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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
CESÁREAS ELETIVAS OU PARTOS VIOLENTOS? PESQUISA
COMPARADA SOBRE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NA ARGENTINA, NO
BRASIL E NO URUGUAI
Maria Josefina Mastropaolo1
Resumo: A violência obstétrica, como uma forma da violência que afeta as mulheres, é imanente às
relações que, na sociedade capitalista, se estabelecem em torno do cuidado da mulher durante a
gravidez, o parto e o puerpério. As organizações e movimentos de mulheres vêm, nas últimas décadas,
fazendo esforços para visibilizar essa violência e para tirar o véu de naturalização que a encobre,
influindo na determinação dos Estados em adotar iniciativas tendentes a combatê-la. O artigo recolhe
os avanços da pesquisa de pós-doutorado que consiste num estudo comparado entre Brasil, Argentina
e Uruguai sobre o estado da arte da pesquisa acadêmica sobre violência obstétrica, identificando as
principais tendências do debate e as iniciativas estatais. O artigo aborda também o campo das
legislações envolvidas, a implementação de políticas públicas tendentes a combater a violência
obstétrica, bem como o reconhecimento e a caracterização dos movimentos de mulheres que se
mobilizam em torno desta temática, seus principais debates e ações desenvolvidas.
Palavras-chave: Violência Obstétrica, Políticas Públicas, Mulheres, Corpo, Saúde Pública
Violência obstétrica como fenômeno social
Define-se a violência obstétrica como todas as ações, proposições, ideias que ferem a autonomia
da mulher na compreensão e o controle dos seus processos fisiológicos e emocionais, em relação com
a sua sexualidade e sua reprodução.
A violência obstétrica supõe uma perda de autonomia por parte das mulheres relativa à
compreensão e à experiência da gravidez e do parto e da maternidade em geral e dos processos de
abortamento. Supõe e, ao mesmo tempo tem como resultado, um estranhamento por parte da mulher,
do seu próprio corpo e dos processos fisiológicos que fazem parte da sua natureza.
Segundo declaração da OMS de 2014, o “tratamento desrespeitoso e ofensivo” às mulheres
durante o parto, nos centros de saúde, é muito frequente, mas não “há um consenso internacional
sobre como definir e medir cientificamente o maltrato ou a falta de respeito. Por conseguinte se
desconhecem sua prevalência e impacto na saúde, o bem-estar e eleições das mulheres” (OMS, 2014).
Contudo, e possivelmente porque não é propriamente necessário ter evidência científica para entender
que a violência sempre e em qualquer instância tem efeitos nocivos sobre as pessoas, esse organismo
elabora uma série de recomendações aos governos, das quais se pode derivar certa ideia do que
entende por violência obstétrica, são estes: falta de acesso a serviços de atenção materna que sejam
1 Professora Substituta na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil.
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respeitosos, competentes e compreensivos, a falta de um acompanhante escolhido pela mulher, a
imobilidade, a proibição de ingerir alimentos e líquidos durante o trabalho de parto, a falta de
confidencialidade e de privacidade e a falta de informação sobre as intervenções que lhe serão
praticadas.
As organizações de mulheres, grupos e redes sociais2 (onde grande parte do debate e da luta
contra a violência obstétrica se expressam), inclusive iniciativas estatais, caracterizam a violência
obstétrica envolvendo também outros elementos. Uma cartilha da Defensoria Pública do Estado de
São Paulo define:
A violência obstétrica existe e caracteriza-se pela apropriação do corpo e processos
reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, a través do tratamento
desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, causando a
perda de autonomia e capacidade de decidir livremente, sobre seus corpos e sexualidade,
impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres (DEFENSORIA PÚBLICA
DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2013).
Registre-se que o ponto de partida desta discussão é a busca pelo reconhecimento da violência
obstétrica como fenômeno social efetivamente existente e sobre o fato de que a sua ocorrência não é
isolada, nem episódica, mas que faz parte das formas naturalizadas de atenção e assistência às
mulheres durante a gravidez, o parto, o puerpério e o abortamento. A atenção obstétrica no nosso
tempo histórico é violenta, sempre – salvo que deliberadamente se opere contra os usos e costumes –
porque opera a partir de formas que, ainda não parecendo violentas, vão socavando a autonomia da
mulher e reservam para o âmbito médico e institucional o controle da relação das mulheres com seus
corpos. Existe, neste sentido, um protagonismo da instituição e seus agentes frente a uma
desvalorização do sujeito “mulher”, seu autoconhecimento e inclusive, seu poder de decisão sobre o
próprio corpo.
Analisando a produção acadêmica e científica sobre violência obstétrica, nos três países objeto
desta pesquisa, chama a atenção a quantidade de estudos de casos, bem delimitados territorialmente
e circunscritos a instituições específicas, ou pesquisas estatísticas que definem perfis sanitários. Todas
elas buscam caracterizar o fenômeno, expôr seus traços, mostrar a sua prevalência, como também se
constatam pesquisas que buscam compreender a perspectiva das mulheres envolvidas nessa violência,
o que elas pensam, o que sentem, já se trate de usuárias dos serviços ou de profissionais que trabalham
nas instituições de saúde. Esse perfil exploratório do fenômeno apresentado pela maioria das
2 Esta pesquisa não se propôs a indagar sobre o ativismo feminista virtual que busca problematizar e lutar contra
a violência obstétrica, mas, sem dúvida, é uma instância de circulação de ideias e debates privilegiada neste momento
histórico, inclusive geradora de grupos e movimentos que a partir dessa instância se organizam para realizar ações não
virtuais.
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pesquisas, esse esforço por recolher práticas e relações naturalizadas e denunciar seu caráter violento,
se condiz com o momento que os movimentos de mulheres enfrentam na luta política por tornar a
violência obstétrica como um tipo de violência reconhecida pelas mulheres que a sofrem e pelos
estados, as corporações e os indivíduos que a perpetram.
São numerosos os exemplos com os quais se visualiza, de forma muito concreta, a violência
obstétrica: formas de tratamento que inferiorizam as mulheres, que dão nomes infantilizados e
diminutivos, ou que fazem graça a partir de características físicas ou atos da mulher, como evacuar,
gritar, ter medo. As mulheres denunciam ameaças e falas irônicas, ou ainda, realização de
procedimentos dolorosos, humilhantes e desnecessários como a raspagem de pelos pubianos, a
lavagem intestinal, a posição ginecológica de pernas abertas, o impedimento de se locomover e de se
comunicar com o “mundo exterior”. Há que mencionar a realização de procedimentos sem explicá-
los e sem informar seu objetivo, o submetimento das mulheres a sucessivos exames de toque,
especialmente por vários profissionais, mesmo que seja para ensino dos alunos, fazer procedimentos
quando desnecessários, como administração de hormônios para acelerar o trabalho de parto, fazer
episiotomia, manobras de Kristeller, cesarianas desnecessárias e gerar convencimento da necessidade
dessas práticas sob argumentos falsos (cordão enrolado, tamanho do bebê, bacia pequena), submeter
bebês saudáveis a procedimentos de rotina (como administração de nitrato de prata, aspiração) separar
a mulher do bebê, impedindo, com isso, o início da amamentação ainda sob vigência do reflexo de
sucção. (Duarte, 2015; Parto do Principio, 2012; Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2013).
Um dos indicadores de violência obstétrica mais facilmente medíveis, já que consegue ser
registrado nas estatísticas, é a taxa de cesarianas em cada um dos países. Desde a década de 1980 a
Organização Mundial da Saúde recomenda que em torno de 10 a 15 % dos nascimentos precisarão
ser resolvidos de forma cirúrgica para evitar a morbimortalidade materna e neonatal, para além dessa
porcentagem não se reconhecem melhoras nos resultados perinatais (OMS, 2015), pelo contrário, em
casos desnecessários, a utilização da intervenção traz mais riscos para a saúde da mulher e do bebê.
Na América Latina, as taxas de cesárea são particularmente altas em relação ao resto das regiões
conforme os limites marcados pela OMS, sendo o Brasil o país com a taxa mais alta (56%, sendo que
a media dos hospitais particulares chega a 80%). Nos países da região, ainda que estes não estejam
consagrados nos primeiros lugares, os dados mostram que as taxas vêm crescendo. Na Argentina, e
no Uruguai as taxas rondam em torno de 30%, aumentando claramente no setor privado. (Coppola,
2015; Carbajal, 2001)
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A “epidemia” de cesáreas tem se tornado um problema de saúde pública, por um lado
aumentam a morbimortalidade materna e neonatal, mas por outro representam um altíssimo custo.
Na Argentina, segundo dados da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia de Buenos Aires, são
praticadas 74.256 cesáreas desnecessárias anuais, que significam um gasto desnecessário para o
sistema de saúde de 37 milhões de dólares (Carbajal, 2001).
O controle do corpo das mulheres e da subjetividade feminina.
Há um certo consenso ao interior dos debates do feminismo sobre o fato de que, se bem o
patriarcado existe desde tempos bem anteriores a nossa era, a partir do desenvolvimento do conjunto:
modo de produção capitalista – sociedade burguesa – estado moderno, formas de controle do corpo
da mulher e da subjetividade feminina se afirmaram desenvolvendo as especificidades com que hoje
as conhecemos.
O que do feminino, da nossa experiência histórica, do nosso acumulo foi atacado, mutilado,
cerceado? Quais as memórias e as habilidades que as mulheres precisamos deixar guardadas nas
sombras que as luzes projetavam? Sobre que aspectos do feminino as elites projetaram seus medos
mais oprobriosos?
Na pesquisa que dá origem ao livro Calibán e a bruxa, Frederici (2015), se propõe a
compreender o processo de perseguição e genocídio de mulheres, na sua maioria camponesas e muito
pobres, durante o período de tempo que vai desde meados do século XVI até meados do século XVIII.
Esse processo, que ficou conhecido como Caça às bruxas, a pesar da sua relevância no
desenvolvimento da sociedade capitalista e na formação do operariado moderno, é relativizada pela
historiografia como sendo um episódio menor, sem maiores impactos, sustenta a autora. Contudo ela
defende que, junto com os processos de privatização da terra, aumento dos impostos, e da intervenção
progressiva do estado em diferentes aspectos da vida social, faz parte dos violentos processos,
perpetrados pelas aristocracias latifundiárias e os estados, e que buscaram a desintegração das
comunidades camponesas, e tributaram, por tanto, à formação das classes trabalhadoras urbanas, nos
marcos da acumulação primitiva de capital.
A caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens, inculcou nos homens o
medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas, crenças e sujeitos sociais
cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capitalista, redefinindo assim
os principais elementos da reprodução social. Neste sentido, de um modo similar ao ataque
contemporâneo à “cultura popular” e o “Grande Internamento” de pobres e vagabundos em
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hospícios em workhouses, a caça às bruxas foi um elemento essencial da acumulação
primitiva e da “transição” ao capitalismo. (FEDERICI, 2015, p.264)3
A modernidade ilustrada e o estado de direito buscaram retirar da sua carga genética os
massacres de grandes proporções nos quais se fundam: tanto a colonização da América com a
escravização de povos africanos a ela atrelada, quanto a caça às bruxas. A autora contesta a ideia de
que a caça às bruxas possa ser considerada como parte dos últimos estertores do mundo feudal em
decadência. Os primeiros julgamentos de mulheres pelo crime de bruxaria, tiveram lugar só em
meados do século XV, no marco da crise do sistema feudal, num contexto de intensas revoltas
populares e dizimação da população por epidemias. Nessas circunstâncias também se desenvolveram
as primeiras produções de uma “doutrina sobre a bruxaria, na qual a feitiçaria foi declarada uma forma
de heresia e o crime máximo contra Deus, a Natureza e o Estado” (Idem, p.267, grifos nossos).
Tanto o poder religioso, quer das igrejas protestantes, quer da católica, quanto os poderes
seculares estiveram envolvidos no processo de caça às mulheres e, se bem as acusações foram
elaboradas a partir de crimes que perpetravam violações a preceptos religiosos4, a grande maioria dos
julgamentos foram produzidos pelas cortes seculares.
Há indícios que permitem construir a ideia de que a grande perseguição de mulheres tenha
sido um projeto das elites europeias, projetada e impulsionada de forma relativamente centralizada e
como um processo de cima para baixo; um deles, por exemplo, são as similitudes que guardam os
registros das declarações das mulheres nos julgamentos, ainda que feitos em territórios muito
distantes e diferentes do ponto de vista dos costumes dos povos locais.
A perseguição das mulheres na Europa foi promovida, sustenta Federici (2015), por uma
verdadeira campanha “multimídia com o objetivo de gerar uma psicose em massa entre a população.
Uma das primeiras tarefas da imprensa foi alertar o publico sobre os perigos que as bruxas
representavam, por meio de panfletos que publicizavam os julgamentos mais famosos e os detalhes
de seus feitos mais atrozes” (Idem, p.271). As primeiras descrições sobre o sabá também fazem parte
dessa construção.
Essa campanha foi construindo a noção de bruxa, fazendo detalhadas caracterizações de seus
traços e práticas. Entre outras coisas elas eram acusadas de venderem o corpo e a alma ao demônio,
de assassinar crianças e utilizar a carne e o sangue para fazer poções, de causar a ruína dos vizinhos
3 Todas as traduções de Calibán e a bruxa, salvo outra indicação, são do Coletivo Sycorax, numa versão on line
disponível em: http://coletivosycorax.org/capitulo-iv/#A_epoca_de_queima_de_bruxas_e_a_iniciativa_estatal. 4 É importante destacar que se trata de um tempo histórico em que a moral secular não se distinguia ainda da
moral religiosa.
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destruindo cultivos e trazendo desastres climáticos. Nas descrições que se faziam sobre as atividades
das bruxas, estas se reuniam em florestas, ou terrenos afastados onde preparavam poções, praticavam
atos sexuais ominosos, faziam voos noturnos, e se relacionavam com o demônio, geralmente
representado na figura de um cabra macho.
Até os inícios da modernidade, as questões relativas ao controle da sexualidade, da
reprodução, seja por contracepção ou por abortos, e da cura das enfermidades eram exclusivamente
femininas. Na hora de parir, as mulheres eram assistidas por suas parentes e mulheres próximas e por
parteiras das comunidades. As mulheres sabiam parir e sabiam também ajudar outras mulheres a
parirem. Especialmente entre as classes baixas, as mulheres foram as primeiras a desenvolver
conhecimentos farmacopeicos para curar, para evitar a concepção e para fazer abortos, já que tinham
controle das ervas e os segredos do seu uso eram transmitidos de umas a outras e
intergeracionalmente. Elas foram, durante séculos, nos territórios que hoje conformam a Europa (e
também em outras latitudes) as que cuidaram da saúde das classes subalternas. (Federici, 2015;
Ehrenreich e English, 1981)
Esses saberes, produto da experiência, eram a fonte de uma profunda autonomia no uso do
corpo, e eram também transmitidos na experiência e não estavam objetivados sob forma escrita.
Assim, o saber estava vivo dentro do corpo das mulheres que o cultivavam. Portanto, não eram
saberes custodiados pela igreja nos mosteiros e eram alheios às instituições que concentravam o
poder, desta e dos estados. Para controlá-los desenvolveram a estratégia de controlar o próprio corpo
das mulheres sábias. Nas narrativas hegemônicas sobre a gênese e o desenvolvimento da ciência
médica moderna, postula-se a ideia de que esta viria a superar o conhecimento assistemático, a magia
e a superstição; mas, constatando historicamente, verifica-se um violento processo de repressão e de
eliminação das mulheres. A caça às bruxas dizimou a população feminina através de estratégias
terroristas, e, chama profundamente a atenção que, foi mais difundida e mais exitosa nas regiões onde
o nascente capitalismo estava mais afiançado, e, portanto, os elos comunitários mais debilitados.
Federici(2015) indica a coincidência de espaço e tempo entre a guerra contra as mulheres e a gênese
do capitalismo, e ressalta a importância relativa da caça às bruxas no processo de acumulação
originária de capital, mostrando a perda de autonomia que as mulheres sofreram como triste tributo
para entrar na “idade da razão”.
Os poderes de sanação que as mulheres tinham eram atribuídos aos domínios mágicos e às
superstições, lógicas e raciocínios que a incipiente sociedade burguesa não podia tolerar porque
fugiam do controle da sua racionalidade. Para a nova organização do trabalho capitalista, a magia era
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um obstáculo no domínio que pretendia realizar da natureza, dos homens e das mulheres assim como
para a racionalização do trabalho. Reorganizou-se assim uma “nova ordem patriarcal em que o corpo
das mulheres, seu trabalho, seus poderes sexuais e reprodutivos foram postos sob o controle do estado
e transformados em recursos do processo econômico” (Federici, 2015, p.275) [tr. nossa].
Portanto, sustenta a autora, na perseguição às “bruxas” havia menos interesse no castigo de
uma transgressão específica do que na eliminação de formas generalizadas intoleráveis do
comportamento feminino e que deviam ser construídos como abomináveis perante os olhos da
população. Ao mesmo tempo, funcionou como patamar a partir do qual poderia ser perseguida uma
ampla série de crenças e práticas populares, tornando-se, assim, numa ferramenta contra a resistência
popular à reestruturação econômica e social.
Assim, o controle sobre o corpo e a subjetividade das mulheres, não foi apenas um ato
cometido por alguém ou por uma instituição, num momento pontual, ou em muitos, mas um modo5
de ser na modernidade burguesa, uma dinâmica de violência que funda e atualiza permanentemente
a relação das mulheres com o estado moderno.
Os estados, as leis e as possibilidades de viver uma vida menos violenta
Apesar dessas constatações, no esforço por construir condições de viver uma vida cada vez
mais livre de violências, as mulheres, através de sus lutas, de suas organizações, se propuseram a
construir inclusive por dentro dos mecanismos e ferramentas dos estados nacionais e suas instâncias
Internacionais.
Os três países selecionados para a pesquisa ratificaram as duas convenções internacionais de
maior relevância no que tange à legislação relativa à defesa dos direitos das mulheres; trata-se da
“Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher” (CEDAW)6 e
a “Convenção Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher”,
conhecida como Convenção de Belém do Pará. Ambas são instrumentos jurídicos internacionais
vinculantes, o que significa que os Estados assinantes ficam comprometidos a garantir os direitos que
nelas se especificam.
A CEDAW foi adotada pela Assembleia das Nações Unidas em dezembro de 1979 e entrou
em vigência em 1981. Uruguai ratificou-a em 1981, o Brasil em 1984 e a Argentina em 1985. Em
5 A discussão sobre as possibilidades e as contradições de construir condições de viver uma vida sem violência
ao interior da forma estatal que se nos apresenta como ontologicamente misógina, é extremamente necessária, e nos
propomos a desenvolvê-la no médio prazo, contudo, excede os limites deste trabalho. 6 Convention on the Elimination of all forms of Discrimination Against Women (CEDAW)
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1999 adotou-se o Protocolo Facultativo da CEDAW que estabelece, vinte anos após adotada a
Convenção, mecanismos mínimos de exigibilidade. A Argentina ratificou o protocolo em 2000, o
Uruguai o fez em 2001 e o Brasil em 2002.
A Convenção de Belém do Pará foi adotada pela Organização dos Estados Americanos (OEA)
em 1994. Foi ratificada pelo Brasil em 1995 enquanto Argentina e Uruguai o fizeram em 1996.
Tanto os informes do Comitê de Acompanhamento da CEDAW, quanto os informes
alternativos das diferentes organizações que conformam os movimentos de mulheres nos três países
– conhecidos como “informe sombra” - quanto o mecanismo de seguimento da Convenção de Belém
do Pará ressaltam os deficit que ainda existem com relação à atenção da saúde das mulheres com
especial destaque para a mortalidade materna.
Nos três países verifica-se a existência de órgãos encarregados de levar adiante as políticas de
igualdade de gênero e as ações de luta contra a violência. Na Argentina desde 1992 funciona o
Consejo Nacional de la Mujer, hoje Consejo Nacional de las Mujeres (CNM), no Brasil existe desde
2003 a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), que chegou a se tornar Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos em 2016 e foi rapidamente transformado em
Secretaria Especial de política para as mulheres, e no Uruguai desde 2005 contam com o Instituto
Nacional de las Mujeres (INMUJERES).
O último Informe sombra da Argentina, de 2010, destaca que o CNM, integrante do Ministerio
de Desarrollo Social de la Nación, é o responsável principal para direcionar as ações necessárias para
tornar efetivos os direitos das mulheres e carece de orçamento, de equipes técnicas e de status
hierárquico para poder desenvolver as ações necessárias.
No Brasil, a SPM teve até outubro de 2015 status ministerial. Junto com a Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria de Direitos Humanos, foi recentemente
incorporada ao Ministério de Cidadania o que implica um recorte do orçamento dedicado a cada uma
delas, perdendo importantes graus de autonomia.
Com relação ao Uruguai, o último Informe sombra de 2008 também chama a atenção sobre o
fato de que o INMUJERES, dependente do Ministerio de Desarrollo Social, tem hierarquia e
orçamento deficitários para levar adiante as medidas necessárias para atingir a igualdade de gênero.
Verifica-se, portanto, uma constante nos três países a respeito do lugar residual dos órgãos
governamentais para tornar efetiva a garantia de direitos para as mulheres ainda que estejam
garantidos na legislação.
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A pesar da precariedade dos avanços institucionais, os movimentos de mulheres vão
avançando em paulatinas conquistas, com diferencias substantivas em cada um dos países.
Um mapeamento inicial – que possivelmente seja pouco exaustivo – dos avanços nas respostas
estatais em cada um dos países, sejam respostas legislativas ou políticas públicas de atenção da saúde
ou de prevenção da violência, mostra que as mulheres vão, paulatinamente, conseguindo conquistar
alguns direitos que podem funcionar como ferramentas para avançar em direção a uma vida com
graus menores de violência.
Na Argentina foi sancionada e promulgada, em 2004, a lei do Parto Humanizado, número
25.929, que só veio a ser regulamentada em 2015 a través do decreto 2035/2015. Esta é uma
normativa de alcance nacional, que tanto se aplica às práticas acontecidas no âmbito das instituições
públicas quanto das privadas. Se bem a lei não propõe uma definição de violência obstétrica faz uma
lista das situações que a lei busca prevenir.
Encontra-se uma definição de violência obstétrica na lei 26.485, sancionada em 2009, de
Protección integral para prevenir sancionar y erradicar la violencia contra las mujeres en el ámbito
de las relaciones interpersonales, segundo a qual, é “aquella que ejerce el personal de salud sobre el
cuerpo y los procesos reproductivos de las mujeres, expresada en el trato deshumanizado, abuso de
medicalización y patologización de los procesos naturales”.
O Ministerio de Desarrollo Social de la Nación, a través do Consejo Nacional de las Mujeres,
disponibiliza a línea telefônica gratuita 144, para denuncia de violência contra as mulheres. Entre as
formas de violência que podem ser denunciadas contempla-se a violência contra a liberdade
reprodutiva e obstétrica.
A organização feminista Las Casildas lançou em colaboração com o Consejo Nacional de las
Mujeres, em 2015 o Observatório de Violência Obstétrica de Argentina. Este se propõe a criar uma
rede nacional que permita tanto coletar e sistematizar dados estatísticos, acompanhar denúncias,
monitorar as políticas públicas, os projetos legislativos, e o cumprimento das leis. Também elaborar
recomendações a organismos e instituições, e criar espaços de difusão e debates com profissionais
envolvidos e com a cidadania em geral. Ao mesmo tempo pretende promover pesquisas, apoiar e
difundir as ações de outros coletivos e articular ações com outros observatórios nacionais e
internacionais7.
Na cidade de Rosário o Observatorio de salud, género y derechos humanos, elaborou em 2003
um informe de direitos humanos na atenção da saúde reprodutiva em hospitais públicos que chamou
7 Cfr. http://lascasildas.com.ar/
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Con todo el aire, o informe ganhou uma segunda versão em 2008, chamado Con todo el aire/2. A
Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de Rosário, acabou de criar, não sem mediação de
uma polêmica que chegou a se expressar como discussão ao interior da Academia Argentina de
Ciências, uma disciplina eletiva que chama El aborto como problema de salud, e que começará a ser
oferecida a partir do segundo semestre de 2017.
Em junho deste ano de 2017 houve a primeira sentença num processo judiciário de caráter
civil, por violência obstétrica, em que tanto a mulher quanto a filha demandaram o seguro de saúde,
a clínica, o obstetra e a neonatologista por danos morais, o que senta um precedente histórico, no
marco das lutas contra a violência obstétrica.
No Brasil, desde abril de 2005, está em vigência a lei federal nº 11.108, conhecida como “lei
do acompanhante”, esta foi regulamentada pelo Ministério da Saúde no final de 2005, e em 2008
pelas Agências Nacionais de Saúde Suplementar (ANS) e de Vigilância Sanitária (ANVISA). A lei
prevê garantir a presença de um/a acompanhante da escolha da mulher durante todo o trabalho de
parto, parto e pós-parto imediato, entendendo-se por este último os dez primeiros dias após o parto.
Também estão em vigência 11 leis que garantem às mulheres o direito a ter uma doula durante
o trabalho de parto, parto e pós-parto, nenhuma delas de caráter federal. Tem duas de ingerência
estadual: a lei 10.648/2016 na Paraíba e lei estadual 7314/2016 no Rio de Janeiro. As restantes
correspondem a leis municipais, na cidade de São Paulo, lei 16 602/2016; a lei distrital 5534/2015
com ingerência no Distrito Federal; lei 13080 em João Pessoa; lei 4727/2016 na cidade de Patos na
Paraíba; lei 7946/2014 em Blumenau; lei 21/2017 em Americana, lei 8490/2015 em Jundiaí, ambas
do estado de São Paulo; lei 56/2016 em Cascavel na Bahia e a lei 10914 em Belo Horizonte.
No estado de Santa Catarina foi aprovada em janeiro de 2017 a lei estadual 17.097 que dispõe
sobre a implantação de medidas de informação e proteção à gestante e parturiente contra a violência
obstétrica. Também se tramita na Câmara Federal de deputados, desde 2014, o projeto de lei nº
7633/2014, lei de parto humanizado.
No Uruguai, as mulheres contam desde desde 2001 com a lei n° 17386/2001 que garante a
presença de um acompanhante da escolha da mulher durante o trabalho de parto, parto e puerpério.
Desde 2012 com a lei 18.987, de despenalização da interrupção voluntária da gravidez, que regula a
prática do aborto, suspendo a aplicação da penalidade nos casos que cumpram com os requisitos
estabelecidos na mesma. A lei foi regulamentada pelo decreto 375/012.
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A partir de 2014 o Ministerio de Saúde Pública do Uruguai disponibilizou umas Guías en
Salud Sexual y Reproductiva, baseadas nas recomendações da OMS. Orientam a prática nas
instituições mas não tem exigibilidade legal. Organizações da sociedade civil estão construindo um projeto de lei de parto humanizado para
ser apresentado no parlamento, que prevê a criação de um observatório de violência obstétrica.
Referências
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em: http://www.pagina12.com.ar/2001/01-12/01-12-26/pag17.htm. Acesso em: 28 jul.2015
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COPPOLA, Francisco. Cesáreas em Uruguay. Disponível em: http://www.senado.gov.br/
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ELECTIVE CESAREAN OR VIOLENT CHILDBIRTH? COMPARED RESEARCH ON
OBSTETRIC VIOLENCE IN BRAZIL, ARGENTINA AND URUGUAY
Abstract: Obstetric violence, as a form of violence affecting women, is immanent to the relationships
that are established, within the capitalist society, around women care during pregnancy, childbirth
and the post-partum period. Women's organizations and movements, during the last decades, have
been making efforts to give visibility to that violence and to remove the veil of naturalization that
disguises it, affecting Governments' determination to adopt initiatives aiming to fight it. This article
gathers advances in my post-doctorate research, consisting in a compared study between Brazil,
Argentina and Uruguay on the state of the art of academic research about obstetric violence,
identifying the main tendencies of the debate and governmental initiatives. It also addresses the scope
of related legislation, implementation of public policies aiming to fight obstetric violence, as well as
recognizing and characterizing the women's movements that mobilize around this matter, their main
discussions and actions undertaken.
Keywords: Obstetric Violence. Public Policies. Women. Body. Public Health
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