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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Histórica, nº 10, 2012, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811
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ARQUEOLOGIA HISTÓRICA NO NORDESTE DE SANTA CATARINA
Dione da Rocha Bandeira1
Maria Cristina Alves2
RESUMO
O artigo apresenta uma reflexão sobre a ocupação histórica da região nordeste de Santa Catarina
a partir dos sítios e unidades arqueológicas identificados nos levantamentos arqueológicos,
principalmente aqueles relacionados a licenciamentos ambientais. Utilizando somente os dados
de sítios cujas coordenadas em UTM são conhecidas fez-se um mapeamento e buscou-se
relacioná-los a grupos de diferentes origens étnicas que migraram para a região e suas práticas e
relações sociais inferidas a partir dos remanescentes materiais.
Palavras-chave: Patrimônio arqueológico. Arqueologia Histórica. Baia da Babitonga, SC.
Mapeamento. Sítios arqueológicos históricos.
ABSTRACT
The article focuses on the historical occupation of the region northeast of Santa Catarina from
archaeological sites and units identified in archaeological surveys, especially those related to
environmental license. Using only data from sites whose coordinates are in UTM became
known mapping and attempted to relate them to different ethnic groups who migrated to the
region and their practices and social relations inferred from the remaining materials .
Key words: Archaeological heritage. Historical Archaeology. Baía da Babitonga, SC.
Mapping. Historical archaeological sites.
O nordeste do Estado de Santa Catarina contempla um conjunto significativo de
sítios arqueológicos do período pré-colonial. O ambiente estuarino na Baía da
Babitonga favoreceu o assentamento de grupos humanos desde há, aproximadamente,
1 Arqueóloga do Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville e profa. do Mestrado Patrimônio Cultural
e Sociedade da UNIVILLE. Rua Presidente Prudente de Moraes nº 240 bl 1 ap 11 Bairro Santo Antônio,
Joinville, SC CEP 89218000. 2 Arqueóloga. Rua Presidente Epitácio Pessoa, 567, Bairro Floresta, Joinvile, Santa Catarina. CEP:
89210-19.
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6.000 anos AP. O número expressivo de sambaquis, razoavelmente preservados,
despertou o interesse acadêmico, especialmente a partir de meados do século XX.
Entretanto, entende-se que a monumentalidade dos sambaquis contribuiu para que
as pesquisas arqueológicas estivessem focadas quase exclusivamente para os grupos
construtores destes sítios, em detrimento de estudos sobre outras populações, como as
das Tradições Taquara-Itararé e Guarani. Possivelmente, esta também é uma das razões
para que a região não tenha, ainda, tradição em pesquisas arqueológicas sobre as
populações que chegaram a partir da ocupação europeia. O primeiro estudo de sítio
arqueológico histórico ocorreu em 19993, embora a documentação histórica aponte a
passagem de europeus desde a primeira metade do século XVI4. Nas duas últimas
décadas, porém, estudos relacionados aos licenciamentos ambientais vem registrando
sítios remanescentes do período “histórico”.
A Arqueologia Histórica pode ser definida como aquela que tem “seu foco nos
problemas associados ao capitalismo”5 ou como o “estudo de todas as sociedades com
escrita nos últimos cinco mil anos”6 conforme a abordagem teórica. Ela trata da
“complexa relação entre documentos escritos e a cultura material” e pode ser
considerada como “uma das mais democráticas das Ciências Sociais”, pois “permite-nos
buscar os segmentos negligenciados da sociedade, tal como os pobres, os indígenas ou
os escravos”7, bem como elementos da vida cotidiana, via de regra mal registrados em
documentos.
Segundo Funari8
, pautando-se em Singer (1986) entre outros autores, “a
compreensão do mundo é um processo material de leitura, através da cultura material,
da estrutura mental, da visão de mundo e da cultura em geral”. A pesquisa arqueológica
histórica que se vale também das fontes textuais, iconográficas e orais, pode ser
extremamente reveladora sobre a construção e uso dos espaços.
Pretende-se, então, com este trabalho apresentar os dados disponíveis de
remanescentes materiais levantados no nordeste de Santa Catarina, objetivando suscitar
3 BANDEIRA, D. R. et al, Pesquisa de Salvamento Arqueológico do Sítio Histórico Foz do Cubatão,
Joinville, 2001. 4 A estada de Binot Paulmier de Goneville na Babitonga, por cerca de seis meses em 1504, é assunto
controverso (PEREIRA, 1984, p. 13-28), não sendo o caso das passagens de Aleixo Garcia (1524) e
Alvarez Nunes Cabeza de Vaca (1541), das quais há documentação disponível. 5 FUNARI, P. P. A. A, Arqueologia e a Cultura Africana nas Américas, 1996, p. 538.
6 FUNARI, P. P. A, Resenha de ANDRÉN, A. Between artifacts and texts Historical Archaeology, 1998,
251. 7 FUNARI, P. P. A, A cultura material de Palmares: o estudo das relações sociais de um quilombo pela
Arqueologia. Ideias, 1995a, p. 37. 8 FUNARI, P. P. A. A, Memória histórica e cultura material, 1995b, p. 331.
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questões que possam ser pertinentes para o desenvolvimento de estudos regionais de
Arqueologia Histórica. Como região nordeste, está-se a considerar o território que
abrange os municípios de Araquari, Balneário Barra do Sul, Barra Velha, Campo
Alegre, Corupá, Garuva, Guaramirim, Itapoá, Jaraguá do Sul, Joinville, São Bento do
Sul, São Francisco do Sul, São João do Itaperiú e Schroeder. Esta delimitação está
diretamente ligada à formação da sociedade contemporânea, originada a partir de
processos de colonização distintos.
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA REGIÃO
Oficialmente a ocupação do território está datada em 1658, com a instalação de
luso-brasileiros liderados por Manoel Lourenço de Andrade nas margens da Baía da
Babitonga, fundando a Vila de Nossa Senhora da Graça em 1660. O território,
inicialmente pertencente à Ouvidoria de São Paulo, foi definido em 1720, limitando-se
ao norte com a barra de Guaratuba, ao sul na porção norte da Enseada das Garoupas
(atual Porto Belo) e a oeste “a confinar com os espanhóis”9. A concessão de sesmarias
10
(aproximadamente 50 morgos) ocorreu até o século XIX, com a regularização de terras,
nos atuais municípios de São Francisco do Sul, Joinville, Araquari, Balneário Barra do
Sul, Garuva e Itapoá.
Em meados do século XIX, em meio às transformações decorrentes da
industrialização e interesses do capitalismo na Europa, deu-se início ao processo de
ocupação e expansão de território por grupos europeus de origem germânica, tendo
como primeiro núcleo a Colônia Dona Francisca, atual município de Joinville.
Empreendimento privado, organizado por cidadãos de Hamburgo, Alemanha, em terras
disponibilizadas pelo Príncipe de Joinville, recebidas como dote quando de seu
casamento com a Princesa Dona Francisca, deu início à cidade de Joinville. As colônias
Dona Francisca e Dr. Blumenau instalada em 1850 no vale do Itajaí, deslocaram para si
o caráter de núcleos irradiadores de ocupações no norte/nordeste do Estado. A partir
destas, imigrantes suíços, alemães, noruegueses, dinamarqueses, poloneses, russos e
italianos, deram origem às cidades de Guaramirim (1886), Jaraguá do Sul (1895),
9 PEREIRA, C. C, História de São Francisco do Sul, 1984, p. 173.
10 O Arquivo Histórico de Joinville dispõe de cópias de processos datados em 1711, 1787, 1788,
1802 a 1805, 1808, 1818, 1822, 1825 e 1827.
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Schroeder (1901), São Bento do Sul (1873), Corupá (1897), Massaranduba (1870), entre
outros11
12
.
Por quase dois séculos houve predomínio de população luso-brasileira, cujo
modelo de implantação teve como base o “regime de pequenas propriedades e numa
escravidão doméstica”13
, objetivando atender ao mercado interno e ao abastecimento de
navios em trânsito para a Bacia do Prata. Do período colonial e até meados do século
XX, São Francisco do Sul teve sua base econômica na agricultura, com a produção de
farinha, arroz, feijão, cana-de-açúcar e gravatá e na pesca. A instalação de uma armação
de baleia, em 1808, a extração de madeira e a construção de embarcações foram
importantes para a economia local. Ressalta-se que o contingente de escravos era
pequeno em relação a outras regiões do Brasil. Se em 1796, contabilizavam 767
escravos em uma população total de 4.155 habitantes14
, em 1870, vinte e seis
inventários, pesquisados por Silva15
, apontaram um total de trinta e seis escravos. As
colônias “alemãs” incrementaram a economia local, especialmente a partir de 1880,
com a instalação das primeiras indústrias em Joinville16
.
A ARQUEOLOGIA FRENTE AOS REMANESCENTES MATERIAIS
HISTÓRICOS DO NORDESTE DE SC
Com quase quatro séculos de ocupação no período histórico, a região tem um
conjunto patrimonial relevante, haja vista o tombamento federal do centro histórico de
São Francisco do Sul, em 1987, e de edificações isoladas nas zonas rural e urbana de
Joinville17
e São Bento do Sul. Entretanto, apenas três sítios arqueológicos históricos
constam no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos – CNSA (on line) do IPHAN:
Cemitério da Rua dos Suíços (Joinville), Praia do Inglês (São Francisco do Sul) e Igreja
de Pedra (Garuva
11
BANDEIRA, D. R.; OLIVEIRA, M. S. C, Diagnóstico arqueológico das áreas de atividade de
mineração de areia e cascalho na bacia hidrográfica do rio Itapocu – SC, 2001, p. 13-17. 12
BANDEIRA, D. R.; ALVES, M. C, Diagnóstico arqueológico das áreas a serem atingidas pela
duplicação da rodovia BR 280 (São Francisco do Sul/Jaraguá do Sul/SC), 2008, p. 10-14. 13
SANTOS, S. C, Nova História de Santa Catarina, 1974, p. 60. 14
FARIAS, V. F. de, Dos Açores ao Brasil Meridional: uma viagem no tempo: povoamento, demografia,
cultura, Açores e litoral catarinense: um livro para o ensino fundamental,1998, p. 263. 15
SILVA, D. A, Plantadores de Raiz: escravidão e compadrio nas freguesias de Nossa Senhora da Graça
de São Francisco do Sul e de São Francisco Xavier de Joinville – 1845/1888, 2004, p. 51. 16
ROCHA, I. O., Indústria, 2002, p. 57. 17
A Comissão do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Natural do Município de
Joinville, atuando regularmente sob a coordenação da Fundação Cultural de Joinville, tombou
mais de 50 edificações, além da Fundação Catarinense de Cultura, responsável por 38
edificações, bem como o IPHAN, com o tombamento de sete unidades (dados de 2010).
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Em levantamento de relatórios de diagnósticos arqueológicos executados,
disponíveis na Biblioteca do Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville, chegou-se
a um total de 29 trabalhos que atingem 58 áreas em 14 municípios alvos. Esses
trabalhos resultaram no registro de 141 ocorrências históricas18
(Figura 1). Os
documentos acessados são, em sua maioria, relatórios de diagnósticos arqueológicos
vinculados a licenciamentos ambientais19. Além desses, foram executadas pesquisas em
sítios históricos em caráter de salvamento, vinculadas à mitigação de impactos20, a obras
de restauração21 e de salvaguarda22.
Aqui, abre-se parêntese para o uso do vocábulo “ocorrências” e não sítio
arqueológico. Não há legislação que conceitue sítio arqueológico histórico e
regulamente o seu reconhecimento como patrimônio arqueológico. Os trabalhos
acessados apresentam registros de ocorrências identificados com base na Carta de
Lausane de 199023
, cuja declaração defende que,
O patrimônio arqueológico compreende a porção do patrimônio
material para a qual os métodos da arqueologia fornecem os
conhecimentos primários. Engloba todos os vestígios da existência
humana e interessa todos os lugares onde há indícios de atividades
humanas não importando quais sejam elas, estruturais e vestígios
abandonados de todo o tipo, na superfície, no subsolo ou sob as águas,
assim como o material a eles associados.
A obrigatoriedade de diagnósticos, em processos de licenciamento, tem resultado
no registro de ocorrências com base em critérios cultural, temporal e espacial,
defendidos como parâmetros para a definição de sítio arqueológico histórico24
, ou
critérios de significância histórica, científica, étnica ou pública25
, ou mesmo por
18
Considerando-se apenas aquelas ocorrências que tiveram sua posição geográfica registrada. 19
ALVES, 2003, 2008, 2009, 2010, 2012; ALVES, BANDEIRA, 2003; ALVES, BIBOW,
MARTINS, 2004; ALVES, MARTINS, 2006a, 2006b, 2007a, 2007b; ALVES, OLIVEIRA,
2001; AMARAL, 2004; BANDEIRA, 2005; BANDEIRA, ALVES, 2008; BANDEIRA,
OLIVEIRA, 2005; BANDEIRA, OLIVEIRA, 2001; BROCHIER, 2004; CALDARELLI,
BANDEIRA, LAVINA, 2000; CARLE, FERNANDES, 1999; FERNANDES, 2008; LAVINA,
2005; MASJ, 2006; MONTARDO, AMARAL, SILVA, 1996; OLIVEIRA et al., 2001;
SCIENTIA AMBIENTAL, 2003; SILVA, VALDETARO, OLIVEIRA, 2001. 20
ALVES, 2003, 2004; BANDEIRA et al., 2001; COMERLATO, 2004; SILVA, 2001. 21
BANDEIRA et al., 2008. 22
FONTOURA, et al., 2007. 23
ICOMOS/ICAHM. Carta de Lausanne. Dispõe sobre a proteção e a gestão do patrimônio
arqueológico. Disponível em www.iphan.gov.br Acessado em 20.08.2012. 24
THIESEN, B.; TOCCHETTO, F, Definição de sítio arqueológico histórico: reflexões para um debate,
1999, p. 268. 25
JULIANI, L. J. C. O, Avaliação de Impactos Ambientais de Empreendimentos Urbanísticos e Medidas
Mitigadoras Aplicáveis, 1996, p. 71-73.
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aspectos arquitetônicos26
. Mas as informações sobre os sítios históricos, registradas nos
relatórios, são precárias para se levantar problemáticas sobre as sociedades que os
produziram em uma perspectiva de arqueologia regional.
Entretanto, com base nos dados obtidos, observou-se que há registros de
diferentes manifestações culturais materiais que, enquadrados em categorias
funcionais27
28
, podem suscitar algumas reflexões preliminares. Ressalta-se que o
exercício de enquadramento em categorias deu-se com base nos vestígios superficiais
em período compreendido entre o final do século XVIII e meados do XX e em
informações êmicas29
.
O conjunto de ocorrências levantadas é significativo para o estudo do contexto
social30
regional. A ocupação demográfica na região foi realizada em dois períodos
seguramente reconhecidos, configurando-se em horizontes culturais distintos: (1)
população luso-brasileira, a partir de 1648, e (2) população de línguas germânica e
italiana31
, a partir de 1851.
As ocorrências arqueológicas registradas, unidades domésticas, algumas com
unidades produtivas associadas, outras coletivas e aquelas de comunicação, permitem
esboçar questões pertinentes às relações intra e inter-horizontes sejam no aspecto
cultural, temporal ou espacial.
O Horizonte Luso-brasileiro
No território ocupado por luso-brasileiros a partir do século XVII, estão
registradas 89 ocorrências dispersas em 30 nos atuais municípios de São Francisco do
Sul, Araquari, Itapoá, Joinville, Garuva e São João do Itaperiú (Quadro 1). Instalados a
oeste da ilha de São Francisco e ao sul da Península do Saí (porção continental do
Município de São Francisco do Sul), os registros apontam para expansão da ocupação
em direção a noroeste (Três Barras, Cubatão), a leste (localidades em Araquari), ao sul
(São João do Itaperiu) e para o interior da ilha (Figueira, Morro da Palha, Rocio Grande,
26
MCMANAMON, F. P, A regional perspective on assessing the significance of historic period sites,
1990, p. 14. 27
OLIVEIRA, L. D.; SYMANSKI, L. C. P, Arqueologia Histórica no Sul do Brasil: um breve panorama,
1999, p. 259. 28
ALVES, M. C. et al, O Patrimônio arqueológico histórico do litoral norte de Santa Catarina, 2007. 29
ORSER JR., C, Introdução à Arqueologia Histórica, 1992, p. 41. 30
ZAMORA, O. M. F, A arqueologia como história, 1990, 50-51. 31
Em contraposição à comunidade luso-brasileira, ou estamos agrupando na comunidade de língua
germânica também os imigrantes e migrantes italianos, poloneses e russos, estabelecidos em Jaraguá do
Sul, Guaramirim e Schroeder no final do século XIX.
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Tapera), no final do século XVIII e início do XIX, conforme indicam documentos de
regularização de terras.
Embora tenham se estabelecido às margens da baía da Babitonga e de seus
inúmeros cursos d’água, o que possibilitava a comunicação intersítios e com outros
centros coloniais, fragmentos da “estrada Três Barras” evidenciam a preocupação com o
estabelecimento de rede de comunicação terrestre. As relações comerciais com o
planalto (Vila de Curitiba), no século XVIII foram possíveis com a construção dessa
estrada na encosta da Serra do Mar, cuja escritura pública de construção data de 173032
,
que embora pavimentada com blocos de rocha era de difícil trânsito. A expansão da
ocupação para o interior e faixa leste da ilha de São Francisco, exigiu a abertura de
estradas para comunicação entre os núcleos e estes com a sede administrativa. No início
do século XIX, uma estrada foi aberta em direção ao canal do Linguado33
, ligando as
localidades de Rocio Grande, Morro da Palha, Miranda, Gamboa, Porto do Rei e
Bupeva. Na faixa leste da ilha, paralela ao oceano, um caminho arenoso em cava de
duna, ligava os diversos sítios da localidade de Praia Grande (ao norte), a de Bupeva (ao
sul). A localidade de Praia Grande contava com um porto no rio Acaraí, cuja travessia
ao porto da Tapera permitia a ligação via terrestre com a sede administrativa, desde pelo
menos meados do século XIX. Embora o acesso marítimo tenha propiciado a ocupação
da região, a instalação da estrutura portuária, em São Francisco do Sul, ocorreu apenas
na década de 1920, após a inauguração do ramal ferroviário São Francisco do Sul-Rio
Negro (1910), ligação com a estrada de ferro São Paulo-Rio Grande.
A configuração espacial das localidades rurais seguia um traçado linear, às
margens da baía ou do oceano e das estradas abertas.
Os remanescentes de estruturas coletivas (igrejas e cemitérios) registrados
indicam que pelo menos Praia Grande, Bupeva e Três Barras34
seriam localidades para
onde se dirigiam moradores de outros núcleos. Essas unidades coletivas, representativas
da organização social no interior dessas localidades seguiam o mesmo padrão linear de
implantação dos sítios, não configurando um local de convergência espacialmente
distinto (como praças, por exemplo).
32
FICKER, C., História de Joinville: Crônica da Colônia Dona Francisca, 1965, p. 137. 33
LUZ, A. A., Santa Catarina, quatro séculos de história, 2000, p. 140. 34
Não está sendo considerada a Vila da Glória, no continente, por ausência de levantamentos
até o momento. Em outras localidades as igrejas são mais recentes e não foram registradas.
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Tomando-se como unidade de análise as estruturas arquitetônicas registradas
nessas localidades/núcleos rurais, pode-se especular a respeito da composição social das
mesmas, especificamente com relação à estratificação social no seu interior.
As unidades domésticas representam o maior número de ocorrências, totalizando
34 registros tipo “habitação”. Considerando as unidades de produção associadas às
domésticas, chegou-se a 55 ocorrências. Dezenove ocorrências arqueológicas, dessa
categoria, são estruturas arquitetônicas edificadas em alvenaria de pedra, ao menos em
seus alicerces (baldrames ou sapatas, pilares). Os materiais construtivos, no caso das
estruturas arquitetônicas, seguem o padrão dos casarões do século XIX, pelo menos em
São Francisco do Sul. Blocos e fragmentos de rocha, argamassados e rebocados com
uma mistura de cal de concha com areia e/ou argila, foram empregados na construção
de baldrames, pilares e paredes. Considerando as unidades com baldrames preservados,
as dimensões variam de 50m2 a 480m
2 e a espessura de alicerces e paredes tem em torno
de 0,40m a 1m. Duas unidades registradas estão preservadas suficientemente para se
reconhecer a presença de dois pavimentos, construídas aproveitando a declividade do
terreno35
. Chama atenção, entretanto, o número de unidades domésticas com atividades
produtivas associadas sem baldrame (33 ocorrências) e ausência destas na localidade de
Frias.
Figueira, Praia Grande e Estaleiro apresentam o maior conjunto de unidades
domésticas, associadas com unidades produtivas. Enquanto em Figueira há registro de
duas estruturas arquitetônicas em alvenaria de pedra e cinco identificadas por outras
evidências, e em Praia Grande das 18 ocorrências apenas uma seria em alvenaria, em
Frias as seis unidades são remanescentes de construções perenes. Uma questão a ser
suscitada refere-se aos vetores temporal e ambiental. Dessas localidades, Estaleiro
seguramente é a mais antiga, e está localizada no continente, mas voltada para a baía,
em local estratégico para escoamento de produção, embora por via fluvial. A igreja
localizada na Praia Grande remonta ao final do século XVIII, mas as informações
êmicas indicam que a maioria dessas unidades foram instaladas no século XIX.
Espacialmente estavam em desvantagem, dependiam de acessos terrestres ou tinham
que enfrentar o “mar grosso”. Um sítio escavado na Praia Grande, Unidade PG-2136
,
indicou o período de ocupação entre o final do século XIX a meados do XX. Tratava-se
35
ALVES, M. C.; MARTINS, F. C., Diagnóstico Arqueológico para as Obras de Pavimentação Asfáltica
de Estradas Municipais em Joinville e São Francisco do Sul, 2006b, p. 22. 36
ALVES, M. C., Farinheiros e pescadores do interior da ilha de São Francisco do Sul, 2003, p. 81.
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de uma unidade doméstica com engenho de farinha associado, cuja estrutura
arquitetônica teria sido em madeira, de pequenas dimensões; somados a estes dados, a
análise dos artefatos de uso doméstico remeteu à população de baixa renda. Com
relação ao vetor social desses sitiantes, as estruturas produtivas associadas são
extremamente úteis para se especular a respeito da estratificação social. No horizonte de
origem luso-brasileiro predominam os engenhos de farinha, cuja tecnologia e
produtividade são relevantes indicadores de status econômico em uma localidade.
Engenhos de grande porte caracterizam-se por maquinário dispendioso e uso de animais
ou sistema hidráulico como forças motrizes e ainda um contingente de braços para a
“farinhada”, enquanto que a produção para consumo pode ser realizada com maquinário
simplificado e operado manualmente.
Do conjunto apurado, há 17 registros de engenhos de farinha, sendo que em
Figueira e Praia Grande apenas dois seriam movidos por tração animal, de um total de
11 ocorrências. Na Figueira, o contexto arqueológico indica que o engenho era do tipo
geminado, de grande porte pelas dimensões da fornalha (cerca de 5m de diâmetro, em
alvenaria), enquanto que na Praia Grande, por informação êmica, seria independente da
estrutura de habitação. Fornalhas construídas com barro e pedra, com diâmetros em
torno de 1,50m, movidas manualmente, registradas em Praia Grande (duas) e Jaguaruna
(uma), indicam uma produção de pequeno porte, talvez para consumo, o que também
remeteria a população de baixa renda.
Dos engenhos de arroz, outro produto apontado com destaque pela historiografia e
por informações êmicas, há o registro de uma unidade em Frias, compreendendo três
estruturas arquitetônicas independentes (engenhos, paiol com atracadouro e habitação).
Essa discrepância material entre estruturas pode indicar uma estratificação social,
se contemporâneas, mas também pode ser representativa da dispersão da população com
o fim do sistema escravocrata. Em Figueira, além das estruturas mapeadas, Alves37
registrou diversas indicações êmicas de unidades domésticas no entorno de uma
estrutura arquitetônica em alvenaria de pedra. Bandeira et. al.38
escavou o sítio Foz do
Cubatão, em Joinville, com período de ocupação inicial por volta do início do século
XX; as análises também indicaram tratar-se de uma ocupação de baixa renda.
37
ALVES, M. C., op. cit., 2003. 38
BANDEIRA, D. R., et al, op. cit., 2001, p. 44.
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O Horizonte Germânico
Do horizonte composto, inicialmente, a partir da Colônia Dona Francisca,
estabelecida em território à margem da população luso-brasileira, foram levantadas 39
ocorrências arqueológicas (Quadro 2).
Ao contrário de Desterro e Laguna, por exemplo, quando o incremento
populacional e, em consequência, as transformações socioeconômicas, ocorreram com a
participação majoritária de imigrantes de mesma origem/cultura europeia, na região
nordeste do Estado, a instalação de colônias de origem germânica impactou a sociedade
local. No contrato de instalação das colônias estava expressa a proibição de “posse de
escravos”. Nas bordas de uma sociedade com 200 anos de história, instalou-se um novo
agrupamento social, cultural e economicamente distinto. Implantadas a partir de 1851,
as colônias tinham que se valer de mão de obra “assalariada”, convivendo com seus
vizinhos que dispuseram de mão de obra escrava ainda por mais de três décadas.
Na configuração espacial das localidades registradas, 14 estavam fora do “centro
urbano de Joinville no século XIX”. Percebe-se que há similaridade, em relação às
lusas, na linearidade das ocupações, marcadas por estrada única, às margens das quais
se estabeleceram as propriedades e as unidades coletivas (cemitérios e igrejas). As
unidades domésticas (20 registros), entretanto, são a maioria, com apenas três estruturas
de produção associadas, ressaltando-se a precariedade das informações. Dezoito
unidades estão em bom estado de conservação, em uso, sendo que, destas, catorze foram
construídas com a técnica enxaimel.
Segundo Baumann39
, as casas de colonos construídas na região, em enxaimel,
seguiram as mesmas técnicas construtivas empregadas na Alemanha, no mesmo
período. Além da técnica e materiais, as dimensões e cômodos também se limitaram ao
essencial. Há, entretanto, alguns elementos que podem ter sido incorporados por
influência climática ou cultural, como é o caso da construção de varandas. Essas
edificações, assim como as estruturas construídas em madeira, tem uma peculiaridade
que é a possibilidade de mudança de local. Em Schroeder I, a sede da primeira escola,
construída em enxaimel, foi vendida e o prédio passou a ter função residencial, em outro
endereço40
. As casas em madeira são facilmente desmontadas ou mesmo transportadas
39
BAUMANN, U, A arquitetura de valor histórico em Santa Catarina; parecer sobre a situação atual e a
valorização do patrimônio histórico do século XIX nas cidades de: Joinville, São Bento do Sul e
Blumenau, no Estado de Santa Catarina, 1983, p. 5. 40
BANDEIRA, D. R.; ALVES, M. C. Diagnóstico arqueológico das áreas a serem atingidas pela
duplicação da rodovia BR 280 (São Francisco do Sul/Jaraguá do Sul/SC), 2008, p. 52.
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inteiras para outros endereços. Nesses casos, o registro arqueológico fica bastante
incompleto.
Com relação ao aspecto econômico, também nas localidades germânicas as
propriedades rurais eram pequenas. Das unidades produtivas mapeadas, destacam-se as
olarias. A partir de 1880, os estudos historiográficos apontam o início de um processo
de industrialização que transformou a região no maior parque industrial do Estado41
.
Obviamente que as relações entre os horizontes luso-brasileiro e germânico
acompanharam as transformações ocorridas no país, com a Proclamação da República e
o desenvolvimento econômico após a Segunda Guerra Mundial. Somadas ao
crescimento demográfico, os horizontes, aos poucos, passaram a conviver em territórios
comuns, mesclando os espaços territoriais com sua herança cultural, alterando as
relações sociais e econômicas.
Oito localidades em Joinville, Araquari e São Francisco do Sul foram ocupadas
simultaneamente por ambos os grupos étnicos, provavelmente a partir do início do
século XX (Quadro 3). Em São Francisco do Sul, famílias de imigrantes procedentes da
Alemanha se instalaram no Morro da Palha, em meados do século XX. A maior
estrutura arquitetônica registrada, com 480m2, localizada no Morro da Palha e, que,
segundo informações êmicas, teria pertencido ao Coronel Camacho, foi adquirida e
ampliada por um imigrante alemão42
.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo Zamora43
, “o contexto social se reflete no conjunto de características das
sociedades que deixam como resultado de suas atividades uma cultural material, que
forma o contexto arqueológico”. Lewis44
, ao propor um modelo de análise regional de
colônias inglesas implantadas na Carolina do Sul (EUA), considera que para a
“investigation of the archaeological record, it is especially important to study a site as a
part of the larger sociocultural entity within it is related to its precedent and antecedent
occupations as well as to those of contemporary sites”.
Embora os dados levantados sejam preliminares, há um bom conjunto de
ocorrências arqueológicas históricas disponíveis para pesquisas. Considerando-se
41
ROCHA, I. O., op. cit., 2002, p. 58. 42
BANDEIRA, D. R.; ALVES, M. C. op. cit., 2008, p. 37. 43
ZAMORA, O. M. F, op. cit., 1990, 50. 44
LEWIS, K. E, Sampling the archeological frontier: regional models and component analysis, 1977. p.
153.
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apenas as estruturas arquitetônicas remanescentes do horizonte luso-brasileiro, há que se
pensar como se dava espacialmente a instalação dos escravos e agregados. Onde estão
as senzalas? Documentos indicam que o Coronel Camacho, possivelmente o
proprietário da estrutura localizada no Morro da Palha, tinha 37 escravos quando de sua
morte em 186245
. Conviveria em um mesmo espaço físico, de habitação e produção,
também a mão de obra escrava? Como se dava a relação interética no microespaço? Que
rumo tomaram os escravos libertos? Pertenceriam a eles os remanescentes de estruturas
“não perenes”? Em testamentos analisados por Silva46
, há referência à “libertação” de
escravos e doação de parte de propriedade aos mesmos. Lembrando-se da precariedade
legal dos documentos de posse, para esse estrato social, o contexto arqueológico pode
ser o único documento que comprove a sua propriedade. Para além do fator econômico
nacional e regional, quais fatores locais foram preponderantes para a migração da
população e desagregação/extinção das comunidades de Praia Grande, Bupeva e
Figueira, em São Francisco do Sul, na década de 1960?
Se no horizonte luso os conflitos, especialmente entre descendentes de europeus
ibéricos e africanos, é inegável, o discurso identitário das comunidades de língua
germânica, ao menos para o seu exterior, tem sido colocado como homogêneo e
harmonioso enquanto de fato parte de um agrupamento social heterogêneo, formado por
diferentes origens/regiões da Europa. Não se está propondo que se identifiquem
somente os correlatos materiais dessas etnias, como critica Jones47
, mas buscar entender
como se deram essas relações sociais na formação da sociedade contemporânea a partir
de suas evidências materiais, em um mundo continuamente em mudança.
Agradecimentos
A OAP Consultores Associados Ltda, pela elaboração do mapa com ocorrências.
45
CUNHA, R. P, Juízes, policiais e administradores: elites locais, juízo municipal e centralização
provincial na formação do Estado no Brasil - São Francisco do Sul, província de Santa Catarina (1832-
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ANEXO I
Mapa das ocorrências arqueológicas históricas
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ANEXO II
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Recommended