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AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE CURRÍCULO E A SUA RESSONÂNCIA NA
PRÁTICA DOS EDUCADORES
Profa. Dra. Branca Jurema Ponce – PUC-SP
Profa. Dra. Sanny S. da Rosa – PUC-SP
RESUMO
Entre os anos 2010-2012, a partir de pesquisas próprias e de orientações a teses e
dissertações defendidas na PUCSP e na UNISANTOS, pode-se observar e identificar
características comuns em propostas curriculares nos sistemas públicos de educação, que
proporcionaram reflexões vinculadas ao projeto “Políticas curriculares para a educação
básica propostas pelo Estado e sua ressonância na prática pedagógica”, que se
desenvolveu no Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da PUCSP. Este
artigo é um dos produtos desse estudo. Dentre os objetivos propostos neste texto,
destacam-se o interesse de identificar as características das propostas curriculares dos
sistemas públicos de educação, e compreender as repercussões dessas políticas nas
práticas pedagógicas escolares. Esses objetivos articulam-se com a preocupação de
analisar o sentido dessas reformas locais impactadas por políticas educacionais em esfera
global. Para tanto foi preciso problematizar estas para buscar compreender aquelas em
seu contexto. O artigo propõe-se a analisar as reformas curriculares empreendidas pelo
Estado brasileiro (especialmente em sua esfera estadual de São Paulo) e a função dos
educadores nos processos de formulação, gestão e execução de orientações curriculares
por meio de suas práticas escolares. Os resultados das pesquisas analisadas dão conta que
as políticas públicas de educação, salvo honrosas exceções, têm contribuído para
aprofundar a tendência neoliberal, que vem se impondo como sistema hegemônico de
valores e crenças na sociedade contemporânea; que o binômio currículo-avaliação em
larga escala oferece-se como um instrumento de controle a serviço de uma lógica estranha
à do processo educativo; e que os educadores posicionam-se de forma ambivalente em
relação às políticas públicas e às prescrições curriculares.
Palavras-chave: Políticas públicas de currículo. Sistemas de educação. Papel dos
educadores.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 301028
Introdução
Pesquisa realizada entre os anos 2010-2012 na área de políticas públicas de
currículo sinalizam que os sistemas de ensino brasileiro têm empreendido iniciativas por
meio de duas modalidades básicas (não únicas) de propostas curriculares: a primeira, por
material apostilado/padronizado produzido pelos sistemas públicos de educação; a
segunda, pela compra, pelas redes públicas, de propostas padronizadas de ensino de
empresas privadas de educação ou de organizações não governamentais (CHIZZOTTI;
PONCE, 2012). Os efeitos dessas iniciativas sobre as práticas pedagógicas e escolares
demonstram que elas “quase sempre geram a desvalorização dos sujeitos no processo
curricular” (Ibid., 2012, p.34), o que também se traduz numa relação cada vez mais
pragmática e imediatista [dos sujeitos educadores] com o conhecimento, com os alunos e
com a própria finalidade da educação (ROSA, 2012).
Dessas constatações decorre a necessidade de aprofundar reflexões já esboçadas
em trabalhos anteriores (CHIZZOTTI; PONCE, 2012; ROSA, 2010, 2012) que, neste
trabalho, agrupamos em dois focos complementares de análise. De um lado, uma
discussão sobre a natureza e o sentido político das reformas curriculares empreendidas
pelo Estado brasileiro; de outro, sobre a função dos educadores nos processos de
formulação, gestão e execução das orientações curriculares que chegam às escolas. A
relevância do tema reside no fato de que a articulação entre essas arenas políticas - o da
formulação das políticas públicas (pelos sistemas de ensino) e o das ações práticas (pelos
educadores, nas escolas) – vem, aos poucos, redesenhando e redefinindo o próprio sentido
da escola e da educação na contemporaneidade (BALL et al., 2012 ), o que justifica o
esforço de reunir elementos, empíricos e teóricos, para formular uma compreensão mais
consistente sobre o tema.
O artigo sintetiza indagações vinculadas ao projeto “Políticas curriculares para a
educação básica propostas pelo Estado e sua ressonância na prática pedagógica”. Dentre
os objetivos propostos, destaca-se o interesse de identificar as características das
propostas curriculares de sistemas públicos de educação para além das fronteiras de nosso
país, compreendendo-as como parte de um desenho globalizado e de um modelo de
economia política cujo centro está distante da Nação. É também objetivo deste texto
reunir elementos e iniciar uma reflexão sobre as repercussões dessas políticas nas práticas
pedagógicas escolares. Esses objetivos articulam-se com a preocupação de compreender
o sentido e a direção política dessas reformas.
A literatura produzida sobre o tema, principalmente nas duas últimas décadas,
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 301029
tanto nacional como internacional, indica que dispomos de farto material para a discussão
sobre essas reformas educacionais orientadas pelo e para o mercado. Os seus traços mais
característicos são os currículos organizados por competências e habilidades, inspiradas
no modelo empresarial de gestão, que estimula a competição entre escolas e entre
sistemas de ensino via responsabilização (accountability) de professores e gestores
acionada pelos resultados de desempenho escolar em avaliações de larga escala. A
produção acadêmica disponível, contudo, ainda não proporciona compreensão suficiente
sobre as condicionantes e efeitos das reformas nas práticas pedagógicas.
Perfil das reformas curriculares empreendidas pelo Estado brasileiro
Que direções e finalidades têm as propostas de autoria do Estado brasileiro nas
três esferas administrativas que o compõem: a da União, a dos estados e a dos municípios?
Em linhas gerais, elas estão alinhadas com as reformas educacionais implementadas em
escala mundial, cujas diretrizes são emanadas de organismos multilaterais tais como o
FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial e a OCDE (Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Para captar o sentido político dessas
propostas é preciso considerar o papel do Estado nas relações com a sociedade civil a
partir do modelo neoliberal difundido, especialmente na década de 1980, que
supostamente seria capaz de corrigir as imperfeições e inconsistências do Estado do Bem-
Estar-Social.
Neste raciocínio, em sua origem, estão em jogo dois modelos de economia-
política: o da social-democracia e o do neoliberalismo. Enquanto aquele tem a sua
centralidade no Estado e busca a humanização do sistema capitalista com vistas ao
socialismo, este tem a sua centralidade no mercado e afirma o sistema capitalista como o
seu eleito.
O primeiro modelo busca resistir, no interior do próprio capitalismo, ao que
considera processos de exploração e desumanização, propondo jornadas menores de
trabalho, proteção a idosos, gestantes, doentes e desempregados. Propõe o pleno emprego
como meta e o planejamento da atividade econômica pelo Estado. Após a Segunda Guerra
mundial, levanta a bandeira da democracia e da justiça social, buscando ampliar a
participação de trabalhadores na vida econômica e política das nações. O modelo de
Estado pretendido pelos grupos defensores dessa proposta de economia política é o do
Bem-Estar-Social.
Um grupo de economistas, que se opunha à social-democracia, cujos nomes de
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EdUECE - Livro 301030
referência são o do Hayek e Milton Friedman, também em meados do século XX, criam
– em oposição ao modelo anterior - a alternativa da economia-política neoliberal:
Opondo-se à social-democracia, no correr das décadas de 1959 e 1960,
o grupo de Mont Saint Pélérin elaborou um detalhado projeto
econômico e político no qual atacava o chamado Estado da Providência
com seus encargos sociais e com a sua função de regulador das
atividades do mercado, afirmando que esse tipo de Estado destruía a
liberdade dos cidadãos e a competição, sem as quais não há
prosperidade (CHAUÍ, 2006, p. 313).
Mesmo tendo sido elaborada teoricamente em meados do século XX, o mundo só
veio a conhecer a proposta neoliberal após a crise econômica dos anos 1970. Ela trazia
entre suas promessas o que parecia ser a solução esperada: a estabilidade monetária por
meio da superação da inflação, que era atribuída ao avanço das reinvindicações por
melhores salários e aos investimentos estatais em projetos sociais. Paralelamente, o
mercado deveria assumir o papel de regular a economia com a sua racionalidade própria,
e a competição deveria ser restaurada como um valor fundamental no desenvolvimento
econômico, recuperando as possibilidades de avanço das iniciativas privadas nos diversos
setores.
Mesmo considerando as muitas mutações (PECK; TICKELL, 2002) que o
conceito sofreu desde meados do século XX, é inegável que o neoliberalismo se impôs
como sistema hegemônico de valores e crenças na sociedade contemporânea:
Esta modalidade de teoria econômica do livre mercado, manufaturada
em Chicago e vigorosamente comercializada através dos principais
escritórios comerciais de Washington DC, Nova York e Londres, se
transformou na racionalização ideológica dominante da globalização e
da contemporânea reforma do estado (PECK; TICKELL, 2002, p. 380,
tradução nossa.).
A lógica de operação e os discursos que passaram a justificar as reformas
educacionais realizadas pelos países alinhados a este novo projeto de economia mundial
revelam a força de outro fenômeno decorrente dos processos de globalização: o da
desnacionalização do Estado (JESSOP, 2002, p. 202). Em outras palavras, o
deslocamento do centro de produção das políticas dos Estados-Nação para as “policy
networks”: as redes políticas transnacionais (BALL, 2012). Esse movimento foi
observado por Morrow e Torres (2004, p.28), para quem o processo de globalização
“obscurece os limites nacionais, altera solidariedades dentro dos Estados e entre eles, e
afeta profundamente a constituição das identidades nacionais e de grupos de interesse”.
É verdade que as reformas educacionais empreendidas no Brasil desde a década
de 1990 vêm sendo conduzidas por grupos com concepções políticas distintas, o que pode
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EdUECE - Livro 301031
ser observado, por exemplo, a partir das relações do Estado com a sociedade civil, dos
governos FHC (1995-2002) e Lula (2003-2010). Para levar a termo o projeto educacional
desenhado pelo MEC nas duas gestões do PSDB, a equipe montada pelo então ministro
Paulo Renato de Souza deu preferência ao apoio técnico de especialistas (nacionais e
internacionais) de organizações não-governamentais e representantes do setor
empresarial. Em contraste, o governo Lula demonstrou preocupação em contar com a
participação de representantes de setores organizados da sociedade como entidades
universitárias, estudantis, dirigentes e profissionais da educação básica e de movimentos
sociais, chamados a elaborar propostas, por exemplo, para o Plano Nacional de Educação
(2011-2020).
Nos dois governos, podemos afirmar que o Brasil tem feito a sua “lição de casa”
do ponto de vista das “policy networks” transnacionais, para as quais importa que, em
grandes linhas, as reformas estejam afinadas aos seus princípios gerais. Observe-se que o
Brasil, definiu – antes mesmo da promulgação da nova LDBEN de 1996 - os parâmetros
curriculares nacionais e, em seguida, instituiu avaliações de desempenho em larga escala.
A continuidade, entre esses dois governos, na área de educação, se consubstancia em
torno do binômio currículo-avaliação em grande escala.
No modelo neoliberal, o Estado não precisa, e nem deve, ofertar a educação
escolar gratuitamente para toda a população. O seu papel em relação as “policy networks”
é deixar o mercado regular a oferta educacional, supervisionar o resultado obtido para
mantê-lo sob controle, e eventualmente fazer suas ofertas educacionais. A articulação das
duas dimensões da educação escolar - currículo x avaliação em larga escala - permite o
desempenho do papel de regulador do Estado, praticamente imposto por meio de
diretrizes quase inegociáveis das políticas mundiais de educação orientadas pela lógica
econômica. Essa articulação ocasiona também a abertura de novos mercados para a
produção de livros, para outros materiais didáticos ligados ou não às tecnologias, e para
a formação continuada de professores, assim como engendra um maior controle sobre a
gestão educacional e as políticas de formação e monitoramento do desempenho docente.
Encontramos aqui as três “tecnologias” consideradas imprescindíveis, pelo ideário
neoliberal da knowledge economy, nas reformas educacionais: forma de mercado,
gerencialismo e performatividade (BALL, 2008). A forma de mercado se manifesta não
apenas por meio dos rankings, mas, sobretudo pela crescente ocupação de espaços
políticos, por parte de entidades privadas na elaboração e na oferta de soluções
educacionais de serviços públicos (ADRIÃO et al., 2012; CHIZZOTTI; PONCE, 2012;
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EdUECE - Livro 301032
CÁRIA, 2012.). O gerencialismo, por seu turno, é propiciado por estratégias de
descentralização administrativa que, na esteira dos discursos progressistas, que se
utilizam dos conceitos de autonomia e de gestão democrática esvaziados de seu
significado original, cumpre a função primordial de manter o controle e a vigilância sobre
o trabalho docente. Por fim, o espaço de autonomia e criatividade dos professores tem
sido substituído pela cobrança de sua performance no processo de cumprimento de
currículos padronizados e das políticas de metas, movidas a bônus e concebidas para
recompensar os docentes por sua adesão ao processo.
Tanto na forma como no conteúdo, as reformas educacionais brasileiras
expressam um crescente alinhamento do país com o receituário neoliberal. As instituições
educacionais no Brasil constituíram-se sobre uma base republicana de tradição francesa,
na qual o Estado tendeu a manter centralidade na oferta e condução das políticas de
educação que a entendem como bem público, e – mais recentemente – a partir de
influências de países anglo-saxônicos, como os Estados Unidos e a Inglaterra, vivemos
uma tensão entre os modelos republicano e neoliberal, que resulta em “um modelo híbrido
que precisa ser compreendido em suas propostas e práticas contraditórias” (CHIZZOTTI;
PONCE, 2012, p.30). Algumas contradições certamente também se revelam no papel
desempenhado pelos educadores ao reinterpretarem os textos oficiais e prescrições que
orientam o trabalho nas escolas. É preciso, portanto, tentar entender o lugar e o papel
desses sujeitos no processo educativo atual.
O papel dos educadores a partir das políticas públicas
A avaliação em larga escala assumiu, na cena da educação contemporânea, o papel
de principal elemento regulador, instrumento de controle a serviço de uma lógica estranha
à do processo educativo. O olhar menos avisado sobre ela, a toma como aferidora da
qualidade da educação, do trabalho dos professores, das escolas, etc. Os ranqueamentos
se multiplicam, gerando a busca cega por melhores colocações nos rankings, que se torna
a obsessão educacional do nosso tempo.
As políticas públicas de educação escolar, salvo honrosas exceções, têm
contribuído para aprofundar essa tendência; e o impacto desse processo sobre a definição
dos currículos, sobre as práticas dos educadores – professores e gestores -, sobre a escola
e as redes escolares, tem sido devastador.
As pesquisas realizadas no âmbito do projeto anunciado na introdução deste texto
indicam que, no contexto das políticas curriculares empreendidas pelo Estado – tanto em
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sistemas estaduais como municipais de ensino –, é possível classificar o papel
desempenhado pelos educadores em categorias distintas, em função do grau de
organicidade de suas atribuições. Para fazer a afirmação, tomou-se a noção gramsciana
de intelectual orgânico, que cumpriu a função de nortear as reflexões atinentes ao lugar e
ao papel desempenhado pelos diferentes agentes nos processos de formulação, gestão e
execução das propostas curriculares em curso. A opção é ousada e desafiadora – embora
não inédita (SEMERARO, 2006) – uma vez que impõe realizar um exercício de releitura
e atualização de algumas categorias associadas a esse conceito, o que, nos limites de um
texto como este será brevemente esboçada.
Para Gramsci, “não existe atividade humana da qual se possa excluir toda
intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens” (1968, p.7).
Nessa passagem dos seus Quaderni del carcere, o que o autor nos ensina é que a vulgar
separação entre trabalho físico e intelectual utilizada como critério para distinguir os
intelectuais dos não-intelectuais diz respeito a um erro metodológico que precisa ser
superado:
O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, consiste em se
ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades
intelectuais, ao invés de buscá-lo no conjunto do sistema de relações no
qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se
encontram, no conjunto geral das relações sociais. (Ibid., p. 7, grifos
nossos).
Esta perspectiva de análise opera uma mudança teórica e metodológica importante
no que diz respeito às relações entre as estruturas socioeconômicas e a superestrutura
política-ideológica. A articulação orgânica entre elas dá origem a outro conceito central
do pensamento político do autor: o de bloco histórico. Com a noção de organicidade, o
pensador e militante político italiano rompe com a visão comum de independência e
neutralidade atribuída a atividade intelectual, tradicionalmente associada à filosofia, às
ciências e às artes. Os intelectuais, nessa concepção, não constituem um grupo social
autônomo, mas se articulam com o projeto econômico e político da classe social a que
pertencem.
Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função
essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo
tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que
lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no
campo econômico, mas também no social e no político (...).
(GRAMSCI, 1968, p.3).
É preciso enfatizar, porém, que esta função orgânica não se restringe aos grandes
intelectuais, mas se distribui, hierarquicamente, entre diferentes categorias de acordo com
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EdUECE - Livro 301034
o lugar que ocupam na superestrutura e “segundo o valor qualitativo de sua função, do
grande intelectual ao intelectual subalterno: na cúpula, os criadores da nova concepção
de mundo (...); no escalão inferior, aqueles que estão encarregados de administrar ou
divulgar essa ideologia” (Ibid., p.97). Em seu conjunto, porém, cumprem a função
primordial do conjunto das superestruturas das quais são funcionários porque com suas
ações buscam “assegurar a hegemonia ideológica e cultural da classe fundamental sobre
o conjunto da sociedade.” (GRAMSCI, 1968, p.10).
Algumas dessas ferramentas conceituais podem oferecer pistas valiosas para
refletir sobre as políticas educacionais que vêm sendo propostas, a sua expectativa e
esforço em relação ao papel que deve ser desempenhado pelos professores e gestores, e a
prática pedagógica concreta desses profissionais, que é ambivalente em relação à adesão
à proposta, ao mesmo tempo em que é descaracterizada em relação às expectativas que
dela se têm, além de ser criticada e desvalorizada socialmente.
Professores, em sua maioria, coagidos pela má formação a que foram submetidos
que não lhes permite uma leitura mais profunda das políticas, acabam – incomodados ou
não - assumindo no chão da fábrica das escolas, neste cenário recente, a função de
assegurar a hegemonia ideológica e cultural de um projeto educativo, que se revela por
meio de uma proposta curricular de caráter neoliberal, que por sua vez expressa um
projeto de sociedade e um modelo de economia-política.
Da base para o topo, identificamos aqueles professores que são vistos pelos
intelectuais criadores das políticas como executores das orientações curriculares
prescritas pelo Estado. A política proposta prevê um papel para os professores e para os
gestores escolares e o seu esforço é no sentido do cumprimento do que objetiva. Em artigo
Freitas (2013), enfatiza o seguinte trecho de palestra proferida por Maria Inês Fini, então
Coordenadora Geral da Proposta Curricular da Secretaria da Educação do Estado de São
Paulo (2009), endereçado aos professores coordenadores:
[...] o nosso foco, até mesmo o foco das sequencias didáticas, é o
desenvolvimento de competências e habilidades que estão claramente
indicadas em cada Caderno do Professor. Então, vejam. Suponhamos
que o professor diga pra vocês que ele não quer usar o Caderno do
Professor, ora, ele não tem liberdade para fazer o que ele quer, ele pode
trabalhar com suas fontes, com seus recursos, o seu material, desde que
ele garanta que os alunos desenvolverão aquelas competências e
habilidades previstas no currículo [...] (SÃO PAULO, 2009).
O discurso oficial não deixa dúvidas sobre o limitado espaço destinado aos
professores em sua atividade, o que se revela desde a proposta curricular do Estado –
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 301035
neste caso, representado pela gestão do estado de São Paulo – e se reforça pela submissão
destes, forjada pela precarização de suas condições de trabalho, pela pouca percepção das
fragilidades do processo de sua participação, por acreditarem-se - eles mesmos - como
executores das orientações curriculares ou por não se sentirem em condições de oferecer
resistência ao modelo imposto.
Os resultados de nossas pesquisas dão conta que os professores posicionam-se de
forma ambivalente em relação às prescrições curriculares. Se, de um lado manifestam
clara percepção dos conflitos existentes entre as políticas que os responsabilizam pelo
fraco desempenho dos alunos sem que, em contrapartida, sejam consideradas as
condições desfavoráveis em que desenvolvem o seu trabalho, ou as variáveis
(psicossociais, econômicas e culturais) sobre as quais não conseguem exercer nenhum
controle; de outro, “parcela considerável dos professores mimetiza o discurso oficial,
reproduzindo em discurso e em ato a lógica performática e competitiva de uma política
curricular de resultados” (ROSA, 2013, p.15). Assim, a despeito de manifestarem certo
desconforto quanto à posição submissa que mantêm em relação ao modelo oficial, pode-
se dizer deste primeiro grupo de profissionais que cumprem, na prática, o papel de
representantes orgânicos do discurso e das práticas oficiais.
Em um degrau acima na hierarquia dos funcionários (na expressão de Gramsci)
dos sistemas públicos de ensino, figuram os gestores, que são os encarregados de
administrar e divulgar a ideologia dos grupos hegemônicos. Não por acaso, como lembra
Ball (2008, p. 47) ele se transformou no herói cultural do novo paradigma. Trecho da
palestra de Fini novamente ilustra o modo de operação esperado do professor-
coordenador no gerenciamento da proposta curricular da SEE-SP. TAVARES (2012)
pontua, nessa palestra, “as orientações que visam ao controle da ação do professor pelo
Professor-Coordenador”, apesar de todo o cuidado com o uso das palavras por parte da
palestrante:
[…] é claro que ele [o PC] não vai fiscalizar as aulas, embora seja super
recomendado que ele assista algumas, e ele poderá monitorar o trabalho
do professor para saber o que é que está acontecendo, o que está sendo
ensinado, como se dão as relações sociais dentro da sala de aula […]. É
este monitoramento, esta é a essência da função estratégica de
mediação. (SÃO PAULO, 2009 apud TAVARES, 2012).
Conclusão semelhante foi observada por Freitas (2011) a respeito do papel do
professor-coordenador nesse mesmo sistema de ensino. A Proposta Curricular do Estado
de São Paulo apresenta a reorganização social do trabalho pedagógico pautado na adesão.
A inequívoca intenção de homogeneizar as ações didáticas com a intenção de alcançar
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 301036
um modelo de ensino “à prova de professor” (GIROUX, 1997, p. 160; APPLE, 1989) é o
que, em última instância, almejam algumas reformas em curso analisadas em diversos
estudos que compuseram o projeto de pesquisa em análise neste texto.
É preciso levar em conta, contudo, que na sombra e no silêncio de tais reformas
curriculares muitos educadores têm a corajosa capacidade de transgredir, uma vez que,
como lembra Contreras (2002, p.128), “são os próprios profissionais do ensino que, em
ultima instância, decidem a forma com que planejam suas aulas, por meio dos quais as
tentativas de influência externa são transformadas em práticas que nem sempre têm muito
a ver com a essência das mudanças pretendidas”. Ainda que em menor numero, essa
possibilidade também foi identificada em estudos conduzidos por pesquisadores
vinculados ao projeto discutido neste trabalho (SANTOS; ROSA, 2011; PONCE; LEITE,
2012). Em momento oportuno, essa discussão também será apresentada.
Entre as conclusões da pesquisa, destaca-se, por ora, o desmonte de ideias
oriundas do senso comum, como a de supor que os educadores, se bem preparados
tecnicamente, seriam bem sucedidos em suas tarefas e as políticas teriam bons resultados.
Antes, há que analisar a pertinência das políticas públicas que vêm sendo empreendidas
e o que vem produzindo na formação e na prática educativa, assim como na vida de todos
os sujeitos envolvidos na e com a escola.
Necessita-se de profissionais da educação que saibam fazer leituras profundas das
políticas públicas e que coletivamente – como parte de sua formação continuada na escola
– discutam as intencionalidades das políticas, de modo a participar efetivamente do
processo educativo, o que poderia fazer com que os profissionais da educação se
apropriassem efetivamente de seu processo de trabalho, que fragmentado como está, os
desorienta.
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EdUECE - Livro 301039
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