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Revista Estudos Amazônicos • vol. X, nº 2 (2013), pp. 46-74
Belém: Música e Identidade na Cidade Plural
2ª versão
Henry Burnett*
para o Ernani
Resumo: Quando se está imerso na própria identidade normalmente não
sabemos do que somos feitos. A identidade não é uma questão, ou
um tema, quando não precisamos discutir quem somos ou quando
essa interrogação é vã. Só quando a dinâmica cultural se impõe é
que nossa marca precisa ser impressa e às vezes defendida, porque
já não basta pertencer a este ou aquele lugar, mas
fundamentalmente devemos mostrar do que somos feitos “de
verdade”. Talvez em outras circunstâncias esse conflito se desse
entre países, entre religiões em conflito com seus diversos deuses
e concepções políticas; no Brasil a identidade é uma questão
doméstica, uma querela entre regiões distantes que mal se
comunicam e que se nutrem de suas próprias culturas. Se
quisermos radicalizar ainda mais, para chegar ao tema deste ensaio,
às vezes precisamos entender quem somos dentro de uma única
cidade. É o caso de Belém e de sua musicalidade plural.
Palavras-chave: Música Paraense; Identidade; Canção Popular; Tecnobrega.
Abstract: When we are immersed in our own identity, normally we do not
know who we are. When we know who we are or when this is an
empty question, identity is not a question or a theme. Only when
dynamic cultural are imposed we need to leave such a mark, that
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sometimes must be held, because belonging to a certain place it is
not enough anymore, but we fundamentally need to show who we
are. Maybe in other circumstances, this conflict takes place
between countries, between religions in conflict with their various
gods and political concepts; in Brazil, the identity is a local issue, a
quarrel between distant regions that promote their own cultures
and can barely communicate themselves. If we want to achieve the
aim of this essay, we need to understand who we are inside a single
city. It is the case of Belem and its plural musicality.
Keywords: Music in Pará; Identity; Folksong; Tecnobrega.
Temos, portanto, dois sentidos negativos da palavra
“povo”. O primeiro, mais evidente, é o que blinda
uma identidade fechada – e sempre fictícia – de tipo
racial ou nacional. A existência histórica desse tipo
de “povo” exige a construção de um Estado
despótico, que engendra violentamente a ficção que
o fundamenta. O segundo, mais discreto, porém em
grande escala ainda mais nocivo – por sua
flexibilidade, e pelo consenso que alimenta –, é
aquele que subordina o renascimento de um “povo”
a um Estado que se supõe legítimo e benfeitor
exclusivamente em virtude de organizar a expansão,
quando pode, e, em todo caso, a persistência de uma
classe média, livre para consumir os produtos vãos
com que o Capital a empanturra, e livre também
para dizer o que quiser, contanto que esse dizer não
tenha nenhum efeito no mecanismo geral. (Alain Badiou, 24 anotações sobre a palavra “povo”, Revista Serrote nº 17, p. 29)
48 • Revista Estudos Amazônicos
I
Gostaria de começar esta reflexão de modo atípico: eu acredito em um
paradigma na música popular do Brasil e não sei se este ponto de partida
é o mais adequado para se falar em um produto comercial como a música
popular pós século XX. Este paradigma pode ser chamado, na falta de
outro nome melhor, de canção de arte, ou canção estética ou o mais simples e
preciso: de canção brasileira. Acredito, hoje, que a canção no Brasil alcançou
o estatuto do paradigma, apesar de suas infinitas faces. Sua força estética
diferencial é a aliança entre a rítmica popular e a poesia culta. Dito isso,
deixo claro que não pretendo fazer uma “análise de conjuntura”, uma
crítica musical ou algo parecido, antes quero esboçar algumas ideias, em
certa medida pretenciosas apesar de iniciais, na direção de uma
reconstrução estética de um material musical quase esquecido: a canção
paraense. Para tanto, o dito paradigma precisa ser considerado a partir do
tema da identidade musical, ou ainda, do que eu chamaria aqui, tomando de
empréstimo uma referência pessoal, de uma “estética das águas”, que a
meu ver sintetiza a produção desse cancioneiro urbano, mormente do que
se produziu em Belém e no seu entorno. Tentarei explicar melhor essa
aparente anomalia crítica convidando o leitor menos para uma reflexão
teórica sobre a questão da cena musical recente do que para a audição
memorialística de um recorte estético-musical daquilo que ficou de fora
no que podemos chamar de marcha triunfal da história da música do Pará,
ou seja, trata-se aqui de um posicionamento que caminha no espaço
deixado entre vencidos e perdedores, famosos e esquecidos.
Talvez fosse possível se resguardar de um tema complexo como este
permanecendo no âmbito dessa questão da identidade, tratando de origens
e cronologias, nascimentos e representações, mas isso tornaria esta
reflexão frágil na medida em que os argumentos mais visíveis a favor do
Revista Estudos Amazônicos • 49
atual cenário e de seus artistas vitoriosos giram precisamente em torno
desse tema, quer dizer, resguardados numa defesa exacerbada da
representação considerada arquetípica, amparada num processo de
afirmação oficialesco, os defensores da causa abusam da identidade como
princípio. Sabemos bem que quando se está imerso na própria identidade,
ou no que imaginamos ser essa definição quando aplicada sobre nosso
próprio ambiente, normalmente não sabemos do que somos formados; a
identidade não chega a ser uma questão quando não precisamos entender
nossas origens ou quando essa interrogação é vã porque nada acrescenta
em nossa vida comum. Somente quando os conflitos culturais se impõem,
quase sempre no âmbito comercial, uma “marca” precisa ser impressa e às
vezes até mesmo defendida, porque já não basta pertencer a este ou aquele
lugar, mas fundamentalmente mostrar do que somos constituídos
verdadeiramente. O tema e as discussões sobre a identidade nacional são
recorrentes em diversos níveis nos estudos sobre o Brasil desde o final do
século XIX. No âmbito deste texto, tratarei principalmente do modo
como a escolha identitária, ou sua invenção, é consumida no interior do
mercado de bens culturais.
Em outras circunstâncias este choque entre o real e o imaginado, ou
entre o verdadeiro e o falso de nossas representações, esse maniqueísmo
que está em pano de fundo aqui quando se pensa naquilo que deve nos
identificar social e culturalmente ou não, poderia se dar entre países ou
entre religiões em conflito; no Brasil, entretanto, a identidade é uma
questão doméstica, uma querela entre regiões que mal se comunicam e que
se nutrem de suas próprias culturas. Se quisermos radicalizar, para chegar
ao tema deste texto, às vezes é preciso entender quem se é dentro de uma
única cidade – é o caso de Belém e da recente exposição nacional de parte
significativa de seus bens culturais, da culinária à fotografia, do cinema à
literatura, mas, sem dúvida, num movimento de reconhecimento que tem
a música como porta de entrada, apresentada a partir de um recorte
50 • Revista Estudos Amazônicos
estético-ideológico específico da sua produção. A necessidade de se
autocompreender, no momento em que sua música passou a ser executada
em nível nacional, e justamente no que há de mais estabelecido no quadro
de certas instâncias da indústria de bens de consumo, isto é, nas novelas
globais, nos programas de auditório, nas rádios de massa tem causado, a
uma cultura até então semi isolada, inúmeras indagações, veladas ou não.
A intenção é pensar sobre algumas delas de modo mais calmo do que
aquele que levou parte da nossa música para o centro das atenções,
principalmente a partir do momento em que o aparato estatal foi
mobilizado como uma espécie de mecenas oficial de um grupo
determinado de músicos, chegando ao ponto de tornar aparentemente
indiscerníveis extratos distintos dessa produção, igualando músicos,
fotógrafos, cozinheiros e dançarinos dentro de um mesmo espectro. Um
momento que permite inúmeras reflexões sobre questões que não estão
na superfície da festa.
II
Como um micro país, Belém tem uma história antiga e razoavelmente
bem conservada, pelo menos no âmbito da memória, já que sua
degradação urbana pode ser constatada por qualquer um que tenha vivido
nela nos últimos 30 anos. Essa imagem memorialística cada vez mais
dissipada mantém-se graças ao seu isolamento geográfico, reconhecido
por todos ora como um atraso, ora como uma virtude para sua auto
conservação. Mas essa distância nem sempre foi tão espaçosa, e é cada vez
menor, graças a uma descoberta sem precedentes pelo chamado mainstream
do show business nacional, que se voltou para uma suposta “estética
amazônica”. Grandes empresas de comunicação nacionais, principalmente
Revista Estudos Amazônicos • 51
as redes abertas, alimentam parte dos seus cenários novelísticos, auditórios
e programas de entrevistas com essa estética e, enfim, com o que podemos
chamar de cena paraense. Tudo, como não poderia deixar de ser, travestindo
a disputa por audiência fazendo crer que o que está em jogo é uma suposta
descoberta da cultura amazônica e sua valorização, embora em alguma
medida isso também esteja em jogo, apesar da padronização estilística que
vem a reboque dessa boa intenção. É sobre esse interesse repentino das
grandes cadeias de comunicação e suas consequências domésticas que
podemos tecer algumas considerações. Para isso, precisamos recuar
algumas décadas e retomar, ainda que em linhas gerais, parte da história
da canção e da música paraense ainda no século XX.
Houve um momento, nos idos dos anos 70, que um poeta, um
compositor e uma cantora, respectivamente Ruy Barata, Paulo André
Barata e Fafá de Belém tornaram a atmosfera paraense conhecida
massivamente nos grandes centros de distribuição de bens culturais.
Naquele momento, versos da canção “Foi assim” (Paulo André e Ruy
Barata), pertenciam ao que chamamos comumente de MPB, isto é, à
tradição da música popular comercial urbana brasileira, ou ainda, a um
estilo bem definido pelo par letra/música, já consagrado àquela altura, a
canção brasileira em sua forma mais avançada – ressalto isso porque
acredito que o termo popular utilizado na sigla nem sempre foi utilizado no
sentido de uma música massivamente conhecida ou mesmo reificada ou
industrializada, mas como um espelho ou eco de sua origem, quer dizer,
esta canção é uma junção da rítmica popular com a poesia culta. Uma das
provas desse vínculo do cancioneiro paraense com a MPB tradicional é a
resistência desta canção ao tempo, sua permanência na memória dos
ouvintes estéticos –definição forjada por Nietzsche ao imaginar um
ouvinte concentrado, para quem a música servia como arrebatamento e
triunfo da vida –, para os quais ela permanece, ainda hoje, como um retrato
instantâneo da Belém de outra época:
52 • Revista Estudos Amazônicos
Foi assim
Como um resto de sol no mar
Como a brisa da preamar
Nós chegamos ao fim
Foi assim
Quando a flor ao luar se deu
Quando o mundo era quase meu
Tu te fostes de mim
Volta meu bem, murmurei
Volta meu bem, repeti
Não há canção nos teus olhos
Nem há manhã nesse adeus
Horas, dias, meses se passando
E nesse passar, uma ilusão guardei
Ver-te novamente na varanda
A voz sumida em quase pranto
A me dizer, meu bem, voltei
Hoje essa ilusão se fez em nada
E a te beijar, outra mulher eu vi
Vi no seu olhar envenenado
O mesmo olhar do meu passado
E soube então, que te perdi.
Revista Estudos Amazônicos • 53
Isso se aplica ainda a outra canção da dupla, cujos versos são ainda
mais entranhados do ambiente amazônico. O clima de “Pauapixuna”
(Paulo André e Ruy Barata) não é desses que se lembre fácil, ou que remeta
um público afeito ao ambiente urbano – mesmo o belenense, ao qual o
ambiente da canção é refratário – diretamente ao seu universo úmido e
silencioso; quer dizer, a canção é muito amazônica, mas no sentido de ser
uma representação de um tempo e de um lugar bem delimitado, que eu,
como ouvinte, remeto aos campos da Ilha do Marajó. Nessa dificuldade
de imprimir imagens que só fazem pleno sentido para quem as vivencia, é
igualmente admirável sua força de arrebatamento e de perenidade no
ambiente de consumo letrado fora do seu estado de origem. A canção
popular paraense pode não ter nascido pelas mãos de Paulo André e Ruy
Barata, mas foi com eles que se deu sua integração à história da música
popular urbana. Uma história comercial e estética breve, não fosse
justamente seu atual pertencimento ao cânone do cancioneiro nacional.
Aqui a letra de “Pauapixuna”:
Uma cantiga de amor se mexendo
Uma tapuia no porto a cantar
Um pedacinho de lua nascendo
Uma cachaça de papo pro ar
Um não sei quê de saudade doendo
Uma saudade sem tempo ou lugar
Uma saudade querendo, querendo...
Querendo ir e querendo ficar
Uma leira, uma esteira,
Uma beira de rio
Um cavalo no pasto,
Uma égua no cio
Um princípio de noite
54 • Revista Estudos Amazônicos
Um caminho vazio
Uma leira, uma esteira,
Uma beira de rio
E, no silêncio, uma folha caída
Uma batida de remo a passar
Um candeeiro de manga comprida
Um cheiro bom de peixada no ar
Uma pimenta no prato espremida
Outra lambada depois do jantar
Uma viola de corda curtida
Nessa sofrida sofrência de amar
Uma leira, uma esteira,
Uma beira de rio
E o vento espalhado na capoeira
A lua na cuia do bamburral
A vaca mugindo lá na porteira
E o macho fungando pelo curral
O tempo tem tempo de tempo ser
O tempo tem tempo de tempo dar
Ao tempo da noite que vai correr
O tempo do dia que vai chegar.
Antes desse momento, isto é, antes que Fafá de Belém e a música
paraense circulassem livremente no eixo Rio-São Paulo, o nome do
compositor Waldemar Henrique pertencia a um domínio não menos
conhecido, mas certamente mais distante dos canais de mídia de massa;
sua obra era, e talvez ainda seja, estudada por famílias “cultas” dos mesmos
centros que um dia acolheriam Fafá e seu sotaque. No entanto, Waldemar
Revista Estudos Amazônicos • 55
Henrique pertencia ao domínio da música dita clássica, era um compositor
frequentado, sobretudo nos conservatórios e nas escolas de música – tudo
isso antes das apropriações posteriores, como a da própria Fafá, mas
também de Mônica Salmaso, Zizi Possi, Nilson Chaves e Vital Lima, entre
outros, que o aproximariam do ambiente popular ao qual ele também
pertencia, ainda que de modo menos nítido.
São dois momentos importantes, que mostram o primeiro lance dessa
inserção nacional gerada dentro dos limites de uma capital com nítido
conteúdo cosmopolita e, ao mesmo tempo, profundamente apartada pelo
tempo e pelo espaço, resultando de muitos modos num ambiente
provinciano que perdura ainda hoje em instâncias distintas, como no
jornalismo e na política, quase sempre irmanados. Dentro desse mesmo
patamar de penetração talvez sejam os únicos exemplos de generalizado
reconhecimento nacional de massa; únicos, até a chegada do tecnobrega,
mais de 30 anos depois da primeira aparição.1
III
Esse longo hiato é diretamente proporcional ao lugar ocupado pela
canção no cenário midiático nacional, quer dizer, o interesse por
compositores como Paulo André, Ruy Barata e Waldemar Henrique
pertence ao passado mais ou menos recente, e coincide com o ápice da
penetração do estilo no espaço da televisão e dos meios de comunicação
de massa em geral na década de 1960 e 1970, que criou os mitos que ainda
hoje alimentam a tradição canônica dos compositores urbanos. Podemos
dizer que esse espaço “vazio” é apenas um espelhamento de uma mudança
que ocorreu em todo país, e talvez em todo mundo, e que pode ser
resumido na ideia de uma fragmentação incontornável da experiência
perceptiva em relação às artes de modo geral, uma mudança, como
56 • Revista Estudos Amazônicos
sabemos, ligada ao novo espaço virtual de consumo, que não deixa de ser
uma extensão do modelo anterior, sob outras plataformas, mas como
novos ícones – em resumo: mudou a plataforma, mas não mudou o
espectador, apenas os mitos se modificaram. Com isso, a canção se tornou
um produto similar a um poema, que exige habilidades de apreensão
sensível que só se mantém nos espectadores/leitores/ouvintes que reagem
ao ambiente fragmentário e procuram desesperadamente a sensação de
arrebatamento estético perdido e só a muito custo reencontrado, e mesmo
assim deixando margem a uma sensação de anacronismo incontornável.
Foram décadas de silêncio midiático entre aquele momento e este em
que nos encontramos – entenda-se: quando falo em silêncio penso no
isolamento da produção local, a distância que durante décadas manteve
esta produção quase proscrita. Ocorre que esses anos nutriram de canções
mais de uma geração, sem que se soubesse, fora de Belém e de cidades de
médio-porte no interior do Pará, quem eram esses artistas e que música
eles faziam, na medida em que permaneciam consumidos em âmbito
restrito; e mesmo esse conceito de consumo deve ser amainado, porque
não havia exatamente o que chamamos de produção musical, a não ser em
casos isolados – encontro-me portanto, cronologicamente, exatamente
nesse lugar onde o esquecimento é a palavra-chave. Foram três décadas de
algo que podemos chamar de auto sustentação cultural. Houve tentativas
de reação, e eu citaria o movimento encabeçado pelo compositor Ronaldo
Silva, um dos líderes do grupo Arraial do Pavulagem, que ousou
entrincheirar-se contra a avassaladora presença dos movimentos musicais
ainda ditados pela poderosa indústria fonográfica que inundavam o país
de Norte a Sul e que aqui durante muitos anos tiveram lugar cativo em
diversos festivais com produção milionária. O resultado da mudança
estilística em suas canções resultou na popularização do Arraial do
Pavulagem, que extrapolou a dimensão da apreciação musical, ao que chamo
Revista Estudos Amazônicos • 57
de audição estética, tornando-se um movimento de grande força de massa.
Como se vê, o mercado de música local reagiu, mas sem a extensão
midiática das aparelhagens de onde nasceria o tecnobrega. Não é por acaso
que um dos pontos altos do disco Treme, de Gaby Amarantos, seja
justamente uma canção de Ronaldo Silva, “Merengue latino”, aliança clara
entre o passado e o presente da produção belenense. No mesmo
compositor, a síntese de duas épocas, que podemos divisar ouvindo
“Porto dos apaixonados” antes da faixa supracitada. Quero exatamente
pensar no centro dessa mudança, na “impossibilidade” de se ouvir esta
canção contra a “facilidade” de se ouvir aquela. Qual a razão dessa cesura
entre a canção tradicional e a canção de impacto? Entre o ouvir e o dançar?
Essa diferença entre o ouvir e o dançar, hoje infelizmente apartadas pela
história, é um ponto elementar desta reflexão e não uma polarização
maniqueísta – estamos no campo minado da crítica, é preciso lembrar.
A música paraense se dividia entre o popular estilo musical conhecido
entre nós como brega, que ocupava os bares e as “sedes” na periferia da
capital e no interior, e um sem número de compositores ditos tradicionais,
que desenvolviam obras sem impacto midiático nacional ou sequer
regional, permanecendo dentro de um círculo ínfimo de consumo – o
brega era muito popular e autossuficiente do ponto de vista de sua
produção em toda a região, e era consumido por todas as classes sociais,
num processo muito distinto daquele que é discutido no livro Eu não sou
cachorro não, de Paulo César de Araújo, que diagnostica justamente o
preconceito contra o qual compositores ditos bregas lutaram no eixo de
consumo intelectualizado do resto do país; no Pará, não raro,
compositores considerados cultos, escreveram para cantores e
compositores bregueiros, é o caso do poeta Edson Coelho, autor do
clássico “Cansei de esperar”, parceria com o cantor Luiz Guilherme e que
se tornou um tema de referência do estilo. No intervalo entre a década de
1970 e a década de 2000, nada parecia capaz de alterar aquela convivência
58 • Revista Estudos Amazônicos
pacífica que, salvo engano, não era dividida entre cultos e populares, antes
se interpenetrava de maneira irônica e não excludente. Mas então algo
muito distinto ocorreu no ambiente do chamado brega paraense, e que
muitos consideram o desenvolvimento do tradicional estilo, agora
rebatizado de tecnobrega e alçado à categoria de representação cultural
oficial, juntamente com toda uma estética genericamente chamada de
“caribenha”. Tal movimento se deve, fundamentalmente, ao forte
aparelho estatal mobilizado quase integralmente para projetar diversos
nomes em cadeia nacional, numa cooptação sem precedentes na história
das relações entre Estado e Cultura no Pará. Uso o termo cooptação
porque o Estado e seu aparato de comunicação não inventou o
tecnobrega, que já havia se imposto quando da associação, mas o absorveu
e o reprogramou com uma função bem distinta do que ele era na origem:
a divulgação propagandística de uma imagem do Estado filtrada por um
recorte de suas identidades múltiplas, com uma clara opção pelo que
podemos chamar de recorte popular, ou ainda, de recorte padrão, dando
a entender que, falsamente, Belém era uma capital isolada e plena de seus
valores culturais regionalistas, um equívoco sob vários aspectos, entre eles
o fato de que se há um movimento claramente identificável nas últimas
décadas é o movimento rock. Com isso, o Pará estava integrado ao
consumo cultural de massa nacional, algo que considero sem espanto, pois
me parece inevitável que a multiplicidade rítmica da região um dia fosse
descoberta e assimilada pelo mercado de consumo; o dado inédito é que
essa assimilação se organizou pelas mãos do Estado, para só depois ser
absorvida pelos grandes canais de comunicação, numa reativação da
aliança entre estética e política que tem antecedentes nada honrosos, como
é o caso do aparato propagandístico do Terceiro Reich e a utilização das
canções populares como substancialização do que chamava na época do
ser alemão; tomadas as abissais proporções políticas e culturais, e incluindo
Revista Estudos Amazônicos • 59
o possível desconhecimento histórico de quem acha essa jogada política
normal, estamos diante dos mesmos argumentos, agora zombeteiramente
explicados através de uma ideia de pureza regional capaz de nos destacar
como ímpares e únicos em meio à saturação das produções musicais
populares no Brasil. Gaby Amarantos, uma cantora com grande potencial
e dotada de forte presença de palco, tornou-se a porta-voz da cultura do
Estado, mormente encerrando seus shows empunhando a bandeira do
Pará e bradando louvores ufanistas ao Estado. Foi quando os ouvintes se
dividiram entre um misto de orgulho e vergonha ao ver suas idiossincrasias
domésticas em rede nacional. Por todas essas razões, e muitas outras que
arriscarei apresentar adiante, não se deve estranhar a surpresa que pode
acometer um espectador menos atencioso, o chamado ouvinte médio, que
não vai além da audição despretensiosa do que lhe surge na TV, no Rádio
ou na internet, seja de Belém, do interior do estado ou mesmo de fora, ao
passar sem conexão de “Tamba-tajá” (Waldemar Henrique) para “Ela tá
beba doida (Beba doida)” (Gaby Amarantos) como se vira uma página.
Mesmo este ouvinte não especializado, pode sentir a modificação, de
resto, como vimos, absolutamente previsível.
“Tamba-tajá” (Waldemar Henrique)
Tamba-tajá me faz feliz
Que meu amor me queira bem
Que seu amor seja só meu de mais ninguém,
Que seja meu, todinho meu, de mais ninguém...
Tamba-tajá me faz feliz...
Assim o índio carregou sua macuxy
Para o roçado, para a guerra, para a morte,
Assim carregue o nosso amor a boa sorte...
Tamba-tajá
Tamba-tajá-a
60 • Revista Estudos Amazônicos
Tamba-tajá me faz feliz
Que meu amor me queira bem
Que seu amor seja só meu de mais ninguém,
Que seja meu, todinho meu, de mais ninguém...
Tamba-tajá me faz feliz...
Que mais ninguém possa beijar o que beijei,
Que mais ninguém escute aquilo que escutei,
Nem possa olhar dentro dos olhos que olhei.
Tamba-tajá
Tamba-tajá-a
“Ela tá beba doida (Beba doida)” (Gaby
Amarantos)
Ela tá beba, doida
Ela tá beba, doida
Ela tá beba, doida
Tá beba, tá doida.
Ela chegou
Ela é um perigo
Só sai da mesa
Quando ela seca o litro.
Começa na cerveja,
Bebe a noite inteira
Mistura tudo
E vai pra cima da mesa.
Começa na cerveja
Bebe, à noite inteira
Revista Estudos Amazônicos • 61
Mistura tudo
E vai pra cima da mesa.
Ela tá beba, doida
Ela tá beba, doida
Ela tá beba, doida
Tá beba, tá doida.
(Ela só sai carregada, querida)
Creio ser possível afirmar que estamos diante de um problema novo,
ou seja, a discussão a respeito dessa herança musical que passa hoje pela
afirmação do que é e do que não é paraense tem a ver com o problema
enunciado no início deste texto: a questão da identidade. Salvo engano,
esse tema nunca esteve presente no horizonte dos paraenses. Ninguém
nunca perguntou se Pinduca, o “Rei do Carimbó”, era mais paraense que
Walter Bandeira, que foi o grande intérprete da cidade, com um repertório
que ia de Caetano a Edith Piaf, de Waldemar Henrique a Frank Sinatra.
Dito isso, do que se trata o misto de orgulho e repulsa que acomete os
paraenses toda vez que artistas populares da região aparecem em cadeia
nacional? A resposta não tem nada de simples e envolve um complexo
esquadro onde podem entrar tanto valorações de gosto quanto elementos
psicanalíticos, ambos igualmente arriscados para quem se propõe
comentar essas questões no calor da hora. Isentando-me da condição de
analista, me resguardo na dimensão estética.
Embora o tema da identidade paraense só tenha sido digno de
observação depois de sua hiper exposição, não se pode dizer o mesmo do
momento de estabelecimento da música urbana brasileira, a passagem do
século XIX para o século XX, quando isso tudo foi discutido com
profundidade. Voltemos rapidamente às primeiras décadas do século XX,
quando o terreno da música brasileira era um campo movediço e
62 • Revista Estudos Amazônicos
impreciso. Comecemos com a retomada de um projeto nuclear dentro dos
estudos etnográficos e musicológicos brasileiros, a Missão de Pesquisas
Folclóricas, organizada por Mário de Andrade em 1938. Em linhas gerais, a
Missão tinha como tarefa capturar em gravações, fotos e filmes as
manifestações populares que todos julgavam ameaçadas pela penetração
das novas tecnologias e pelos processos iniciais de veiculação comercial da
música; um temor expresso principalmente por Mário de Andrade, o
grande idealizador do projeto de registro.2
Não é por acaso que retomamos esse projeto como exemplo. Os discos
5 e 6, respectivamente dedicados a Paraíba e Maranhão, Pará e Minas,
guardam um dado curioso, se os confrontamos hoje a partir das
especificidades de dois Estados vizinhos: o registro de carimbó foi feito
em São Luiz do Maranhão e o registro de boi-bumbá foi gravado em
Belém. Deixando de lado a ausência de fronteiras estanques, e
desconsiderando o já citado grupo Arraial do Pavulagem e suas toadas – por
ser uma tradição de pouco mais de uma década, e mesmo assim com um
sotaque muito distinto daquele que se consolidou no Maranhão – e tirante
não se saber de nenhum cantador de carimbó maranhense que tenha
levado adiante aquele passado ligado ao estilo registrado pela equipe da
Missão, seria estranho pensar que o documento que pretendia revelar e
conservar identidades hoje não representasse bem – pelo menos
oficialmente – nem os paraenses nem os maranhenses; tudo, claro, sem
descuidar do registro irônico: “O carimbó é nosso, a tradição do boi-
bumbá é deles” – poderia ser o mote de uma campanha de resgate cultural
do Governo do Estado do Pará. Esse é um bom ponto de partida para
pensarmos sobre o que é paraense?
É uma grande obviedade reafirmar isso hoje, mas a música representa,
desde sempre, a sociedade onde ela se produz. Por isso muitos estudam a
música de algumas épocas quando querem entender dinâmicas
Revista Estudos Amazônicos • 63
econômicas, políticas e culturais próprias a determinados períodos. Se, ao
que tudo indica, quando se ouvia Ruy Barata e Waldemar Henrique havia
reconhecimento e quando se ouve Gaby Amarantos esse reconhecimento
desaparece, ou é escamoteado, é porque a sociedade onde Gaby se
projetou artisticamente é outra, ou sua face atual é conflituosa ou
preconceitos de classe e cor permanecem vivos, ou tudo isso junto. Ou
talvez possamos pensar que havia uma crença defasada em certa
homogeneidade cultural, provavelmente equivocada, e que hoje
desapareceu. Mas como essa perda de auto identificação pode ter
acontecido em tão poucos anos? São várias as possibilidades de responder
a esta questão, nenhuma dotada de objetividade. Minha base é, ainda uma
vez, a identidade musical que nos distingue no domínio da canção, i.e., o
que foi produzido à margem, e que hoje pode ser considerado esquecido,
um paradigma que recebeu coloração paraense por uma geração numerosa
e hoje quase esquecida. A produção dos cancionistas paraenses se
desenvolveu na absoluta proscrição, ou ainda, exposta de modo tímido em
shows organizados pelos autores, em alguns casos com apresentações uma
vez ao ano e com público reduzido. Esse trabalho crítico sobre a história
e a dinâmica da canção paraense nas últimas décadas ainda não foi feito,
ainda que seja algo essencial que ainda exige um esforço nosso. Se tomo a
canção paraense aqui como um paradigma, é porque reconheço nela uma
contribuição essencial ao estilo. Por isso, minha intenção não é e nem
poderia ser frear a marcha da lógica mercadológica que cerca a música há
mais de um século, mas assegurar que os movimentos musicais de fachada
não oprimam a história, ou uma parte dela, já que não há redenção possível
dentro do sistema vigente. Logo, não se trata de “salvar” aquele ambiente
musical esquecido nem de condenar o atual, algo que seria tão ingênuo
quanto reconstruir Belém. Indicar que aquilo que foi derrotado não
desapareceu como acontecimento estético já seria uma contribuição
importante.
64 • Revista Estudos Amazônicos
IV
Não é simples explorar fenômenos midiáticos contemporâneos
servindo-se de aparato clássico, sequer podemos assegurar a viabilidade
dessa transposição, mesmo nos apropriando de análises mais próximas,
como as que se originaram da crítica estético-musical de traço filosófico
da primeira metade do século XX, principalmente aquela elaborada por
seu maior nome: Theodor Adorno, em seus textos da fase estadunidense,
quando esteve mais próximo das questões que ora nos ocupam. Embora
a percepção da música tenha um mesmo ponto de apoio, ditado por cada
momento histórico e por suas formas de lidar com os materiais sonoros,
já não parece possível tomar essas categorias como universais, nem
mesmo como balizas seguras, porque as formas que determinavam
padrões de consumo naquela época, hoje são consideradas extintas. Claro
que as questões vitais da audição musical não se extinguiram com as
grandes gravadoras, quer dizer, o que se ouve hoje nas rádios e programas
musicais pouco difere daquilo que as multinacionais ditavam nesse
terreno, o que só prova que aquele padrão se impôs mesmo na ausência
do controle rígido dos produtores; esse alcance perene do tipo de
ouvinte/espectador resignado é o mais importante legado do mundo
fonográfico administrado.
Mas, os tais conceitos estéticos foram pensados de acordo com a
observação de alguns filósofos a partir de problemas estéticos bem
definidos: é o caso de catarse, utilizado por Aristóteles como um modo de
compreensão dos efeitos da tragédia grega sobre o público. Assim também
se deu em Kant com os conceitos de belo e sublime, num momento em que
a percepção da beleza exigia uma compreensão para além das distinções
Revista Estudos Amazônicos • 65
entre sensível e suprassensível, elevando o filósofo o nível da discussão
para a compreensão fundamental sobre o juízo de gosto estético. Se
passarmos da Grécia e da Alemanha para os Estados Unidos da primeira
metade do século XX, encontraremos o filósofo alemão Theodor Adorno
forjando os conceitos de fetichismo e regressão da audição para um
entendimento das novas formas de se ouvir música, ditadas a partir do
advento do capitalismo e das formas de captação e audição técnicas da
música comercial que vinham a reboque. Foi preciso novamente que um
filósofo pensasse com novas categorias um fenômeno novo, gerado pelo
presente mutante e inexplicável à luz dos conceitos clássicos – que,
embora importantes, exigiam novas formulações, ainda que como
desdobramentos das reflexões anteriores. Sirvo-me deles aqui
marginalmente, não para ilustrar a reflexão com lances de erudição, mas
para indicar que, em nossas discussões sobre a música, o mercado, o
Estado e tudo o que cerca as produções atuais, um elemento fundamental
permanece excluído, como se não existisse; estou falando da análise
estética, i.e., do que afinal a música causa, do que ela pode exercer sobre
os ouvintes. É preciso apontar de antemão que, ao invocar a estética-
musical, não significa que se esteja propondo a manutenção de uma
pretensa crítica de gosto, distintiva, hierárquica, mas que essa reflexão
sobre as sensações poderia servir não apenas para reavivar a força perdida
da canção amazônica, mas também para ajudar a entender o poder de
arrebatamento coletivo daquilo que chamamos de cena paraense, cada vez
mais notória no ambiente de alto consumo, mas não neutralizada em suas
fontes por conta disso. A rigor, o fato de não ter sido gerado dentro de
um esquema pré-concebido, como o eram os das grandes gravadoras até
bem pouco tempo atrás, não significa que o aporte performático dessa cena
seja diferenciado; antes pelo contrário, sua penetração na TV aberta,
significa, sem sombra de dúvida, uma adesão natural aos padrões de
consumo, um recíproco espelhamento. Talvez nem fosse preciso dizer
66 • Revista Estudos Amazônicos
isso, mas sem tal adesão esse material não seria veiculado – mas é essencial
reiterar à essa altura mesmo o óbvio. Dito isso, me resta introduzir este
elemento que, até onde se percebe, em nenhum momento foi introduzido
nos acalorados debates sobre a produção recente: o dado estético.
Os conceitos não andam à solta na filosofia da arte recente. Talvez a
tentativa de Rodrigo Duarte seja a mais próxima que temos ao nosso
dispor, e que ele chamou de “construto estético-social”, apontando para a
importância de se analisar com novas categorias o vasto material
produzido nas margens da sociedade de consumo organizada, ou seja,
entre os excluídos social e economicamente.3 Por isso, não basta dizer que
a música paraense em destaque é uma versão “modernizada” dos antigos
temas do estilo musical conhecido como brega paraense – como se isso
pudesse salvaguardar seu sucesso de críticas, se críticas houvesse. Afinal,
fazer sucesso não é o ponto da questão, antes é preciso perguntar o porquê
desse sucesso repentino ter acontecido de modo tão arrebatador. Opto
então em interpretar isto a partir da ideia de cesura entre uma cidade que
existiu e que não existe mais, ou que existe de forma diminuta, e que é
justamente essa tentativa desesperada de manter o passado hoje reduzido
que promove o choque; estamos diante de uma clara escolha, que
infelizmente parece definida não pelos artistas, mas pelo mecenato estatal
que os catapultou para fora do Estado vestidos em trajes finos. Hoje,
alguns deles adquiriram autonomia e seguem com suas carreiras
aparentemente desconectados do Estado, mas ainda seguindo seus
preceitos de identidade tais como definidas no projeto designado não por
acaso Terruá Pará, quer dizer, aquilo que só pode nascer graças à uma
origem terral única e bem definida – uma curiosa ironia, quando pensamos
o quanto as influências caribenhas são exaltadas quando se quer defender
a riqueza do material. É um instantâneo do que Belém hoje sintetiza e que
até há pouco não exigia mais que um riso irônico – as bases do que hoje
Revista Estudos Amazônicos • 67
se chama de tecnobrega, e inúmeros artistas que se projetam colados ao
estilo, tem ramificações em uma história longa para nossos moldes, isto é,
falamos de algumas décadas quando o brega exigia o riso, ria de si, algo
muito distinto da cena atual, onde precisamos discutir se o estilo renovado
e readaptado é ou não a vanguarda da música popular do Brasil. Essa ideia
de que nossos ritmos são novos, únicos, revigorados, puros, inéditos, tudo
inventado por decreto, serve bem aos ouvintes e produtores de fora, mas
está longe de corresponder à história vista sob outro ângulo menos festivo
e mais caricato que o oficialesco. Sabemos muito bem que o que se vende
como novo é um velho produto repaginado, adaptado, cooptado, e como
talvez seja obrigatório afirmar, purificado de sua origem terral, limpo,
repaginado. Por isso é um anomalia misturar o fotógrafo Luiz Braga com
um neo-bregueiro, um equívoco que confunde os resultados, ocultando
os pontos essenciais em que cada um toca com seus esforços de
representação.
Talvez fosse possível conjecturar sobre o isolamento que acometia o
estado até bem pouco tempo, e que talvez ainda exista de algum modo. A
hipótese mais segura não deixa de ser simples: Belém foi incluída entre as
“grandes capitais” porque agora fornece bens de consumo nacionalmente
reconhecíveis – em que pese um necessário ajuste desse conteúdo a certos
moldes, como vimos. Hoje, por conta de intervenções politicas de grande
impacto, o Estado fornece modelos que podem ser consumidos por todos,
já que não estão mais restritos ao universo local. Não vejo com surpresa o
impacto que a rítmica e os modos da região causam nos ouvintes do
sudeste: não é um ritmo, uma roupa, são dezenas de variações que caem
como uma luva num ambiente de consumo hiper saturado, que exige
renovação constante de novos produtos.
A indústria cultural é onipresente e onipotente a ponto de não precisar,
ou não poder mais ser identificada, eis um dos grandes gargalos da crítica
adorniana. É pirata, logo não é indústria? É um arremedo pasteurizado das
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vivências, logo não é cultura? São questões quase insolúveis e sobre as
quais ainda vamos gastar muita reflexão. É preciso pensar nas razões que
levaram o disco Treme de Gaby Amarantos ser lançado pela Som Livre,
gravadora ligada à Rede Globo, que por sua vez insere a cantora em todos
os programas de auditório de sua grade, ou isso já seria desnecessário,
afinal não estamos diante de um sistema que, em sua estratégia consagrada,
foi diagnosticado por Adorno há quase 100 anos quando ele estudou o
fenômeno radiofônico estadunidense? Não há nada de novo no cenário
da indústria da música, sem essa certeza nenhuma análise avança. Sem
dúvida o conceito forjado por Adorno e Horkheimer em 1947 é difuso
hoje, mas os motivos são mais interessantes. Gaby Amarantos talvez seja
um dos principais explicadores dessa impossibilidade de conceituar, de
comentar, de problematizar ou contextualizar corretamente seu próprio
lugar em meio à produção comercial de música no Brasil. Seria simples e
fácil ignorá-la em nome de afirmações de bom gosto, bastando para isso
elencar uma dezena de compositores brasileiros, e seu lugar estaria logo
nesse limbo onde jazem artistas populares de forte apelo midiático. Eu
deixaria isso para o que eu chamo de “críticos musicais sociais”, ou
“antropólogos globais”, para quem o tecnobrega é uma revolução cultural,
cujo núcleo ideológico irradiador seria, pasmem, a liberdade das amarras
da opressão econômica e política do Estado – sim, do mesmo Estado que
o financiou e o projetou nacionalmente; sinceramente, é uma visão tão
esdrúxula quando analisada a partir da aliança entre cultura e uma política
provinciana e autoritária como a paraense, que não cabem comentários. É
por isso que insisto num desvio mais do quem numa crítica musical que
seria ineficiente se fosse apenas uma confrontação de discos ou de
músicas: a discussão sobre o que é motivo de orgulho e de ressentimento
nos ouvintes paraenses, ou nos compositores paraenses, oculta a certeza
de que há dentro do hiato de 30 anos ao qual me referi acima, a chave de
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nossa contribuição para um estilo que me interessa antes de qualquer outra
coisa, a canção amazônica. A meu ver, jaz sobre um manto de
esquecimento uma outra história, proscrita, derrotada e inaudita. Isso não
pode ser julgado a partir de maniqueísmos entre bom e mal, pobre e rico;
estou dizendo que precisamos distinguir estilos que, avaliados de dentro
de uma certa crítica estética, mostram claramente duas intenções em suas
construções, e é de efeitos que a arte moderna sobrevive. A canção
amazônica clama por uma crítica que não vem, o tecnobrega dispensa a
crítica.
Tudo isso que irradia desde o Pará hoje, por mais importante que seja
do ponto de vista social, como muitos defendem – mas no qual eu não
creio – nunca é tratado a partir do que há de mais elementar na questão da
percepção musical, e talvez não seja mesmo o caso. Sobre a questão social,
vale lembrar a alegação daqueles que retomam, por exemplo, a origem
humilde da cantora para legitimar seu trabalho como uma “voz dos
oprimidos”, uma voz revolucionária e periférica. Essa defesa do conteúdo
ideológico é na verdade um argumento falho, porque o que está em pano
de fundo é a defesa não do suposto conteúdo perturbador, de resto
inexistente, mas dos aspectos mercadológicos da cena musical. Os
Racionais de Mano Brown nunca vão tocar numa novela da Globo, porque
o conteúdo ideológico causaria um curto-circuito imediato; a música
paraense padronizada pela mão dos produtores importados toca porque
não representa um enfrentamento ideológico. Mas vejam, ela não precisa
representar isso, ela não se presta ao discurso politico, afinal ela é sua
aliada. Musicalmente, se quiserem, podemos dizer que isso nada tem a ver
com ouvir, assimilar, memorizar, ensinar, antes se relaciona com ver,
conduzir, arrebatar e extravasar. Por isso a luz pop orgulha seus fiéis, mas
é por isso também que o lado sombrio do Estado e a decadência da cidade
de Belém permanecem esquecidos diante desse orgulho ufanista tolo e,
para falar claramente, despolitizado. Isso tudo, notemos, acaba por ocultar
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esse outro ouvinte envergonhado, que ouso diagnosticar como sendo
aquele para quem a música ainda é da ordem da contemplação, da
tranquilidade e do silêncio.
Eu poderia elencar, de memória, duas dezenas de compositores, cada
um com sua especificidade e valor lítero musical próprio dentro do que
chamo aqui de canção amazônica – e que não deve ser confundido com
algo puro, isolado, antes como um espelho dos cruzamentos culturais
ocorridos naquele ambiente através dos séculos – mas fico com um
emblema, o protótipo do que chamei no inicio desta fala de paradigma: o
compositor Walter Freitas, que ousou forjar uma obra que é, ao mesmo
tempo, integralmente amazônica e um dos maiores experimentos musicais
que o Brasil já produziu. A crítica estético-musical de origem filosófica
jamais compreenderia como, de dentro do ambiente popular, uma forma
musical dependente do mercado como é a canção, pudesse ser um
antídoto contra seus efeitos. É um fenômeno ibérico e, em sua face
propriamente brasileira, uma construção formal sem paralelos na história
da música urbana. Walter Freitas é um antídoto porque é o ponto mais
alto da música popular amazônica, e paradoxalmente é, ao mesmo tempo,
o dispensável, aquilo de que ninguém precisa. É uma questão política, não
esqueçamos. O Estado deveria mobilizar parte de seu aparato para que
obras como a deste compositor fossem veiculadas e estudadas, não por
favorecimento, mas por seu empenho e liberdade criativa. Muitos de nós
ainda fazemos e pensamos a música paraense com os olhos voltados para
sua contribuição, como uma forma de emular sua hombridade, ainda que
nunca possamos alcançá-lo em sua radicalidade e racionalidade
composicional. Não se trata, como espero deixar claro, de uma defesa da
permanência das formas ultrapassadas, de um elogio do antigo, porque o
que chamam hoje de futuro é uma construção falsa, não uma ruptura,
Walter Freitas foi uma ruptura e esta possibilidade de reinvenção teve seu
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momento de efetivação através dele, mas foi um momento, e ele passou.
A paráfrase de Benjamin aqui não é um enfeite: “Insensatos os que
lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo já passou”
(Rua de mão única, “Estas áreas são para alugar”). Cerquemos a questão
“esquecendo” a música – que já está, de algum modo esquecida e
resignada, e pensemos sobre o ambiente que gerou a cena recente e que é
um espelho do nosso tempo.
Quem é este espectador-ouvinte que chamo de estético e que se
resguarda na audição de canções e temas antigos ou que remetem a esse
tempo mais recuado? Por quê diferenciar esse consumidor daquele que
chamamos de ouvinte médio? Certamente não é para recolocar a velha
questão entre arte séria e ligeira, afinal sequer entramos no domínio da dita
arte séria, estamos imersos no ambiente popular. A resposta é simples: o
ouvinte de canções (amazônicas ou não) é hoje o mesmo que lê a poesia
de Max Martins, que enxerga o que está por trás de uma fotografia de
Paula Sampaio ou de Luiz Braga, os leitores de Dalcídio Jurandir e
Haroldo Maranhão, os que leem Benedito Nunes para além do
movimento funesto de incensá-lo como um totem do patrimônio da
cidade. A humanidade destruiu mais do que criou, mas entre suas
contribuições mais importantes, a arte ocupa um lugar exemplar, e a
canção brasileira deve ser alocada entre essas contribuições, contra
qualquer tipo de hierarquia. É preciso ousadia para caminhar na direção
contrária aos movimentos dessa história monumental onde não nos
sentimos integrados. Não precisamos apenas de tempo livre, tempo de
sobra, estamos falando de outro tempo, e que podemos chamar de tempo
de dentro. Esse tempo quase perdido, que podemos dividir com um outro
ou com outros, é o tempo que se impacienta com a velocidade, com a
lepidez do trânsito, com a agonia dos ruídos, com a invasão do espaço
sonoro, com a ruidosa exposição de ultrajes autoindulgentes expostos no
mero ato de se colocar a caixa de som na janela, só que virada para a rua.
72 • Revista Estudos Amazônicos
É certo que esse ouvinte ainda existe, mas também é certo que a
comiseração de alguns deles por aqueles que considera estúpidos tem
muito de intolerância e de hierarquia social. O bom gosto não é uma
conquista da civilização, eis uma frase lapidar que serve bem para a
ocasião. Mas insisto que é um tipo de ouvinte que não pode ser ignorado
por seu aparente anacronismo, por julgar que ele não acompanha o
presente, o que está em voga, enfim, nosso sucesso nacional. A música
não deve ser ditada apenas por sua capacidade de venda e popularidade,
como parecem acreditar especialistas em economia.4
Não existe nenhuma forma de negar que tantas esferas distintas da
produção musical paraense são frutos do meio social, i.e., a experiência da
cidade não gerou algo uniforme, homogêneo e idêntico. Pares tão distintos
como este que tomamos por extremos aqui sempre foram comuns,
sempre conviveram em silenciosa harmonia. Talvez a força midiática do
tecnobrega e seus derivados cause espanto, inveja, ressentimento, talvez
seja apenas recalque dos que se incomodam com sua projeção, mas isso
não pode guiar nossas reflexões. Tudo isso que movimenta o debate
recente carece, a meu ver, de algo essencial, e que está além até mesmo do
plano estético: tentar pensar a cidade que gerou essa música sôfrega que
tanto se difere daquele ambiente perdido do qual muitos lamentam o fim.
E um alerta: o que está na superfície não representa o todo do que se faz
e do que existe, isto é, os vencidos e sua música não estão sepultados na
proscrição da incapacidade de ouvir; muitos estão vivos e produtivos,
ainda que soterrados. Obras inteiras podem se desenvolver sob este manto
da obscuridade e, ainda assim, pertencerem ao mundo, ao que existe, à
criação. Claro que no mundo da hiper fetichização é cada vez mais difícil
acreditar em algo que não se vê, e no nosso caso, em algo que não se ouve.
Permitam-me garantir que essas obras existem, e nem sempre a história
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dos fracassos midiáticos sobre a qual elas se assentam as torna menos
importantes.
Belém mudou junto com o mundo, o que só comprova seu antigo traço
cosmopolita, oculto pela distância e pela ignorância. Essa mudança muitas
vezes não é percebida por quem vive nela – podemos fazer uma analogia
com a impressão que os outros tem das crianças quando as encontram
depois de um breve intervalo de tempo e as julgam diferentes, muito
modificadas, enquanto os pais nada perceberam de tão radical. Sair de
Belém e depois voltar é encontrar a criança maior e mais agitada, enquanto
os parentes acham que está cada vez mais viva, mais intensa, mais
desenvolvida. Os que teimam na contemplação dos grandes feitos
estéticos da humanidade, onde se resguarda parte da nossa música, da
nossa fotografia, da nossa literatura e do nosso teatro não são intolerantes,
mas apenas reticentes à essa mudança irrefreável travestida de futuro. São
minoria e inofensivos. Não podem acompanhar o frenesi e o delírio,
tampouco desacelerar os que já andam a léguas de distância da calmaria do
ler, do ver e do ouvir. É um embate vão. É tentar retroceder a um
momento de serenidade no contra fluxo da multidão arrebatada. A música
mudou e fez do ato de ouvir um puro choque, uma cesura que partiu ao
meio a sensibilidade.
Artigo recebido em julho de 2014
Aprovado em setembro de 2014
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NOTAS
* Professor de filosofia da EFLCH/UNIFESP e pesquisador do CNPq. Este ensaio constitui a 2ª versão deste texto, publicado originalmente na revista ArteFilosofia, Ouro Preto, n. 14, julho 2013. 1 Este texto se utiliza de um material musical reduzido. Para que os leitores possam ampliar o foco, julgo fundamental mencionar alguns nomes, indispensáveis aos não familiarizados com a produção musical do Estado do Pará: Nilson Chaves, Walter Freitas, Ronaldo Silva, Edir Gaya, Almino Henrique, Paulo Uchôa, Alfredo Reis, Mário Moraes entre dezenas de outros, são artistas centrais para o entendimento da história da música popular do Pará. Um livro com muitos problemas de precisão das informações, mas que pode ser consultado como uma boa listagem é A música e os músicos do Pará, de Vicente Salles (Belém, Secult/Seduc/Amu, 2ª ed., 2007). Esta ponderação é fundamental, na medida em que, alguns mais outros menos, vários desses compositores conseguiu projeção fora do Estado, ainda que uma projeção restrita a certos círculos de consumo. Outros, como o compositor Walter Freitas, são desconhecidos mesmo nos circuitos alternativos, mas criaram obras de grande significado para o que se poderia chamar de uma estética musical popular amazônica, ainda que no caso deste estejamos falando de apenas um disco, Tuyabaé Cuaá. Recentemente, foi defendida uma Dissertação de Mestrado na PUC/SP sobre sua obra, com uma pesquisa da musicista e pesquisadora Marlise Borges: Do Registro ao Documentário: uma tradução verbo-visual-sonora na Amazônia, orientada por Jerusa Pires Ferreira, e que dá bem a dimensão de seu único registro fonográfico, Tuyabaé Cuaá, (Outros Brasis, 1987). 2 Hoje podemos acessar parte desse material num conjunto de CDs lançados pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo em parceria com o SESC-SP: Mário de Andrade, Missão de Pesquisas Folclóricas, caixa com 06 CDs, São Paulo, 2006. E também no DVD Missão de Pesquisas Folclóricas: cadernetas de campo. Prefeitura de São Paulo, 2010. 3Sobre este conceito, remeto para dois textos do autor: “O critério adorniano” (http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/3156,1.shl) foi publicado num dossiê sobre audição musical organizado por mim para a revista eletrônica Trópico: ideias de norte a sul, do site UOL; sugiro também o artigo original onde o conceito foi explicitado: Rodrigo Duarte, “Sobre o construto estético-social”, in Revista Sofia – vol. XI – nº 17 e 18 – 2007. 4 Ver Ronaldo Lemos e Oona Castro. Tecnobrega. O Pará reinventando o negócio da música.
Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. Neste completo estudo sobre a comercialização do Tecnobrega não existem fatores artísticos em jogo, quando muito se fala em novo estilo; o movimento se explica por sua capacidade de disseminação mercadológica. O livro é o estudo mais completo sobre o ritmo, rico em informações e farto de estatísticas e gráficos para consulta. Pode-se ainda encontrar dados históricos sobre os antecedentes do ritmo, o chamado brega paraense. Estudos como este demonstram que são necessários critérios alheios à audição e apreciação musical para dar conta de sua dinâmica atual, ou mais, de que é dispensável discorrer sobre questões de ordem qualitativa, a essa altura, julgam eles, inúteis. Nesse ponto, o estudo supracitado é quase um divisor de águas nos estudos de economia da cultura.
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