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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 1697
AS CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS E O ATENDIMENTO À INFÂNCIA POBRE DE UBERABA (1920 A 1943)
Marilsa Aparecida Alberto Assis Souza1
Betânia de Oliveira Laterza Ribeiro2
Introdução
Nas primeiras décadas do século XX, por diversas vezes os jornais de Uberaba (MG)
noticiaram o problema das crianças pobres e/ou abandonadas que vadiavam pelas ruas da
cidade, incomodando as pessoas de bem e comprometendo o aspecto ordeiro de uma cidade
em processo de desenvolvimento. Tal situação despertava, na sociedade local, sentimentos e
comportamentos ambíguos: ao mesmo tempo em que ela reclamava a ação policial para
reprimir essas crianças e higienizar a cidade, ela também tinha esses menores como foco da
caridade, uma vez que, aos olhos dos filantropos locais, tal situação era fruto da negligência
ou mesmo ausência familiar. A propósito, a complexidade que envolve o sentimento e o
comportamento caritativo foi analisada por Geremek (1986), que afirma que a situação, não
só da criança abandonada, mas dos pobres em geral, continuamente inspiraram na sociedade
sentimentos contraditórios: por parte dos indivíduos, a compaixão ou a repulsa e, por parte
das autoridades, a piedade ou a forca.
A falta de comprometimento do poder público face a essa situação abriu espaço para a
prática de ações de caridade e filantropia da sociedade local, bem como para a atuação de
congregações religiosas que, não só em Uberaba, mas por todo o país, fundaram instituições
de amparo e assistência a crianças, com o intuito não só de tirá-las das ruas mas também
educá-las na doutrina católica.
No caso de Uberaba foi instalado, na década de 1920, o Orfanato Santo Eduardo,
voltado para a educação de meninas. Durante 22 anos essa instituição foi mantida pelas
Irmãs Dominicanas de Nossa Senhora do Rosário de Monteils, mas a partir de 1943 ela foi
1Mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Técnica em Assuntos Educacionais na
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-mail: marilsa.souza@uftm.edu.br. 2Pós Doutorado em Psiquiatria , Psicologia Médica e Neurologia –USP/SP. Doutorado em Educação - USP.
Professora do Programa de Pós –Graduação da Universidade Federal de Uberlândia e do Curso de Pedagogia da FACIP/UF. E-mail:laterzaribeiro@uol.com.br.
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transferida para a congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade, que a
administra até os dias atuais.
O objetivo desta pesquisa foi investigar a gênese do Orfanato Santo Eduardo e
compreender o contexto religioso, político e social que motivou sua criação, bem como o
motivo da substituição de uma congregação por outra, na década de 1940. Antes, porém -
para uma melhor compreensão da atuação dessas congregações religiosas na cidade de
Uberaba na execução de suas obras educativas e assistenciais - será apresentada uma síntese
da história da congregação das Irmãs Dominicanas de Nossa Senhora do Rosário de Monteils
e uma breve contextualização da atuação da Igreja Católica frente ao ultramontanismo,
movimento que motivou a vinda de diversas ordens religiosas para o Brasil. Também será
apresentada a síntese da história da congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da
Piedade, que quando fundada tinha como essência o acolhimento das crianças filhas de mães
escravas que ficaram desamparadas após a Lei do Ventre Livre, em 1871.
Em continuidade será apresentada a gênese do Orfanato Santo Eduardo, as principais
motivações que contribuíram para sua criação, como foram seus primeiros anos de
funcionamento na cidade, fazendo a contextualização, à medida do possível, com a história
do município e a história da Igreja Católica em Uberaba, uma vez que a criação do orfanato
foi resultado da interlocução entre o laicato e o clero católico locais.
Congregação das Irmãs Dominicanas de Nossa Senhora do Rosário de Monteils: da Fundação à Vinda para o Brasil
A congregação das Irmãs Dominicanas de Nossa Senhora do Rosário de Monteils foi
fundada por Alexandrina Conduché, que posteriormente tomou o nome religioso de Madre
Anastasie. Alexandrina nasceu em 1833 na aldeia de Bor, situada nas montanhas de Averyon,
na França, em uma família muito simples. Entrou para o convento aos quinze anos e, sob
orientação do padre Jean Pierre Gavalda - que além de vigário de Bor era também seu tio -
iniciou uma fundação de religiosas no local, cujo carisma estava amparado em duas
vertentes: o cuidado aos enfermos e as atividades de ensino, uma vez que os índices de
analfabetismo na região em que vivia eram alarmantes. Sobre o carisma pessoal de Madre
Anastasie pode-se dizer que:
Desde o início, Madre Anastasie levou a sério a educação das crianças e adolescentes, sobretudo a educação dos pobres que as Irmãs deviam acolher gratuitamente. Desde o início, levou a sério o serviço aos enfermos, sobretudo dos pobres, os quais deveriam ser cuidados gratuitamente e com o mesmo zelo e exatidão que se dispensava aos ricos: “É preciso visitar os doentes, sobretudo os pobres.Essas visitas são santas” [...]. Madre Anastasie preocupava-se vivamente com um ensino de qualidade. Sempre incentivada
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e buscava meios de aprimorar a cultura das Irmãs. Enfatizava a importância dos estudos: “Não sacrifique a hora do estudo. É seu ofício canônico”. [...]. Ditava às professoras a atitude que deviam tomar frente às crianças e adolescentes que ela tanto amava e para as quais exigia o bem-estar [...] (LOPES, 1986, p. 16).
Sob orientação do padre Cornier, que era prior em Tolosa, na França, esta congregação
anexou-se à secular Ordem de São Domingos no ano de 1875. O noviciando da congregação
foi transferido para Monteils, local onde os meios de comunicação eram mais acessíveis.
Mesmo após a morte de Madre Anastasie, ocorrida em 1878, a congregação manteve-se
atuante em sua missão, se expandindo, inclusive, por diversos países.
Enquanto isso, no Brasil, a Igreja Católica estava passando por um processo de reforma
eclesial na tentativa de moldar o clero e o catolicismo luso-brasileiro aos padrões europeus,
uma vez que, conforme Wernet (2005, pp. 131-132),
Esse catolicismo de características luso-brasileiras e o seu clero começaram a ser expostos a críticas por intelectuais leigos e por reformadores eclesiásticos, que se engajaram para modernizar o Brasil, modernização que necessariamente incluía revisão da religião, moralização da sociedade e do clero [...] promoveu-se afastamento do catolicismo luso-brasileiro tradicional, de caráter familiar, social e leigo, afirmando um catolicismo fiel ao papa, de tendência conservadora e com forte conotação moralizadora. O catolicismo reformado caracterizou-se, também, pela defesa das doutrinas tridentinas, insistindo na vivência de uma fé interiorizada, pessoal e individual, e de extrema obediência às orientações do clero.
Esse catolicismo de características luso-brasileiras, com o qual pretendia-se romper, foi
gestado no período colonial, quando a relação entre a Igreja e o Estado se dava pelo regime
de padroado, que consistia no direito concedido pela Santa Sé à Coroa portuguesa (e
posteriormente aos imperadores do Brasil) de administrar os assuntos religiosos no ultramar
(SOUZA, 2005). Nesta ambiência surgiram diversas ordens religiosas que contribuíram para
o processo de colonização do Brasil, exercendo algum tipo de atividade assistencial e/ou
educativa. A evangelização, neste contexto, estava intrinsecamente relacionada aos padrões
culturais portugueses e aos interesses políticos da Metrópole e a Igreja dependia e estava
subordinada à Coroa lusitana.
Entretanto, por volta do século XVIII, a Europa entrou em um processo de
secularização e a Igreja perdeu sua influência em vários setores da sociedade, que passou a
valorizar uma visão mais racional e científica do mundo. Conforme Nery (1993, p. 8), “a
idade da razão emergia com força, provocando uma crise na idade da fé”. No início do século
XIX as instituições religiosas entram em descrédito e o catolicismo tradicional passou a ser
visto como superficial, supersticioso e não sintonizado com uma sociedade em processo de
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modernização. E foi nesta ambiência que surgiu o movimento ultramontano, caracterizado
pela “intensificação da tendência de centralização do poder nas mãos do papa, pela
uniformidade doutrinal cada vez mais acentuada e dirigida [...]. O ultramontanismo combatia
o liberalismo radical e juntamente rejeitava tudo quanto havia de inovação e progresso, de
avanços científicos, de posições e movimentos sociais e políticos, que surgiam, naturalmente,
dentro do contexto liberal” (LUSTOSA, 1977, p. 38).
A orientação política ultramontana teve como desdobramento a romanização que,
conforme Araújo (1986, p. 22), foi um “movimento de reuropeização do Catolicismo de
características centralizadoras e sob a autoridade papal, [...] de inspiração eminentemente
hierárquica e clerical”. Constituiu-se, assim, na reorganização institucional da Igreja com
base nas determinações da Cúria Romana, mediante os novos desafios impostos pelos ideais
iluministas, que combatiam e questionavam a influência ideológica da Igreja na vida social.
Desta forma a Igreja, que no modelo da cristandade era dependente da Coroa portuguesa,
passou a depender das orientações da Cúria Romana, cujas diretrizes eram declaradamente
antiliberais e inspiradas no modelo tridentino, com ênfase nos aspectos doutrinários da fé
(AZZI, 1994; MONTEIRO, 2009).
Surgiu então, no Brasil, o movimento dos bispos reformadores, que tinha como intento
imprimir novos rumos à Igreja. No documento Alguns pontos de reforma na Igreja no
Brasil, o bispo Dom Antônio de Macedo Costa, pontuou as metas desta reforma, a saber:
Firme exercício da autoridade episcopal, controle do clero, união com o Papa e unidade de ação dos bispos; eliminação dos abusos da disciplina no clero, alargamento do campo de ação pastoral, busca de uma espiritualidade baseada na oração, no estudo e numa maior convivência entre os padres; reorganização ou fundação de seminários com base na disciplina, no estudo e em sua destinação exclusiva à formação do clero; regeneração religiosa do povo através das missões populares; renovação das missões entre os índios; restauração das ordens religiosas e presença de novas congregações; reorganização das confrarias com expurgo dos elementos maçônicos; aumento das dioceses (MELO, 1996, p. 54, grifos meus).
Como se vê, estes bispos, logo de início, sentiram a necessidade de trazer religiosos da
Europa para colaborarem na formação do clero e da sociedade em geral, o que fez com que "a
vida religiosa no Brasil assumisse o jeito das províncias européias" (MELO, 1996, p. 55). De
acordo com Azzi (1983, p. 17):
Os religiosos assumem também parte importante na pregação das missões populares entre o povo, visando substituir, pouco a pouco, o tradicional catolicismo luso-brasileiro, marcado pelo culto dos santos, pelo catolicismo romano, com ênfase na doutrina e na prática sacramental. Mas é sobretudo nos centros urbanos, junto à burguesia emergente, que os religiosos atuaram
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de forma mais eficaz, sobretudo através da instituição de colégios, e das inúmeras igrejas e paróquias que vão sendo confiadas aos seus cuidados.
Incentivados a desenvolver suas atividades missionárias em terras brasileiras,
chegaram ao país, nesta ambiência, os lazaristas, os capuchinhos, os dominicanos e os
salesianos. Vieram também algumas congregações femininas, como as Filhas da Caridade de
São Vicente de Paulo, as Irmãs de São José Chambery, as Irmãs Dorotéias, e, inclusive, as
Irmãs Dominicanas de Nossa Senhora do Rosário de Monteils. Segundo Valle (2005, p. 218),
A presença e atuação de milhares de religiosas vindas de além-mar deu um prestígio sem precedentes aos bispos e à Igreja católica. As irmãs de caridade foram um dos fatores de maior peso na evolução da vida religiosa brasileira no final do Segundo Império. Elas passaram a ocupar postos dirigentes no campo da saúde, da educação e da assistência social, tornando a presença da Igreja mais visível na sociedade e diante dos governos.
É importante ressaltar que a vinda destas congregações - tanto femininas quanto
masculinas - foi decisiva no processo de europeização e revitalização do catolicismo
brasileiro, uma vez que eram "disciplinados e comprometidos com as metas da Igreja em
busca de restauração" (VALLE, 2005, p. 218). Por outro lado, o carisma destas congregações
baseava-se, quase sempre, em uma presença ativa na sociedade mediante a vitalização de
escolas e obras assistenciais, fato que pôde ser constatado em Uberaba, cidade onde as irmãs
dominicanas fundaram o Colégio Nossa Senhora das Dores, voltado para o ensino elementar
e normal, mas também o Orfanato Santo Eduardo, de cunho assistencialista.
Conforme Beozzo (2003, p. 279), “fazendo vir da Europa uma centena e meia de
congregações e ordens religiosas masculinas e femininas, num curto período de trinta anos [a
Igreja] vai se europeizar e romanizar, tornando-se estranha à religião luso-brasileira, até
então praticada pelo povo e veiculada pela Igreja”.
Por outro lado é importante mencionar que a vinda desses religiosos e religiosas foi
motivada não somente devido ao processo de reorganização da Igreja brasileira, mas também
porque, na Europa, diversas congregações estavam em crise em decorrência do
fortalecimento dos ideais laicos e liberais. Na França, inclusive, o catolicismo passava por um
momento conturbado, uma vez que "na Europa, França e Itália notadamente, as lutas
burguesas implicaram a perseguição anticlerical e o afastamento da Igreja de todos os centros
de decisão, inclusive do sistema público de ensino" (MANOEL, 2008, p. 19). As leis
aprovadas neste contexto suscitaram perseguições aos religiosos e o fechamento de suas
casas por parte das autoridades leigas, fazendo com que a própria autoridade papal
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recomendasse às congregações a fundação de novas sedes fora do país.Em outras palavras, a
vinda dessas congregações para o território brasileiro foi motivada:
[...] por problemas vivenciados por essas corporações no continente europeu, como conflitos com as autoridades civis, representantes de um Estado liberal que procurava se garantir sem o respaldo da religião, quanto por convites feitos por bispos do Brasil, que buscavam reforço para suas ações pastorais e para as melhorias das condições de um clero nacional pouco preparado academicamente e, muitas vezes, flagrado em desvios de conduta (GONÇALVES NETO e CARVALHO, 2013, p. 348).
Quanto à escolha de Uberaba pelas irmãs dominicanas sabe-se que, na ocasião, já
moravam no Brasil alguns frades dominicanos que tinham se transferido para a cidade a
convite do bispo recém-nomeado da diocese de Goiás, Cláudio José Gonçalves Ponce de
Leon. O bispo convidara esses frades para atuarem em solo goiano devido a sua preocupação
com a dimensão da diocese assumida - que abrangia o estado de Goiás e o Triângulo Mineiro
– e a escassa quantidade de sacerdotes disponíveis para trabalharem na região. Neste
contexto, houve a proposta de:
Unir o trabalho das dominicanas de Bor aos frades dominicanos de Toulouse. Tal projeto, inclusive, vinha de encontro ao aconselhamento do papa que exortava as Congregações religiosas em geral, sediadas na França, a fundarem núcleos fora daquele país, em consequência das leis anti-religiosas que ali começaram a vigorar. Considerando não só as exortações do papa, como também os insistentes pedidos de Dom Cláudio, bispo de Goiás, e ainda, o caminho aberto pelos dominicanos no Brasil, a Madre, enfim, consente em enviar um grupo de freiras para Uberaba, berço da fundação dominicana (OLIVEIRA E GATTI JÚNIOR, 2004, p. 139).
Além disso, conforme Melo (2013, p. 50), “o senso de realismo e adaptação, um dos
princípios fundamentais da Ordem Dominicana, na procura de caminhos novos, que exige
ruptura com o passado, e o senso de oportunismo sadio, levou a Congregação a empreender
uma aventura apostólica transoceânica rumo ao Brasil”.
Sendo assim, em junho de 1885 as irmãs Maria José, Maria Otávia, Maria Eleonora,
Maria Hildegarda, Maria Juliana e Maria Reginalda chegaram à Uberaba e se instalaram em
um local provisório, aguardando as reformas no prédio da Santa Casa de Misericórdia, local
onde deveria ser instalado o colégio a ser administrado por elas.
Após se instalarem na cidade, passaram a se dedicar aos cuidados dos doentes que se
encontravam nas dependências da Santa Casa de Misericórdia e outros que eram atendidos
em domicílio, além de iniciaram as atividades de ensino nas modalidades de pensionato e
externato. Conforme Lopes (1986, p. 139), em continuidade aos ideais que levaram à criação
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desta congregação, “a maior preocupação era com os alunos pobres, que receberam um
carinho verdadeiramente maternal”.
Mais tarde, entretanto, elas tiveram que tiveram que desocupar as dependências da
Santa Casa de Misericórdia para que o prédio pudesse ser destinado as suas funções
originais, ou seja, um hospital para atendimento à população pobre da cidade. Os recursos
financeiros da congregação foram suficientes apenas para a aquisição de um terreno no qual
seria construída a sede do colégio. Entretanto, para a construção do prédio, elas tiveram que
contar, conforme Lopes (1986, p. 49), com “a generosidade das famílias uberabenses”, ou
seja, das famílias católicas ricas que ansiavam por uma instituição religiosa que assegurasse
a continuidade da formação cristã que almejavam para suas filhas.
Inaugurado em 1895, o número de jovens matriculadas no colégio foi aumentando
gradativamente, totalizando, então, 254 alunas no ano de 1899, sendo que dentre elas havia
alunas pagantes e gratuitas. A idade das alunas atendidas variava entre 7 e 27 anos, sendo
que a maioria estava situada entre 10 e 18 anos. Entretanto, conforme Lopes (1986, p. 97),
[...] os trabalhos da Congregação não se restringiam, apenas, aos colégios e ao ensino. Estendiam-se às obras de assistência social, de amparo às crianças carentes e aos enfermos. A educação das crianças pobres se realizava em nossa cidade, através do Externato Imaculada Conceição, instalado no alto do Fabrício.
No âmbito assistencial, além do Externato Imaculada Conceição,as irmãs dominicanas
também instalaram o Orfanato Santo em Eduardo, cuja gênese e trajetória serão
apresentadas a seguir, e o Externato São José, destinado à educação elementar das crianças
carentes da cidade.
Entretanto, o maior investimento das irmãs dominicanas e de muitas congregações
existentes no país foi no setor educacional, uma vez que a atuação nesta área estava em
consonância com as mudanças na organização social que contribuíram para alterar o formato
da educação feminina, não mais restrito à educação doméstica. Sendo assim, essas
congregações passaram a investir em internatos, semi-internatos e externatos, visando à
preparação intelectual das jovens das classes urbanas, uma vez que o projeto católico de
educação feminina atendia às expectativas das classes média e alta. Conforme pontuado por
Lacombe (1980, p. 56) tal situação sinalizava o início uma “tendência à elitização da ação
católica, deixando de lado as classes populares”.
Outro fator que implicou em maiores investimentos das congregações religiosas no
setor educacional, distanciando-as da prática assistencial, foi a separação entre a Igreja e o
Estado a partir da proclamação da República, haja vista que, diferentemente do que ocorria
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no regime de padroado, o governo deixou de investir nas obras eclesiásticas. Sendo assim, a
forma encontrada pelos institutos religiosos para se manterem e continuarem seus projetos
assistenciais foi a abertura de colégios particulares. Conforme Azzi (1994, p. 13),
À revelia das intenções dos religiosos, esses estabelecimentos educacionais passaram a exigir também maiores investimentos em termos de recursos humanos e econômicos, seja para satisfazer as exigências do governo, seja para poder competir, em termos de igualdade, com os colégios leigos e protestantes (AZZI, 1994, p. 13).
Cumpre ressaltar, porém, que o investimento em colégios não significou uma ruptura
com as obras assistenciais, que eram as metas prioritárias de muitas dessas congregações ao
se estabelecerem no país. Sobre esse assunto Azzi (1994, p. 14) explica que “ainda que
diversas congregações religiosas passassem a dar menos atenção às obras destinadas às
crianças e jovens carentes, o número de estabelecimentos dedicados à infância abandonada
continuou ainda a ser bastante expressivo”.
Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade
Ao contrário da Congregação das Irmãs Dominicanas de Nossa Senhora do Rosário de
Monteils, a Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade é originária do
Brasil, mais precisamente da cidade de Caeté, Minas Gerais. Conforme dados levantados por
Leonardi (2006, p. 1.259), das 38 congregações, tanto masculinas e femininas, existentes no
Brasil no século XIX, apenas seis foram fundadas no Brasil.
A história desta congregação - cuja sede é o Asilo São Luiz - está intrinsecamente
relacionada à história da Serra da Piedade, situada nos municípios de Caeté e Sabará, a 56
quilômetros de Belo Horizonte.De acordo com Ângela (1967, p. 24), “toda a história da Serra
da Piedade gira em torno de quatro homens [...]: Antônio da Silva Bracarena, Padre José
Gonsalves, Frei Luiz de Ravena e Monsenhor Domingos Evangelista Pinheiro”.
O misticismo em torno deste local teve início na segunda metade do século XIX,
quando disseminou-se a crença de que uma jovem que era muda começou a falar após
aparição da imagem de Nossa Senhora da Piedade. Tal fato motivou o português Antônio da
Silva Bracarena a construir uma ermida em homenagem a essa santa no alto da serra.
Devido à dificuldade de acesso ao local, a construção dessa capela foi bastante
dispendiosa, levando Bracarena a dispor de todos os seus bens para poder concluí-la, o que
aconteceu em 1778. A partir de então o local tornou-se ponto de devoção de inúmeros
romeiros da localidade e a serra passou a ser habitada por ermitães. Com a morte de
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Bracarena, ocorrida em 1784, esses ermitães se dispersaram, encerrando-se o período
denominado como Fase da Veneração vivida no Santuário (TAMBASCO, 2010).
No início do século XIX, o padre José Gonçalves passou a levar, para a ermida,
inúmeros fiéis – inclusive escravos, em seus dias de folga - que subiam a serra para a prática
de exercícios espirituais. Segundo Tambasco (2010), iniciou-se, com ele, a Fase da Expiação,
uma vez que a peregrinação à serra era uma forma de penitência praticada pelos fiéis.
No ano de 1856 ocorreu o falecimento do padre José Gonçalves, sendo seu sucessor o
capuchinho italiano Luiz de Ravena, que junto ao frei Francisco Coriolando, foram
responsáveis pelas obras de restauração e ampliação do local. Após a morte de frei Ravena,
ocorrida em 1871, alguns freis passaram a cuidar da capela mas, com o tempo, ela ficou
abandonada. Entretanto, o padre Domingos Evangelista Pinheiro - que em 1875 assumira a
paróquia de Caeté - ocupou as instalações construídas pelo frei Ravena, dando início a obras
assistenciais no novo período que passou a ser denominado Fase da Caridade.
Uma das primeiras providências tomadas por padre Domingos foi a criação de uma
irmandade leiga – denominada Irmandade de Nossa Senhora da Piedade - que deveria zelar
pelo patrimônio da Serra. Em seu estatuto, oficializada em setembro de 1875, havia um
parágrafo no qual a irmandade se comprometia com a “criação de um Asilo para educação,
alimentação e vestuário de meninas abandonadas, preferindo-se as nascidas de mulher
escrava” (ÂNGELA, 1967, p. 47). Ao incluir esta cláusula no estatuto, padre Domingos estava
preocupado com a situação em que se encontravam as crianças de Caeté e cidades vizinhas
após a promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, que libertou os filhos de escravos
nascido após essa data sem, contudo, oferecer-lhes condições de inserção social.
Em maio de 1878, padre Domingos comunicou oficialmente à irmandade a fundação do
asilo e apresentou o regulamento que havia preparado para admissão das meninas. Também
solicitou, às paróquias por ele visitadas, doação de esmolas em prol do santuário e do asilo,
além de requerer apoio ao bispo de Mariana. Em agosto foi instalado o Asilo São Luiz,
destinado a meninas pobres. Para admissão dessas meninas, vigários de diversas freguesias
enviaram seus nomes ao padre Domingos, que realizou um sorteio, a fim de evitar queixas da
população. Sobre a finalidade do orfanato, Dom Joaquim Silvério (apud ÂNGELA, 1967, p.
60) escreveu que tratava-se de um estabelecimento “destinado a recolher pessoas
desprovidas de recursos, descerrar-lhes as portas da ciência e aparelha-las com a forte
armadura religiosa, para a vida social [...]”.
Essas palavras indicam que as internas do asilo deveriam receber educação religiosa,
como era de se esperar de uma instituição mantida por uma irmandade católica, mas
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também receberiam conhecimentos escolares, o que fica implícito na expressão “descerrar-
lhes as portas da ciência”. Além disso, as meninas também deveriam exercitar-se em prendas
domésticas, ficando aptas ao casamento ou ao trabalho em casas de família quando saíssem
da instituição. Enfim, conforme Ângela, (1967, p. 78), no asilo elas aprendiam “a ler, escrever,
Catecismo, História do Brasil, Gramática Portuguesa, Geografia, Ciências Naturais, Noções
de desenho linear, Música, Piano, Trabalhos de agulha, crivos, crochet, bordados, trabalhos
de lã, flores, costura e se exercitam em todo serviço doméstico”.
Logo nos primeiros meses de instalação, quando o asilo atendia somente doze meninas,
o asilo começou a sentir o peso das dificuldades financeiras, uma vez que era preciso arcar
com as despesas de alimentação, vestuário, compra de livros, material de ensino e o
pagamento das professoras. Sem apoio do governo monárquico, contando somente com a
contribuição da sociedade cristã, o asilo teve que lançar mão de um expediente utilizado por
diversas congregações para conseguirem manter suas obras de assistência social: a admissão
de pensionistas. Tal fato permitia atender à solicitação dos pais, que desejavam que suas
filhas recebessem uma educação cristã, e possibilitava o sustento das crianças pobres.
Apesar da falta de comprometimento do Estado, o Asilo São Luiz conseguiu manter-se
e, aos poucos, expandir-se, devido às doações recebidas das mais diversas pessoas, inclusive
algumas que, apesar de não professarem religião católica “condoem-se da miséria alheia e
praticam a caridade cristã impulsionadas por um coração compassivo e bom. Por isso é de se
admirar que sejam apontados três protestantes, entre os que têm manifestado simpatia e
proteção ao Asilo” (ÂNGELA, 1967, p. 86).
Mais tarde, o padre Domingos resolveu fundar uma congregação que pudesse dar
continuidade aos trabalhos educativos do Asilo São Luiz, uma vez que ele sabia que nem
sempre poderia contar com a colaboração dos leigos. Em 1892 a congregação foi fundada,
recebendo o nome de Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da
Piedade.Conforme Ângela (1967, p. 117), o objetivo do padre Domingos era "não só conservar
o orfanotrópio por ele fundado, mas também oferecer hábeis diretoras a outros que,
porventura abrisse à caridade pública”, além do “alívio dos desvalidos que se acham nos
hospitais" (idem, p. 147).
Em pouco tempo, várias jovens ingressaram na congregação e, de diversas localidades,
chegavam solicitações de novas fundações bem como do deslocamento das irmãs para outras
cidades onde pudessem dirigir colégios e outras modalidades de instituições assistenciais. Os
pedidos mais insistentes eram vindos de Lavras (MG), onde havia necessidade de um colégio
católico que pudesse "livrar a mocidade das garras do protestantismo que ali lavra"
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(ÂNGELA, 1967, p. 182), uma vez que nesta cidade já estava em funcionamento, desde 1892,
o Instituto Evangélico, de orientação protestante (LIMA, 2015).
Assim, em fevereiro de 1900, cinco irmãs partiram de Caeté e fundaram o primeiro
colégio da Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade, em Lavras, que
recebeu a denominação de Colégio Nossa Senhora de Lourdes.Este foi o primeiro colégio
criado pela congregação em atendimento à solicitação do episcopado. De acordo com Azzi
(1992, p. 129), tal fato significou:
A ampliação de suas atividades para a juventude das classes médias, a fim de contrapor o ensino católico à escola protestante ou laica. Consequentemente o atendimento à infância desvalida, meta prioritária na época da fundação, passou pouco a pouco a ocupar um lugar relativamente secundário na vida da congregação.
Esta análise empreendida por Azzi é aplicável à maioria das congregações católicas que,
seja por dificuldades financeiras, seja para se contrapor à difusão de escolas de outros credos
religiosos, investiram na criação de colégios particulares destinados à formação dos filhos e
filhas das elites. Tal prática, entretanto, permitiu a consolidação destas instituições, sendo
que muitas delas mantém-se ativas ainda nos dias atuais.
A partir de então essa congregação inaugurou instituições educativas em diversos
estados brasileiros, além de manterem instituições na área de saúde e da assistência social,
como no caso do Orfanato Santo Eduardo, instituição assumida pelas irmãs da Piedade no
ano de 1943.
Gênese e primeiros anos de funcionamento do Orfanato Santo Eduardo (1920 a 1930)
Embora o Orfanato Santo Eduardo tenha sido criado em 1920, o memorialista Carlos
Pedroso afirma que sua história começou, na verdade, em 3 de fevereiro de 1918, quando o
Conselho Superior da União Popular Católica – cujos líderes eram o coronel Raymundo
Soares de Azevedo e Dolores Coelho Cunha Campos – se reuniram e constituíram uma
comissão com o objetivo de angariar esmolas e donativos para a construção do orfanato, há
tempos projetado pelo bispo D. Eduardo Duarte Silva.
A criação do Orfanato Santo Eduardo, portanto, foi resultante da ação do clero e do
laicato católico, especialmente aqueles membros que compunham a elite política e econômica
uberabense. No caso dos líderes do Conselho Superior da União Popular Católica, cabe
observar que Raimundo Soares de Azevedo era um “chefe político de grande prestígio do
Partido Republicano Mineiro, democrata industrial, criador, vereador eleito à Câmara
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Municipal no mandato 1912-1915 [...]”, conforme citado na genealogia da família Silva e
Oliveira. Dolores Coelho Cunha Campos, por sua vez, era “uma das senhoras mais ilustres de
Uberaba”, esposa de Alexandre da Cunha Campos, “um dos homens que mais fizeram pelo
progresso de Uberaba (fundador da Empresa Telefônica, importador de gado da Índia,
grande comerciante, criador da maior rede de Drogarias do interior do Brasil, presidente por
29 anos do Asilo Santo Antônio e vereador municipal)”.
Nota-se, portanto, que embora esses dois líderes tivessem relação direta ou indireta
com a política local, a criação do orfanato não se deu pela esfera pública, mas estava situada
no âmbito da filantropia praticada pelos membros da elite uberabense. Quanto às motivações
que levaram à criação do orfanato é possível supor que, em relação às pessoas que faziam
parte do laicato católico, além de estarem preocupadas com o aumento do número de
crianças pobres que praticavam a mendicância e/ou vadiavam pelas vias públicas, elas se
sentiam na obrigação de praticar atos de caridade e filantropia para com esses
desgraçadinhos da sorte – termo várias vezes empregado pela imprensa em relação às
crianças pobres e/ou abandonadas.
Entretanto, por parte da Igreja, uma das maiores preocupações que fomentou o
planejamento desta instituição foi o avanço da doutrina espírita na cidade, conforme
observado na declaração de frei Romeu Ondidieu - dominicano francês - registrada na ata da
6ª reunião da Comissão pró-Orfanato, citada por Pedroso (mimeo, 2015):
[...] em virtude da acção aqui exercida pelos espíritas achou de bom alvitre fallar a Superiora Geral das irmãs Dominicanas (quando por esta cidade passou) sobre a instalação do orphanato, mas a superiora Geral não decidiu logo, mas depois... resolveu consentir na fundação.
Ao mencionar a acção aqui exercida pelos espíritas é possível inferir que o frei Romeu
Ondidieu estivesse se referindo ao Asilo Anália Franco, que havia sido instalado em Uberaba
no início de 1919. Cabe observar, porém, que mesmo antes da instalação deste asilo, a
doutrina espírita já era veementemente combatida no município pela Igreja Católica e seus
adeptos, especialmente após a criação do Círculo Católico, entidade liderada pelo médico
João Teixeira Álvares que contava com mais de 120 sócios, em sua maioria membros da elite
e de uma incipiente classe média uberabense (RICCIOPPO, 2004).
No ano de 1917, inclusive, João Teixeira Álvares chegou a publicar uma série de artigos
no jornal Lavoura e Comércio – que mais tarde foram reunidos no livro intitulado Seita
Maldita – nos quais, além de atacar o espiritismo, se mostrava favorável à perseguição dos
adeptos desta doutrina e ao fechamento dos centros e escolas espíritas do país:
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[...] o espiritismo, como tantos outros crimes, tende a alastrar pelo Brasil, semelhante a um vírus pestilento, que se inocula pela nossa população menos culta, produzindo males que nem se pode enumerar.Obsecados pelas pesudo-doutrinas espíritas, e levados a mais das vezes por motivos incofessáveis, muitos proselytos dessa demonolatria assentam suas bancas nos logares mais públicos e ali estabelecem o seu commercio immoral e as suas indecentes mystificações. Procuram desviar o povo com seus sentimentos e praticas religiosas e, com o pretexto de remedios e curas milagrosas, vão embuindo as multidões e enganando os miseros incautos. Que a policia tome nota da decisão do Supremo Tribunal Federal fechando esses Centros e Escolas Espíritas, onde a par da immoralidade e do mercantilismo, campeia a loucura em todas as suas mais perigosas formas. Fechar esses antros de miséria, processando seus diretores e proprietarios sera o maior e mais patriotico serviço que nos podera prestar a policia, cumprindo assim a sua alta missão de zelar pela moral e pelos bons costumes (LAVOURA E COMÉRCIO, 1917, p. 2).
Os artigos contínuos publicados por João Teixeira Álvares na coluna intitulada Boletim
do Círculo Catholico de Uberaba do jornal Lavoura e Comércio levaram o jornalista Orlando
Ferreira a publicar um livro, em 1919, como resposta às provocações e denúncias feitas contra
o espiritismo. Na obra Pela Verdade: Catolicismo x Espiritismo, Ferreira defendeu o
espiritismo e demonstrou como o catolicismo, a seu ver, fanatizava as pessoas, sendo
responsável pelo atraso do povo brasileiro (RICCIOPPO, 2004).
O Orfanato Santo Eduardo, portanto, foi idealizado em meio a esses confrontos
envolvendo católicos e espíritas da cidade de Uberaba nas décadas iniciais do século XX. À
propósito, o episcopado brasileiro – e consequentemente o clero uberabense - neste período,
muito investiram no combate às religiões não católicas, fato que ocasionou embates,
principalmente, com espíritas e protestantes.
Posteriormente, em 1921, em carta enviada pelo bispo D. Eduardo ao arcebispo, é
possível comprovar que a abertura de instituições católicas, dentre elas o Orfanato Santo
Eduardo, foi uma tática encontrada pela Igreja Católica para combater a propagação, tanto
da doutrina espírita como protestante, no município e na diocese:
[...] Tenho procurado nessa diocese fazer o que V. Exa. aconselha, havendo já inaugurado mais dous Collegios de meninas, em Araguary e em Agua-Suja, que deram o bom resultado do fechamento dos dous protestantes methodistas, e nesta Cidade inauguraram-se mais = um Jardim de Infancia, um Orphanato e uma escola nocturna para Operarios, afim de obstar aos institutos similares estabelecidos pelos espiritistas. O mundanismo, o espiritismo, o occultismo, o protestantismo estão deschristianisando o mundo; forçoso é que os Bispos demos o alarme, como está fazendo V. Exa., e excogitemos os meios de conter estas avalanches que vão devastando tudo quanto de santo temos em nossa terra (CÚRIA METROPOLITANA DE UBERABA, 1920 A 1944).
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Retomando os aspectos que configuraram a gênese do orfanato, em outubro de 1920 as
irmãs dominicanas alugaram uma casa na rua do Carmo, que tinha condições de receber de
trinta a quarenta meninas. Para mantê-lo foram nomeadas algumas rosaristas, que eram
uma espécie de madrinhas do orfanato e que tinham como função conseguir famílias para
contribuírem mensalmente com a instituição.
As irmãs dominicanas também receberam uma doação da comissão pró-orfanato, que
desde de 1918 angariava fundos com o intento de construir uma obra assistencial para
crianças em Uberaba. Tal doação, porém, gerou algumas polêmicas locais, uma vez que a
comissão desejava que o orfanato atendesse crianças de qualquer credo religioso, mas as
irmãs se recusavam a receber aquelas que não professarem a fé católica, conforme noticiado
na imprensa local:
[...] a caridade deve ser cega. Não é preciso que os olhos vejam a quem é dada a esmola. Basta que a alma traduza no acto o principio divino que, em verdade, é a mais fundamental manifestação de grandeza do homem [...]. Correspondendo a essa pratica innata no nosso meio, a pratica cega da caridade, cavalheiros e damas de Uberaba, resolveram, a coisa de ano, aqui fundar um orphanato que orvalhasse [...] todas as dores desses que vão pelo mundo, sem pae e sem mãe, a rolar num vazio de todos os carinhos e conselhos da familia. Seria o Orphanato Santo Eduardo, onde não haveria distincção de cor, de credo religioso, de quaisquer pontos de vista em matéria de crenças. O plano era amparar os orphãos, dando-lhes enfim a vida no seu aspecto mais forte e digno. Para a fundação do Orphanato foram angariados dinheiros, num total de vinte e dois contos. Essa quantia parada por motivos provisorios a idea, acha-se depositada aqui na casa de Alexandre Campos. Ultimamente as dignas irmãs dominicanas, num impulso de caridade, fundaram um orphanato que, a falta de maiores recursos, não dispõe de elementos da eficiencia para os nobres fins collimados. Então, havendo vinte e dois contos a juros esperando a realização do Orphanato Santo Eduardo, as irmãs dominicanas [...] pedem sejam revertidos esses vinte e dois contos em beneficio do atual orphanato fundado pela Ordem Dominicana. Para resolver isso, domingo reuniu-se na sala do templo de S. Domingos a commissão directora do angariamento daquella quantia. Os debates, orientados no princípio nobilissimo do bem dos orphãos necessitados, e os batem em toda parte, tiveram uma conclusão que ainda não foi uma resolução. Há o seguinte: a Ordem Dominicana, tão essencialmente beneficiadora, é todavia ultamontana, dentro do exclusivo eritario do pontificiado romano. Assim, o orphanato da Ordem Dominicana não aceita orphãos de origem acatholica, ou que, de qualquer modo, não estejam em matéria de fé, dentro dos principios do papa. Já o plano do Orphanato Santo Eduardo era o mais livre possível em materia de fé, ou de cor, ou de familia. Assim a comissão aludida concluiu que para se entregar ou não aquele dinheiro ás irmãs dominicanas é necessário que sejam consultadas as pessoas que deram donativos e obulos para perfazer aquela quantia (LAVOURA E COMÉRCIO, 1920, p. 1).
É interessante observar que, embora a comissão que coletou fundos para a construção
do orfanato tenha se originado de uma associação católica, ou seja, do Conselho Superior da
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União Popular Católica, seus membros eram mais tolerantes em relação ao público a ser
atendido pela instituição. Sendo assim, a preocupação daqueles que praticaram a caridade
era a retirada, das ruas da cidade, das crianças pobres que não podiam contar com o amparo
da família e nem do poder público, que sequer investia em escolas em número suficiente
para atendê-las (SOUZA, 2012).
As irmãs dominicanas, por sua vez, eram submissas às orientações do papa, uma vez
que as metas de restauração da Igreja exigiam disciplina e comprometimento do clero e das
congregações religiosas. A comissão, portanto, encontrava-se em uma situação embaraçosa,
pois apesar de compreender o “rumo ultamontano, matéria em que os dominicanos não
podem transigir”, desejavam, na verdade, “que o orphanato não tivesse tantas restrições na
realização da caridade” (LAVOURA E COMÉRCIO, 1920, p. 1).
Conforme afirmado por Lopes (1986), o dinheiro arrecadado acabou sendo entregue às
irmãs dominicanas. Além desse dinheiro o orfanato contava com as contribuições da
sociedade e, alguns anos mais tarde, com subsídios recebidos do governo municipal e federal.
Dessa forma puderam manter o orfanato por aproximadamente duas décadas, atendendo a
uma média de quarenta meninas que recebiam, além do ensino elementar, aulas de costura e
prendas domésticas:
[...] as Irmãs fundaram, também na cidade, uma bela obra de caridade: o Orfanato Santo Eduardo. E desde então as Irmãs tratam, com verdadeiro carinho materno, das crianças desamparadas que lhe são confiadas. Ali, além dos socorros materiais, elas recebem uma educação suave e sólida que as inicia para as lutas da vida. Elas aprendem a ler, a escrever, a contar, a varrer, lavar, cosinhar, costurar. Algumas mais hábeis tem saído dali boas costureiras. Uma que mostrava gosto para o estudo foi formada pelas Irmãs e recebeu o diploma de normalista. É pena que o local seja pequeno e os recursos escassos; assim, só um número restrito de crianças pode (LAVOURA E COMÉRCIO, 1935, p. 2).
Conforme observado no excerto acima, o prédio do orfanato era considerado pequeno
e, por isso, atendia a um número reduzido de crianças. A fotografia que segue mostra a casa
onde o orfanato funcionava sob os cuidados das irmãs dominicanas. Tratava-se de uma
construção simples, mas que aparentemente atendia aos preceitos higienistas tão valorizados
no período: possuía grande quantidade de janelas, favorecendo a circulação do ar. Quanto à
localização, o orfanato ficava próximo ao Colégio Nossa Senhora das Dores, o que facilitava o
trânsito das irmãs entre essas duas instituições.
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Figura 1 –Orfanato Santo Eduardo em Uberaba (MG). Acervo do Museu da Capela – Memorial Dominicanas de Monteils.
Entretanto, com o passar do tempo, surgiram dificuldades para a manutenção do
orfanato, conforme explicitado nesta palestra proferida pela Irmã Domitila Borges:
Casa sem conforto, falta de meios de manutenção, falta de Irmãs para se dedicarem a este trabalho que, na verdade, exige uma vocação e uma formação específica. Foi então que, lá pela década de 40, com aprovação e ajuda de D. Alexandre, entregamos o Orfanato à Irmãs da Piedade que até hoje estão prestando este relevante serviço de assistência social, de caridade cristã, à cidade de Uberaba (BORGES, 1983, p. 39).
Conforme observado, diante das dificuldades encontradas as irmãs optaram por fazer a
transferência da administração do orfanato para as Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da
Piedade que, conforme citado, desde sua origem atuavam na assistência às crianças
desamparadas. Houve também uma mudança no prédio do Orfanato, que após ficar um
período de tempo em instalações provisórias, na Praça Santa Teresinha, transferiu-s para
prédio próprio, na rua Tiradentes, onde se encontra até os dias atuais.
Considerações Finais
Os resultados parciais sinalizam que o investimento em escolas confessionais foi uma
das estratégias encontradas pelas congregações religiosas para conseguirem se manter, bem
como para sustentarem as obras assistenciais, um vez que nem sempre era possível receber
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subsídios do governo. Porém, de forma contraditória, os estabelecimentos educacionais
mantidos pelas congregações religiosas passaram a exigir maiores investimentos em recursos
humanos e materiais, dificultando a manutenção das obras assistenciais.
Nesse sentido, as irmãs dominicanas se enveredaram para a área educacional e, além
do Colégio Nossa Senhora das Dores - voltado para alunas de classes sociais mais favorecidas
- criaram o Externato São José, na década de 1940, destinado à educação elementar das
crianças carentes da cidade, deixando para as Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade
o trabalho de assistência às crianças carentes do orfanato.
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Fontes Documentais
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Quinto Livro de Tombo da Arquidiocese de Uberaba, 1920 a 1944.
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Arquivo Público de Uberaba
Jornal Lavoura e Comércio, edição 2.018, 7 out. 1917. Jornal Lavoura e Comércio, edição 2.350, 12 out. 1920. Jornal Lavoura e Comércio, edição 7.038, 12 dez.1935.
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