Brasil, Refúgio do Olhar: Trajetória de um fotógrafo

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Brasil, Refúgio do Olhar: Trajetória de um fotógrafo exilado no Rio de Janeiro dos anos 1940Brasil, un refugio del mirar: la trayectoria de un fotógrafo en el exilio en Rio de Ja-neiro en la década de 1940

MauricioLISSOVSKY1

Resumo: Ensaiobiográficosobreatrajetóriaprofissio-naldeKurtKlagsbrunn– fotógrafoaustríaco, fotojor-nalistaecorrespondentedaLifenoBrasil,nadécadade1940–,elaboradoapartirdeimagensedocumentosdeseuarquivopessoal.Sugere-sequeesteestudodecasocolaboraparailuminaropapeldetodaumageraçãodefotógrafosimigrantes,oriundosdaEuropaCentral,cujacontribuiçãoparaahistóriadafotografiabrasileiraaindaépoucoconhecida.Banidosdesuaterranatal, falandolínguasquepoucoscompreendiam,oúnicopatrimôniodestesprofissionaiseraavisãoformadanosvaloreses-téticosda“novaescolafotográfica”.Porseuintermédio,oBrasil começa a ser fotografado por inéditos “olhosmodernos”.

Palavras-chaves:históriadafotografia;fotógrafosimi-grantes;fotografiabrasileira;fotojornalismo.

Resumen: Ensayo biográfico acerca de la trayectoriaprofesionaldeKurtKlagsbrunn(1918-2005)–fotógrafoaustríaco,fotoperiodistayreporterodelaLifeenBrasil,enlosaños1940–desarrolladoenbaseenlasimágenesydocumentosdesuarchivopersonal.Conesteestudiodecasointentaseiluminaratodaunageneracióndefotó-grafosinmigrantes,oriundosdelaEuropaCentral,cuyacontribuciónparalafotografíabrasileñaestodavíamuypoco conocida. Banidos de su rincón natal, hablandoidiomasquepocoscomprehendían,elúnicopatrimonio

1ProfessorepesquisadordoProgramadePós-graduaçãoemComu-nicaçãodaECO/UFRJ.Historiador,roteirista,doutoremComunica-çãopelaECO/UFRJ.E-mail:mauricio.lissovsky@eco.ufrj.br.

deestosprofesionalesera lavisión formadaen losva-lores estéticosde la “nuevaescola fotográfica”.Por suintermedio,elBrasilempiezaaserfotografiadoporiné-ditos“ojosmodernos”.

Palabras clave:históriadelafotografia;fotógrafosimi-grantes;fotografiabrasileña;fotoperiodismo.

Háumazonadesombranahistóriadafotogra-fiabrasileira.ElaseestendedesdeasegundadécadadoséculoXXatéosanosqueseseguiramaofimdaSegun-daGuerraMundial.Uma lacunahistoriográficaquesórecentementecomeçaaserpreenchidacomalgumaspes-quisasacadêmicas,unspoucoslivros,earecuperaçãoeorganizaçãodeescassosacervos.Umesquecimentoquecorrespondeatodaumageraçãodefotógrafos,oriundosdaEuropaCentral,quevêmdaraoBrasilnacondiçãoderefugiadosouimigrantesqueprocuramescapardacriseeconômicaedaperseguiçãopolíticaouracial.

Sabemosqueosesquecimentosnãosãonaturais.Resultamquasesempredeprocessossociaisquevãoesta-belecendooqueépublicamentememorável(oquedeveemereceserlembrado),emmeioadisputasemtornodosentidodahistóriaedaquiloqueasgeraçõesposterioresdevemtomarcomomodelosaseguir.Àsvezes,obrilhoparticulardecertoacontecimentosuscitanarrativasque,comoumtrovão,terminamporabafarosrumoresdoseventosconcorrentes.Foi,decertomodo,oqueaconte-ceunocampodaliteratura.Ochamado“modernismo”teveseuato inauguralna“Semanade22”.Apolêmicaemtornodoeventoeoprestígiocrescentedeseuspro-tagonistasacabaramporcondenarà relativaobscurida-detodaumageraçãodeescritoresque,sobarubricade“pré-modernos”,forampoucoapoucosendorelegadosaoostracismo,desaparecendodos livrosdidáticosedahistóriacanônicadasletrasbrasileiras.Hoje,sobrevivemconfinadosapequenoscírculosdeestudiososouentreunspoucosaficionados“anacrônicos”.2

Algo similar sucedeu na arquitetura. Os anos1930 sãomarcados pelas disputas entre grupos de ar-quitetosfiliadosadiferentescorrentesarquitetônicas.Otrajetovitoriosodomodernismocorbusianoéperfeita-mentevisívelnopercursoquevaidasededoMinistériodaEducação(1936-1945),noRiodeJaneiro,àPampu-lha(1942-1944)efinalmenteaBrasília(1957-1960).Masos vestígios do “esquecimento” que essa trajetória desucessoproduziudemorarammuitoasernotados.Emlargamedidaporqueparte da estratégia utilizadapelosmodernistas brasileiros junto às autoridades aosmeios2Paraumbrilhanteexemplodeensaioderevisão,emqueamoder-nidadedestageraçãoesquecidaérepensada,verSUSSEKIND1987.

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artísticoseintelectuais,foi(re)escreverahistóriadaar-quiteturabrasileiraapartirdosvaloreseprincípiosquemaisfacilmenteseajustavamaosseus.Valoresqueter-minarampororientarasprimeirasdécadasdapolíticadepreservaçãodopatrimônio artístico e arquitetôniconoBrasil. (LISSOVSKY; SÁ 1996)Em virtude disso, porexemplo,oRiodeJaneiroperdeempoucosanosquase90%dasedificaçõesecléticasquecaracterizavamocen-trodacidadeeosbairrosdaZonaSul,próximosaele,como Flamengo e Botafogo.No roldão do ecletismo,desaparecemoneocolonialeoutrasexpressõesarquite-tônicascomasquaisomodernismotevedemedirforçasnoseunascedouro.

Mas,aocontráriodoquesepassana literaturaenaarquitetura,ondeasomissõesvãopoucoapoucosendoreconhecidas,aindahámuitoporfazeremrelaçãoàfotografia.Aindaquea“históriaoficial”dafotografiabrasileiranãotenhasidoescrita,certocânonefotográfi-cobrasileirofoitacitamenteestabelecidonasúltimasdé-cadas.Temosumaextensabibliografia,tantoacadêmicacomode“livrosdearte”,sobreafotografiaoitocentista.Em particular em torno de Pedro II e dos fotógrafosdaCorte.JáoiníciodoperíodorepublicanoémarcadopelasimagensdareformaurbanadacapitalfederaledaexplosãometropolitanadeSãoPaulo.

Maséaíqueoesquecimentocomeça.Osecosdasvanguardasfotográficaseuropéias,queeclodemnosanos1920,nãosãoouvidosnoBrasil.NãohavianenhumfotógrafobrasileiroestudandonaBauhaus,comoacon-teceucomoargentinoHoracioCopolla,queserácapazdereproduzirnaBuenosAiresdadécadade1930asdes-cobertas e osmaneirismos da chamada “NovaVisão”–expressãocunhadapeloartistaeprofessorhúngaroLa-zloMoholy-Nagy,queconcebeuoprimeiro“currículo”defotografiadafamosaescoladedesign.Aproposiçãomais oumenos implícita desta história canônica é queafotografiabrasileira,entreasdécadasde1920e1940,permaneceu prisioneira damesmice, até que um novofotojornalismo,surgidonarevistadoO Cruzeiro –apar-tirde1944,massobretudoaolongodadécadade1950–viesseacolocaroBrasilnocaminhodamodernidadefotográfica.

Defato,assimcomooretratoburguêscaracte-rizou a fotografiado séculoXIX, a imagem fotográfi-cadominantenoséculoXXfoiadasrevistasilustradas.SurgiramnaAlemanha,enoiníciodadécadade1930jáhavia70periódicosilustradose20agênciasfotográficasindependentesematividade,apenasemBerlim.(LEDO1998:85)StefenLorent(1901-1997),editordeumdosmais respeitadossemanáriosdaépoca,aMünchner Illus-

trierte Presse, foio responsávelpeladifusãodo formatonaInglaterraenosEstadosUnidos.Húngaroeanti-na-zista,LorentfoipresoassimqueHitlerchegaaopoder,em1933.Depoisdelibertado,instala-seinicialmentenaInglaterra,criandoasprimeirasrevistasdefotojornalis-modopaís:aWeekly Ilustrated(1934)eafamosaPicture Post(1938),“apublicaçãomaisrepresentativadesteparfeliz:fotojornalismoemodernidade”(LEDO1998:84).Omodeloderelaçãoentretextoe imagem,criadoporLorent,servirádeinspiraçãoparaperiódicosnomundointeiro,comoanorte-americanaLife(1936),decujacria-çãofoiconsultor.

Nestas revistas, os fotógrafos começam a sertratadoscomdestaqueeseusfeitosexaltados.NaLife,asubalternidadedosescritoresquasesempreosobrigavaa carregar asmalas e equipamentos dos colegas. Con-ta-sequeno casodeMargaretBourke-White (então, amaisfamosafotojornalistadomundo),orepórtertinhaa tarefaadicionalde lavar-lheas roupas. (TAGG2009:108)A feição geral destas revistas corresponde a umaestratégiamidiáticaque,simultaneamente,ressaltaafo-tografia comopráticamoderna, enalteceoveículoquefazdelasuaestrela,transformaseusrepórteresfotográ-ficosemheróise,finalmente,formaeeducaseupúblico.Folheando-as,oleitoraprendeaobservaromundocomosolhosmodernosdeumfotógrafodeatualidades.Emumapassagemfamosa,de1927,SiegfriedKracauerdiziaque,emfunçãodasrevistasilustradas,“oprópriomundoadquiriu um ‘rosto fotográfico’, [...] pois este se fundenocontínuoqueseformacomosinstantâneos”.(KRA-CAUER2009:75-6)

BastaumapassadadeolhosnapioneiraWeekly Illustrated para observarmos como estes elementos vãosendoarticulados.Noiníciode1936,glorifica-seumdeseus fotógrafos por descer até as profundezas de umaminadecarvão(“UndergroundLives”,11/01/1936),edepois,outroque fezflagrantes surpreendentesdeumespetáculodebalé (“FrozenBallet”, 15/02/1936).3 Na proezafotográfica,homememáquina,heroísmoetéc-nica,seconfundem.Nãoéporcasoqueasrepresenta-çõesemqueestescorpossehibridamtornam-setãofre-qüentes,comonocasodoex-librisdeKurtKlagsbrunn,refugiado austríacoque se torna fotógrafoprofissionalno Rio de Janeiro. (FIGURA 1) Ainda em 1936,WI lançaumsignificativoconcurso:“Bringoutyourevery-day snap” – que convida os leitores a remeterem seusflagrantes cotidianos à redação.4Caso a foto fossepu-

3AcoleçãodaWeekly IllustratedestádisponívelnaseçãodeperiódicosdaBritishLibrary.4Desdeoinício,emfinsde1936,aLifetambémmanteráumaseçãodefotografiasdoleitor,alémdatradicionalseçãode“cartas”.

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blicada,oleitorrecebiaumalibracomopagamento–omesmovalorpagoaosfotógrafosprofissionaisfreelancers.Afotografiavitoriosaseriapremiadacom50libras.Nãoháqualquerintençãonoticiosanomaterialenviado:sãofotos domésticas, algumas compretensões “artísticas”,masemvirtudedestapromoçãoosleitorescomeçamasercreditadosjuntoàsimagensantesdosfotógrafospro-fissionais.

FIGURA1Ex-libris de Kurt Paul Klagsbrunn. No desenho, a Leica que traz ao Brasil

em 1939.

Otratamentodadoaumafotografia,publicadaem29/08/1936,na“páginadoleitor”(quandooprêmiojáhaviasubidopara100libras)éumexcelenteexemplodecomoavalorizaçãodeveículoarticula-seàeducaçãodoolhardeseupúblicoeoestímulodeumanovapráti-cafotográficacotidiana:umameninaquebrincaemumbalançoéfotografadadebaixo,contraocéu.Arevistaexulta:

‘Esseéoângulo!:Osfoto-leitores[snap-shooting readers]doWeekly Illustrated con-tinuam a produzir resultados de altonível.Aqui,àdireita,umacenacotidia-na dramatizada pelo ‘ângulo’ – apenasdisparando-sedorés-do-chão–emvez

datradicionalposiçãononíveldoolho.Existemaindainúmeros‘novos’ângulosaseremdescobertos.

O comentário da revista é praticamente umaparáfrasedaconclamaçãovanguardistaqueofotógrafosoviéticoNicolaiRodchenkopublica,em1928,emres-postaaumacartaanônimaqueoacusavade“plagiar”osmodismos“imperialistas”dosfotógrafosocidentais:

Nafotografiaexistemvelhospontosdevista, o ponto de vista de uma pessoaqueestáempénosoloeolhaparafren-te,ou,comoeuochamo,a‘foto-umbi-go’,comacâmeranaalturadoestôma-go.Euestoulutandocontraestepontode vista e levarei adiante uma luta porfotografias em todas as posições quenão a ‘posição-umbigo’, enquanto elaspermanecerem sem reconhecimento.Os ângulosmais interessantes são, ‘decimaparabaixo’e‘debaixoparacima’,eexisteaindamuitotrabalhoaserfeitonesse campo. (RODCHENKO 1989:246)

Apartir de junho de 1937, o círculo se fechacomachegadadeanunciantesdecâmeras,filmeseequi-pamentos fotográficos.Ao ladodapáginados leitores,paraondeestesagoraenviampequenas“matérias”com-binandofotosetextoschamadassnap-letters,umanunciodecâmeraproclama:“Paraumacomposiçãoperfeitadassuas fotos,vocêprecisadosrefinamentosdeumaVoi-gtlander”.Otrabalhodosprofissionaistambémsetornaoportunidadede fazerpropaganda.Acimada reprodu-ção de uma fotografia da exuberanteAbadia deWest-minsterporocasiãodacoroaçãodeJorgeVI,podemoslera“manchete”:“EleconfianosfilmesAgfa”:“Ele”,JamesJarché,omaisconhecidofotojornalistabritâniconaépoca;e“Agfa”,agrandefabricantealemãdefilmesepapéisfotográficos.

Cercadeumadécadadepois,O Cruzeiro iráre-produziralgunsdestesprocedimentos,queacabamporconferiràrevistaaresdeinauguração,comoseumnovomododeolhar e fotografarhouvessenascidoali. (PE-REGRINO1991)OpapeldeO Cruzeiro,edesuaequi-pebrilhantedefotógrafos, narenovação(emesmo,nainvenção) do fotojornalismo brasileiro é incontestável.

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Porém,estemesmobrilhotendeaobnubilar todaumadécadaemqueopaíscomeçaaservistoefotografadopor olhosmodernos pela primeira vez.Os fotógrafosqueprotagonizaramestecapítulodahistórianuncafor-maramummovimentoe,emsuamaioria,nãoexerciamaprofissãoemseuspaísesdeorigem.Espalharam-sepeloBrasil,noperíodoentre-guerras, trabalhandocomoau-tônomos, abrindo seuspróprios estúdiosouprestandoserviçosaórgãospúblicos.Aindaquealgunsdosnomesque integraram esta geração esquecida comecem a seragorarememorados,agrandemaioriadestesfotógrafosimigrantespermaneceignorada.Esuaobra,maisainda.

Emalgumaspoucasocasiões,épossívelobservá-lostrabalhandoemconjunto.Infelizmente,omaissigni-ficativodestesempreendimentoscoletivos,coordenadopelofotógrafoalemãoPeterLange,permanece inédito.LangeeraofotógrafofavoritodoMinistrodaEducaçãoeSaúdedoEstadoNovo,GustavoCapanema,efoien-carregado,em1942,deilustraraObraGetuliana–umli-vromonumentalcujoobjetivoeradivulgarasrealizaçõesdopresidenteVargas:

As fotografias remanescentes desteprojeto constituem um impressionanteacervo de mais de 600 imagens, pro-duzidas por profissionais brasileiros eeuropeus (particularmente refugiadosdeguerraalemães).Influenciadospelasvanguardasfotográficaseuropéias,reali-zaramumempreendimentoestéticora-dicalmentenovonafotografiabrasileiraqueaquedadeVargas,em1945,impe-diudevir apúblico.Enquantoos tex-tosdaObraGetuliana têmumcarátereminentementeburocrático–relatóriosinsossosdasrealizaçõesgovernamentais–,suasfotografiaspretendiamserbemmaisdoquemerasilustrações.Confor-mam um gigantesco empreendimentopedagógico e publicitário autônomo,quefazusodeváriasestéticasmodernaspararepresentar“a invençãodofuturonopresente. (LISSOVSKY;JAGUARI-BE2006:90-1)

NointuitodetornarvisívelamodernizaçãodoBrasil após a revoluçãode1930,o livro foi concebidocomouma“pedagogiadoolhar”,endossandoacrençamodernistanacapacidadeeducativadafotografia,quejávinhasendotestadanasexposiçõesfotográficasdoEsta-

doNovo.Talcomonasrevistasilustradasenasexposi-çõescívicas,afotografiadeveria,simultaneamente,mos-trareensinaraver.A“legiãoestrangeira”daGetuliana,quepassaváriosmesesviajandopeloBrasilembuscadossinaisdeumamodernidadequerefletisseaaçãodoesta-do,eraconstituídapelosalemãesPeterLange(cujoex-tremorigorformalimprimesuamarcaportodaaobra),ErichHess,PaulStilleepelo teuto-chilenoErwinVonDessauer.Umadécadadepois,épossívelreencontrarvá-riosdelesnabemsucedidasérie“Istoé...!”daEditoraMelhoramentos,que, trazendo textos emcinco línguasdiferentes,destinava-seaoturistanacionaleestrangeiro.5 Láestãopresentes,porexemplo,osalemãesErichHess,SaschaHarnisch6,AliceBrill(tambémrefugiada,porémmaisjovemqueosdemais)eAloisFeichtemberger(aus-tríaco,masdeumageraçãoanterior),entreoutros.

Esteensaiobiográficodedica-seaumdosmem-brosmaisdestacadosdestageraçãode fotógrafosemi-gradosdaEuropaCentral,oaustríacoKurtKlagsbrunn(1918-2005),que,adespeitodemanterlaçosdeamizadecomestegrupo,nãotomoupartenasiniciativasmencio-nadasacima.7Autordeumaobramonumentalemtodososcamposdaatividadefotográficaque,até2013,jamaishaviasidoapresentadaemlivro.(LISSOVSKY;MELLO2013) Além de seu valor documental e artístico, suasfotografias,emparticularasproduzidasnosanos1940,guardamofrescordadescobertadoBrasilporumjovemfotógrafoeuropeu,umolharcuriososobrea terraquelheserviuderefúgio.(FIGURA2)

5Forampublicadosentre1953e1958:Isto é São Paulo!; Isto é Minas Colonial!; Isto é Bahia!;Isto é o Rio de Janeiro!.6Responsávelpelas ilustraçõesdosegundovolumedeAparência do Rio de Janeiro,deGastãoCruls,editadoem1949.7MasestápresentenafamosacompilaçãodeimagenssobreoRiodeJaneiro(Cidade Maravilhosa: Rio de Janeiro e seus arredores),publicadapelaLivrariaeEditoraKosmosEmseuarquivo,encontramosfotosquelheforamoferecidasporváriosfotógrafosimigrantescomoEricHess,CarlosMoskovics(húngaro,queadquirefamacomofotógrafoteatral)eMarioBaldi(igualmenteaustríaco,quechegaaoBrasilem1921,retornandoàEuropanofinaldécada,vindoa instalar-sedefi-nitivamente noBrasil, em1934, onde atuou como fotógrafo deANoite).

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FIGURA2Kurt Klagsbrunn, à direita, de chapéu, em viagem a Minas Gerais, 1947.

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Kurt Paul Klagsbrunn nasceu em Viena, em06/05/1918,segundofilhodeumafamíliajudiadeclassemédia.Tinhaolhosazuis,conformeanotadoemsuacar-teirademotorista.Seupai,LeopoldKlagsbrunneraquí-mico,donodeumnegóciodeprocessamentoecomérciodecarvão.Desde1933,aÁustriaviviasobumaditaduranacionalista.Oparlamento estava fechado, os partidosproibidos, vários direitos suspensos.Mas, ao contráriodaAlemanha,asrestriçõesdenaturezapolíticaaindanãotinhamincorporadoasleisraciaisanti-semitasqueimpe-diamoacessoàeducaçãoeoutrosserviçospúblicosouodesenvolvimentodeatividadeseconômicas.Issoajudavaapreservarcertaaparênciadenormalidade,eexplica,emparte, porque a comunidadede judeusdeViena, entreosquais,SigmundFreud,levarátantotempoparadar-secontaqueacrescentedifusãodomilitarismoedaideolo-gianazi-fascistaemseupaís(Hitler,afinal,eraaustríacodenascimento),ameaçavasuaexistência.OsirmãosPe-tereKurtKlagsbrunnseguem,portanto,naescola.8

Em1936,aos18anos,Kurtforma-senocole-gialeatradicionalviagemcomemorativadeférias–que

8As informaçõesbiográficasarespeitodeKurtKlagsbrunnresul-taramdepesquisanoarquivopessoaldofotógrafo,conservadopelafamília.

osjovensaustríacoscostumavamrealizarsemacompa-nhiadospais–foiparaumaestaçãodeesquinaPolônia.Seguindoospassosdoirmãomaisvelho,Kurtpassanosexames de ingresso para a Faculdade deMedicina em1937ecomeçaafreqüentarocursonoinvernode1938.Odesejodesetornarmédicotomacorpojuntocomogostopelafotografia.Afamíliadispõedeváriascâmerasemformatosvariados.AsfavoritasdeKurteramprova-velmenteasalemãsSuperBaldinaeArtiflex(ambas6x6).Comelasfarásuasprimeirasexperiênciasdefotógra-foamador,processandoeampliandosuas imagensemumlaboratóriodoméstico.

Duranteadécadade1930,afotografiaamado-rahaviaexplodidonaAlemanhaeemoutrospaísesdaEuropaCentral (onde a língua alemã era corrente nosprincipaiscentrosurbanos).Estimuladapeladifusãodasrevistas ilustradase facilitadapela invençãodasmáqui-nas de pequeno formato, como aErmanox e a Leica,centenasdemilharesdefamíliasalemãs,austríacas,hún-garase tchecaspassama fotografare ser fotografadas,commaioroumenoracuidadetécnicaeartística.UmaondaquelogoseespalharáparaFrança,InglaterraeEs-tadosUnidos.ALeica,quehaviainiciadoaproduçãodesuacâmerarevolucionáriaem1927,comcemunidadesporano, já fabricavacemmilcâmerasanuaisem1933.Ogostopelafotografiaespalha-setãorapidamentequeem1929,emStuttgart,realiza-seagigantescaexposiçãointernacionalFilm und Foto,commaisdemilfotografias.GustavStotz,principalcuradordaexposição,assinalavaqueopróprioolhardaspessoashaviasidoafetadopela

“novavisão”dosfotógrafos:

Nósvemosascoisasdiferentementedeagoraemdiante:nãoemsentidopictó-ricoouimpressionista.Hojeosobjetosparecemimportantes,deummodoquenunca foram considerados antes: umlaçodesapatos,porexemplo,umabo-binadefio,um tecido, umamáquina...Elesnos interessamporsuasubstânciamaterial, por sua simples realidade decoisas…(COKE1982:19)

Naquelemesmoano,Fifo–comoaexposiçãosetornouconhecida–,viajaparaZurique,Berlim,DantzigeViena.Nãosabemosseomeninodeonzeanosesteveentreosmilharesdepessoasquevisitaramestaexposiçãoesedeixaramcontaminarporestenovomododever“ascoisas”,masécomosolhosimpregnadosdenovidades

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fotográficasqueKurtviajarádaÁustriaparaoBrasil,àsvésperasdaSegundaGuerraMundial.

Ocompassodeesperaemqueviviamosjudeusaustríacos,assimcomooquerestavadaoposiçãodemo-crática e socialistanopaís, encerra-se em13/03/1938,quando sobrevém aAnschluss – a anexação daÁustriapelaAlemanhanazista.Paramuitasfamílias judias,nãohámais condição de fugir. Para outras, os dias que seseguemsãodeintensospreparativos.Benssãovendidosetransferidosilegalmenteapreçosirrisórios,passagenscompradas, vistos obtidos (frequentemente através dosubornodeautoridadesdiplomáticas).Em07/08/1938,afamíliaKlagsbrunnconseguedeixarVienaabordodeumaviãoDC-2dacompanhiaholandesaKLM,rumoaRotterdameLondres.MasodestinofinaléLisboa,umadasportasdesaídadaEuropaparaaAmérica,emparti-cularparaosrefugiadosquebuscavamchegaraoBrasil,ondeumirmãodeLeopoldKlagsbrunnjávivia.Ascâ-meras fotográficas da família haviam sido confiscadas,masKurt,entãocom20anos,não temqualquerespe-rançaderetomarosestudosdemedicinanoexílio.Levanabagagemummanual de fotografia, editadonaquelemesmoanoemHarzburg,naAlemanha,Die Neue Foto-Schule(a“novaescolafotográfica”),duascâmeras(umaSuper-Baldina–preferidadosfotojornalistasalemães–eumaLeica,provavelmenteadquiridanomercadonegro),eoolhareducadona“novavisão”.

EmPortugal,maisoitomesesde incertezaatéquefinalmenteumvistoparaoBrasilfosseobtido.Em15/03/1939,osKlagsbrunnchegamaoRiodeJaneiroabordodonavioalemãoGeneral Artigas.OPãodeAçúcar,naentradadabaíadaGuanabara,erauma imagemtãopoderosa que a companhia de navegação alemãHam-burg-Sudcolocavaofamosomorronosanúnciospubli-citáriosdesuasrotas.AvisãodaPraiaVermelha–localdoprimeirobanhodemar–tornou-seopontodevistafavoritodojovemfotógrafo.Éláqueretrata,porexem-plo,aMissBrasilde1949.(Figura3)

FIGURA3AgoianaJussaraMarques,MissBrasil1949.

A família escolhe o bairro de Laranjeiras, nazona sul do Rio de Janeiro, para morar. Kurt jamaisviveráemoutraregiãodacidade.Nosmesesseguintes,alémdetomaraulasdeportuguês(aoquetudoindica,erafluenteeminglês,oquelheabrirámuitasportasnoBra-sil),fazcontatoseprocuratrabalhojuntoaoutrosfotó-grafos imigrantes estabelecidosnoRio de Janeiro.Emseuprimeiroserviçoprofissional– frascosdeperfumepara um periódico comercial chamadoBrasil Perfumista – atradiçãodaSachfotographie (“fotografiadeobjetosin-dividuais”),talcomopraticadapelosfotógrafosalemãesda“NovaObjetividade”,foidegrandevalia.Ospoucosserviçosquepresta(inclusivetirandoretratosdosvizin-hosparadocumentos),permitemquevá investindonacompraderefletoreseequipamentos.Olaboratórioeoestúdioimprovisadosfuncionam,porenquanto,nacasadafamília.

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Em12/02/1941,suacarreirafazumainflexãodecisiva.KurtcomeçaatrabalharparaaTurismoBrasil-América (Brazilian American Travel Bureau), tira carteiradetrabalhoe,em17/05,travacontatocomoescritóriodarevistaTimenoBrasil.Emjunho,sente-sesuficiente-mente seguroparapedirdemissãodaBrasil-Américaetirarseuprimeiroalvarádeestúdiofotográfico.Emou-tubrodomesmoano,começaatrabalharparaInterame-ricanadePublicidadeefotografaoaparelhoeaslâminasdafamosaGillette“azul”,responsávelpelaaposentado-riadanavalhanascasasdasfamíliasmodernasbrasileiras.Em 04/01/1942, conhece Henry Bagley, jornalista daAssociatedPress,mais tarde correspondentedeguerradaagênciajuntoàstropasbrasileirasnaItália.

Talvez a fluência em inglês tenha permitido aKlagsbrunn aproximar-se de uma rede norte-america-naformadaporagênciasdenotíciasepublicitáriasqueacabarápor terpapelestratégicoparaoDepartamentodeEstadodosEUAnosprimeirosanosdaguerra.Namedidaemqueasituaçãoeuropéiasecomplicacomoavançoalemão,passaraa servitalparaosnorte-ameri-canosconsolidarsuahegemoniaecombateraexpansãodo nazi-fascismo no continente.O recém-criadoOffice of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA)éen-carregadodeconcebereimplementara“políticadaboavizinhança”,quevisavadivulgaroAmerican way of life eosvaloresdademocraciaamericanaaosuldoRioGrandeecriarumaimagemfavoráveldoslatinosparaconsumoamericano,apresentando-oscomoaliadosconfiáveisnaeventualidadedeumaguerracontraoEixo.

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AOCIAAatuavanoBrasilemestreitacoopera-çãocomoDIP–oDepartamentodeImprensaePropa-gandadoEstadoNovo.Alémdaspolíticaseconômicas,dosacordoscomerciais,tambémasaúde,ointercâmbioculturaleapropagandaforampensadasapartirdosob-jetivosestratégicosdadefesadocontinenteedoesforçodeguerranorte-americano.NaóticadosEUA,oBrasilchegouaseravaliadocomo“amaisimportanteeamaisperigosadetodasasRepúblicasdoSul”9,devidoàgran-decolôniaalemãnoSuleademoradeVargasemdefinirparaqueladodaguerrapenderiaaparticipaçãobrasileira.(MOURA1980)10

Afotografianãotinhaumpapelsecundárionasatividadesdaagência.SegundoRobertLevine,setemilfotografias eram distribuídas por ela, mensalmente, a1250 jornais e revistas dohemisfério. (LEVINE1998:21)Tratava-se,convémenfatizar,deumaviademãodu-pla:opúblicoamericanorecebiaseuquinhãodeimagenssimpáticasdosvizinhosbrasileiros–maximamente re-presentadas porCarmemMiranda eZéCarioca – en-quanto o público brasileiro era inundado de imagens“quentes”daguerraedomododevidaamericano.

Adistribuiçãoemmassadefotografiasematé-riaspelaagênciadevia-se,emlargamedida,àspreocupa-çõesdoDepartamentodeEstadonorte-americanocomasituaçãodaimprensabrasileirae,obviamente,comasposiçõesdosprincipaisjornaislocaisarespeitodaguer-ranaEuropa.No iníciode1940,ogovernobrasileirohavia suspendidoacensurapréviaaos jornais (que,noentanto, continuavam sujeitos a punições sempre quepublicavamalgoque“sabiam”contrariaroregime).Emfevereiro deste ano, a embaixada norte-americana en-viauminformeaWashingtoncaracterizandoadecisãocomoum“avanço”,aindaqueaimprensabrasileiranãopudesseserconsiderada,deplenodireito,“livre”.Acor-respondênciaacrescentavaqueodiretordeimprensadoDIPrevelaraqueaintençãodogovernoeradiminuirlen-tamenteonúmerodeperiódicosemcirculaçãonoRiodeJaneiro (negandoa renovaçãodesuas licenças).11 O objetivodoDIP,compartilhadopelosnorte-americanos,seria“melhorarasituaçãofinanceiraequalidadedosór-gãosdeimprensa”.(DE40.02.12)Nestesentido,ovolu-meeocorretodirecionamentodapublicidadecumpriam

9AreflexãoédeW.Guest,funcionárionorte-americano,emcartaaNelsonRockfeller,em1941.OinformeprossegueafirmandoqueosalemãesnutremomesmosentimentocomrelaçãoaoBrasil(MOTA1995:10-11),p.10-11.10ParaasexpectativasalemãsemrelaçãoaoBrasil,talcomoexpres-sasnoscinejornaisgermânicosanterioresàguerra,verLISSOVSKY;BLANK2010.11SónoRiode Janeiro, em1940,circulavam513periódicose23jornaisdiários.

tambémumpapelhigiêniconadepuraçãoda imprensalocal.

Igualmente vital, paraoDepartamentodeEs-tado,eraaatuaçãodasagênciasdenotíciaseórgãosdepropagandadospaíseseuropeusnoBrasil.Entre20e22deabrilde1940,ocorrenoRiodeJaneiroumareuniãode funcionários ediplomatasnorte-americanos lotadosnasdiversasembaixadasdaAméricaLatinaparaavaliarasituaçãogeraldocontinentefaceaoconflito(inclusiveoseventuais“teatrosdeguerra”naAméricadoSul).Váriosinformessãopreparados.UmdelesdetalhaasituaçãodapropagandadeguerraestrangeiranoBrasil.

Enquantoapropagandasoviéticaecomunista,porexemplo,éconsiderada“ineficaz”,eotrabalhodasagênciasnoticiosas ingleses (BBCeReuters)aquémdesua importância e possibilidades, a agência de notíciasalemã–Trans-Ocean–dispunhade101empregadossónoRiodeJaneiro.Suainfluência,noentanto,eraredu-zida, porque os “principais jornais brasileiros parecemserpró-aliados”.Aagênciaalemãabasteceriaapenastrêsperiódicos(GazetadeNotícias,Meio-diaeAPátria),querecebiamcadaumdelesdezcontosderéis(cercadeU$500,aocâmbiodaépoca)semanaisparaveicularasno-tícias doReich.O relatório informa queOGlobo, um“importantevespertino”,haviarecusadoumaofertadeU$3.750semanaisparajuntar-seaestes.(DE40.04.19)

Énosmarcosdestaavaliaçãoqueoesforçodeguerranorte-americanovaidelegaraoOCIAAamissãode“difundirinformações”nocontinente.OOfficerefe-re-seaestatarefacomo“campanha”,valendo-seaquidojargãomilitar,masnãoperdedevistaque“suaprincipalarmaeraodinheiro”.(IAA42.04.15)Oqueestavaemjogo,sabidamente,eramoscoraçõesementesdoslatino-americanos, cujos sentimentos deveriam ser avaliados,monitorados e influenciados. As primeiras “pesquisasdeopinião” realizadas emváriospaíses sul-americanosocorreramnestecontexto.Deinício,ogovernobrasilei-roresisteaestetipodesondagem,apontodeumcon-selheirodaembaixadaamericananoBrasil (JohnF.Si-mons)escreveraoSecretáriodeEstado,emWashington,que a idéiadeumapesquisadeopiniãonão seriabemvistapelogovernobrasileiro.Emvistadisso,noBrasil,comoemoutrospaíses latino-americanos, aspesquisasforamrealizadasporoperadoreslocaistreinadosnomé-todoGallupdemodoanãocaracterizá-lascomoiniciati-vaestrangeira.(LEVINE1998:23)12

Em15deabrilde1942,ummemorandodaDi-visãoRegionaldoOCIAA,determinava,apedidodeRo-

12Issoexplicaa inclusãodopatronímico“brasileiro”nonomedoIBOPE,fundadoem1942,nocontextodesta“transferênciadetec-nologia”.

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ckefeller,queocaráterpragmáticodestasrelaçõescomosEstadosUnidosfosseenfatizadopelapropagandademodo a convencer os latino-americanos que o comér-cio comosEstadosUnidos era lucrativopara todos eque a cooperação comercial acarretaria uma elevaçãodospadrõesdevidanohemisfério. (IAA42.04.15)Foiparaalcançaresteobjetivoqueseconcebeumadasmaiscuriosas(eprovavelmenteeficazes)iniciativasdoOIAAneste campo, oAdvertising Project, implementado a par-tirde1942.Entresuasmotivaçõesoriginaispodeestaruma carta, enviada por Assis Figueiredo, funcionáriodoDepartamento de Imprensa e Propaganda do Bra-sil, em03/05/42,diretamenteaNelsonRockefeller.Acorrespondênciaalertavaqueacampanhadesubmarinosdosalemãesprejudicavaachegadadeprodutosnorte-a-mericanosaomercadobrasileiro,corroborandoassimasensaçãode“isolamento”dopaís,ameaçadifundidapela“máquina de propaganda alemã”. Figueiredo descrevemuitoenfaticamenteosprejuízosà“causadasAméricas”casoestaimpressãoprevalecesse.(IAA42.05.03)

Emmeados domesmo ano, oOCIAA elabo-raumplanoparamanternaAméricaLatina apublici-dade de produtos norte-americanos, mesmo que estesnãoestivessemdisponíveisparaavendaemfunçãodoesforçodeguerra.Acampanhapublicitáriadeveria serlevadaacaboemparceriacomainiciativaprivada.Em07/08/1942,sãoexpedidascartasaempresaseagênciasdepublicidadecomoaT.B.BrownLtd,deNovaYork,conclamando-asautilizarosjornais,rádioseoutrasfor-masdepublicidadepara“difundiroevangelhodapolí-ticadaBoaVizinhança”,sustentandoque“centenasdemilharesdemensagenspodemserlevadasaospovosdasAméricasdiariamenteecontribuirmuitoparaconquistarsuaconfiançaeboavontade”.Tratava-sedeuma“guerrapsicológica”,paraaqualtodososexportadoresamerica-nosdeveriamcolaborar.(IAA42.06.02)13

QuandoKurtKlagsbrunnfazseuprimeirocli-que de uma lâmina de barbear, seguramente não tem

13AnúnciosparaestimularosexportadorestambémeramveiculadosnosEstadosUnidos.Umdeles, sobamanchete.“RockfellerpedeàIndústriaqueuseanúnciosnasAméricas”reproduzaseguintedecla-raçãodoCoordenador:“‘Nomomento’,elediz,‘osnossosindustriaiseexportadorestêmdificuldadeparafornecermuitosprodutosnor-malmenteexportadosparaosmercadosdohemisfério.Masquandoavitória foralcançada , as indústriasvãovoltar-senovamenteparaosprodutosdeumaeconomiaemtemposdepaz.AboavontadeeasmarcasquesemantiveremduranteaGuerravãocontarquandoocomércionormalforretomado.’UmexemplotípicodosanúnciosdifundidosnaAméricaLatina é o de uma empresa deprojetos demáquinaseequipamentosdeprecisão,sediadaemBuffallo,NY,pu-blicadonaediçãodeoutubrodaRevistaAéreaLatinoAmericana.Aempresasediz“amigadobombardeiro”eofereceseusserviçospara“DespuésdelaVictoria.”(IAA42.06.02)

noçãodopapelestratégicoqueestetipodeimagemco-meçavaaterparaoesforçodeguerranorte-americanoeachamada“defesacontinental”.Mas,tinhaplenaclare-zadaslimitaçõesepreconceitosqueumfotógrafocomsotaquegermânicoencontravanoBrasildaquelesanos.UmepisódiorelatadoporEricHess, fotógrafoalemãomeio-judeu,nascidoemHamburgo,quechegaaoRiodeJaneiroem1936éexemplar.TalcomoKlagsbrunn,Hessnãopossuiqualquerexperiênciaprofissionalanterior;fa-ziafotosdesuasviagens,apenas.Masem1936,vendoocercosefecharemtornodele–começaaserdiscri-minadonaShell,ondetrabalhavahámaisdecincoanos– consegue um visto de turista para o Brasil: compraumaLeica,edespacha-separaoRiodeJaneiro(nãosemantesfotografarasOlimpíadasdeBerlimparaenrique-ceroseuportfólio).Hess,quemaistardeparticipariadograndeesforçodaObraGetuliana, tornar-se-á,apartirde1937,oprincipalfotógrafodorecém-criadoServiçodoPatrimônioHistórico,cujosarquivosguardampartedesuaobra.Umavez,fotografandoemPetrópolisape-didodoPatrimônio,em1940,acaboudetidoepreso:“Osenhoréalemão.Nãopodefotografar”–disseram-lhe.Mesmodepoisdeesclarecidoomal-entendido,ofotó-grafotevequedeixarcomapolíciatodososseusfilmeseequipamentosquesóforamrecuperadosdiasdepois,comaintervençãodiretadogovernadorAmaralPeixoto.(HESS1983:14)Mesesdepois,emRecife,oproblemaserepete:“ComoumalemãoémandadodoRiodeJa-neiro...paratirarfotografiasdanossacidade,quandoossubmarinosestãoaquinanossacosta?”MesmodepoisdeumaconsultatelefônicaaoministrodaGuerra,Ge-neralDutra,EricHesssópoderáfotografarasigrejasdeOlindaacompanhadodeumpoliciallocal.UmaamigadafotógrafaAliceBrill,quechegouaoBrasilem1934,com14anos,contaqueapesarde“refugiadasdonazismo”,eramconsideradas“súditas”doEixo,esópodiam iràpraiacomum“salvo-conduto”emitidopelapolícia(que,demodogeral,valiapor24horaseeramuitodifícildeseobter):“viagensdeférias”,sóparaointerior.(IMS2005:18)14

É neste contexto de desconfiança em relaçãoaosfotógrafosgermânicos,masdecrescente intercâm-biodeimagensentreoBrasileosEstadosUnidos,queKlagsbrunnlograobterem24/12/1941,juntoaorepre-sentanteparaaAméricadoSuldo“EscritórioAustría-co”deLondres,umdocumentocomprobatóriodequenãohaviaqualquer“objeçãopolítica”aele,sendopessoa

14MesmoGevieveNaylor,apesardenorte-americanaeportadoradeumsalvo-condutodoDIP,assinadopelopoderosoLourivalFontes,serádetidaváriasvezesdurantesuaviagemaoNordesteem1942,sobsuspeitadeespionagem.(MAUAD2008:207)

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conhecida“desteescritório”como“emigrantepolítico”.Taldocumentoatestava,emoutraspalavras,queofotó-grafonãoeranazista,vivendoforadaÁustriaemvirtudedeperseguiçãodoregimevigentenaquelepaís.Depossedeste atestado de bons antecedentes político, pode in-tensificarseusserviçosparaasrevistasnorte-americanas,paraaAssociated PresseparaaUniãoNacionaldosEstu-dantes,daqual se aproximaria comomembroativodaresistênciaanti-fascista.15

Apartirde1942,comosnegóciosmelhorando,Kurt compraumaRolleiflexe investebastante emseuestúdioelaboratório.Apaisagemdacidade,avidadoscariocas,eocarnaval,claro,foramosprimeirosemaisrecorrentes temasde suaobra.AmísticadoRio, comsuaspraias,cassinosenight-clubs,erapautafreqüentenasrevistas norte-americanas.16 Copacabana, a essa altura,jáeraobairromaisfamosodacidadeealia juventudecarioca começa a assumir um jeitomais despojado nomododesevestiredesecomportar.Opointdaselites,noentanto,continuavasendooJockeyClub,naGávea.NãohaviamelhorlugarparaumadamaouumcavalheiroseremnotadosegarantirumclichêemrevistasilustradascomoOCruzeiro eFon-fon, cliente freqüentedas fo-tografiasdeKlagsbrunn.NosdiasdeGrandePrêmio,oJockey transformava-senaprincipalpassareladaselitescariocas.Enchia-sedefotógrafos,aserviçodaimprensaoudosprópriosfotografados.Era láquenovosmode-losrecém-copiadosdaEuropaeram“lançados”,comasjovensdasmelhoresfamíliasservindocomomanequinsparafotógrafosqueas“surpreendiam”,elegantes,ator-cereapostardiscretamentenoscavalos.

KurtKlagsbrunntrabalhaparadezenasdeperi-ódicosbrasileiros,comdestaque,nosanos1940,paraaRevistaSombra,publicaçãobi-mensalrefinada,emcujoprimeiroeditorialAugustoFredericoSchmidtescreveu:“Essa publicação vai fixar o lado elegante e civilizadodoBrasil”.(CERBINO;CERBINO2011)Afotografiasocial será uma das importantes vertentes do trabalhodofotógrafoque,graçasaisso,noslegouumimpressio-nanteregistrodocumentaldoscostumesdaselitesbra-sileiras no período. Suas fotografias são um fantásticotestemunho domodo como esses segmentos vão ree-laborandosua imagememummundoquese transfor-ma rapidamente.Nestas fotografias, os antigosmodos

15Em1943,colaboracomabarracadaÁustriano‘NataldaVitória’,sendodesignadopelodelegadonoBrasildaAmericanFederationof AustrianDemocrats , como“patriota austríaco”e“amigodaÁus-tria”.16OBrasiléumadasprincipaismatériasdaprimeiraediçãodare-vista Lifeem23/11/1936.ORiodeJaneiroestárepresentadopelascalçadasdepedrasportuguesas,pelabaíadaGuanabara,ditaamaisbonitadomundo,epelafestadaPenha.

senhoriais sãopostosde ladoecomeçamosaverumafamília“moderna”figuradaàmaneiradaspersonagensglamorosasdocinemahollywoodiano:homensemulhe-resfumamelegantemente,sentam-seinformalmentenasescadasdasmansões,escutamdiscosdejazznaseletrolaseparticipamdeweekendsnaserraounasilhasdabaíadaGuanabara.(FIGURA4).

FIGURA4Week-endnaIlhadeBrocoió,baíadaGuanabara,pertencenteàfamíliaGuinle,em1948.Emprimeiroplano,dechapéu,opríncipe

D.PedroGastãodeOrleanseBragança.

MasoolhardeKurtnãoserestringiaapenasàsáreasnobresdacapital.Em1949,começaa fotografarparaaAçãoSocialArquidiocesana(ASA)eacompanhaotrabalhosocialdaIgrejaCatólicanasperiferiaspobresdacidade.Comofotógrafocomercialepublicitáriodepres-tígio, seuarquivo inclui campanhasdepropaganda im-portantescomoadosrefrigerantesGuaráeCoca-Cola,darededecosméticosetratamentodebelezaElisabethArdenedalojadedepartamentosSears.Ainauguraçãodestaúltimarendeu-lheumensaionaLife,publicadonaediçãode27/06/1949.Também,pudera,oeventoatraiumultidões. A revista destacou que “nunca houve umainauguraçãocomoadoRiodeJaneiro”:

Amassacomeçouasejuntarnoalvore-cerepermaneceunafilaporhorasafioatéqueasportasseabrissem...Umnún-cio apostólico abençoou a instituição.Os123milcompradoresamontoaram-senascozinhasmodelo,lançaram-sefei-tomoscassobreasgeladeirasevoltaram

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para casa com tudo que puderam, dealgodãoabsorventeasementesdezínia.

Os eletrodomésticos, assim como as cortinasdeplásticoparaboxdechuveirorepresentavamasidéiasdemodernidade,praticidadeeconfortoqueatraíamosconsumidoresbrasileirosdopós-guerra,cujodesejoha-viasidocuidadosamentecultivadoduranteaguerra.Asgeladeirasforamvendidas35%maisbaratoqueemqual-queroutralojadacidadeeesgotaram-seemmenosde24horas.Kurtfotografou,eaLifepublicou,osatulhadosdepósitosdaloja,antesdainauguração,ecompletamentevazios,depois.Asescadasrolantes,rarasnaépoca,eramuma atração aparte, e também foram fotografadasnosmais variados ângulos. Chegaram a transportar 16milpessoasporhoranesteprimeirodia.

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AproduçãodeKurtKlagsbrunn,noquetangeaosanos1940,excedeemmuito, tantoemquantidade,quantoemvariedade,adosfotógrafosnorte-americanosThomasD.McavoyeHartPrestonque,comfreqüência,serviramàLife,noBrasil(esteúltimoéresponsávelpelaantológicamatériacomabailarinaecoreógrafaErosVo-lúsia,capadaediçãode22/09/1941),bemcomoaquelesque,aserviçodoOIAA,comoKidder-Smith(encarre-gado,em1942,deproduzirmaterialparaumaexposiçãodearquiteturabrasileiraantigaemoderna,noMoMAdeNovaYork),GenevieveNaylor(queresidenoRiodeJa-neiroentre1940e1942,comoembaixatrizda“boavon-tade”)eAlanFisher(querecebeuamissãoderegistrarostrabalhosdaFundaçãoRockfellernaAmazônia,tambémem1942)realizaramnopaísnomesmoperíodo.

MasdetodoomaterialqueKlagsbrunnprodu-ziunosprimeiros anosde sua carreira, omais pessoale raro diz respeito aomovimento estudantil. TrabalhaseguidamenteparaaUniãoNacionaldosEstudantes,aFederaçãoAtléticaEstudantileosdiretóriosacadêmicosdaEscolaNacionaldeBelasArteseFaculdadeNacionaldeDireito.Desdejulhode1942,omovimentoestudan-tilanti-fascistanoBrasilvinhaganhandoforça,promo-vendopasseatasnoRiodeJaneiroeSãoPaulo.Nomêsseguinte, as organizações estudantis tomam posse doClubeGermânia,naPraiadoFlamengo,noRiodeJanei-ro,quesetornasededaUNEedoDCEdaUniversidadedoBrasil.Éprovávelqueofotógrafotenhapercebidoaocupação do clube alemãopelos estudantes brasileiros

comouma revanche simbólicadaocupaçãodaÁustriapelo regimenazista.Torna-seumafiguraconhecidadetodosnasededaUNE,comoatestaumanotapublicadanoperiódicodaentidade,emnovembrode1942,sobotítulo“Kurt,ofotógrafoeestudanteaustríacoanti-nazis-ta”:“KurtéumbomamigonossoepassaboapartedeseutemponasededaUNE.TemacompanhadotodososmovimentosuniversitáriosdoDistritoFederal–équasemembrohonoráriodaUNE.”Eoprópriofotógrafoseexplicava:“Souaustríaco,vocêssabem.OnazismomeexpulsoudaÁustria e eu vimpara oBrasil.Encontreimuitospatríciosaqui efizumaporçãode relaçõesen-treosbrasileiros.Osestudantesentão,têmsidoosmeusmelhores amigos”.Emseuarquivoencontram-semaisdeumacentenadeflagrantesdasmanifestaçõesorgani-zadaspelosestudantesemproldaentradadoBrasilnaguerraeemapoioaospracinhasbrasileiros.(FIGURA5)Duascartasdeapresentação,de1945,atestamqueKurtera“fotografooficial”daComissãodeAjudaàFEBdaLiga deDefesaNacional e daComissãoEstudantil deAjuda à FEB. Seu engajamento levou-o a permanecerao lado dos estudantes nosmovimentos pela redemo-cratizaçãodoBrasil(asmanifestaçõespelaAnistiaepelaConstituinte),produzindoemvirtudedissoumregistrohistóricovalioso.(FIGURA6)

FIGURA5JantardeconfraternizaçãooferecidopeloDepartamentoJuvenildaLigadeDefesaNacional,em1943,nosalãonobredasededaUNE,aosdelegadosbrasileirosnaConferênciadaJuventudepelaVitória,quehaviasidorealizadaemMontevidéu.Amesaem“V”simbo-lizaaexpectativadevitórianaguerra.FotodeKurtKlagsbrunn,publicadanarevistaMovimento,órgãooficialdaUniãoNacional

dosEstudantes.

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FIGURA6EstudantesdaEscolaNacionaldeBelas-ArtespintamcartazesemfavordaAnistiadospresospolíticosdoEstadoNovo,em1945.

DuranteosanosdoGovernoDutra,otrabalhocomorepórter fotográficodogrupoTime/Lifepermiteque realize várias viagenspeloBrasil e também lhedáacessoaosbastidoresdapolítica,muitasvezesvedadosa fotógrafos independentes ou de veículosmenos im-portantes.Oponto alto destas reportagenspolíticas é,seguramente,aConferênciadePetrópolis,em1947,queresultounaassinaturadoTratadoInteramericanodeAs-sistênciaRecíproca(TIAR),quandoaGuerraFriatoma-vacorpoeogovernobrasileirovoltariaacolocarParti-doComunista na ilegalidade.KurtKlagsbrunn foi umobservadorprivilegiadodasnegociaçõesemtornodestedocumento,fotografandotantooseventosoficiaiscomoosbastidoresdaConferência.Suasnotaseasdarepórterqueoacompanhou,ConnieBurwell,sãoumprecisotes-temunhoadicionalacercadoquesepassouali.

AConferênciadeveriateracontecidonoRiodeJaneiro,masogovernoDutra,comointuitodecompen-sar as perdas doQuitandinha emvirtudedaproibiçãodojogo,optouporrealizarláoevento.MasoHotelnãodispunhadecobertoressuficientesemuitosdiplomatas,hospedadosdesdeavéspera,numanoitedefrio inten-so,tiveramqueusartoalhasdebanhocomocobertoressuplementares.Segundorelatosdos jornalistas,este tó-pico,eopreçodouísquenobardohotel(U$2.50),fo-ramostemasmaisdebatidosnasprimeiras18horasdenegociações.Em solidariedade aos colegas, o chefe dadelegaçãodeHondurasJuanCáceres,sentou-senobarapós a sessãode abertura, com suaprópria garrafa de

uísque,distribuindogenerosasdoses aosdemaisdiplo-matas. (BURWELL1947)Comogestodeboavontadee panamericanismo explícito, a agência de publicidadenorte-americana McCann Erickson montou um standdaCoca-Colaparamatara sededosdelegadosnos in-tervalos das discussões.Um contraponto ao cafezinhobrasileiroqueeraservidooitovezespordianoplenáriodaconferência(Figura7)

Figura7StanddaCoca-Colaserverefrigeranteadiplomatasemilitarespre-sentesàConferênciaInteramericanapelaManutençãodaPazeda

SegurançanoContinente.HotelQuitandinha,Petrópolis,1947.

Em1947,KurtmudaseuestúdioparaoEdifícioSãoBorja, naAvenidaRioBranco (ondepermaneceráaté 1969, quando abandona parcialmente sua carreiraprofissionalemvirtudedeumAVC).Tornava-se,assim,vizinhodeinúmerosestúdiosdefotógrafos imigrantes,comoEricHess,CarlosMoskovicseSaschaHarnisch,quehaviamseinstaladonaregiãodaCinelândia.Aestaaltura, já trabalha com vários assistentes. Entre estes,umasedestacaapontodetornar-sesuasócia.ÉJudithMunk,refugiadahúngara,quechegaaoBrasilem1949.PormeiodeumacunhadaquetrabalhavanaempresadecosméticoseembelezamentofemininoElisabethArden,soubequeofotógrafodacompanhianecessitavadeumalaboratorista.Judithhaviaseaperfeiçoadonafotografiaenomanejodasquímicasdolaboratórioduranteaguerra,quando trabalhou falsificandopassaportespara a resis-tênciahúngara.Logodeuumjeitodepedirumamáquinafotográficaemprestadaaopatrãoecomeçoutambémafotografar.Jeitosacomascrianças,culta,fluenteemale-mãoefrancês,rapidamenteconstituiusuaprópriaclien-

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telaetornou-sesóciadeKurtpelosvinteanosseguintes.Ashabilidadesde relaçõespúblicasde Juditheram tãoeficazesque,graçasaosconhecimentosqueadquirefo-tografandoeventospolíticos–oprópriopresidenteGe-túlioVargasconstantementerequeriasuapresençajuntoaelenascerimôniasoficiais–conseguetirarospaisdaHungria,em1952.(MUNK2007:67-75)

Pode tersidoporsugestãodeJudithqueKurtrealizaumensaiosobreaIlhadasFlores,nabaíadaGua-nabara, local de “quarentena” dos refugiados onde elahaviavividoporoitodias.AIlhadasFloresera,desdeoúltimoquarteldoséculoXIX,oprincipallocaldequa-rentenadosimigranteseuropeusnoRiodeJaneiro.Alipermaneciamaté receberemautorizaçãoparaentrarnacidade.Nosanosqueseseguiramàguerra,amaioriadosrefugiadosécompostaporimigrantesdaEuropaOrien-talqueseopunhamaocomunismo.17OensaiodeKurté um raríssimo ebelo registrodosprimeiros dias des-tecontatoinicialdosimigranteseuropeuscomoBrasil.Umafotografiaemparticularparecetransporparaumacenaidílicaochoqueeasensaçãodeestarumtantoforadomundodos jovens refugiados. (Figura8).Recriaçãoheterotópica na qual, em torno da sanfona, como nasnoitesprimaverisdaEuropaOriental,cançõesqueserãoembreveesquecidassãoemolduradasporexóticaspal-meirastropicais.

FIGURA8Quarentena de imigrantes na Ilha das Flores. Rio de Janeiro, 1949.

17Duranteaditaduramilitarqueseseguiuaogolpede1964,aIlhadasFloresfoiutilizadacomoprisãopolíticaelocaldetortura.Láesti-veramencarcerados,pormaisdeumano,entreoutros,osobrinhodeKurtKlagsbrunn,VictorHugoKlagsbrunnesuaesposaMartaMariaKlagsbrunn,sobcujaguardaestáoacervodofotógrafo.

Os fotógrafos franceses que se estabeleceramnoBrasilnosanosdaguerra–cujosexpoentessãoJeanManzon,MarcelGautherotePierreVerger– jáchega-ramprofissionalizados,comexperiênciapréviaemcam-pos como o fotojornalismo e a fotografia etnográfica.Sua condição de “aliados” na guerra, sua latinidade e“simpatia”,eapenetraçãodaculturafrancesanaselitesbrasileiras, certamente contribuírampara uma inserçãoprofissionalmaisqualificadapoucotempoapóssuache-gada.Ademais–eesteéofatomaiscurioso–tiveramsuavidaeobraobjetodeseguidasrevisõeshistóricaseediçõescuidadosasnosúltimosanos.

AtrajetóriadeKurtKlagsbrunn,emsuaprimeiradécadadeatividadeprofissionalnoBrasil,ajudaailumi-narumasériedeoutrospercursos,igualmenterelevantesparaahistóriadafotografiabrasileira,emparticularnasdécadasde1930e1940.Emquantidademuitomaior,osfotógrafosoriundosdaEuropaCentralraramenteexer-ciamessaprofissãoemseuspaísesdeorigem.Banidosdaterranatal, falando línguasquepoucoscompreendiam,seuúnicopatrimônioeraoolharqueformaramna‘novaescolafotográfica’.18TendochegadoacidadescomoRioeSãoPaulo,ondeosestúdiosderetratosestavambemestabelecidosdesdeoséculoXIX,sãoobrigadosaseau-to-inventarprofissionalmente,ocupandoespaçosvazioscomofotógrafospúblicos(prestandoserviçosdepropa-gandaedocumentaçãoparaórgãosgovernamentaisdetodanatureza), comerciais (produzindo aprimeiras fo-tografiaspublicitáriasdequalidadenopaís)e,comonocaso,deKurtKlagsbrunn,tambémafotografia“social”,conferindotomde“reportagem”aregistrosdecasamen-tos,aniversáriosefestaschiquesnasresidênciasdasfamí-liasabastadas.Ascircunstânciasdaguerraosinduziramamanterumperfilmaisbaixo,evitandoaexposiçãopúbli-caquequasesemprelhescausavaconstrangimento.EricHess,porexemplo, lembra-sedesituaçõesemquesuachegadaaumacidadedointerioreranoticiadanojornallocalcomosefosseavisitadoprópriobraçodireitodeHitler(olídernazista,Rudolf Hess).Emlargamedida,ascondiçõesemquetrabalharamnestesprimeirosanoseaextremaheterogeneidadedesuasobras–típicasdeuma “viração” de imigrante – contribuíram emmuitoparaoseuposterior“esquecimento”.Hoje,noentanto,essadiversidade,quearquivodeKurtKlagsbrunnreflete,éoquelhesconfereinteresseevalorhistóricosingulares.

Em1950,comocorrespondentedaTime/Life,KurtcobreaCopadoMundonoRiodeJaneiro.Foto-

18Háumaanedotaexemplararespeitodeumdestesrefugiados,queteriaganhadosuaLeicaemumjogodecartasabordodonavioemviajava.EmbarcousapateironaAlemanhaedesembarcoufotógrafonoBrasil.

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grafaaconcentraçãodeváriasequipeseestápresentenogramadodoMaracanãemtodososjogosdoquadrangu-lardecisivo,inclusivenaderrotadoBrasildiantedoUru-guai.FindaaCopa,viajadefériasparaosEstadosUni-dos,deondesóretornaránoanoseguinte,passandoporCuba,EquadorePeru.Éaprimeiraviagemaoexterior,dezanosapóssuachegadaaoRiodeJaneiro.Osanosdaguerraficaramparatrás.ÉjácomolhosimpregnadosdeBrasil que este refugiado austríaco irá fotografarossignosdoprogressonosarranha-céusnova-iorquinoseaculturamestiçadasnaçõeslatino-americanas.Masistojáéoutrahistória.

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Recebido:02/04/2013Aprovado:30/04/2013