência’ e negá-la – isto é, questionar tais ações ou recusar-se a agir – é não atuar
politicamente.
Hardt e Negri (2001) sustentam que embora as ongs estejam “fora do poder do
Estado e geralmente em conflito com ele”, elas tampouco estão “do lado dos interesses do
capital” e do projeto neoliberal (:334). No que tange às ongs enquanto entidades concretas,
os autores podem ter razão. Contudo, talvez não se possa dizer o mesmo da visão de
mundo difundida por elas. A multiplicação dessas entidades ao redor do mundo veio na
mesma esteira do crescimento do neoliberalismo e da diminuição do tamanho da
responsabilidade ‘atribuída’ ao Estado na vida de cada um de nós. Assim, faz parte do
vocabulário dessa nova visão de mundo expressões como ‘solidariedade’, ‘compromisso
social’ e ‘cada um deve fazer a sua parte’ unidas numa mesma ‘ação’: um indivíduo se une
a outro indivíduo para ajudar alguns outros, não todos; um indivíduo pode ajudar muitos
fazendo um trabalho social numa escola ou doando sopa para quem mora na rua, mas ele
não pretende melhorar a qualidade de toda a educação do país ou resolver o problema da
recognição, a forma do já visto e do já ouvido. (...): tudo tem, de saída, a forma do que já estava presente, doque já está totalmente feito, do preexistente.” (Zourabichvili 2000:349).10 É interessante que Gow observe que esses antropólogos falem como os “missionários que eles pretendemdesprezar”, pois Hardt e Negri (2001) também assemelham as ongs a religiosos: “como os dominicanos dofim do período medieval e os jesuítas na alvorada da modernidade, esses grupos lutam para identificarnecessidades universais e defender direitos humanos.” (:55).
434
habitação ou do desemprego. Esses são problemas do Estado que o ‘cidadão’ não pretende
resolver; seu problema é com a fome das pessoas que moram na rua ou com as crianças da
escola da vizinhança que não sabem informática, pois elas não podem esperar11.
Retomando a análise de Gow, a concepção de política em jogo no contexto da
discussão sobre educação indígena privilegia a ação (“agency”) em detrimento do
conteúdo desta ou de uma reflexão mais aprofundada; importa “fazer alguma coisa”.
Embora os grupos dos movimentos negros de Ilhéus, culturais ou políticos, não se refiram
aos seus trabalhos sociais como ‘política’, a onguização como uma nova forma de
subjetivação pode agregar novos significados ao que é entendido por cultura e por política.
Uma matéria de jornal intitulada “A nova consciência negra” (O Globo 14/09/03) é
exemplar do processo de mudança a partir da afetação por essa nova subjetividade.
Segundo a matéria, a “luta contra o racismo” dar-se-ia agora de “forma diferente”: trocar-
se-ia o “engajamento político pela militância na arte com compromisso social.” E ainda:
“no lugar dos manifestos políticos pró-igualdade racial, estão as letras de músicas e os
grupos de voluntários para melhorar as condições de vida de quem mora no morro”. “Arte
social”, “compromisso social”, “intervenção na comunidade”, “inclusão social”,
“trabalho”, “exemplos” [pessoas negras bem-sucedidas em seus trabalhos como artistas],
são as formas de se lutar pela “igualdade”.
A visão predominante entre os entrevistados da matéria jornalística é a mesma que
Cunha (2000) atribui ao Grupo Cultural Afro Reggae, sendo um de seus líderes um dos
entrevistados. Segundo a autora, a ação do Afro Reggae é dirigida aos “excluídos”, àqueles
moradores da “comunidade”, entendida como “conjunto em torno do qual fronteiras,
11 Diariamente vê-se matérias jornalísticas na TV sobre trabalhos voluntários. Uma delas versava sobre umapessoa (uma mulher por volta dos cinqüenta anos, cuja profissão foi informada como sendo a de “dona decasa”) que distribuía sopa às terças-feiras à noite para moradores das ruas de São Paulo. Ela falou sobre oquanto era “gratificante” e “faz[ia] se sentir bem”, “feliz” “poder dar comida a alguém com fome”. É claroque é preciso reconhecer a generosidade dessa ‘ação’, porém, soa estranho ouvir alguém dizer que fica
435
principalmente socioeconômicas e geográficas foram estabelecidas e formuladas como tal”
e que “compartilham dessa identidade imposta pela exclusão e pela marginalização.”
(:366). A ênfase na ‘marginalização’ ou na ‘exclusão’ retira o caráter ‘étnico’ da ação do
grupo – “se a gente trabalhar apenas com negros ou se dedicar apenas a fazer trabalhos
voltados para essa população, vamos continuar isolados”, diz o diretor do Afro Reggae na
matéria do jornal. Da mesma forma, Cunha mostra que o discurso da ‘cidadania’ substitui
o da ‘identidade negra’ na proposta de ação do Afro Reggae:
“Se a ênfase no binômio mobilização/conscientização parecia nãomais ter relevância nem ser objeto de projetos do grupo, sua lógica foirecontextualizada através da utilização da noção de ‘cidadania’. Aidéia era desenvolver atividades que estimulassem aos(principalmente) jovens e crianças envolvidos, auto-estima,oportunidades culturais e educacionais e o acesso a algum tipo deexperiência profissionalizante. Todos esses objetivos se justificavamna necessidade de se diminuírem as distâncias sociais e culturais entreos moradores das favelas e do ‘asfalto’ e dificultar o acesso de jovensàs carreiras criminosas através da criação de oportunidadesculturais/recreativas e profissionais, passos importantes para umaexperiência de transformação do jovem antes marginalizado emcidadão.” (:363).
Voltando à matéria do jornal, em seu depoimento o líder do Afro Reggae diz que se
“orgulha de ter tirado muito jovem do tráfico” – preocupação também do Dilazenze, que
utiliza o Batukerê para dar ‘ocupação’ às crianças e aos adolescentes a fim de ‘tirá-los do
tráfico’. Vê-se, assim, que os objetivos do Afro Reggae são em tudo muito semelhantes aos
do Dilazenze na realização do Projeto Batukerê, e ambos se assemelham a diversos outros
projetos sociais, todos afetados por uma mesma forma de subjetivação.
À
A proposta de ação dos blocos afro, de Ilhéus ou de Salvador, mas também do
movimento negro político e de grupos como o Afro Reggae têm em comum uma mesma
concepção de luta contra o racismo. Guardadas as devidas diferenças acerca do
“feliz” por dar alimento a uma pessoa com fome, pois, nesse contexto, a fome do outro parece um motivo
436
investimento na visibilidade da população negra – que é certamente maior entre os blocos
afro do que num grupo como o Afro Reggae –, percebe-se que a ‘inclusão social’ é o meio
privilegiado da mudança, principalmente através da educação e da profissionalização. A
‘arte’, refiro-me especialmente à música, também seria responsável pela ‘transformação da
sociedade’ por sua tripla função: ela seria ‘conscientizadora’ pelas mensagens de denúncia
e porque mostraria ‘a realidade’12 tanto para as pessoas negras quanto para ‘a sociedade’,
atingindo, inclusive, parte da elite branca; seria um meio de mostrar o ‘talento’ de pessoas
negras e, assim, negar os estereótipos que incidem sobre elas, além de, evidentemente,
proporcionar uma vida melhor para quem se destaca; seria também o principal veículo para
a formação de referências, de exemplos de pessoas negras bem-sucedidas, o que
promoveria o aumento da auto-estima da população negra13 e o vislumbre de uma outra
vida14. Sendo assim, boa parte dos projetos sociais tem por base o tripé arte,
profissionalização e educação: enquanto a primeira empenhar-se-ia sobretudo em mudar
‘consciências’, as outras duas cuidariam de melhorar as condições socioeconômicas da
população ‘excluída’, não exclusivamente ‘negra’ na grande maioria dos casos.
A concepção de que a inclusão social é uma forma de combate ao racismo também
constitui a base para a implementação de políticas de reparação, como as cotas nas
universidades, por exemplo. Chamar a atenção para a vinculação entre inclusão social e
combate ao racismo presente tanto nos projetos sociais quanto nas propostas de ação
afirmativa não significa dizer que se trata da teoria de que o preconceito não é racial e que
para deixar alguém ‘feliz’...12 Segundo o presidente do Dilazenze, “a música é o carro-chefe do processo de conscientização.”13 A importância de dar boas referências a crianças negras também estaria no intuito de mantê-las afastadasda marginalidade: “para muitos meninos e meninas, talvez a única referência de pessoa bem-sucedida sejaum traficante.” (coordenador executivo do Afro Reggae, O Globo 14/09/03).14 É muito comum a mídia dar destaque a pessoas negras que fazem sucesso se elas têm ou tiveram umainfância pobre ou participam de um projeto social. Ora concedendo o mérito ao projeto, ora à própria pessoa,o importante é mostrar que uma vida alternativa à da grande maioria das pessoas negras e pobres estaria aoalcance de todos. Além de todas as questões referentes à fama e sua efemeridade, esse tipo de recurso em
437
quando as pessoas negras tiverem melhores condições de vida o racismo desaparecerá.
Pessoas ligadas a organizações não-governamentais e a movimentos negros políticos
enfatizam que a promoção de tais projetos não significa o abandono de outras formas de
luta no campo político. Como disse um dos atores entrevistados na matéria citada acima,
“vale tudo na luta contra o preconceito.”
Contudo, como este trabalho tentou mostrar, a inclusão social – que significará
sempre ‘inclusão diferencial’ – é um dispositivo do capitalismo, faz parte de seu processo
de captura. Impedindo a existência do ‘fora’, ele tenta impedir também a produção dos
processos de singularização a partir da conexão dos fluxos que escapam de sua
sobrecodificação, o que poderia resultar em algo diferente dele e ser um obstáculo à sua
expansão. O racismo, conforme a concepção que será defendida aqui, é outro desses
dispositivos na medida em que ele “geralmente aparece como resultado da inclusão
diferencial.” (Hardt 2000:366).
Diferentemente do que às vezes se imagina, o racismo, tal qual o conhecemos, não
é algo que “sempre existiu”. Em seu curso Em Defesa da Sociedade, ministrado em 1976,
Foucault (1999) data o ‘racismo’ e o ‘discurso racista’ no século XIX. Em suas aulas, ele
mostra como o discurso da ‘guerra das raças’ do século XVII – que era contra a soberania,
isto é, contra a monarquia, contra o Estado – transformou-se em discurso racista, melhor
ainda, em racismo de Estado no XIX.
O discurso da guerra das raças nasceu como contra-história porque impunha uma
nova forma de contar a história a partir das relações de força, das batalhas, dos perdedores,
enfim, da guerra e não mais como produto de leis naturais ou de uma vontade divina; o
historiador dividia a sociedade em dois lados e se posicionava num deles (:66-7); seu
interesse não era o da legitimação da soberania, era o da contestação (:76), mas também de
nada se difere do discurso capitalista de que ‘todos podem vencer e que só depende do esforço de cada um’, o
438
reivindicação de poder (:84). Tratava-se, sem dúvida, de um discurso contra o dominante –
o rei –, entretanto, não era de propriedade dos oprimidos e subjugados, servindo também à
própria nobreza.
Foucault mostra, então, que o discurso histórico foi reapropriado tanto pelos
movimentos nacionalistas e pela colonização européia na vertente biológica (:71), quanto
como “guerra social” e apareceu como “luta de classes” (:72). Nessa segunda forma, a
contra-história foi apreendida pelo discurso revolucionário, que estava para transformar a
luta das raças em luta de classes. A contra-história foi, então, contraposta por outra contra-
história, que recodificou tudo em luta das raças, mas no sentido médico e biológico do
termo. Como diz Foucault:
“[tem-se] o desenvolvimento de um racismo biológico-social,com a idéia – que é absolutamente nova e que vai fazer odiscurso funcionar de modo muito diferente – de que a outraraça, no fundo, não é aquela que veio de outro lugar, não éaquela que, por uns tempos, triunfou e dominou, mas aquelaque, permanente e continuamente, se infiltra no corpo social, oumelhor, se recria permanentemente no tecido social e a partirdele. Em outras palavras: o que vemos como polaridade, comofratura binária na sociedade, não é o enfrentamento de duasraças exteriores uma à outra; é o desdobramento de uma única emesma raça em uma super-raça e uma sub-raça. Ou ainda: oreaparecimento, a partir de uma raça, de seu próprio passado.Em resumo, o avesso e parte de baixo da raça que aparece nela.”(:72).
A guerra das raças, que tratava da luta de campos opostos, tornou-se uma luta da
raça que detém o poder, que é “considerada como sendo a verdadeira e a única” (:72)
contra aqueles que estão fora da norma imposta por ela (:73). E é dessa conclusão de
Foucault que vem o título do curso: o discurso histórico da ‘guerra das raças’ visava
“defender-se contra a sociedade” – contra a monarquia, contra o Estado; nesse novo
discurso racista, trata-se de “defender a sociedade” da sub-raça, “dos perigos para o
que retira muito do peso que teriam o racismo e a desigualdade na configuração social.
439
patrimônio biológico” (:73)15. Resumidamente, a operação de aparecimento dessa contra-
história como racismo dá-se da seguinte forma: a guerra histórica (origem dos povos,
invasões...) é substituída pela luta pela vida, pela seleção do mais forte. A sociedade não é
mais binária e sim “biologicamente monística”, sendo ameaçada apenas pelo que lhe é
estranho, diferente do que é ‘normal’. O Estado, que protegia uma raça da outra, terá a
função de proteger a raça. A idéia de “pureza da raça” substitui a de “luta das raças” (:95).
Segundo Foucault, o racismo não é uma ideologia que se prestou a ser anti-
revolucionária: “o racismo não é, pois, vinculado por acidente ao discurso e à política anti-
revolucionária do Ocidente”. Ele é o discurso revolucionário ao avesso, nascido para
conservar a soberania do Estado através de “técnicas médico-normalizadoras” (:95-6). O
racismo é produto da biopolítica, tecnologia de poder que passa pela eugenia, pela
normalização do saber, pela medicalização da população, mas também pelos seguros de
vida, pela seguridade social, pela poupança etc. Seu objetivo é “fazer viver” (:294) e deixar
morrer, quando necessário, e o racismo funciona como justificativa para isso:
“o racismo, acho eu, assegura a função de morte na economia dobiopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é ofortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela émembro de uma raça ou de uma população, na medida em que se éelemento numa pluralidade unitária e viva.” (:307-8).
15 “E o problema seria saber como, a partir desse deslocamento (se não dessa decadência) do papel da guerrano discurso histórico, essa relação de guerra dominada assim no interior do discurso histórico vai reaparecer,mas com um papel negativo, de certo modo exterior: um papel não mais constitutivo da história, mas protetore conservador da sociedade; a guerra não mais como condição de existência da sociedade e das relaçõespolíticas, mas condição de sua sobrevivência em suas relações políticas. Vai aparecer, nesse momento, aidéia de uma guerra interna como defesa da sociedade contra os perigos que nascem em seu próprio corpo ede seu próprio corpo; é, se vocês preferirem, a grande reviravolta do histórico para o biológico, doconstituinte para o médico no pensamento da guerra social.” (Foucault 1999:258). E é interessante notar queem seu “O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte”, Marx vá na mesma direção que Foucault quanto à luta declasses ser concebida pela burguesia como a luta de quem é superior, de quem é ‘a sociedade’ contra quem énocivo a ela. Ao escrever sobre as revoluções proletárias de junho de 1848 barbaramente massacradas pelaburguesia, ele observa que “Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se tinham congregado nopartido da ordem, frente à classe proletária, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, docomunismo. Tinham “salvo” a sociedade dos “inimigos da sociedade”. Tinham dado como consigna ao seuexército as palavras de ordem da velha sociedade – “propriedade, família, religião, ordem” – e proclamado àcruzada contra-revolucionária: “Sob este signo vencerás!” (Marx 1987:27) (grifos do autor).
440
No discurso da ‘guerra das raças’, a ‘diferença racial’ foi a base para a formação de
povos e nações em sua vertente biológica. A partir dela, formou-se o esquema binário, a
sociedade dividida em função do que Foucault chamou de “fatos de nacionalidade”: língua,
país de origem, hábitos ancestrais, espessura de um passado comum, existência de um
direito arcaico, redescoberta de velhas leis” (:131). Não se tratava de racismo, mas de uma
divisão baseada na idéia de alteridade – existência de um ‘outro’ a partir do qual forma-se
uma ‘identidade’.
Na concepção de racismo tal como formulada por Foucault, já no século XIX, não
existe um ‘outro’. Há diferenças em relação a uma normalidade, as quais devem ser
combatidas, sobre as quais se exerce um poder. Assim também Deleuze e Guattari
concebem o racismo. Tal como para o capitalismo, também para o racismo não existe um
‘fora’: “do ponto de vista do racismo, não existem pessoas de fora. Só existem pessoas que
deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem. (...) O racismo jamais detecta as
partículas do outro, ele propaga as ondas do mesmo até a extinção daquilo que não se deixa
identificar (ou que só se deixa identificar a partir de tal ou qual desvio).” (1996:45-6).
Deleuze e Guattari usam a noção de “rosto” e ‘derivados’ (“rostidade”,
“rostificação”) para explicar o racismo, que busca “economia e organização de poder”
(:42). A “máquina abstrata de rostidade” procede sempre por correlação biunívoca em
busca de uma unidade: “é um homem ou uma mulher, um rico ou um pobre, um adulto ou
uma criança, um chefe ou um subalterno, ‘um x ou um y’.” (:44). Quando se depara com
rostos ainda não classificados, não conformes a ela (às suas subjetivações), a máquina
opera por “desvios padrão de desviança”, fazendo com o que não estava incluído nas
categorias da correlação biunívoca, o seja numa segunda, terceira, quarta... enésima
441
categoria escolhida pela máquina, sempre numa relação binária com a primeira16. Assim
funciona o racismo. Se o rosto é o Cristo, isto é, o “homem-branco-masculino-adulto-
habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual” (:52), então,
este é o padrão a partir do qual todos os traços não conformes serão classificados por não
serem como ele. O que importa para a máquina de rostidade é tornar algo reconhecido,
inscrito no quadriculado17 (:45).
O racismo pode ser compreendido, então, como a identificação em quadros de
referências dos processos de singularização (“Tudo o que surpreende, ainda que levemente,
deve ser classificável em alguma zona de enquadramento, de referenciação.” (Guattari e
Rolnik 1986:43). E é preciso que seja assim, pois se é próprio do capitalismo incluir,
integrar, ele não pode conceber ‘outros’, um lugar, alguém fora de seu campo de atuação:
há ‘diferenças’ de grau em relação ao padrão e é sobre elas que se exerce o poder18. Ou,
como diriam Hardt e Negri, trata-se de uma
“estratégia de inclusão diferenciada (...): a subordinação é realizadaem regimes de práticas diárias, que são móveis e flexíveis mas criamhierarquias raciais estáveis e brutais, apesar de tudo. (...) O racismoimperial19, ou racismo diferenciado, integra outros à sua ordem eentão orquestra essas diferenças num sistema de controle.” (Hardt eNegri 2001:213-4).
16 Por exemplo: “A professora ficou louca; mas a loucura é um rosto conforme de enésima escolha(entretanto, não o último, visto que existem ainda rostos de loucos não-conformes à loucura tal comosupomos que ela deva ser).” (Deleuze e Guattari 1996:45)17 E isso não vale apenas para os rostos que a máquina produz. Ela rostifica tudo: corpos, roupas, objetos(:42). E poder-se-ia dizer o mesmo para instituições: a criação da categoria ‘bloco afro’ foi uma rostificação,assim como a onguização rostifica atividades, objetivos e transforma-os em ‘trabalho social’. “Maisgeralmente, nenhuma polivocidade, nenhum traço de rizoma podem ser suportados: uma criança que corre,que brinca, que dança, que desenha não pode concentrar sua atenção na linguagem e na escrita, ela tampoucoserá um bom sujeito.” (:48). A partir desse trecho, uma analogia pode ser feita com relação aos blocos afro:aqueles que ‘só querem tocar tambor’, que não realizam trabalhos sociais, não podem ser ‘bons sujeitos’.18 Como diz Guattari, “é condição para as sociedades capitalísticas se manterem, que elas sejam calcadas emuma certa axiomática de segregação subjetiva. Se os negros não existissem, seria preciso inventá-los dealguma maneira.” (Guattari e Rolnik 1986:77).19 Hardt e Negri denominam o racismo tal como concebido por Deleuze e Guattari de “racismo imperial”(2001:210) em oposição ao “racismo colonial”: este último seria próprio da soberania moderna e estariacalcado nas diferenças biológicas, constituindo um ‘eu’ e um ‘outro’ (:157), enquanto o primeiro estariaconsonante com o Império, uma nova ordem mundial constituída por uma nova forma de soberania efundamentalmente pelo biopoder, que não concebe um ‘outro’ (:12-3).
442
É interessante notar que a descrição que Negri e Hardt (2001) fazem do racismo
imperial poderia ser apropriada para descrever o ‘racismo brasileiro’, ou melhor, sua
especificidade frente a outras formas de discriminação racial, como aquelas que vigeram
nos Estados Unidos e na África do Sul, ambos países que costumam ser acionados como o
outro termo da comparação. É comum ouvir dizer que o racismo no Brasil seria mais
brando porque seria mais sutil, menos agressivo, menos explícito. Chega-se mesmo a
argumentar que não haveria racismo, segundo a lógica de que se há ‘casos isolados’ de
discriminação, ela é devida a aspectos socioeconômicos e não raciais; se a grande maioria
da população pobre é formada por pessoas negras, trata-se de uma contingência histórica e,
além disso, também há pessoas brancas pobres.
Segundo Hardt e Negri (2001), a teoria racista imperial nega que haja divisões
raciais da humanidade e localiza as diferenças em termos de “culturas historicamente
determinadas” (:211), como no caso do ‘racismo brasileiro’. Para esses autores, não há
uma hierarquia racial a priori, mas esta se dá como efeito do “desempenho” das culturas
(:212)20. Estas são necessariamente submetidas à “cultura-valor”, termo que corresponde
em Guattari (Guattari e Rolnik 1986) ao núcleo semântico da palavra cultura no sentido
desta como “resultante de um determinado trabalho”, a partir do qual diferencia-se quem
compartilha desse resultado, desse produto ou não, ou seja, quem tem ou quem não tem
cultura (:17). A “cultura-valor” funciona como um “padrão de tradutibilidade geral”, ela é
a referência a partir da qual as culturas – que nessa acepção corresponderiam ao que
Guattari chama de “cultura-alma coletiva”21 (:18) – serão organizadas, isto é, segregadas:
“atrás dessa falsa democracia da cultura continuam a se instaurar – de modo
20 Um exemplo é a afirmação de uma suposta aptidão musical ou para o esporte de pessoas negras e a quasetotal ausência delas em profissões de caráter mais intelectualizado, de níveis de instrução mais altos.Desigualdades sociais tornam-se, assim, questões culturais e, ironicamente falando, ninguém tem culpa senão há mercado para que todas as pessoas negras ganhem muito dinheiro com seu talento.
443
completamente subjacente – os mesmos sistemas de segregação a partir de uma categoria
geral de cultura.” (:20)22.
A observação com que Hardt e Negri começam sua descrição do racismo imperial
também revela sua semelhança com o ‘racismo brasileiro’: os autores chamam a atenção
de que “políticos, a mídia e até historiadores continuamente nos dizem que o racismo
retrocedeu nas sociedades modernas” enquanto que “na realidade [o racismo] progrediu no
mundo contemporâneo, tanto em extensão como em intensidade” (:210). Tanto no racismo
imperial quanto no ‘racismo brasileiro’, o ‘segredo’ para que eles pareçam não ser racistas
está na invisibilidade de quem é discriminado, na ausência de um ‘outro’: a cultura – no
sentido de “alma coletiva” de Guattari (Guattari e Rolnik 1986:17) – daqueles que são
afetados pelo racismo é tolerada como um aspecto de sua vida, não como sua vida; produz-
se cultura como se produz outras mercadorias – e aqui trata-se da “cultura-mercadoria” –,
não se vive. Quando se deseja produzir a integração – do país ou do mercado mundial –
esse é um mecanismo absolutamente necessário23.
Assim, talvez a questão não esteja exatamente na semelhança entre o que seria o
racismo brasileiro e o racismo imperial. Talvez o problema esteja em considerar que as
outras formas de racismo – como no Sul dos Estados Unidos ou na África do Sul – sejam,
de fato, muito diferentes dessas. A ‘alteridade’ presente nesses outros regimes racistas
tinha limites muito claros: ela não produziu excluídos de fato. Mesmo nesses casos, o que
havia era ‘inclusão diferencial’, mecanismo que define o racismo segundo Deleuze e
21 “Cultura-alma coletiva” é a cultura como uma esfera da vida social, que “cada alma coletiva (os povos, asetnias, os grupos sociais)” possui: “essa é uma cultura muito democrática: qualquer um pode reivindicar suaidentidade cultural.” (Guattari e Rolnik 1986:17-8).22 Há ainda um terceiro núcleo semântico da palavra cultura na visão de Guattari. Trata-se da “cultura-mercadoria”, isto é, da produção e da difusão de mercadorias culturais: livros, filmes, mas também salas decultura, profissionais de cultura etc. (Guattari e Rolnik 1986:17;19).23 Disse Guattari em sua visita ao Brasil em 1982: “não duvido nada de que, um dia, vocês terão aqui umMinistério das Personalidades Culturais, cuja incumbência não vai ser a de esmagar todos esses modos deexpressão específicos das diferentes regiões brasileiras, mas, pelo contrário, a de desenvolvê-los, incentivá-
444
Guattari. Entre as chamadas “sociedades modernas”, o racismo de Estado mais próximo da
“guerra das raças”, ou seja, da idéia de uma raça contra outra, seria a sociedade nazista,
segundo Foucault (1999:97). Contudo, mesmo aí não se trata da idéia de um ‘outro’, mas
de que é possível depurar-se uma raça, torná-la mais forte através do biopoder e do poder
soberano de matar que, no limite, pertence a todos, não apenas ao Estado, que também
pode matar a todos, até mesmo “os seus próprios”: “o Estado nazista tornou absolutamente
co-extensivos o campo de uma vida que ele organiza, protege, garante, cultiva
biologicamente, e, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar quem quer que seja – não
só os outros, mas os seus próprios” (:311).
Retomando a questão que levou a toda esta reflexão sobre concepções de racismo, o
fundamento que dá sustentação à maior parte dos projetos sociais, especialmente àqueles
que têm a luta contra a discriminação racial como um de seus objetivos, parece ser a aposta
na idéia de que algum tipo de ‘igualdade’ é possível no capitalismo, seja social ou racial.
Como este trabalho tentou mostrar, o mercado mundial nada mais faz do que gerir suas
diferenças. Estas nada têm a ver com alteridades – a partir do momento em que algo foi
capturado, não se trata mais de um ‘outro’; as diferenças no capitalismo são de ‘grau’ em
relação a um parâmetro, a um padrão.
Assim, se o racismo age pela inclusão e pelo esquadrinhamento, pela organização e
pelo controle de multiplicidades, qualquer forma de identidade, qualquer forma de
reificação de uma subjetividade só facilita seu trabalho. Se não há possibilidade de
igualdade, não há possibilidade de tornar-se ‘outro’, ou seja, não há uma ‘identidade a
construir’ ou ‘um lugar a ocupar’.
Porém, há, sim, a possibilidade da criação, do acontecimento, de novos encontros,
enfim, de processos de singularização que escapam ao esquadrinhamento e que produzem
los, enquanto, é óbvio, eles não interferirem nas coisas sérias, isto é, as coisas da produção e da política.”
445
novos territórios existenciais. Nesse sentido, produzindo formas de subjetivação singulares,
os blocos afro podem ser mesmo ‘espaços de resistência’, tomando resistência como
primeira em relação à reação: resistir é fugir dos esquemas, dos “clichês”; é, como diz
Deleuze no trecho que serve de epígrafe a esta conclusão, “suscitar novos acontecimentos,
mesmo pequenos, que escapem ao controle” (1992:218); singularizar-se.
E, a partir daí, isto é, da resistência, é preciso buscar novas formas de reagir,
formas capazes de produzir mais mudanças no mundo do que adaptações a ele, pois a
possibilidade do novo reside sempre nas tentativas de escapar à regulação. A criação do Ilê
Aiyê se deu num processo de singularização, pela entrada num devir-negro, e fez surgir os
blocos afro. Mas não se pode parar, deixar-se capturar por inteiro. Retomando o que disse
um dos fundadores dos primeiros blocos afro de Ilhéus, estes surgiram porque “começou a
aparecer por aqui um movimento.” Um tal movimento que não se sabia bem o que era,
tanto que gerou toda a “polêmica” em torno de qual teria sido o primeiro bloco afro da
cidade. Tratava-se, pois, de um movimento diferente. E esta é a melhor definição de bloco
afro: é ‘movimento’ e é ‘diferente’. Como foi visto ao longo deste trabalho, há muitas
‘paradas’ e ‘capturas’ no caminho, mas se os blocos afro de Ilhéus ainda ‘resistem’, isso
acontece porque existe o desejo em seus dirigentes e membros de moverem-se em direção a
novos encontros com outros processos de singularização. E é por acreditar nisso que, ao
final de um trabalho que foi guiado por desejos, deixo aqui também o meu: que os grupos
afro-culturais de Ilhéus continuem a ser ‘movimento’, a ser ‘diferentes’; que, retomando a
epígrafe de Deleuze que deu início a este trabalho, eles busquem bons encontros e que se
reinventem como blocos afro permanentemente.
(Guattari e Rolnik 1986:72).
463
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ZOURABICHVILI, François2000 — “Deleuze e o Possível (Sobre o Involuntarismo na Política)”. In: Éric
Alliez (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Editora 34, São Paulo.
449
ANEXO 3
Miny Kongo
Zimbabuê
Axé Odara
Rastafiry
ForçaNegra
Danadosdo Reggae
Dilazenze
Raízes Negras
D’Logun
Lê-Guê DePá
Gangas
Malês
Zambi Axé
Guerreiros de Zulu
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
Leões do Reggae
(1)(2)
(3)
(4)
(6)
(14)
(5)
(8)
(9)
(12)
(10)
(15)
(13)
(7)
(11)
2000
451
ANEXO 5QUADRO RESUMO DA PARTICIPAÇÃO DOS BLOCOS AFRO
NOS CARNAVAIS DE ILHÉUS (1981-2004)
ANO LOCAL BLOCOS CONCURSO CAMPEÃO
1981* Av. SoaresLopes
Lê-guê Depá
1982 Av. SoaresLopes
Lê-guê Depá e Miny Kongo X Miny Kongo
1983 Av. SoaresLopes
Lê-guê Depá e Miny Kongo X Miny Kongo
1984 Av. SoaresLopes
Lê-guê Depá e Miny Kongo X Lê-guê Depá
1985 Av. SoaresLopes
Lê-guê Depá, Miny Kongo e Axé Odara X Lê-guê Depá
1986 Av. SoaresLopes
Lê-guê Depá, Miny Kongo e Axé Odara X Axé Odara
1987** Av. SoaresLopes
Zimbabuê, Gangas, Rastafiry, Dilazenze, Miny Kongo, AxéOdara e Lê-guê Depá
1988 Av. SoaresLopes
Lê-guê Depá, Zimbabuê, Rastafiry, Axé Odara, Dilazenze eMiny Kongo
X Rastafiry
1989 Av. SoaresLopes
Rastafiry, Dilazenze, Miny Kongo, Zimbabuê e Axé Odara
1990 Av. SoaresLopes
Gangas, Dilazenze, Zimbabuê, Miny Kongo, Axé Odara eRastafiry
1991 Av. SoaresLopes
Gangas, Miny Kongo, Dilazenze e Rastafiry
1992 Av. SoaresLopes
Rastafiry
1993 Av. SoaresLopes
Obatalá, Malês, Raízes Negras, D’Logun, Força Negra,Miny Kongo, Gangas, Dilazenze, Zimbabuê e Rastafiry
1994 Av. Litorânea D’Logun, Obatalá, Malês, Raízes Negras, Zimbabuê,Rastafiry, Força Negra, Gangas, Dilazenze e Miny Kongo
1995*** Av. Litorânea Rastafiry (como “levada”)
1996*** Av. Litorânea Miny Kongo, Rastafiry e Dilazenze (como “levada”)
1997**** Av. SoaresLopes
Rastafiry, Dilazenze, Miny Kongo, Zimbabuê, AfroCentro(Raízes Negras e D’Logun) e AfroNorte (Malês e Gangas)
Rastafiry (verobservaçãoabaixo)
1998**** Av. SoaresLopes
Dilazenze, Rastafiry, Miny Kongo, Raízes Negras, ZambiAxé, Zimbabuê e Danados do Reggae
1999**** Av. SoaresLopes
Dilazenze, Miny Kongo, Rastafiry, Malês, Raízes Negras,Zambi Axé
X Dilazenze
2000**** Av. SoaresLopes
Dilazenze, Rastafiry, Zambi Axé, Danados do Reggae,Raízes Negras e Miny Kongo
X Dilazenze
2001**** Av. Dois deJulho
Danados do Reggae, Miny Kongo, Dilazenze, Rastafiry,Raízes Negras, Zambi Axé, Guerreiros de Zulu e Leões doReggae
X Dilazenze
2002 Av. SoaresLopes
Dilazenze, Miny Kongo, Rastafiry, Zambi Axé, Guerreirosde Zulu, Malês, Leões do Reggae, Raízes Negras,Zimbabuê e Danados do Reggae.
X Dilazenze
2003 Av. SoaresLopes
Dilazenze, Miny Kongo, Rastafiry, Zambi Axé, Guerreirosde Zulu
X Dilazenze
2004*** Av. SoaresLopes
Dilazenze, Miny Kongo, Zambi Axé, Guerreiros de Zulu,Rastafiry, Leões do Reggae, Danados do Reggae, RaízesNegras
X Miny Kongo
452
*Todos os blocos participantes receberam o Troféu do Centenário.
** Não houve julgamento porque os blocos não concordaram com o corpo de jurados(Diário da Tarde 06/03/87).
*** Somente o carnaval antecipado foi realizado.
**** Foram realizados o carnaval antecipado e o carnaval cultural.
Observação: não houve julgamento oficial, mas o grupo foi “aclamado” como campeão docarnaval e assim se considera.
453ANEXO 6
DILAZENZE DE ANGOLA A BAHIA (2001)
Compositor: Gilvane Rodrigues – Interprete: Kaká
Do jeito que envolvenosso sentimentoe o Dilazenzecom sua históriaque vem apresentar
Do jeito que envolve ê ênosso sentimento laiá laiáé o Dilazenzecom a sua históriaque vem apresentar
Dilazenze, Angola, Bahiaos negros trazidos ao Brasilsão nativos da Áfricade diferentes regiões
Hoje na Bahiaa influência bantosamba, candomblé e capoeiraculinária e o folclore baianotestamento do boina luta africana o batuque é agora
Cadê minha AngolaAngola ê
Cadê minha Angola
Dilazenze Malungosignifica força para iaôfoi Hipolito Reisque tudo isso começounascido da nação Angolasoberana força e resistênciaTombency fundamentocom mãe Mukalê na quarta geraçãoCadê minha Angola
Angola êCadê minha AngolaAngola
Atinando um sonho de criançarevelando seu potencialé lindo de ver o reflexodo projeto Batukerêmergulha na história de Angolainfinito poder culturaleu sou Dilazenzeo bloco envolventedo carnaval
Angola
454
IDILÉ OBA KAÒ (2002)
Compositor: Valério Bonfim – Interprete: Menina G’leu
História de amore confiançatrabalho, esperança,lutas e dor
Dilazenze lutouem todas as frentesmostrou a essa genteo que da África herdou
Dilazenze Malungoafricano lutadornação Tombencyaqui iniciou
Mãe Roxa Isabelbandanelungamostrou para o mundoreligião nagô
De Angola ao Brasilfoi que chegamosem Ilhéus para fincar
raízes de uma arvorearvore frondosacheira cravo, cheira rosaela é Kizunguirá.
REFRÃO: Kaó Kabiecy odilê odilá (bis)
Por isso que hojesomos florestacom marrombas ensabascom azeite de dendê
Kabocla Jupirarainha do Juremamameto Mukalêpronta a nos defenderEwá Tombency
unzo de inkissequarta geraçãocom seus filhos e nação
Nação Angolacongo, tupyde tudo temos aquipai Ogun do Kariri
REFRÃO
Nascido nos Carilosem fevereirobloco pioneiroem salvar os seus erês
tirando das ruassua criançasensinando culturaesperança, arte e dança
Para que todos agoravejam e possam creritan batukerênetos de Oxumarê
São 15 anosque os Carilos mudoucom as bençãos de Xangôsomos paz e muito amor
REFRÃO
Missão Dilazenzepreservar, valorizaragregar, expandire também disseminarCultura, belezaforça e união
Dila não é racismonem discriminação
Kaó nosso patronoé o rei da justiçajustiça que a gente faz
Aqui vamos agoragritar alto e dizerque crianças nas ruasnunca mais iremos ver
Com axé de KaóOlorum e os orixásidilé obaque nos traga toda paz
REFRÃO
455
FALANDO DO DILA (2002)
Compositores: Gilsonei Rodrigues Santos e Gilson Rodrigues SantosInterprete: Gilsonei Rodrigues Santos
Eu quero me sentir a vontade pra falar do DilaEu quero penetrar no mundo dessa famíliaPor favor, me deixe entrar meu amor
E quando eu falo do Dila eu lembro Toinho BrotherEu lembro Nerisvaldo, Dilazenze Malungo e Dona MiriamEsta gente de fora não pode ficar
Cantando, dançando, preservando a cultura negraVocês não saem das nossas cabeçasEssa imagem eu hei de guardar
Me leva com vocêREFRÃO: Pra ver o Dilazenze passar Quero sentir esse calor 15 anos de história pra contar
Tudo começouem 1986Jovens astutos e marotosDisseram chegou a nossa vez
No Terreiro Tombencye protegido por XangôComeçou a trajetóriaque Mucalê abençoou
REFRÃO
Hoje sou Batukerê,sou a esperança do amanhãPreservando a nação Angola,já faço parte dessa história
REFRÃO
456
FUTURO DA NAÇÃO (2002)
Compositor: Joilsom
Quinze anos de históriaDilazenze criouprojeto Batukerêdando esperança pra todas as crianças
Dizendo a verdadedo que é o amore dando educaçãoque nas ruas eles não tinham não
Mostrando ao Brasiltoda verdadecrianças nas ruasabandonadas como animais
Cadê meu Brasil
REFRÃO: Cadê meu Brasil como é que é? vamos tirar crianças das ruas ela é o futuro de nossa nação
A natureza criou, criou, crioua beleza negraDilazenze mostrouo que é ser negro de verdade
Quinze anos de históriacom raça e pudorhoje no Dilazenzetemos rainhas e princesas
REFRÃO
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