View
1
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
i
LUDIMAR PAULO PEREIRA
DA ESCOLA DA CAPOEIRA PARA O JOGO DA VIDA: OS SABERES E OS
PROCESSOS EDUCATIVOS VIVENCIADOS POR SEUS PRATICANTES
Dissertação apresentada à Universidade Federal
de Viçosa como parte das exigências do
Programa de Pós-Graduação em Educação, para a
obtenção do título de Magister Scientiae.
VIÇOSA
MINAS GERAIS - BRASIL
2018
Ficha catalográfica preparada pela Biblioteca Central da UniversidadeFederal de Viçosa - Câmpus Viçosa
T Pereira, Ludimar Paulo, 1981-P436d2018
Da escola da capoeira para o jogo da vida : os saberes e osprocessos educativos vivenciados por seus praticantes / LudimarPaulo Pereira. – Viçosa, MG, 2018.
ix, 109 f. : il. (algumas color.) ; 29 cm. Inclui anexos. Inclui apêndices. Orientador: Rita de Cássia de Souza. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Viçosa. Referências bibliográficas: f. 96-99. 1. Capoeira - Estudo e ensino. 2. Capoeira - Aspectos
sociais. 3. Educação. 4. Psicologia educacional. 5. Dança naeducação. I. Universidade Federal de Viçosa. Departamento deEducação. Programa de Pós-Graduação em Educação. II. Título.
CDD 22. ed.796.81
ii
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todos os praticantes de
Capoeira espalhados pelo mundo que
(re)inventam diariamente esta prática. Às minhas
filhas Emanuele e Carmen por apenas existir e
me ensinarem o verdadeiro amor e aos meus pais
Luiz Paulo Pereira e Maria Aparecida de Paula
Pereira por sempre estarem ao meu lado em
todas as minhas decisões e ações.
iii
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao poder dos encontros e das relações que me produziram
neste processo, pois viver a vida é engendrar experiências que ultrapassam os limites
acadêmicos, afetando minhas maneiras de ser e estar com o mundo.
Aos praticantes, amigos e alunos das Capoeiras por onde transitei nestes 24 anos de
prática cotidiana, pois nestes cotidianos pude observar as relações, as dinâmicas e os modos
dos grupos (inclusive o meu) pesquisados.
Neste sentido, agradeço ao meu Mestre Quebrinha, Lúcio Flávio Campos Torres,
responsável por parte da minha formação com a Capoeira e que sempre me deu força para
seguir em frente mesmo depois de levantar voo para Viçosa me incentivando a sempre lutar e
a criar o meu grupo.
Aos integrantes do grupo de estudos “Cotidianos em Devir”, que nos encontros
semanais me atravessavam com novas ideias que me enchiam de alegrias, ânimo e
expectativas que elevavam minha potência de existir e de agir diante da vida. Além disto,
gostaria de agradecer aos teóricos com quem dialoguei neste trabalho, e que me fizeram
refletir a respeito dos meus caminhos e da importância a respeito do estudo de outros
processos educativos e outros de modos de pensar a formação pessoal.
A todos (as) Professores (as) do curso de Mestrado do Departamento de Educação e do
programa de Pós–graduação em Educação, que contribuíram para a minha formação
acadêmica, e em especial minha Professora orientadora Rita de Cássia de Souza por me
acolher mesmo sendo distante do universo das Capoeiras, pela paciência na correção dos
“muitos textos” e por sempre problematizar com seu olhar “de fora” a respeito da importância
da relevância das discussões e da realização de um trabalho acadêmico que seja de fácil
compreensão daqueles que não pertencem à prática ou ao universo teórico.
Ao meu Professor coorientador Eduardo Simonini Lopes, que sempre admirei como
mestre e mentor, fonte de muitas inspirações e que de fato me provocou a mergulhar nas
contradições das Capoeiras convidando a caminhar por diferentes pensamentos teóricos. Sou
grato pelas conversas, pelo acolhimento como coorientador na parte final deste trabalho, pelo
apoio e suporte que muitas vezes excedeu as fronteiras acadêmicas na extensão da própria
vida cotidiana.
Aos colegas do Mestrado da turma de 2016, e em especial as amigas Ludmilla Araújo
e Gabriela Rodrigues que desde a época do grupo de estudos tornavam as aulas, as discussões,
iv
as viagens e o cotidiano acadêmico mais suave, alegre e divertido compartilhando sonhos,
desejos e experiências.
Ao meu pai Luiz Paulo Pereira que sempre me incentivou nos estudos, mesmo não
tendo completado os estudos, além de ter me apoiado nas decisões mais difíceis e inusitadas
como a mudança para Viçosa.
A minha mãe Maria Aparecida que sempre lutou e trabalhou pelos filhos seguindo
seus caminhos, e que atualmente se revezava entre as idas e vindas de São Paulo a Viçosa
para me ajudar nas responsabilidades com minhas filhas neste processo final da escrita.
A dona Maria Terezinha Simonini Lopes, que acreditou no início da minha chegada a
Viçosa, no meu caráter e nos sonhos que sempre compartilhei, me apoiando e me
incentivando como uma mãe diante das dificuldades cotidianas como as três reprovações
consecutivas nos processos seletivos do Mestrado.
A minha esposa Mariana por me ensinar diariamente o perdão e estar sempre ao meu
lado nas alegrias, nas tristezas tanto dentro quanto fora das rodas, e por dividir as
responsabilidades com a nossa família se produzindo múltipla como mulher, mãe, esposa,
capoeirista e trabalhadora.
As minhas duas filhas Emanuele e Carmen por me ensinarem todos os dias o
conhecimento do verdadeiro “amor” como Pai, e a não fraquejar diante das lutas do dia a dia,
além de encherem minha vida de alegrias e desejos elevando minha potência de existir e de
agir na arte de viver.
Ao apoio da Capes por possibilitar financeiramente o trabalho desta pesquisa e de
muitas outras.
Por fim, agradeço à Capoeira e a Deus que não menos importante sempre estiveram
presentes em todos os momentos da minha vida.
v
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ............................................................................... vi
LISTA DE FIGURAS ............................................................................................................... vii
RESUMO .................................................................................................................................. viii
ABSTRACT ................................................................................................................................ ix
1 IÊ: A RODA VAI COMEÇAR .............................................................................................. 1
2 AS CAPOEIRAS, O COTIDIANO E A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES ............. 12
2.1 As Capoeiras urbanas, Mestre Bimba e sua escola da Capoeira Regional ........................ 18
2.2 Mestre Pastinha e o Centro Esportivo de Capoeira Angola .............................................. 30
2.3 Capoeira Regional e Angola: aproximações e distanciamentos ........................................ 36
2.4 As múltiplas Capoeiras no Brasil ...................................................................................... 37
2.5 As Capoeiras Contemporâneas .......................................................................................... 39
2.6 As Capoeiras e seus saberes em diálogos com a Educação ............................................... 41
2.7 Currículos praticados e as Capoeiras ................................................................................ 43
3 CAMINHOS COTIDIANOS ................................................................................................ 47
4 AS CAPOEIRAS DE UMA CIDADE, SEUS PRATICANTES E A PRODUÇÃO DE
REALIDADES .......................................................................................................................... 53
4.1 O grupo A e “uma Capoeira de São Paulo” ...................................................................... 53
4.1.1 Porcelana e sua “Capoeira sensível” .......................................................................... 55
4.1.2 Sabiá, seu canto e a “família Capoeira” ..................................................................... 61
4.2 O grupo B e a “Capoeira nativa” ....................................................................................... 63
4.2.1 A Estrangeira e as “Capoeiras femininas” ................................................................. 68
4.3 O grupo C e a “Capoeira da Casa da Angola” .................................................................. 80
4.3.1 Cachaça e sua “luta com as Capoeiras” ...................................................................... 82
ADEUS, ADEUS, BOA VIAGEM ........................................................................................... 91
REFERENCIAIS ...................................................................................................................... 96
APÊNDICE A- Termo de consentimento Livre e Esclarecido ............................................ 100
APÊNDICE B- Roteiro de entrevista .................................................................................... 103
ANEXO A- Parecer do CEP .................................................................................................. 104
ANEXO B– Autorização para a pesquisa na academia de lutas......................................... 109
vi
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ASAV – Associação dos Servidores Administrativos da UFV
CECA – Centro Esportivo de Capoeira Angola
CEP – Curso de Especialização de Professores
CT - Centro de Treinamento
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MMA – Mixed Martial Arts
UFV – Universidade Federal de Viçosa
UNITAU – Universidade de Taubaté
UNESP- Universidade do Estado de São Paulo
vii
LISTA DE FIGURAS
Figura 1- Projeto "Mães da Capoeira" no jornal Folha da Mata. ............................................................ 9
Figura 2- Projeto "Mais Cultura nas Escolas" no jornal Folha da Mata do dia 14 de agosto de 2014. . 10
Figura 3- Mestre Bimba e Getúlio Vargas em Salvador no ano de 1953. ............................................. 16
Figura 4- Mestre Bimba. ....................................................................................................................... 21
Figura 5- Cocorinha. ............................................................................................................................. 25
Figura 6- Queda de rins. ........................................................................................................................ 25
Figura 7- Ponte. ..................................................................................................................................... 25
Figura 8- Mestre Pastinha. .................................................................................................................... 31
Figura 9- Berimbaus: gunga, médio e viola. ......................................................................................... 33
Figura 10- Berimbau, atabaque, pandeiro, agogó e reco reco ............................................................... 33
Figura 11-Poema escrito e entregue por Porcelana no dia 15/10/2017 na entrevista. ........................... 61
Figura 12- Evento realizado pelos grupos A e B em conjunto em 2011. .............................................. 64
Figura 13- Camisa rosa do evento feminino que gerou a polêmica entre alguns praticantes................ 74
Figura 14- Divulgação do evento feminino pelo jornal Folha da Mata ................................................ 75
Figura 15- Matéria realizada pelo jornal Folha da Mata após a realização do evento .......................... 76
Figura 16- Cartaz do 1º evento feminino em 2012 ............................................................................... 77
Figura 17- Roda na praça do 2º evento feminino em 2013 ................................................................... 78
Figura 18- Cartaz do 2º evento feminino "Ginga Mulher" em 2013 ..................................................... 79
Figura 19- Grupo C realizando uma roda na "Casa da Angola" ........................................................... 82
Figura 20- Roda que conectou os 3 grupos (A, B e C) de Capoeira pesquisados. ................................ 92
Figura 21: Mapa das redes. ................................................................................................................... 95
viii
RESUMO
PEREIRA, Ludimar Paulo, M.Sc., Universdade Federal de Viçosa, junho de 2018. Da escola
da capoeira para o jogo da vida: os saberes e os processos educativos vivenciados por
seus praticantes. Orientadora: Rita de Cássia de Souza. Coorientador: Eduardo Simonini
Lopes.
A presente pesquisa investigou os processos educativos e a produção de saberes das
inventivas redes de 3 grupos de Capoeira da cidade de Viçosa/ MG, partindo-se da premissa
de que estas redes são produtoras de conhecimentos e currículos não institucionalizados. O
maior ensejo desta pesquisa foi seguir as relações cotidianas que em meio aos regulamentos,
às normas e às regras dos grupos, entrelaçavam outros mundos e outras formas de viver.
Assim, a partir de reflexões embasadas na minha relação de mais de 20 anos com as
Capoeiras como praticante/professor/pesquisador em diálogo com a teoria dos afetos de
Spinoza, buscou-se uma análise da construção do grupo A da “academia Ginga Brasil”
seguindo os diferentes modos de subjetivação dos praticantes capoeiristas que atravessaram o
grupo. Por conseguinte, acompanhamos os fios desejantes com os quais os praticantes deste
grupo se enredavam, sendo assim, tais redes nos indicaram a existência de vidas constituídas
na pluralidade de universos que não se restringiam apenas ao aprendizado da Capoeira. Ainda
seguindo a história e o contato deste grupo com outros processos grupais encontramos as
dinâmicas que fabricavam ramificações que estabeleceram conexões e conflitos construídos
nas relações com outros 2 grupos (B e C) da cidade e seus praticantes. Diante disto, ao
acompanhar as conexões e as dinâmicas destes grupos “invisibilizados”, fomos levados às
redes de relações dos grupos que fomentavam diversos conhecimentos que participavam da
construção das subjetividades e dos modos como os praticantes “consumiam” e “usavam” as
Capoeiras, afetando e engendrando também suas formas de viver.
ix
ABSTRACT
PEREIRA, Ludimar Paulo, M.Sc., Universdade Federal de Viçosa, June, 2018. From
capoeira school to the game of life: the knowledge and the educational processes
experienced by its participants. Advisor: Rita de Cássia de Souza. Co-advisor: Eduardo
Simonini Lopes.
The present research investigated the education processes and the knowledge production from
the inventive networks of 3 groups of “Capoeira” in the municipality of Viçosa, state of
Minas Gerais, Brazil, assuming that these networks are producers of knowledge and non-
institutionalized curricula. The biggest intention of this research was to follow the daily
relationships which through rules, regulations and group rules, interlaced other worlds and
other ways to live. Thus, from the reflections based on my relationship with “Capoeira” for
more than 20 years, not only as a practitioner but also as a teacher/instructor and researcher in
a dialogue with the Spinoza Theory of Affects, we pursued a construction analysis of the
group A from “academia Ginga Brasil” following the different ways of subjectivation of the
practitioners of “capoeira” that crossed the group. Consequently, we followed the desirous
threads with which the practitioners from this group entangled with. Thus, such networks
indicated the existence of lives built on the diversity of universes that did not limit themselves
only to the learning of “Capoeira”. Still following the history and the contact of this group
with other group processes we found the dynamics that built ramifications which established
connections and conflicts built in the relationships with 2 other groups (B and C) in the city
and their practitioners. In the face of such situation, by monitoring the connections and
dynamics of those groups seen as “invisibles”, we were taken to the networks of relationships
from the groups that fomented a lot of knowledge and participated in the construction of
subjectivities and ways which the practitioners “consumed” and “used” “Capoeira”, not only
affecting but also engendering their ways to live.
1
1 IÊ: A RODA VAI COMEÇAR
Por corpo compreendo um modo que exprime, de
uma maneira definida e determinada, a essência de
Deus, enquanto considerada como coisa extensa.
(SPINOZA, 2009, p. 51)
Benedictus de Spinoza ou Baruch Espinosa1 nasceu em 1632, em Amsterdã, na
Holanda, dentro de um bairro judeu no seio de uma família de comerciantes de origem
espanhola ou portuguesa. De família próspera, Spinoza realizou sua formação teológica
e comercial na escola judia. Trabalhando desde 13 anos de idade, aos 22 anos assumiu
os negócios da família com a morte do pai, e aos 24 anos rompeu com esta formação
judaica porque começou a questionar os dogmas desta comunidade deixando os
negócios da família apenas com seu irmão para virar polidor de lentes e filósofo,
assumindo, assim, sua cultura filosófica (DELEUZE, 2002; LARRAURI, 2009).
Para Spinoza (2009), os homens são partes da natureza de Deus e constituídos de
um corpo composto por partes e por outros corpos simples desde as partículas, como
também de uma mente que produz ideias e modos de pensamento relacionado ao
próprio corpo. A ideia de corpo que iremos acompanhar, refletir e discutir neste capítulo
se conecta com uma questão chave da maior obra deste autor, a Ética, que problematiza
“a capacidade de um corpo”. Para Larrauri (2009), o impulso vital da nossa potência –
chamado conatus, é perseverar na existência e crescer, que dizer, conservar e aumentar
as capacidades de ação do corpo.
Este filósofo diz, na parte II da sua obra Ética, a respeito do dualismo entre
corpo e mente, não estabelecendo uma hierarquia de um sobre outro, pois corpo e mente
são distintos e separados (LARRAURI, 2009), mas fazem parte de uma mesma unidade.
Para Spinoza, a mente não é corpórea, mas está unida ao corpo, sendo aquela
produtora da ideia do corpo, pois ela é a primeira a conhecer algo ligado às
modificações produzidas corporalmente.
Por sua vez, para Spinoza, não há um corpo isolado que não sofra modificações
com relação a outros corpos, existindo um encadeamento infinito dos corpos que se
1 Nome utilizado por Gilles Deleuze em 2002 no seu livro sobre o filósofo. Spinoza opta em trocar de
nome após ter sido excomungado, e diante disto, optaremos em utilizar o nome usado no livro da Ética
escrito entre os anos de 1661-1675 traduzido por Tomáz Tadeu em 2009.
2
afetam a todo momento. A esta modificação que um corpo sofre em relação com outros
corpos e com o mundo, Spinoza (2009) definirá como afecção.
Os afetos são efeitos das afecções entre os corpos. O encontro entre os corpos
pode ser considerado “bom”, quando aumenta a nossa potência de existir, ou “mau”
quando diminui.
Esta potência de agir ou força de existir sofre variações de acordo com os afetos
produzidos, podendo ser constrangida e diminuída pelas tristezas ou favorecida e
aumentada com as alegrias produzidas nos encontros com outros corpos. Portanto, os
afetos produzidos nos encontros variam continuamente a potência de agir. Para Spinoza
(2009), a “alegria” é um afeto primário importante derivado do desejo onde a nossa
potência de agir e existir é aumentada. Contudo, o afeto tristeza é acompanhado da ideia
de uma causa exterior que diminui a potência de agir. Portanto, aqui o esforço para
perseverar será resumido na ação em destruir aquilo que diminui a potência de agir.
Assim, devido ao esforço da natureza dos corpos em perseverar em si mesmos,
os desejos não são estáticos, ora sendo favorecidos, ora sendo constrangidos variando
através das afecções. Como exemplo, um encontro com um som ou barulho, com outra
pessoa, objeto ou animal, com um cheiro, um visual ou um gosto acarreta modificações
e afecções nos corpos que compõem ou decompõem nossa potência de agir.
Diante disto, se o contato do meu corpo com outro corpo me produz tristeza
como um afeto, este contato é definido como um “mal encontro”, e inversamente, se o
contato com o outro corpo me produz alegria, este contato é considerado um “bom
encontro”. Portanto, nesta pesquisa, é impossível não imaginar, pensar, refletir e discutir
as relações dos corpos e do meu corpo com as Capoeiras depois de vários anos
praticando diariamente. Spinoza (2009) ainda complementa na sua proposição 51 da
parte III do livro Ética dizendo que: “os homens diferentes podem ser afetados
diferentemente por um só mesmo objeto, e um só mesmo homem pode, em momentos
diferentes, ser afetado diferentemente por um só mesmo objeto” (p. 131). Ou seja, as
Capoeiras, através dos seus modos e nas suas singularidades, podem afetar os sujeitos
diversos de diferentes formas, e em diferentes momentos.
Os encontros das rodas de Capoeira, por exemplo, representa um modo próprio
da prática com diferentes maneiras de afetar e ser afetado (pela visão, pelo som, pelo
tato) por múltiplos praticantes (observadores, tocadores, jogadores) em diferentes
momentos.
3
Os efeitos nomeados por Spinoza de afetos são variados e produzidos de
diferentes maneiras, o que evolve sempre a natureza do corpo afetado e, ao mesmo
tempo, a natureza do corpo que afeta que aqui será representada pelas Capoeiras.
Nesta primeira etapa deste trabalho, busco indicar algumas modificações do meu
corpo que foram produzidas com as Capoeiras durante a minha trajetória, buscando
seguir como tais modificações foram produzidas acompanhadas dos afetos primários
“da alegria e da tristeza”. Portanto, quais afecções, conhecimentos e afetos foram
fabricados entre meu corpo e os outros corpos das Capoeiras vividas? Entendo por
“Capoeiras” as múltiplas realidades e os diversos modos de vida produzidos com esta
prática nas composições dos corpos, produzidas com outros corpos, pois a prática, seus
praticantes e o mundo se encontram numa relação de constante movimento e
transformação.
Primeiro, devo esclarecer que utilizarei a primeira pessoa do singular na escrita
deste trabalho por entender que o “eu” se encontra engendrado na multiplicidade das
relações com outros corpos e mundos. Portanto, levarei em consideração os múltiplos
modos e os processos que estiveram conectados à minha formação durante esta jornada
com as Capoeiras, além dos afetos que produziram conhecimentos singulares através
dos anos de prática.
Lembro, que o meu primeiro encontro com as Capoeiras, aos oito de idade, me
causou uma enorme excitação apenas em observar os movimentos que um amigo de
meu irmão mais velho realizava no quintal da minha antiga casa. Portanto, observar este
amigo de meu irmão me produziu uma alegria e um desejo em praticar aqueles gestos,
aumentando minha potência de agir.
Posteriormente, com a repetição da prática, meu corpo foi se compondo em
várias outras alegrias, sustentadas pela excitação causada pelo aprendizado de alguns
movimentos complexos e pelo contato com os instrumentos, os sons, os cheiros e as
sensações como a dos pés descalços e das múltiplas modificações e afecções sofridas.
No início, meus pais não me incentivavam a participar desta Capoeira
diretamente, mas meu pai pagava as mensalidades das aulas e me assistia em todos os
batizados e trocas de graduação, e isso me deixava contente porque demonstrava certo
tipo apoio e admiração. Minha mãe achava perda de tempo e também não gostava que
eu faltasse às aulas da escola para treinar, mas respeitava minha dedicação e esforço em
aprender a Capoeira.
4
Meu primeiro local de treino foi no Clube Comercial de Lorena, cidade do
interior de São Paulo, onde fui sócio por 5 anos. O professor, apelidado de Tatu, tinha
uma turma grande, composta na sua maioria por jovens e adultos, na sua maioria
homens brancos de classe média sócios do clube. Com 13 anos, eu era o aluno mais
novo daquele “grupo” denominado Cordão de Ouro.
Naquele grupo havia algumas regras que eram exigidas pelo professor2, como o
uso do uniforme branco em todas as aulas e o respeito ao horário do início dos
treinamentos, não permitindo mais de um atraso por mês. Nosso professor, também
cursava Educação Física e suas aulas eram compostas por muitos exercícios de
alongamento e de força com objetivo da melhoria destas capacidades físicas necessárias
para o aprendizado dos gestos e movimentos da Capoeira, mas que possuem sua origem
nos métodos ginásticos europeus3 incorporados à Educação Física.
Considerada, a princípio, tanto por mim, quanto pela minha família como um
esporte e um lazer, essa Capoeira foi se transformando, proporcionando algumas
modificações no meu corpo com relação algumas de suas partes (ossos, ouvido, olhos,
músculos e articulações), pois, no início, como eu possuía um corpo franzino e com
pouca flexibilidade, com o tempo e aos poucos, minhas ações foram se modificando
junto com este corpo. Igualmente, foi através dos instrumentos e da música na Capoeira,
que aprendi a me relacionar com o som e com os ritmos velozes e lentos que ora
aumentavam, ora diminuíam minha potência de agir expressadas nas formas de me
movimentar com os outros corpos praticantes, produzindo encontros pautados na
imprevisibilidade do jogo/luta, fabricando momentos de astúcias e criação, de
confronto, de alegrias e de tristezas como a própria vida.
Nesta Capoeira diária, praticada dos 8 aos 20 anos de idade, fui me (trans)
formando juntamente com outras dimensões como à formação escolar obrigatória, que
durante muito tempo esteve conectada aos modelos e ao currículo de uma escola
católica e particular de minha cidade onde terminei o Ensino Fundamental, e ao
2 Na hierarquia deste grupo, acima do Professor existe a figura do Mestre que possui mais autonomia e
autoridade construída pelo tempo de/na vivencia de muitos anos, mas principalmente pelo
reconhecimento social e do universo das capoeiras no trabalho de disseminação e divulgação da prática. 3 Estes métodos de ginástica ocorreram no século XIX abrangendo estilos de trabalhos com a ginástica na
escola, de origem sueca, francesa, alemã e etc, que foram aprimorados cientificamente para a disciplina
corporal com intuito de fortalecer, embelezar, corrigir e tornar saudáveis os corpos da população
europeia. Fonte: Brasil escola. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/educacao-
fisica/movimento-ginastico-europeu.htm>. Acesso em: 04/05/2018.
5
currículo de uma escola pública estadual onde efetuei o término do Ensino Médio no
Estado de São Paulo.
Contudo, quando adolescente, fui vítima de dois garotos que me roubaram
dinheiro encostando um canivete em minha barriga e me agrediram com chutes e socos.
Isso me produziu uma enorme frustração, e acabou modificando minha relação com a
prática, pois já treinava Capoeira há algum tempo e não consegui reagir. A partir daí,
decidi estreitar os laços com o lado marcial daquela Capoeira para me defender, já que
ela se misturava comigo cotidianamente de várias outras maneiras.
O medo, que diminuía minha potência ao imaginar o um novo encontro com os
agressores, foi sendo substituído pelo desejo de vingança que foi favorecido com o
passar dos treinamentos, sendo que esta mudança de comportamento também modificou
a minha forma de jogar e encarar outros praticantes nas rodas de Capoeira.
Então, diante do amor pela prática, resolvi multiplicar as alegrias escolhendo o
curso de Licenciatura em Educação Física na Universidade de Taubaté (UNITAU)
como uma das opções de curso superior. Além desta escolha, havia optado também em
prestar o exame vestibular no ano de 2001 para os cursos de Veterinária na
Universidade Federal de Viçosa (UFV) e o curso de Biologia da Universidade do
Estado de São Paulo (UNESP) na Cidade de Bauru-SP.
No ano de 2002, após ter me mudado para a cidade de Taubaté-SP, eu já havia
escolhido cursar o ensino superior em licenciatura em Educação Física, movido
principalmente pela oportunidade de continuar os treinos com a Capoeira. Muitos
acontecimentos e desejos auxiliaram nesta escolha do curso de Educação Física, sendo
algumas delas importantes como a aprovação em 1º lugar no exame vestibular da
Universidade de Taubaté (UNITAU) com o ganho de bolsa, além da possibilidade do
aperfeiçoamento profissional no desejo em trabalhar como professor de Capoeira para
continuar minha formação específica na Academia Ginga Brasil do grupo Cordão de
Ouro.
Minha aproximação na Academia Ginga Brasil aconteceu através de um amigo
chamado Marcos (nome fictício), que havia iniciado na prática comigo em Lorena- SP,
mas encontrava-se residindo na cidade de Taubaté-SP e treinando na Ginga Brasil. Ele
me apresentou o Pinga–fogo e o Zangado (apelidos de Capoeira), respectivos sobrinho e
aluno de Mestre Quebrinha, fundador do grupo. Entretanto, a relação com os outros
integrantes não foi muito feliz e simples como eu pensava no início, porque o caráter
marcial daquela Capoeira, me produziu, por várias vezes, numa relação de confronto e
6
combate com os outros praticantes, diminuindo minha potência, através da fabricação
de dores físicas e sentimentos de tristeza, ódio ou vingança.
Essa relação cotidiana com alguns praticantes durante algum tempo
despotencializou o meu corpo por meio dos afetos de tristeza. Isso porque, naquela
academia, a hierarquia, a disciplina nos treinos e o cumprimento das regras do
regulamento interno se fabricavam muito rígidos no dia a dia, sendo que passei o
primeiro ano literalmente treinando com os cavaletes e com a parede, ou apanhando nas
rodas dos novos colegas de prática. Às vezes treinava com a colaboração do “Cotonete”
(apelido), que trabalhava na secretaria da academia do Mestre e também era capoeirista,
ou do “Tanque” (apelido), que vinha da cidade de São Luiz do Paraitinga- SP e como
eu, também era visto como “intruso” naquele grupo por vir de outra cidade e escola de
Capoeira.
Naquele período me sentia um estranho “fora do ninho” e muito inferior
tecnicamente perante os alunos mais antigos do Mestre Quebrinha. E, após o primeiro
ano e, pensando em desistir, em uma das reuniões mensais com os graduados, o Mestre
se dirigiu a mim dizendo: “agora você está dentro do grupo, se comportou, se dedicou
aos treinos, participou das rodas, está dentro”. E lembro que disse ao Mestre que
“ninguém chega na casa de alguém pela primeira vez abrindo a geladeira”, todos riram e
a partir deste dia, o comportamento do Mestre e de alguns colegas começou a se
modificar e a se compor de forma mais alegre, pois os confrontos diminuíram e os
encontros fora dos treinos e os diálogos com os parceiros de treino aumentavam aos
poucos.
Os jogos de Capoeira são modos que se produzem como o próprio jogo da vida,
nos encontros de múltiplos corpos que se modificam através das afecções visuais,
sonoras, olfativas e táteis fabricando sentimentos e afetos que provocam a oscilação da
nossa potência de agir e do nosso esforço. Portanto, entendemos o momento do jogo
como o encontro e a (de) composição de muitos corpos, através de várias afecções
simultâneas como o corpo sonoro, tátil, visual, que produzem as variações na potência
de agir dos seus praticantes.
As rodas de Capoeira nas ruas, nas academias, nos terreiros e nas apresentações,
se produziram como espaços/tempos abertos para trânsito das múltiplas potências dos
corpos que compunham aqueles momentos, como acontece com a própria vida
engendrando diversas formas de viver. Nas rodas, a relação da orquestra com o coro,
com os dois jogadores no jogo, ou entre os jogadores, dos jogadores com o coro, sem
7
nos esquecermos dos expectadores que se fabricam como corpos externos a roda, e que
na própria existência já sofrem e produzem modificações imprevisíveis e que não
podemos controlar como a roda da vida cotidiana.
Além das experiências singulares e destes afetamentos, participar desta Capoeira
em Taubaté auxiliou a compor também a minha identidade dentro deste universo, já que
foi lá que recebi o apelido de “Veizada”, pois a “ansiedade” e o “jogo afobado” faziam
com que meu jeito de ser e fazer fossem tudo de uma “Veizada”. Os apelidos são fortes
marcas de identificação e de processos que os individualizam e lembro-me do dia em
que recebi este apelido, pois foi numa apresentação voltada para as crianças da
academia do Mestre Quebrinha relacionada à história da Capoeira e, especificamente,
ao Quilombo dos Palmares.
Nesta apresentação, afirmei que Domingos Jorge Velho, bandeirante responsável
pela destruição do quilombo, acabou com seus habitantes e com Zumbi de uma
“Veizada” só. E, após algumas risadas de pais, alunos e professores, recebi o apelido
que até hoje me acompanha nas rodas de Capoeira. Por algum tempo, não gostei deste
apelido e essa tristeza diminuía minha potência de agir, sendo que depois de algum
tempo, fui compreender que “Veizada” não correspondia apenas a este episódio e aos
acontecimentos nas rodas, mas também a maneira como meu corpo afetava outros
corpos através do meu estilo de jogar Capoeira e do meu modo de ser “ansioso”, o que
me fez repensar a minha forma de ser e agir não só nas rodas, mas no dia a dia, além da
tentativa em me compor com este apelido de alguma forma com alegria e
contentamento.
Assim, dia após dia, naquela escola de Capoeira (onde treinava três vezes por
semana), fui deixando de “apanhar” nas rodas e inventando novas maneiras de jogar e
me compor com outros corpos conquistando meu espaço, meu apelido, e, ao mesmo
tempo, me enquadrando no grupo, conquistando o respeito e até mesmo admiração e
reconhecimento de colegas de treino, Mestres e Professores.
Pelo caminho acadêmico, no ano de 2005 me formei no curso de Educação
Física na UNITAU, sendo aprovado com alguns colegas da minha classe, no concurso
para Professor Efetivo da rede Pública do Estado de São Paulo. Naquela época, a rede
de relações que construí na Capoeira se mostrava cada vez maior, solidária, mas
composta por disputas de força por espaço em Taubaté. Então, imaginei começar uma
nova Capoeira em outra cidade, especificamente em São José dos Campos- SP.
8
Assim, no ano de 2006, iniciei a minha jornada como Professor de Educação
Física da Rede Pública de São Paulo, na cidade de São José dos Campos, momento
caracterizado mais por “maus encontros” com o sistema de ensino e seus representantes,
do que por alegrias, onde também foi o momento da minha primeira experiência com a
Prática da Capoeira no currículo escolar através da Educação Física.
No entanto, meu corpo se compunha de uma outra maneira com a Capoeira na
escola e com os praticantes daquele espaço na produção de afecções e afetos. Em São
José dos Campos, também iniciei um trabalho com a Capoeira em um salão de um
condomínio fechado com uma turma de 15 pessoas entre pais, mães e filhos.
Em 2008, fui convidado novamente pelo Mestre Quebrinha, juntamente com
outros dois colegas, a compor a 2ª turma do Curso de Especialização de Professores
(CEP), voltado para a formação de Professor Específico em Capoeira. Aquele momento
foi um dos mais esperados e desejados de toda minha formação com a Capoeira. No
meu entendimento, aquilo representava o reconhecimento de toda a minha dedicação,
esforço para com o trabalho com a Capoeira, pelo meu Mestre e pela comunidade
Capoeirística. Posso imaginar que isso produziu em mim um esboço do que Spinoza
(2009) chama de “satisfação consigo mesmo”, que consiste em uma alegria porque o
homem considera a si próprio a sua potência de agir.
Foi no processo de formar outras pessoas com a Capoeira que, no ano de 2010,
realizamos uma viagem para a cidade de Viçosa- MG a convite de um amigo professor
de Capoeira. Em Viçosa, o encontro com Rapunzel (apelido) foi tão potente e as
alegrias foram tantas e sucessivas que desejei me mudar para Viçosa e construir uma
nova relação com aquela mulher e com a prática da Capoeira. A partir daquele passo,
nasceu o grupo A, da academia Ginga Brasil Viçosa, construída por novatos e ex-
integrantes de outros grupos de Viçosa.
Após esta mudança, vieram os trabalhos e os eventos em algumas escolas
públicas e particulares, além da ligação com associações através de editais e projetos
sociais4, (figuras 1 e 2). Assim, os tentáculos do grupo na cidade foram se construindo
voltados para os variados tipos de praticantes (crianças, jovens, adultos e idosos), o que
me levou a observar, a refletir e a imaginar o potencial de transformação destas
4 No ano de 2011 iniciamos o projeto “Capoerê” em parceria com a Associação dos Servidos
Administrativos da UFV, voltado para as crianças da comunidade do Bairro Bela Vista em Viçosa-MG;
em 2012 emergiu o projeto “Mães da capoeira” realizado com as mulheres da comunidade do bairro Bela
Vista de Viçosa-MG. No ano de 2014, as aulas de Capoeira aconteceram na escola Estadual Raul de
Leoni na cidade de Viçosa – MG, através do projeto Federal “Mais Cultura nas Escolas”.
9
Capoeiras como práticas ativadas em diversas afecções que podiam produzir múltiplos
afetos, vários conhecimentos e diversas formas de existir.
Figura 1- Projeto "Mães da Capoeira" no jornal Folha da Mata.
Fonte: Arquivo do Professor Veizada.
10
Figura 2- Projeto "Mais Cultura nas Escolas" no jornal Folha da Mata do dia 14 de agosto de
2014. Fonte: Arquivo do Professor Veizada.
As Capoeiras, nestes muitos anos de encontros com estes variados corpos
praticantes, produziram modificações/afecções sentidas por todos os envolvidos nas
transformações refletidas nos modos de viver a vida daqueles que atravessaram aqueles
espaços. Além disto, pude observar que os esforços de se manterem na prática se
baseavam principalmente na busca de momentos de alegria, risos e descontração, e
consequentemente de um aumento no ganho de potência de existir e agir diante das
dificuldades da vida, a partir das composições produzidas com os outros corpos da
prática.
11
Isto me levou a querer problematizar e investigar como as Capoeiras agiam nos
corpos e nas mentes dos sujeitos praticantes e na produção de modos de viver. Então,
quais os conhecimentos e processos os praticantes vivenciam e produzem com o dia a
dia? Como a prática da Capoeira pode modificar nosso corpo e os outros corpos
praticantes? Quais afecções e afetos podem ser fabricados nos cotidianos das
Capoeiras? Essas foram questões que me mobilizaram de uma tal maneira que me
deslocaram na direção dos estudos na área de Educação, Filosofia e Psicologia.
Com a minha aprovação no Mestrado em Educação pela Universidade Federal
de Viçosa (UFV) em 2016, passei a compor com a Capoeira de outra maneira, buscando
o exercício de reflexão a respeito desta prática. Este fato ocorreu do meu encontro com
alguns professores e muitos pensadores, como o próprio Spinoza, e tanto outros que
emergiram nesta pesquisa e que me auxiliaram na busca pela produção de uma relação
mais alegre e livre com as Capoeiras.
Entretanto, como objetivo principal, esta pesquisa buscou investigar os
processos educativos ligados a produção de conhecimentos dos praticantes com os
cotidianos das Capoeiras engendrando múltiplas formas de viver e estar com o mundo.
Na próxima etapa deste trabalho, acompanharemos o processo histórico de
transformação e de sistematização dos modos das Capoeiras, apresentando as principais
referências (ou modelos) de escolas de Capoeira com seus estilos, currículos e os seus
principais Mestres representantes. Busco assim, o diálogo com outros pensadores que
nos trazem algumas perspectivas a respeito da força do cotidiano nas relações de
Educação e de consumo daquilo tudo que nos é dado para uso, além da produção de
subjetividades daqueles que se encontram enredados com as Capoeiras destas escolas.
12
2 AS CAPOEIRAS, O COTIDIANO E A PRODUÇÃO DE
SUBJETIVIDADES
Vem cá menino, vem aprender, vou ensinar o
gingado do A, B, C
(MESTRE SUASSUNA).
Considerada uma prática que afeta e ao mesmo tempo é afetada pelos sujeitos
praticantes através da relação do corpo e da mente com o mundo, atualmente, as
Capoeiras são produzidas como luta, religião, filosofia ou arte nascida como jogo de
combate (ASSUNÇAO, 2005). Assim, hoje se apresentam como um interessante
instrumento que pode fomentar um movimento direcionado à Educação dos sujeitos
praticantes através dos processos e modos das diversas escolas, grupos, estilos e
intenções, cada qual com suas lógicas, seus processos e saberes.
Atualmente, estas escolas de Capoeira encontram-se espalhadas em vários
espaços sociais pelo país e pelo mundo, se fabricando como alternativas nas redes
educativas, além de possuir seu caráter histórico e serem consideradas uma
manifestação cultural que indica que se Portugal foi o pai do Brasil, a África foi a mãe
negra que trouxe a Capoeira, ao colo, oriunda da luta e resistência do escravo negro
contra a dominação do branco colonizador no Brasil.
Na história das Capoeiras, os praticantes vêm se produzindo como sujeitos
sociais pelo corpo, pelas ideias e pelos sentimentos, sendo estes pontos importantes
desta nossa reflexão. É através do corpo que estas Capoeiras se consolidam
historicamente como movimentos de resistência e miscigenação não só dos negros
oprimidos, mas também como luta e invenção contra outras forças disciplinadoras.
José Luiz Cirqueira Falcão (2004) nos fala de três aspectos importantes na
história da capoeira: plurietnia, resistência e transnacionalidade. Assim, originalmente,
esta prática é associada a uma construção cultural dos negros vindos de várias etnias da
África, trazidos pelos portugueses e escravizados no Brasil, e que nos primeiros
registros do século XVIII, se encontram com um expressivo número de aventureiros
estrangeiros de várias partes do mundo. Assim,
Essa complexa rede, formada por africanos, crioulos e europeus, que viviam
a margem da sociedade, tinha na capoeira o elo fundamental de afirmação
identitária, construída a partir de uma simbiose que destruía e reconstruía
valores para além dos componentes linguísticos, étnicos, de território e de
nação, demonstrando o quanto a cultura poderia ser transformada pelos seus
praticantes “menos ilustres”, que, mesmo provenientes de diferentes origens,
arregimentavam poder e reconhecimento e redesenhavam a geografia urbana
da já cosmopolita cidade do Rio de Janeiro, atropelando a vontade e os
13
projetos da sua elite empenhada em transformá-la em uma “Paris dos
Trópicos” (FALCÃO, 2004, p. 19).
Sendo assim, esta rede coletiva relacionada aos praticantes convergiu para a
constituição de grupos compondo o movimento singular “das maltas” de Capoeira, no
final do século XIX no Rio de Janeiro. Estes grupos de praticantes eram organizados,
autônomos e hierarquizados em funções, que se encontravam fundadas pelos princípios
de solidariedade, valentia, lealdade, coragem, e respeito às normas e hierarquias
internas.
Diante destes modos, as duas principais maltas eram as dos Nagoas e as dos
Guaiamuns, que lutavam entre si e contra o Estado, e eram caracterizadas pela violência
e pela organização nas disputas pelos territórios urbanos e pelo poder político na cidade.
Ricardo Martins Porto Lussac e Manoel José Gomes Tubino (2009) também
encontram indícios desta prática corporal no século XVIII na cidade Rio de Janeiro e
para Soares (2002 apud LUSSAC; TUBINO, 2009) este corpo da/na capoeira também
representava um tipo social (malfeitores e foras da lei), e se propagou rapidamente no
meio urbano no século XIX.
Assim, durante este período, as Capoeiras foram praticadas por negros, livres,
libertos, crioulos, mestiços, índios, descendentes de europeus e membros da elite social
fazendo parte da cultura do trabalhador brasileiro, pois além do Rio de Janeiro, os
documentos policiais daquele período constatavam um mesmo perfil dos praticantes na
Bahia e no Pará, não sendo práticas exclusivas dos negros.
Podemos observar que muitos dos praticantes deste período se encontravam
inseridos nas camadas populares e marginalizadas da população brasileira utilizando
muitas vezes desta prática de maneira criativa, maliciosa e violenta como forma de
subverter as leis e a repressão social.
Entretanto, Falcão (2004) destaca que além dos praticantes marginalizados,
outros praticantes de “boas famílias” da elite não só apreciaram “a sensualidade da arte-
luta”, como também aderiram a prática, exercitando-a na cidade do Rio de Janeiro (p,
21). Assim, este pesquisador nos fala que os estudos históricos trazem a prática da
Capoeira como um movimento urbano com marcas profundas de referência negro-
africana em relação aos rituais, instrumentos e cantigas, mas que também incorporou
elementos culturais diversos e de diferentes procedências possuindo este caráter
pluriétnico. Os registros da metade do século XIX descrevem a valentia, a coragem e as
astúcias “dos capoeiras” associadas à “malandragem” no enfrentamento da opressão das
14
elites e do Estado. Sendo assim, esta prática foi instrumento para resistência e afirmação
destes praticantes diante de um cenário de repressão, desigualdade e tensão.
As Capoeiras praticadas neste contexto foram utilizadas de várias maneiras pelos
seus praticantes, inclusive pelo próprio Governo repressor da República, na tentativa de
eliminar ou, se possível, controlar aqueles que possuíam as habilidades da luta e
representavam algum perigo para a estabilidade política do país, pois as maltas de
Capoeiras faziam alianças com o partido monarquista e com o partido republicano.
Comícios e festas públicas muitas vezes acabavam em pancadaria e quebra-quebra
devido às alianças entre “os Capoeiras” e os partidos Políticos do país (SOARES, 2002
apud LUSSAC; TUBINO, 2009).
Michel de Certeau (1997; 2002), considerando que em cada época existe um
sistema de valores hegemônicos que impõe produtos e regras a uma sociedade, há
aqueles que, no praticar cotidiano desenvolvem ações, formas alternativas de uso, “artes
de fazer” que subvertem o que lhes é imposto, pois:
A “fabricação” que se quer detectar é uma produção, uma poética- mas
escondida, porque ela se dissemina nas regiões definidas e ocupadas pelos
sistemas de “produção” (televisiva, urbanística, comercial etc.) e porque a
extensão sempre mais totalitária destes sistemas não deixa os “consumidores”
um lugar onde possam marcar o que fazem com os produtos. A uma produção
racionalizada, expansionista, além de centralizada, barulhenta e espetacular,
corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é
dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e
quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas nas
maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica
dominante (CERTEAU, 2002, p. 39).
E assim, podemos pensar que nestes movimentos “silenciosos, astuciosos e
invisíveis” os praticantes capoeiristas inventaram maneiras próprias de se praticar a
Capoeira. Acredito que, devido a isso e a outros movimentos criativos, estas Capoeiras
tenham conseguido se manter vivas e reinventadas até os dias atuais. Portanto, Certeau
(1997; 2002) ressalta a importância de descobrir como que uma sociedade inteira não se
reduz à rede de vigilância, conseguindo burlar algumas regras instituídas. Ele indaga
que procedimentos populares “jogam” com os mecanismos da disciplina criando e
inventando “maneiras de fazer” que formam a contrapartida dos consumidores (ou
dominados).
Essas maneiras de fazer são as práticas pelas quais os usuários se reapropriam do
espaço organizado pelas técnicas da produção sócio–cultural. Assim, ele apresenta as
noções de “estratégia e tática”, sendo as “estratégias” ações e concepções próprias de
um poder, de um instituído, na gestão de suas relações com os sujeitos reais, a princípio
15
submetidos a este poder. Podemos, então, afirmar que as Capoeiras surgem no Brasil
num período em que havia uma avassaladora dominação dos negros e imigrantes à elite
branca e ao Estado formado por esta mesma elite.
Uma destas “estratégias” deste dispositivo, que ocorreu no 3º período de
regência da Princesa Isabel no final do Império no Rio de Janeiro, foi compor as forças
policiais e repressoras com alguns capoeiristas, e um exemplo disto, foi a criação da
“guarda negra” com o objetivo de perseguir e prender os “capoeiristas desordeiros” que
lutavam contra a Monarquia. Mas, de acordo com Mattos (2006), alguns usos e
exemplos de táticas eram fabricados pelos praticantes, pois:
Desta forma, compreendemos a guarda negra como um espaço de sincretismo
alcançado pelas abordagens da História Social. O estudo da mesma
contribuiu para a compreensão da luta dos negros por integração econômica,
valorização cultural e respeitabilidade social, utilizando as ferramentas
necessárias para a tentativa de obtenção de êxito (p. 12).
Lussac e Tubino (2009) destacam que, a partir do início do século XX, a
Capoeira se espalhou por outras partes do Brasil e, “Presente em vários momentos
político-sociais do país, inclusive na Guerra do Paraguai, a capoeira vai ganhando
destaque nas manchetes dos jornais” (p. 9). Vale ressaltar que a Capoeira era uma
prática marginal e passou a ser reprimida principalmente pelo Código Penal brasileiro
de 1890, de acordo com o artigo 402, que proibia realizar nas ruas e praças públicas
exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominação de
capoeiragem: andar em correrias, com armas e instrumentos capazes de produzir uma
lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, com pena de prisão na Ilha de
Fernando de Noronha de 2 até 6 meses (LUSSAC; TUBINO, 2009).
Permanecendo na ilegalidade até meados dos anos de 1937, no ano de 1953,
Mestre Bimba realizou uma apresentação para o então Presidente Getúlio Vargas (figura
3), que nesta ocasião se referiu à Capoeira como único esporte genuinamente nacional, e
estrategicamente, acabou retirando a Capoeira da ilegalidade revogando a lei que
criminalizava a prática devido ao pensamento nacionalista e alguns interesses populistas
da época, pois para um governante populista, nada melhor que apoiar as práticas do
povo, como a Capoeira (BRASIL, 2007; CAMPOS, 2009).
16
Figura 3- Mestre Bimba e Getúlio Vargas em Salvador no ano de 19535.
As Capoeiras e suas origens tendem a ser apresentadas de formas contraditórias
e imprecisas pela falta de documentação e escritos relacionados à escravidão no país,
mas o que podemos supor é que seus praticantes deviam criar “modos” e “maneiras de
se praticar”, que não chamassem a atenção das autoridades repressoras camuflando a
luta na forma de “jogo” ou “dança”, através da “ginga”.
Os espaços utilizados eram das matas fechadas, dos canaviais e das senzalas,
como também dos espaços públicos urbanos (das praças, dos portos e das ruas), além
dos recintos fechados (dos terreiros e fundos de quintal) para sua prática. A própria roda
com seus rituais, o jogo com os movimentos e gestos, ou os instrumentos aliados aos
toques e as músicas são modos específicos desta prática que se compõe com seus
praticantes, engendrando várias formas de existir.
É interessante destacar que as Capoeiras podem se “construir” através dos
gestos, dos movimentos, da música, da oralidade na transmissão dos conhecimentos
empíricos das tradições, dos rituais, da história e dos fundamentos desta arte, ou como
5 Fonte:
<http://www.historyoffighting.com/resources/Mestre%20Bimba%20and%20Getulio%20Dorneles%20Va
rgas%20article.jpg?timestamp=1382622259741>. Acesso em: 07/01/2018.
17
também através da “malícia”, da “mandinga”, da “malandragem” e de outros e
processos singulares produzidos pelos praticantes, mas que de alguma forma
representavam a invenção das táticas baseados na astúcia e na criatividade diante de um
contexto dominante e opressor. Para Michel de Certeau, as “táticas” são ações
determinadas pela ausência de um próprio, que “usa” os espaços, ocasiões e
possibilidades encontradas nas “lacunas” das “estratégias” dos poderosos. Portanto, as
“táticas” são consideradas astúcias, movimentos, composições invisíveis, lugar daqueles
“sem o poder” que escapam pelas fendas, enquanto as estratégias são visíveis e
calculadas, pois são lugares próprios daqueles que possuem o poder, o saber e o
controle. Assim Certeau (2002) nos diz que:
a “cultura popular” se apresenta diferentemente, assim como toda a literatura
“popular”: ele se formula essencialmente em artes de fazer isto ou aquilo, isto
é, em consumos combinatórios e utilitários. Essas práticas colocam em jogo
uma ratio “popular”, uma maneira de pensar investida numa maneira de agir,
uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar (p. 42).
E, para Falcão (2004):
A capoeira constitui-se, portanto, numa manifestação cultural notabilizada
pelo seu exuberante campo de possibilidades, cuja trajetória histórica reflete
contradições marcantes da dinâmica social. É importante frisar que estes
traços de plurietnia e transnacionalidade não excluem aclamados e
decantados traços de resistência, difundidos na literatura afro-brasileira e na
tradição oral dos capoeiras em geral. Da condição de “luta de escravo em
ânsia de liberdade”, perseguida e discriminada, tornou-se símbolo de
brasilidade e adentrou espaços institucionais antes impensáveis, seja como
prática esportiva, terapêutica, de espetáculo, seja como conteúdo curricular
universitário (p. 27).
Hoje as Capoeiras são produzidas por praticantes de diversas raças, gêneros,
religiões e classes sociais construindo múltiplas realidades e formas de viver. Isto
sugere que as práticas cotidianas desenvolvidas com as Capoeiras podem também atuar
enredadas com outros espaços/tempos cotidianos, portanto com outros modos e
processos de subjetivação.
Assim, a experiência com o cotidiano como espaço/tempo de construção de
realidades singulares é muito relevante para este trabalho, pois acredito que as vivências
e as experiências de vida, e, neste caso com a prática da Capoeira, influenciam na
aquisição de formas de pensar e agir, como também na produção de conhecimentos com
os afetos que refletem no saber/fazer das pessoas. Para Lopes (2011):
Quando, então, passamos a abordar os cotidianos de escolas, fábricas,
empresas, clubes e famílias como estando transversalizados em
agenciamentos desejantes, somos convidados a pensá-los e vivê-los como
rotinas e invenções a se atualizarem no dia a dia de seus praticantes e não
18
como representações falhas ou incompletas de um modelo ideal a ser atingido
(p.47).
Diante disto, destacamos as múltiplas possibilidades da pesquisa com as
Capoeiras nos diversos espaços sociais, com seus processos e saberes peculiares nos
diferentes sujeitos que constroem em grupo, múltiplas realidades cotidianas com a
prática, considerando todos aqueles que de alguma forma deixam suas marcas nos
processos constituídos nas redes de saberes/fazeres deste território (CERTEAU, 1997;
FERRAÇO, 2007). Assim, cada praticante (sujeito) direto/indireto trará sua história de
vida misturada às influências sócio-culturais que interferem e ao mesmo tempo são
influenciadas pelos modos de praticar e vivenciar a Capoeira.
Portanto, apesar do cotidiano ser associado popularmente à ideia de continuidade
e repetição, aqui ele pode ser entendido como caminho ligado à ruptura e à inovação. As
vivências sociais não seguem estruturas rígidas e pré-determinadas, moldando suas
formas e sentidos nos modos de existir (LOPES, 2011).
Para Eduardo Simonini Lopes (2011), a vida cotidiana em suas (in)constâncias, é
engendrada em agenciamentos a produzirem outros agenciamentos a partir daqueles que
os produzem; e se os agenciamentos se efetuam em redes de processos, intensidades e
saberes; da mesma forma ele entende que os sujeitos praticantes desses cotidianos são
redes: redes de redes.
Assim, Inês Barbosa de Oliveira (2006) discute sobre a ideia de redes de sujeitos
e suas inserções nos espaços sociais (doméstico, da comunidade e etc.), que se refletem
nas relações dos processos sociais de aprendizagem, nos quais podemos acompanhar a
constituição das escolas de Capoeira no Brasil, como na produção dos dois estilos de
Capoeira6 de mais expressão representados pela Capoeira Angola e pela Capoeira
Regional.
2.1 As Capoeiras urbanas, Mestre Bimba e sua escola da Capoeira Regional
6 Além das escolas tradicionais da Capoeira Angola e Capoeira Regional, hoje existem manifestações de
outros estilos que desenvolvem a prática como; o Capojitsu, a Senavox, a Capoterapia, o Miudinho e etc.
19
Nascida como jogo/luta de combate no período colonial no Brasil, a Capoeira no
final do século XIX “manchava os pergaminhos das repartições públicas brasileiras,
através das penas dos escrivães de polícia, e povoava em letras garrafais, os romances
de costumes dos cronistas e memorialistas” (FALCÃO, 2004, p. 2) subvertendo a ordem
escravista, branca e hegemônica deste período. Provavelmente praticada nas senzalas,
matas e quilombos inicialmente, foi nos espaços urbanos das cidades, das ruas, dos
portos, das praças, dos terreiros e nos fundos de quintal das periferias que as Capoeiras
ganham as páginas dos jornais e a atenção das elites e dos governantes brasileiros pelo
caráter subversivo e de resistência de seus praticantes. Assim, Campos (2009)
complementa a ideia considerando que:
A capoeira vem resistindo ao longo dos anos e conquistando valorosos
espaços na sociedade brasileira e internacional. Outrora, foi uma atividade
marginalizada e reprimida pela sociedade brasileira, perseguida e violentada
pela polícia, sob a justificativa de constar como infração no Código Penal
Brasileiro, pelo decreto 487, de 11 de outubro de 1890, Capítulo XIII, Art.
402: “dos Vadios e Capoeiras”. Essa conquista deve se ao fato da capoeira
ser reconhecida pelo seu valor histórico de resistência, educação e cultura de
um povo (p. 25).
Por muitos anos estas capoeiras vêm se mantendo através da transmissão e da
produção dos ensinamentos dos Mestres nas relações com os alunos praticantes, sendo o
aprendizado um importante elemento na manutenção e na invenção, como também na
transmissão e na construção de novos modos e saberes desta manifestação cultural.
Estes aprendizados, segundo o Dossiê Inventário para o Registro e Salvaguarda da
Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil no ano de 2007, idealizado pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), são encontrados em três
momentos históricos distintos.
O primeiro período vai de 1890, ano de entrada da capoeira no Código Penal até
o ano de 1937, ano de início do Estado Novo e da descriminalização quando Mestre
Bimba recebeu a autorização legal para continuar com seu Centro de Cultura Física e
Capoeira Regional. O segundo período é citado como “escolarização da Capoeira”
caracterizado pela formação das escolas e academias oficiais e institucionalizadas,
sendo Mestre Bimba e Mestre Pastinha e suas escolas da Capoeira Regional e Capoeira
Angola as principais referências. O terceiro período inicia nos anos de 1980 e vai até os
dias atuais, caracterizado pela fase “Contemporânea da Capoeira”.
Produzida de maneira informal e não profissional, “as Capoeiras” do primeiro
período eram desenvolvidas no cotidiano das ruas, do trabalho e dos espaços públicos,
20
sendo as relações de ensino e aprendizagem e a transmissão/ produção de saberes que
eram estruturados na proximidade e na cumplicidade entre o aprendiz e seu Mestre.
Assim, sem espaços institucionalizados, metodologias ou pedagogias formais e
específicas, os praticantes aprendiam pela “oralidade” e pela “oitiva” através da
observação e do jogo nas situações de roda ou de confronto com outros praticantes ou
com os agentes da lei. Estes processos ligados ao aprendizado também não se resumiam
a regras gerais, de modelo ou códigos de conduta. No entanto, segundo este Inventário
do IPHAN:
Se a relação com o mestre é direta, o ensino não é responsabilidade direta do
mestre. O mestre não ensina diretamente, ele apenas ajuda a criar as
condições propícias para que o aprendiz experimente jogar, cantar, tocar e
vadiar. Nesta forma de prática é o aprendiz que, de algum modo, é o
responsável direto pelo processo de aprendizado. Suas motivações e
engajamento nas rodas e grupos de capoeiragem são o que o tornam um
capoeira (BRASIL, 2007, p. 55).
A partir da década de 1920, “as Capoeiras” vão passando por transformações,
mesmo depois de anos inserida no contexto da criminalidade e ilegalidade. Tais
transformações possibilitaram o surgimento das primeiras escolas e academias de
Capoeira do país, sendo Manoel dos Reis Machado, conhecido como Mestre Bimba
(figura 4), em 1932, no bairro Engenho Velho de Brotas em Salvador, o primeiro a abrir
uma escola voltada especificamente para o ensino da Capoeira.
21
Figura 4- Mestre Bimba7.
7 Fonte:
<https://www.google.com.br/search?q=foto+mestre+bimba&tbm=isch&source=iu&ictx=1&fir=D7QeKq
22
Mestre Bimba nasceu em 23 de novembro de 1900, no bairro Engenho Velho de
Brotas, em Salvador na Bahia. Durante a sua vida trabalhou como carvoeiro,
trapicheiro, carpinteiro, mas principalmente como professor de Capoeira.
Aos 12 anos, Bimba iniciou na Capoeira com seu Mestre africano Nozinho
Bento, conhecido como Bentinho, no bairro da Liberdade. E, aos 14 anos ingressou no
candomblé do Senhor Vidal em um terreiro da nação Kentu, se tornando ogã8 aos 20
anos de idade. Depois de se desligar deste terreiro, Mestre Bimba voltou a se ligar ao
candomblé, mas sem exercer nenhum cargo oficial, através da relação conjugal de 40
anos com Mãe Alice, no seu terreiro Oiá Padé da Riméia, no Nordeste de Amaralina,
um bairro da cidade de Salvador, na Bahia (CAMPOS, 2009). A respeito da criação da
Capoeira regional, Campos (2009) conta que:
Mestre Bimba criou a Capoeira Regional, também chamada de “Luta
Regional Baiana”, a partir de seus conhecimentos da Capoeira Angola,
adquiridos nos ensinamentos de seu mestre Bentinho, e do aprendizado do
batuque, uma luta “braba” e violenta, aprendida na convivência com seu pai,
Luiz Candido Machado, batuqueiro famoso e campeão, numa época em que a
capoeira era vista como uma atividade marginal, por ser oriunda de
manifestações do povo africano escravizado no Brasil (p. 117).
Mestre Bimba nos fornece um claro exemplo da teoria dos “usos” e “consumos”
dos produtos Capoeira e batuque na criação da sua “Luta Regional Baiana”, conforme
foi discutido por Certeau (2002). Neste contexto, Mestre Bimba sentia que a Capoeira
ensinada estava perdendo seu caráter de luta, passando a ser uma prática folclorizada
por outros praticantes que se apresentavam nas ruas e praças públicas, muitas vezes em
troca de dinheiro. Para Campos (2009), isto foi um dos principais motivos para
invenção da sua “nova Capoeira”.
Além disto, outro motivo estava ligado à condição marginalizada da Capoeira
que o Mestre queria modificar e, através dos desafios nos ringues a diversos lutadores,
levou sua prática à mídia e aos jornais. Com suas vitórias nos ringues de luta, Mestre
Bimba ganhou notoriedade e respeito com sua atividade marginalizada, a Capoeira
Regional ou também chamada disfarçadamente de “luta regional baiana”, apesar de
T8BuSyhM%253A%252CPM9icXEWz8LhaM%252C_&usg=__xcSQ_K7Y3aG5jGLZ6iy8CY2uVMc%
3D&sa=X&ved=0ahUKEwiSpPmTvN3aAhXDhZAKHZFABGoQ9QEILDAB#imgrc=D7QeKqT8BuSy
hM:>. Acesso em: 07/01/2018. 8 É escolhido pelo orixá do zelador da casa de candomblé para realizar múltiplas funções, pois ele não
incorpora e nem entra em transe cumprindo importantes funções dentro da liturgia. Não é apenas um
tocador de atabaques e cantador de cantigas dos terreiros, pois sua função abrange também a segurança da
casa e o zelo pelo terreiro. Ver mais em:<https://ileaxeoxolufaniwin.wordpress.com/2016/01/12/ogan-no-
candomble/>. Acesso em: 09/05/2018.
23
ainda ter que enfrentar outros adversários como o preconceito. Assim Campos (2009)
retrata que:
Dá para perceber que Mestre Bimba, na verdade, partiu para a briga e estava
decidido a impor a sua Capoeira Regional, estava jogando no jogo do vale
tudo para conquistar seu espaço, resistindo às pressões do ringue e, para isso,
lutava não apenas contra adversários, mas, principalmente, contra os
preconceitos e os estigmas de uma sociedade (p. 121).
Como exemplo, na edição do dia 1º de julho do ano de 1936, no jornal “A
Tarde”, responsável por muitas notas enaltecendo os feitos de Mestre Bimba, havia uma
reportagem criticando a participação do Mestre com sua Capoeira Regional na
programação oficial da festa cívica do dia 2 de julho na Bahia9 (apud CAMPOS, 2009).
Para Campos (2009), essa participação representava o “reconhecimento” dos
poderes públicos para além da aceitação e tolerância das manifestações culturais negras
desde que essas manifestações estivessem vigiadas em espaços determinados pela elite
baiana. Portanto, entrar na programação oficial do dia 2 de julho, representava invadir
um espaço regulado e controlado por esta elite.
Como já mencionamos, no ano de 1937, Mestre Bimba conseguiu o registro
oficial da sua academia cedido pela Secretaria de Educação, Saúde e Assistência
Pública da Bahia, como escola de Educação Física com o nome de Centro de Cultura
Física e Capoeira Regional.
É importante destacar que, na escola de Mestre Bimba, a ênfase era de afirmar o
caráter marcial de luta e esporte desta Capoeira. Diante disto, Mestre Bimba tentou
romper com a imagem do praticante desordeiro e marginal em busca de um praticante
desportista disciplinado, passando a violência antes praticada nas ruas, para dentro dos
espaços (ringues) de luta. Percebemos uma tentativa de normatização e disciplinamento
dos praticantes desta Capoeira.
Ele também padronizou e institucionalizou a Capoeira Regional através de
regras, estatutos e manuais que descreviam as técnicas, objetivavam os golpes,
instituíam os toques e cantos específicos, além de padronizar o uso dos uniformes e
indumentárias. Apesar disto, Campos (2009) relata que os alunos treinavam com
vestimenta, de preferência como calças e bermudas, com o uso ou não de camisa. O
Mestre, com a ajuda dos seus alunos, também publicou um livreto “Curso de Capoeira
9 O cortejo ou desfile do dia 2 de julho representa a festa cívica de independência do Brasil na Bahia
reverenciando a vitória da força nativa contra as tropas lusitanas derrotadas em 1823. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Festa_da_Independ%C3%AAncia_da_Bahia>. Acesso em 05/01/2018.
24
Regional de Mestre Bimba” (apud Campos, 2009) contendo um rigoroso regulamento
ligado a condutas a ao comportamento do corpo pelas ações dos seus praticantes:
EM SEU BENEFÍCIO
1- Deixe de fumar. É proibido fumar durante os treinos
2- Deixe de beber. O uso do álcool prejudica o metabolismo muscular.
3- Evite demonstrar aos seus amigos de fora da “roda” de capoeira os seus
progressos. Lembre-se de que a surpresa é a melhor aliada numa luta.
4- Evite conversar durante o treino. Você está pagando pelo tempo que passa
na academia; e observando os outros lutadores, aprenderá mais.
5- Procure gingar sempre.
6- Pratique diariamente os exercícios fundamentais.
7- Não tenha medo de se aproximar do oponente. Quanto mais próximo se
mantiver, melhor aprenderá.
8- Conserve sempre o corpo relaxado.
9- É melhor apanhar na “roda” que na rua... (CAMPOS, 2009, p. 67).
Além do regulamento, os processos que estruturaram a Capoeira Regional de
Mestre Bimba eram compostos também pelos batizados, formaturas e cursos de
especializações. Assim, o Inventário do IPHAN resume que:
O espaço de aprendizado é agora um ambiente fechado, uma academia, onde
são desenvolvidas rotinas sistemáticas de treinos e atividades voltadas para o
aprendizado da capoeira, acompanhadas por um rígido sistema de avaliações.
As rodas passam a ser o lugar em que os aprendizes podem aplicar o que
treinaram. Nestas rotinas, Mestre Bimba inclui: exame de admissão,
seqüências básicas de ensino, seqüências de cintura desprezada, batizado,
formaturas, cursos de especialização e toques de berimbau (BRASIL, 2007,
p. 58).
Portanto, já podemos observar as referências da educação tradicional e da
pedagogia de uma escola oficial, pois além de luta e esporte, a Capoeira Regional
também foi considerada um importante instrumento educacional pelo Mestre e por seus
praticantes. Então, Mestre Bimba, juntamente com seus alunos, criou seu modo através
de um método didático de ensinar a Capoeira Regional principalmente para aqueles
desconhecedores daquela atividade. Alguns alunos do Mestre destacam que a Capoeira
Regional de Mestre Bimba seguia os moldes do modelo acadêmico.
Campos (2009) conta que primeiro havia um exame de admissão, onde cada
voluntário selecionado em aprender aquela Capoeira tinha que executar os seguintes
movimentos: uma cocorinha (figura 5), uma queda de rins (figura 6) e uma ponte (figura
7).
25
Figura 5- Cocorinha10
.
Figura 6- Queda de rins11
.
Figura 7- Ponte12
.
10 Fonte: <http://www.start-playing-capoeira.com/images/Cocorinha.gif>. Acesso em: 06/01/2018.
11 Fonte: <http://3.bp.blogspot.com/_BkMJJ6C2bvQ/TUgSXdTLlhI/AAAAAAAAAeo/9c56-
PsXYCs/s1600/queda+de+rim.jpg>. Acesso em: 06/01/2018. 12
Fonte: <http://cs.i.uol.com.br/album/1108_capoeira_f_024.jpg>. Acesso em: 06/01/2018.
26
Após esta etapa, o praticante iria aprender as sequências de ensino dotadas de
movimentos de defesa, ataque e contra-ataque reproduzindo um jogo de Capoeira.
Campos (2009) conta que: “A rigor, a sequência é formada por oito partes
compostas dos principais movimentos da capoeira, encadeados em ordem progressiva
de dificuldade de execução” (p. 53). A repetição destas sequências para Mestre Bimba
era fundamental para o aprendizado eficiente e seguro do jogo da Capoeira Regional.
Além destas sequências, havia também as sequências de cintura desprezada e
projeções, nas quais o jogo de defesa e ataque era complementado pelas projeções dos
jogadores simulando possíveis quedas em combates com lutadores de outras
modalidades.
Outro processo importante da Capoeira Regional para seus praticantes é o
batizado, em que o aluno, após ter treinado todos os processos anteriores é apresentado
ao grupo jogando pela primeira vez na roda com seu padrinho que, geralmente, era um
aluno com mais experiência (atualmente é um professor ou Mestre). Passado o jogo, o
novato recebia um nome de “guerra” ou apelido na qual passava a ser sua identidade no
grupo. Este processo vem da Igreja Católica que define o batismo como um sacramento
que pela imersão na água, produz um renascer espiritual que liberta o homem do pecado
original de Adão e Eva (CAMPOS, 2009).
A construção das identidades com cotidiano desta Capoeira era simbolicamente
imortalizada nos apelidos e poderia ser atravessada por múltiplas questões relacionadas
a encontros, episódios marcantes e acontecimentos, como também por características
físicas, emocionais e comportamentais de seus praticantes. Este processo de
identificação produz afetos que podem modificar o comportamento e os modos de viver
dos seus praticantes.
Mestre Itapoã nos conta, através do vídeo documentário: “Mestre Bimba: a
capoeira iluminada” (2005), que o costume de apelidar os praticantes era realizado por
Mestre Bimba no ritual do batizado, no qual o aluno iniciante fazia o seu primeiro jogo
ao som do berimbau com um capoeirista formado, recebendo o apelido logo após o
jogo. Ele ainda nos conta que “todos batiam palma e a partir daquele dia todos
esqueciam o seu nome”. Na Academia de Mestre Bimba, este ritual era obrigatório,
sendo que até hoje é uma prática comum exercida em várias escolas de Capoeira,
embora nos dias atuais, o apelido não seja dado necessariamente no dia do batizado, não
havendo um momento específico para este costume aconteça.
27
Mestre Cafuné13
, neste mesmo documentário, nos diz que Mestre Bimba não
perdia a oportunidade de ensinar e seu apelido foi um ensinamento, pois ele nos conta:
Eu era uma pessoa que tinha, na minha personalidade eu era muito tímido,
até demais de tímido, uma pessoa que só olhava pra baixo, não levantava a
cabeça, não procurava meus espaços, tinha dificuldade de me relacionar.
Então com uma dificuldade muito grande de me colocar na vida... e na
capoeira era pior ainda, na capoeira tinha receio de entrar, de tomar pancada e
tudo mais... e no dia do meu batizado, na festa do batizado meu apelido...
normalmente quem colocava os apelidos era os colegas e na minha hora de
jogar ele disse na minha hora de jogar, “esse já tem nome quem vai botar sou
eu”, eu fiz o meu jogo e quando terminou ele disse: “ele não faz capoeira, ele
faz cafuné”, “o nome dele é Cafuné”... eu fiquei muito chateado com aquilo,
porque tinham os apelidos onça, filhote de onça... é... quebra ferro, canhão,
ele quer o que? Segunda feira ele vai ver, vou chegar lá quebrando o pau! Me
curou da minha timidez.
Podemos observar claramente, a produção de subjetividade vivida nestes
processos em circulação desta produção coletiva da Capoeira Regional, presente nos
modos como o ritual do batizado e dos apelidos.
Neste episódio, também observamos a criação de um processo de transformação
expresso na maneira única de se relacionar e vivenciar esta subjetividade, pois a
modificação corporal e os afetos produzidos naquele acontecimento do batizado
construíram conhecimentos e deixaram “marcas” que modificaram o comportamento do
Mestre. Depois deste período de aprendizado voltado para o desenvolvimento do jogo, e
dos movimentos de defesa e ataque com eficiência e plasticidade, juntamente com o
aprendizado dos cantos e dos toques dos instrumentos, o aluno estaria apto a se formar.
Assim, o Inventário nos traz que:
A formatura é um dia especial para o mestre e seus alunos. Trata-se de um
ritual semelhante à formatura de qualquer escola de ensino formal, com
direito a paraninfo, orador, madrinha e medalha. No início, Mestre Bimba
realizava a festa de formatura no Sítio Caruano, no Nordeste de Amaralina,
na presença de convidados e de toda a academia regional baiana. Os
formandos, todos de branco, eram chamados por Mestre Bimba e, diante de
todos, exibiam seus repertórios de movimentos, toques e cantos. Ao final
dessa exibição, os iniciantes deveriam passar pela prova de fogo, jogando
com um capoeirista graduado, ritual que ficou conhecido como “tira
medalha”. Neste desafio, o graduado tentaria tirar a medalha do peito do
formando com os pés, manchando assim a roupa e a dignidade deste. Se no
final do jogo a medalha estivesse ainda no peito do formando, este era
considerado pela escola regional baiana como formado. Por último, eram
realizadas atividades festivas com apresentações de maculelê, samba de roda,
samba duro e candomblé (BRASIL, 2007, p. 60).
Por fim, na Capoeira Regional de Mestre Bimba também existiam os cursos de
especialização realizados com alguns alunos formados. Este novo processo consistia em
13 Trecho retirado do vídeo documentário “Mestre Bimba e a capoeira iluminada”. Direção de Luiz
Fernando Goulart. Lumen Produções, 2005.
28
duas etapas de sessenta (60) dias sendo a primeira na Academia e a segunda na Chapada
do Rio Vermelho14
. O objetivo era melhorar as técnicas de ataque, uso e defesa de
armas brancas como porretes e facas de oponentes mais treinados e perigosos. Estes
aprendizados estavam ligados aos cotidianos destes praticantes sendo de extrema
importância no currículo do praticante desta escola.
Assim, semelhantes às técnicas de guerrilha, os futuros especialistas tinham que
atingir determinados objetivos passando por armadilhas e espreitas feitas pelos
veteranos do grupo. Ao término, o aluno recebia o lenço vermelho do Mestre Bimba e
uma festa aos moldes de uma formatura era realizada.
É importante destacar que tanto Mestre Bimba como Mestre Pastinha, que logo
seguiremos, tinham o interesse de inserir as Capoeiras nas esferas oficiais e dominantes
da sociedade brasileira. Cada Mestre com seu estilo e à sua maneira fazendo diversos
“consumos” e “usos” desta prática.
A Capoeira Regional de Mestre Bimba foi construída nos moldes e modelos
acadêmicos e militares dominantes daquele período, utilizando seus respectivos
processos e modos de produção, que priorizavam os aspectos marciais e esportivos
como também os elementos culturais e artísticos.
Além disto, esta Capoeira era sistematizada aos modelos das atividades físicas
eurocêntricas dotadas de técnicas e sequências de ensino como também de exames e
avaliações. Existia uma forte hierarquia e um disciplinamento do corpo que se
assemelhava com o que existia na escola formal ou nas forças militares, havendo um
forte sistema de avaliação que também promovia a exclusão daqueles que não
atendessem às exigências físicas e psicológicas do aprendizado desta Capoeira.
Entretanto, os saberes e os processos não se resumiam apenas a isto, mas também a
momentos dotados de invenção, criatividade e emoção.
Hellio Campos (2009), que também foi um dos alunos do Mestre, nos conta que
a primeira aula era um momento de muito significado para alguns alunos do Mestre
Bimba, pois o Mestre levava o iniciante até o centro da roda, para ensinar-lhe a gingar
com as mãos dadas. Para ele:
Este ensinamento extrapola o espaço físico da roda de capoeira, ele remete o
aluno ao espaço cósmico do entendimento das coisas do mundo. O gingar
representa estar em constante movimento circular, de comportamento fluído e
relaxado. A ginga é pessoal e permite que o capoeirista se desloque em
esquivas, em vários ângulos, visualizando a roda como um todo, com um
14 Bairro da cidade de Salvador – BA próximo ao horto florestal onde era realizado as emboscadas.
29
olhar periférico. Esse parece ser um comportamento sábio para viver melhor
o mundo contemporâneo no sentido da convivência humana e dos desafios
incessantes (CAMPOS, 2009, p. 130-131).
Isto nos mostra um conhecimento produzido com o cotidiano da Capoeira
Regional e com figura de Mestre Bimba, construído no primeiro encontro de um
cotidiano fabricado também com afetos, emoções e sentimentos de mundo para além
dos modos dominantes, que constroem alienação e opressão.
A criatividade também era uma das características do Mestre, pois certa vez,
indagado sobre como escaparia da morte, por um jornalista que apontava uma caneta
para sua boca simulando ser um revólver, Mestre Bimba surpreendeu respondendo que
morreria, ao invés de inventar uma “saída” ou algum “golpe mirabolante”, não
correspondendo às expectativas de todos. A lição ensinada era que coragem e burrice
são coisas completamente diferentes, e que, em algumas situações de desvantagem,
seria melhor refletir e se retirar do que enfrentar e sofrer possíveis consequências
(CAMPOS, 2009, p. 131).
Aqui neste episódio, o esforço em perseverar e se manter vivo produziu um
processo de singularização que estava mais próxima da ideia de inteligência ligada à
covardia, do que da ideia de valentia ligada à burrice.
As tramas cotidianas e os episódios inesperados do dia a dia da academia
produziam outros tipos de conhecimentos e de saberes nos alunos praticantes, pois por
meio de outros processos, o “Mestre Bimba tinha uma maneira toda peculiar de tratar as
situações inusitadas e os problemas que surgiam nas aulas, na academia e até durante as
apresentações do grupo folclórico” (CAMPOS, 2009, p. 151).
Mestre Itapoan (apud CAMPOS, 2009) conta a respeito de um acontecimento
inusitado relacionado a um aluno formado de Mestre Bimba, estudante de medicina
apelidado de Canhão, que ficou famoso por ser um capoeirista flexível, malvado e
possuidor de golpes potentes e duros. Certa vez, após se atracar e ir ao chão com Hélio
carioca, Canhão utilizou de uma mordida no braço do seu adversário levantando-se a
desferindo um golpe em um iniciante que nada tinha com o ocorrido. Logo, em defesa
do iniciante, o Mestre, sem conversa, expulsou Canhão da academia por indisciplina.
Após alguns dias, Canhão foi visto novamente treinando na academia e quando
perguntado, Mestre Bimba respondeu: “olha Itapoan, o cara estuda medicina, vai que eu
um dia precise tomar uma injeção e ele em vez de aplicar uma para viver ele aplica uma
para matar. É melhor deixar o homem por aí” (CAMPOS, 2009, p. 153).
30
Neste caso, Mestre Bimba surpreendia, inventava e usava das próprias regras de
disciplina instituídas na sua escola demonstrando uma astúcia pautada na aproximação e
não na exclusão daqueles que de alguma maneira representavam o perigo, ou que
poderiam ter futuramente alguma utilidade. Assim, nesta escola e na figura de Mestre
Bimba, assistimos tanto às normas, os regulamentos, as hierarquias e a produção dos
processos de subjetivação e individualização, quanto também os consumos e usos, os
afetos, as invenções e as astúcias em táticas e estratégias, além da criatividade de
processos de singularização, que também fabricaram diferentes saberes e modos de
viver daqueles praticantes que vivenciaram aquele espaço cotidiano.
2.2 Mestre Pastinha e o Centro Esportivo de Capoeira Angola
O Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), nasceu pelas mãos de Vicente
Ferreira Pastinha, também conhecido como Mestre Pastinha (figura 8), na cidade de
Salvador, na Bahia. Assim, descrever a respeito deste Centro é um grande desafio, pois
ele representa um estilo de Capoeira (Angola) que não possui um criador, mas vários
Mestres representantes que versam suas histórias e trazem múltiplas informações e
experiências através da oralidade e da oitiva. Alguns destes Mestres como Canjiquinha,
Waldemar da Liberdade, Cobrinha Verde, Noronha, Totonho Maré, Pastinha e tantos
outros mostram a diversidade nas formas de se fabricar a Capoeira Angola (IPHAN,
2007).
31
Figura 8- Mestre Pastinha15
.
Campos (2009) conta que o primeiro Centro de Capoeira Angola do Estado da
Bahia estava localizado na Ladeira da Pedra, no Jingibirra, Bairro da Liberdade, em
Salvador. Este Centro foi criado e frequentado por grandes Mestres e, após “Aberrê”
apresentar Mestre Pastinha a “Amorzinho”, guarda civil e guardião da roda, o Centro e
sua roda foram entregues a Mestre Pastinha, que passou a dar uma “nova roupagem” à
Capoeira Angola.
Mestre Pastinha nasceu no dia 5 de abril de 1889, filho de um comerciante
espanhol chamado José Pastinhã e uma negra baiana chamada Raimunda dos Santos.
Ele morreu no dia 13 de novembro do ano de 1981 iniciando sua prática na capoeira aos
dez anos de idade e:
Seu mestre foi Benedito, um negro natural de Angola. Do mesmo modo que
Bimba e tantos outros mestres, Pastinha aprendeu a capoeira “de oitiva”,
freqüentando e vadiando nas rodas da cidade de Salvador. Durante toda a sua
adolescência, freqüentou a Escola de Marinheiros onde, segundo seu relato,
ensinou capoeira nas horas vagas para seus colegas de arma. Saiu da Marinha
aos 20 anos. Trabalhou de engraxate, vendendo gazetas, no garimpo e na
construção do porto de Salvador (BRASIL, 2007, p. 61).
A partir daquele encontro com Mestre Aberrê, Mestre Pastinha passou a ser uma
liderança com a responsabilidade de organizar a Capoeira Angola e aglutinar os
interesses e objetivos comuns dos seus praticantes. E, após algumas iniciativas, em
1952, o Centro Esportivo de Capoeira Angola foi registrado inicialmente no Largo do
15 Fonte:
<https://www.google.com.br/search?q=foto+mestre+pastinha&tbm=isch&source=iu&ictx=1&fir=F6vyp
p9QtGfPOM%253A%252CFX-UEqHxiVKozM%252C_&usg=__XKyWC6fucJNaBz-
5OJ1jazyjMdQ%3D&sa=X&ved=0ahUKEwiPnoChwt3aAhUIIJAKHd7pCgYQ9QEIQDAL#imgrc=f9g
ElhKRKFlAhM:>. Acesso em: 07/01/2018.
32
Pelourinho, nº19, se mudando posteriormente, para a Rua Gregório Mattos nº51, na
cidade de Salvador, na Bahia (CAMPOS, 2009).
Preocupado com a situação da Capoeira na Bahia, Mestre Pastinha, assim como
Mestre Bimba, buscou trilhar caminhos oficias para que a prática da Capoeira deixasse
de ocupar um lugar marginal sofrendo com a opressão e a resistência à aceitação social.
Para o Mestre: “o capoeirista tinha que defender, a qualquer custo, sua integridade
física, emocional e moral; defender uma causa muito maior, seu povo, seus costumes e
sua cultura” (CAMPOS, 2009, p. 42).
Através de Mestre Pastinha, o CECA fundamentou a Capoeira Angola e suas
características singulares que não permitem a mescla da Capoeira com outras
modalidades esportivas e de lutas. Além disto, os rituais possuem um lugar de destaque
na prática dos movimentos, cantos e toques havendo algumas hierarquias e regras que
buscam auxiliar o aprendizado. No CECA havia uma dinâmica estruturada por Mestre
Pastinha que criava funções aos praticantes como; o treinel, responsável pelas aulas, o
contra-mestre e o Mestre de bateria, Mestre de campo, Mestre de canto, Mestre de
treino, Mestre fiscal (FALCÃO, 2004) e, o juiz, responsável pela organização da roda.
O uso do uniforme também é um elemento que aparece na calça preta e na
camisa amarela em homenagem ao time de futebol Ypiranga da Bahia, para o qual
Mestre Pastinha torcia. Apesar disto, a roupa branca e a indumentária é bastante
discutida neste estilo mostrando a diversidade desta questão, pois como Mestre Bola
Sete (Apud CAMPOS, 2009, p. 44) disse:
Em nossa terra, os capoeiristas do passado, nos dias de trabalho, usavam
camisa de alinhagem, urucubaca ou bulgarina, calça bem folgada de
pantalona ou qualquer outro tecido barato, arregaçada quase até o joelho,
chinelos de chagrin ou descalços. Nos domingos trajavam-se com mais
esmero. Vestiam a “domingueira”, que geralmente era de linho branco,
amarravam um lenço de esguião de seda no pescoço, que tinha como
finalidade proteger do suor o colarinho da camisa, além de servir como
defesa contra a navalha, pois, como sabemos, a navalha não corta seda pura;
sapato de bico fino e uma pequena argola de ouro na orelha esquerda, que era
uma característica dos negros angola.
No CECA, os praticantes não deveriam jogar descalços ou sem camisa.
Priorizava–se quase sempre o lado artístico, folclórico e lúdico do jogo, além do treino
dos cantos e toques dos instrumentos. Para Falcão (2004), a noção de esporte produzida
por Mestre Pastinha é “original” nas suas ações e contradiz a noção hegemônica do
esporte de rendimento dominante em todo mundo, como um exemplo criativo de uso e
tática.
33
A bateria também era nomeada de “orquestra” e possuía seu Mestre, além de ser
definida com três berimbaus (gunga, médio e viola), dois Pandeiros, um Atabaque, um
Agogô e um Reco-Reco. (Figuras 9 e 10).
Figura 9- Berimbaus: gunga, médio e viola16
.
Figura 10- Berimbau, atabaque, pandeiro, agogó e reco reco17
Mestre Pastinha enfatizava que a Capoeira deveria ser praticada com respeito à
integridade física do outro, apesar de ser um instrumento de defesa pessoal, com valores
éticos de lealdade e respeito aos colegas, às regras e às construções coletivas. Outro
ponto destacado por Mestre Pastinha era o trabalho espiritual dos seus praticantes e a
ligação desta Capoeira com a esfera religiosa, neste caso com as religiões de matrizes
africanas.
16 Fonte: <http://www.lojafiodanavalha.com/imagem/index/7229284/G/berimbau_valmir_taipoca.jpg>.
Acesso em: 07/01/2018. 17
Fonte:<http://www.capoeirasantander.es/wp-content/uploads/2014/12/instrumentos.jpg>. Acesso em:
07/01/2018.
34
Os saberes da “malícia” e da “mandinga” eram valorizados permitindo a
dissimulação, a expressividade e a singularidade do jogo, dos movimentos, dos cantos e
toques dos praticantes. Isto permitiu pensar a Capoeira com a diferença dos praticantes
através dos seus estilos pessoais, artísticos e expressivos.
Os rituais eram modos extremamente importantes na transmissão dos saberes
para Mestre Pastinha, pois os procedimentos de entrada e saída da roda, as chamadas18
,
a relação dos cantos e dos toques com o jogo foram pensados detalhadamente. Para ele:
“A capoeira é sem dúvida uma atividade física, um esporte e uma luta, mas é também
uma reza, um lamento, uma brincadeira, uma vadiação, uma dança, um canto, uma
comunhão” (BRASIL, 2007, p. 64).
Para Campos (2009), Mestre Pastinha “sempre foi tido como um filósofo da
Capoeira” (p. 45), e, muitas das suas frases nos vídeos e manuscritos deixados por ele,
refletem uma análise da esfera múltipla desta prática na sua vida e na de outros
praticantes. Assim, para Mestre Pastinha19
, a sua capoeira “é pra homem, menino e
mulher”, “é mandinga, é manha, é malícia, é tudo que a boca come” e ”mandinga de
escravo em ânsia de liberdade”.
A maneira reflexiva e refinada no trato com a sua prática fazia de Mestre
Pastinha um educador que buscava elevar o status da sua Capoeira, almejando sua
continuidade através de uma prática que promovesse a igualdade dos seus praticantes.
Para isso, deixou seguidores, sendo “João Pequeno” e “João Grande” considerados
como os mais importantes na continuidade ao trabalho do Mestre.
Entre as décadas de 1970 e 1980, Mestre Pastinha passava por dificuldades
financeiras e de saúde, e nomeou os dois alunos para a tarefa de continuar o seu trabalho
dizendo: “na minha academia tem dois meninos, todos os dois se chamam João: um é
cobra mansa, o outro é gavião, um joga no ar, o outro joga enroscado no chão”
(CAMPOS, 2009, p. 45). João Pereira dos Santos, conhecido como Mestre João
Pequeno, nasceu no dia 27 de dezembro de 1917, na cidade de Araci, estado de Bahia, e
morreu no dia 9 de dezembro de 2011. Filho de vaqueiro, já conhecia a prática da
Capoeira quando conheceu Mestre Pastinha em Salvador, e logo se tornou assistente nas
18 É o momento do jogo em que um dos jogadores para em pé de frente ou de costas, a espreita
descansando ou preparando uma “emboscada” para o outro que deverá aproximar-se cuidadosamente para
um bailado simulado. As chamadas representam um dos rituais mais característicos da Capoeira Angola. 19
Mais informações e falas de Mestre Pastinha no vídeo documentário: “Pastinha! uma vida pela
capoeira”. Direção de Ântonio Carlos Muricy, 1998.
35
aulas para os alunos menos experientes sendo, segundo Mestre Decanio (apud
CAMPOS, 2009), “o mais fiel aos ensinamentos do Mestre”, dando continuidade ao
trabalho e ainda jogando a sua Capoeira até os 80 anos de idade20
.
Segundo Campos (2009), Mestre João Pequeno foi muito importante na
reestruturação do estilo Angola, principalmente numa época em que Mestre Pastinha já
não possuía mais forças para tal tarefa. No final dos anos de 1970, instalou sua
academia no Forte Santo Antônio, se tornando referência do estilo Angola para os
praticantes de todo o mundo. Este Mestre tem levado e divulgado sua Capoeira a todos
os lugares do planeta através de cursos, palestras e workshops e a participação em
eventos.
Diante disto, ele tem recebido muitas homenagens sendo uma delas o título de
Doutor Honoris Causa, outorgado em 18 de dezembro de 2003 pela Universidade
Federal de Uberlândia. Além disto, Mestre João Pequeno influenciou vários praticantes
e um dos nomes mais importantes foi João Oliveira dos Santos, Mestre João Grande,
nascido em 15 de janeiro de 1933, na cidade de Itagi, litoral sul da Bahia.
Mestre João Grande nasceu e foi criado na roça, e aos dez anos começou a
trabalhar nas fazendas até os vinte anos de idade, quando se mudou para a Salvador,
onde trabalhou como carregador, biscateiro e empregado doméstico (CAMPOS, 2009).
João Grande conheceu Mestre Pastinha através de João Pequeno e logo estreitou sua
relação com o Mestre aumentando seus laços com a academia. Isto o fez se encantar
com as histórias de Pastinha e, muitas vezes, “chegar mais cedo” aos treinos para ouvir
os conselhos e a filosofia daquela Capoeira.
Além disto, Mestre João Grande destacou-se no meio capoeirístico pelo
compromisso, empenho e pela forma simples de jogar sua Capoeira. Sua experiência
internacional com a prática da Capoeira iniciou no ano de 1966, na excursão promovida
por Mestre Pastinha, ao 1º Festival Mundial da Arte Negra em Dakar, no Senegal. Após
isto, outros convites foram aceitos em excursões pelo Brasil, Europa, Ásia e África,
chegando ele a integrar o grupo folclórico; “Viva Bahia”, coordenado por Emília
Biancardi.
20 Mais informações a respeito de Mestre João Pequeno no documentário: “O Velho Capoeirista: Mestre
João Pequeno de Pastinha”. Direção de Pedro Abib, 1999. Disponível em:<
https://www.youtube.com/watch?v=MUp2Y7myKtU>. Acesso em: 04/01/2018.
36
Conhecido também como “Gavião”, nas palavras de Mestre Pastinha, João
Grande radicou-se definitivamente em Nova York, nos Estados Unidos, onde ministra
aulas da sua Capoeira angola até hoje, na sua Academia (CAMPOS, 2009, p. 48).
Assim, um dos maiores reconhecimentos de outro país a prática da Capoeira e ao
trabalho de semear a cultura afro-brasileira e a língua portuguesa pelo mundo, foi o
recebimento do título de Doutor Honoris Causa, em 1995, cedido pela Upsala College,
em New Jersey, e o National Heritage Fellowship Award, em 2001, maior prêmio
concedido pelo Governo americano para artes folclóricas, tradicionais e manifestações
culturais (CAMPOS, 2009, p. 49).
2.3 Capoeira Regional e Angola: aproximações e distanciamentos
Para Mestre Pastinha, a Capoeira é de origem africana com suas raízes no
N’golo, uma dança- luta de iniciação à puberdade, de Angola, enquanto que para Mestre
Bimba, a origem da Capoeira vem do Recôncavo Baiano, justificando o nome Regional
que ele colocou na sua invenção.
Falcão (2009) levanta o debate/embate a respeito das Capoeiras
Regional/Angola e a contribuição a respeito dos processos identitários deste universo.
Entendemos que, nestes processos identitários, se constituem modos de existir que se
produzem também nos processos de individualização e de singularização da Capoeira
em questão.
Alguns Mestres, dependendo da sua escola e estilo, defendem a ideia da
Capoeira Angola estar ligada com um apelo forte na tradição, na africanidade, na
religiosidade e na mandinga, enquanto a Capoeira Regional tem um apelo pela
eficiência marcial, corporal e esportiva. Isso é questionável, pois a Capoeira de Mestre
Bimba tinha suas tradições, suas normas e ritos africanos, além da clara ligação com o
candomblé.
A Capoeira Angola de Mestre Pastinha também possuiu conexões com o modelo
de escola oficial adotando cartilhas, regras e os estatutos, com tipos de treinamento e
exercícios específicos, hierarquias e rotinas pré-estabelecidas. Entretanto, alguns
praticantes da Capoeira Angola insistem no discurso totalizador desta Capoeira ser
37
considerada mais “tradicional” ou “verdadeira”, desvinculada de métodos ginásticos
dominantes e modos hegemônicos ligados à esportivização da prática, sendo a
transformação da Capoeira em esporte vinculada apenas à Capoeira Regional
(FALCÃO, 2004).
Seguindo uma passagem encontrada nas suas obras, Mestre Pastinha confirma o
caráter esportivo da sua escola de Capoeira Angola dizendo: “É bastante elevado o
número de pessoas cuja idade ultrapassa os 60 anos, que praticam desde a juventude
este admirável esporte, possuindo uma agilidade e flexibilidade de articulações que
impressionam” [...] (apud FALCÃO, 2004, p. 42). Contudo, muitos praticantes do estilo
Regional discursam a respeito da ineficiência da Capoeira Angola como luta marcial
devido à sua lentidão e seu jogo folclorizado. Ao contrário, os praticantes desta
Capoeira argumentam a legitimidade deste estilo como “Capoeira mãe”, com sua
autêntica essência africana ligada à raça negra, criticando Mestre Bimba e sua escola, de
“embranquecer” a prática da Capoeira.
Mesmo diante do dualismo e destes discursos de legitimidade e essência destas
Capoeiras, tanto das escolas de Capoeira Angola quanto das escolas da Capoeira
Regional, há particularidades e singularidades que escapam dos discursos e das noções
universais que tratam as Capoeiras como uma prática homogênea. As normas, regras e
hierarquias existem e variam dentro dos próprios estilos e escolas e, muitas vezes são
subvertidas pelos movimentos que fogem e se produzem pelas “brechas”, engendrando
maneiras de viver pelos processos de subjetivação, dotados de astúcia e ignorância, de
invenção e reprodução e de liberdade e servidão tanto das ideias, quanto das ações.
Vale ressaltar que essa estruturação que descrevemos, tanto da escola da
Capoeira Regional de Mestre Bimba, quanto da escola da Capoeira Angola de Mestre
Pastinha, foram responsáveis também pela produção das subjetividades de muitos
outros praticantes influenciando os comportamentos e os modos de viver destes sujeitos.
Isso ainda acontece nos dias atuais, em variados espaços sociais voltados para a
disseminação e o ensino/aprendizado desta prática; como os grupos, as escolas e as
academias contemporâneas espalhadas atualmente pelo mundo.
2.4 As múltiplas Capoeiras no Brasil
38
Após a década de 1930, a prática da Capoeira iniciou seu processo de
modernização com o surgimento de muitas outras escolas e academias ligadas
implicitamente ou explicitamente aos fundamentos da Capoeira Angola ou Regional,
modificando a organização dos grupos, dos locais e dos espaços voltados para a prática,
além da mudança na forma de aprender e de jogar a Capoeira. Assim:
Nos últimos anos, a capoeira ganhou o Brasil e o mundo, e as escolas
contemporâneas tiveram que se reorganizar a partir de princípios próprios e
distintos. Há uma recuperação dos valores tradicionais da capoeira angola no
que tange às formas de ensino e aprendizado, em que se pretende trazer de
volta o método tradicional da “oitiva”, resistindo a seu modo ao processo de
escolarização formal. Desta maneira, estamos diante de duas tradições de
ensino e aprendizado que atravessaram a história da capoeira. O modelo da
escola tradicional, voltado para a sistematização, racionalização e
competição, em que o importante é o resultado ou a eficiência do processo de
aprendizado, e o modo inspirado na forma antiga de aprender, na qual a
vadiação, a brincadeira e a estética tornam-se base (BRASIL, 2007, p. 67).
O movimento de folclorização da cultura negra produziu alguns efeitos como a
expansão de algumas manifestações culturais. Com este foco, as academias de Capoeira
se voltaram para o ensaio de coreografias e apresentações culturais pelo Brasil, que
acarretaram principalmente em um efeito de migração de muitos baianos para os
Estados do Sudeste contribuindo para expansão da capoeira pelo Brasil.
Nomes como do Mestre Arthur Emídio, nos anos de 1950, que construiu sua
história na Capoeira carioca através do seu grupo na zona norte do Rio de Janeiro,
manteve alguns fundamentos como a instrumentação e as apresentações folclóricas, mas
não possuía ligação alguma com as escolas de Mestre Bimba ou de Mestre Pastinha.
Depois disto, no ano de 1964, após retornarem da Bahia, os irmãos Paulo e
Rafael Flores trouxeram os ensinamentos de Mestre Bimba depois de alguns meses
aprendendo a Capoeira. No ano de 1966, após a junção de mais alguns amigos como
Mestre Gato e Mestre Gil Velho, o grupo se intitulou como “Senzala”, que acabou
recebendo a visita de Mestre Bimba. Além disto, o grupo acabou também vencendo
algumas competições e ganhando notoriedade nacional (BRASIL, 2007).
Outro aluno de Mestre Bimba que contribuiu para a fabricação estratégica de
outra Capoeira foi Carlos Sena, criador da Senavox, um método de Capoeira mais
estilizado voltado para o esporte, mas com um forte regimento de organização,
estruturação e sistematização da Capoeira conectada ao Regime Militar e à
Confederação Brasileira de Boxe. Mestre Sena diz ser o inventor dos cordões que
utilizam as cores da bandeira e que foram oficializados em 1972. Este estilo não
39
prosperou devido à sua hierarquia, fortemente baseada no Regime Militar (BRASIL,
2007).
Na década de 1960, um grupo de baianos rumou a São Paulo para tentar a vida e
acabou sendo responsável pela disseminação da Capoeira pelo Estado. Mestres como
Suassuna, Brasília, Ananias, Acordeon, Limão, Silvestre vinham das escolas dos
grandes Mestres Canjiquinha, Caiçara e Bimba. Mestre Suassuna lembra que, por
muitas vezes, ele e Mestre Brasília se exibiam na Praça da República demonstrando as
habilidades da prática e realizando também muitas “brigas coreografadas” que
impressionavam quem estava assistindo. Seguindo esta rede, nossa história nas
Capoeiras, bem como as histórias de dois (dos três) grupos pesquisados estão ligadas ao
grupo fundado Mestre Suassuna e Mestre Brasília chamado Cordão de Ouro.
2.5 As Capoeiras Contemporâneas
Atualmente, os grupos que mais correspondem as estas escolas das Capoeiras
Contemporâneas são os grupos Senzala, Abadá e Capoeira Brasil no Rio de Janeiro e o
grupo Cordão de Ouro e Cativeiros em São Paulo, mas existem muitos outros (BRASIL,
2007). Algumas das características se assemelham no “uso” dos cordões e cordas, na
instrumentação voltada pela formação da bateria do estilo Capoeira Angola, mas com o
jogo atlético e combativo da Capoeira Regional (BRASIL, 2007). Vale desatacar o
aumento no número de escolas, grupos e academias de Capoeira pelo Brasil e pelo
mundo, não havendo um órgão ou uma instituição central que regularize e controle as
ações destas escolas e grupos. No Brasil, são mais de cinco milhões de praticantes,
sendo as Capoeiras hoje também praticadas em mais de 150 países dos cinco
continentes do planeta.
Portanto, essa prática de Capoeira, agora intitulada de Contemporânea pelo
Dossiê do IPHAN, mistura elementos das duas escolas anteriores, e nos faz pensar na
miscigenação e na produção de outros elementos e estilos que se encontram ligados aos
valores e modos de vida da sociedade brasileira e capitalista, presentes nas diversas
práticas sociais e coletivas da contemporaneidade.
40
Falcão (2004, p. 44) levanta uma questão interessante a respeito da Capoeira
Contemporânea nos indagando: “será que é mesmo possível falar de uma capoeira
contemporânea, ou de aspectos da contemporaneidade na capoeira?”. Assim, ele reflete
que:
Talvez, pela dificuldade de cultivar fielmente os códigos e preceitos
“verdadeiros” de uma e/ou de outra vertente de capoeira, expressiva leva de
líderes de grupos vem se autodenominando praticante de “capoeira
contemporânea”- expressão que incorpora referências das duas escolas
clássicas e ainda permite uma abertura as novas possibilidades (FALCÃO,
2004, p. 44).
Ele nos diz que uma realidade aponta que a Capoeira na contemporaneidade
produz um deslocamento e incorpora diversos fluxos que obrigam os professores e
Mestres a estabelecerem relações de respeito mútuo diante das múltiplas verdades
construídas que escapam ao controle destes praticantes. Portanto, para Falcão (2004, p.
46), “A capoeira, na contemporaneidade, vem adquirindo/conquistando novas
roupagens, incrementadas pelo consumo e pelos diversos mecanismos de divulgação e
circulação de mercadorias”. Isso tornaria os praticantes um mosaico de identidades
múltiplas criando, assim, “múltiplas Capoeiras” evidenciando que a identidade não é
uma entidade absoluta.
Primeiro, preferimos conectar a ideia das “Capoeiras Contemporâneas” ao
movimento de reprodução/invenção das práticas como produtos da vida cotidiana, sob a
perspectiva de consumo e uso de Certeau, que impossibilita a manutenção fiel destes
códigos e preceitos, já que buscamos acompanhar os processos de fabricação da cultura
e, consequentemente das múltiplas Capoeiras pelas invenções dos praticantes
cotidianos. Estes processos de invenção e criação ocorrem simultaneamente aos
processos de manutenção e individualização das subjetividades dos praticantes
agenciando singularidades através dos encontros, dos acontecimentos, dos afetos e das
ideias.
É interessante refletirmos a respeito da produção da cultura ou de uma prática a
partir de conexões, ligações e de redes de relações. As realidades das Capoeiras
Contemporâneas ou das contemporaneidades nas Capoeiras produzem conexões e
fluxos de deslocamento que podem estabelecer relações democráticas e de respeito
mútuo entre os praticantes independente das hierarquias e das regras das escolas, grupos
ou estilos.
Portanto, a produção da prática das “Capoeiras Contemporâneas” não se
encontra ligada apenas ao nível macro, normativo e coletivo das escolas, dos grupos e
41
estilos, mas ao nível micro das subjetividades de cada praticante com suas redes,
compostas pelas esferas de ordem psíquicas, pelas experiências de vida, pelas crenças,
normas e valores. Assim, Falcão (2004) tenta resumir desta forma:
A “capoeira contemporânea”, se é que é possível falar desta forma, constitui-
se como um amálgama que mistura o formal e o informal, o sagrado e o
profano, o científico e o senso comum, o erudito e o popular, o coletivo e o
individual, a tradição e a modernidade. Não porque se trata de um novo
“estilo” de capoeira. Trata-se de uma nova forma de conceber e realizar seus
fundamentos (p. 47).
Esta contemporaneidade “das Capoeiras” continua produzindo saberes e
conhecimentos através de currículos e processos de formação que também fabricam a
figura do “professor/profissional da Capoeira” pelas relações econômicas, conectando
estes praticantes ao mundo do trabalho. Praticantes, Capoeiras, trabalho, religião e
educação se encontram enredados em coproduções coletivas e particulares.
2.6 As Capoeiras e seus saberes em diálogos com a Educação
A produção do conflito entre o Mestre de Capoeira sem formação Acadêmica e o
Professor de Educação Física é evidente. E, diante de um mercado que reconhece e
valoriza financeiramente a formação institucional da universidade, essa é apenas uma
possibilidade de tensão desta contemporaneidade, pois, muitos profissionais de
Educação Física que trabalham com a prática da Capoeira em escolas, universidades e
projetos financiados pelo Governo não possuem a formação empírica, baseada na
vivência e na experiência com as escolas e os grupos.
Isto torna relevante pensar e discutir mais adiante os processos de
formação/profissional dentro “das Capoeiras” e a entrada “das Capoeiras” no currículo
universitário brasileiro. Falcão (2004) também questiona qual é a relação da Capoeira
com o jogo mais amplo ligado aos processos de (re) estruturação do Estado e as forças
produtivas–trabalho e trabalhador. Ele nos diz:
A capoeira não está incólume a toda essa avalanche destrutiva e, mesmo que
suas influências não se verifiquem de forma imediata nas experiências
concretas dos capoeiras na roda, elas incidem, de forma mediata,
determinando suas condições de vida, sua prática social, seus desejos e
necessidades. Daí a exigência de tratá-la pedagogicamente em sintonia com o
conjunto de forças confrontacionais que possam resistir e transformar essa
perversa realidade levada a cabo pelo processo de reestruturação capitalista e
de mundialização do capital. Caso contrário, as iniciativas particulares, ou de
42
pequenos grupos, mesmo que “inovadoras”, serão meras ilusões, facilmente
diluídas e cooptadas pela poderosa manipulação do sistema hegemônico
(FALCÂO, 2004, p. 61).
Portanto, as duas escolas de Capoeira (Angola e Regional) discutidas
primeiramente nos servem para refletir a respeito da diversidade na produção com as
Capoeiras no Brasil e das múltiplas possibilidades de construção desta prática
juntamente “com” as próprias instituições e grupos responsáveis pela construção dos
conhecimentos num “jogo” de invenção e criação, como também de alienação e
reprodução de lógicas de controle, hierarquização e normatização.
Acompanhamos nestas escolas, academias e grupos de Capoeira, movimentos de
uma abordagem educacional baseada no “saber/fazer” e nos conhecimentos práticos da
Capoeira que visavam traçar os caminhos que deveriam ser percorridos pelos
praticantes através dos currículos específicos da prática. Entretanto, pudemos perceber
que estes currículos foram dotados de realidades em movimento constante que
reinventavam cotidianamente os praticantes, as normas e de alguma forma as próprias
Capoeiras.
Atualmente, diante de um mundo atravessado por valores capitalistas e pelas
ideias ocidentais hegemônicas, a Educação apresenta-se como um dos maiores desafios
contemporâneos da humanidade. Assim, dentro deste contexto sócio econômico atual e
de processos de globalização homogeneizantes, a Educação mostra-se como uma
possibilidade imanente que, devido aos problemas sociais, econômicos e políticos, pode
agravar ou não as situações de desigualdade e injustiça no cenário de vários países em
desenvolvimento como o Brasil.
O combate deve ser contra as injustiças das ideias capitalistas que produzem
desigualdades e mensuram o crescimento econômico através de ciclos de produção
determinando a produtividade do trabalho do homem ou da natureza. Portanto, os
conhecimentos, os processos, as práticas e os espaços reconhecidos como legítimos na
promoção de uma Educação “verdadeira” estão ligados aos enquadres e moldes
advindos das lógicas do capitalismo que vêm se instalando hegemonicamente nas
instituições oficiais de ensino.
Isto acaba por desconsiderar outras práticas, como das Capoeiras, invisibilizando
outros espaços, métodos e saberes tecidos nas redes educativas dos sujeitos praticantes
de vários cotidianos múltiplos e ricos em potência, intensidade e criação. É neste
sentido que caminharemos com as próximas discussões.
43
Portanto, a discussão que seguiremos abarcará o currículo, mas um currículo que
se desvia por outros caminhos, sendo um currículo não estruturado oficialmente ou
legalizado pelas instituições de ensino, mas praticado nos enredamentos e nas relações
cotidianas. Discutiremos a própria prática da Capoeira “como” currículo praticado e
produzido nos encontros, nos sons, nas sensações e nos sentimentos.
Diante de um mundo composto por múltiplas realidades, e que se encontram
atravessadas por diversas questões e espaços/tempos cotidianos, entendemos que o
campo do currículo dialoga de diversas maneiras com várias práticas, como as
Capoeiras, tecendo mundos e formas de viver dos seus praticantes.
2.7 Currículos praticados e as Capoeiras
Nilda Alves (2013) nos apresenta uma proposta de currículo, ligado às pesquisas
com os cotidianos, em específico os escolares, “pensados e realizados nos diversos
graus de ensino” (p. 35) destacando o que ela chama de espaçostempos cotidianos que
ainda não possuem uma atenção devida. Neste sentido pensamos aproximar esta ideia
de currículo e de cotidiano às práticas “das Capoeiras” como espaçostempos outros.
Para esta pesquisadora, pensar num currículo com os cotidianos foi pensar em processos
de pesquisa que:
indicavam os espaçostempos políticos dos cotidianos – aqueles nos quais se
vive a vida, sofre-se as consequências de más ou mesmo indecentes políticas
oficiais, mas criam-se saídas às situações vividas, para se continuar vivendo
(ALVES, 2013, p. 39).
Assim, ela acredita que há outros conhecimentos praticados na informalidade
dos cotidianos. Conhecimentos estes tantas vezes ignorados, rejeitados ou fabricados
como inexistentes. As considerações de Alves fazem ressonância com as de Boaventura
Souza Santos (2002; 2007), quando este considera que o pensamento ocidental é
dominante há mais ou menos 200 anos e dotado de uma razão indolente e preguiçosa.
A indolência desta razão se dá de formas diferentes que tentam reduzir as
realidades que poderiam estar presentes nos cotidianos e também escondem as
diferenças e hierarquias das dicotomias “simétricas” instaladas como: homem/mulher;
branco/negro; norte/sul. Diante deste cenário, Boaventura (2002) propõe expandir o
44
presente através de uma sociologia das ausências, como também, contrair o futuro
através da sociologia das emergências.
Portanto, contrapondo a esta razão indolente, este autor nos propõe as
“sociologias” das ausências e das emergências, pois estas possibilitam atravessar os
conhecimentos oficializados num determinado tempo/espaço, produzindo visibilidade
de experiências possíveis que não são dadas a priori.
Segundo Boaventura, a sociologia das ausências “trata-se de uma investigação
que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como tal,
isto é, como uma alternativa não credível ao que existe” (2002, p. 246). O objetivo desta
sociologia é transformar objetos impossíveis em possíveis e assim transformar
ausências em presenças. Levanta, pois, questões como: o que existe nas Capoeiras que
independe e escapa dos currículos oficiais e dos saberes científicos? De acordo com este
autor, existem cinco lógicas de “não existência” que devemos combater e que vamos
apresentar tentando conectar com a produção da prática das Capoeiras de hoje.
A primeira lógica e mais potente, que devemos combater, é a monocultura do
saber, que coloca o saber científico como fonte única de um conhecimento universal,
pois:
Essa monocultura reduz de imediato, contrai o presente, porque elimina
muita realidade que fica de fora das concepções científicas da sociedade,
porque há práticas sociais que estão baseadas em conhecimentos populares,
conhecimentos indígenas, conhecimentos camponeses, conhecimentos
urbanos, mas que não são avaliados como importantes ou rigorosos. E, como
tal, todas as práticas sociais que se organizam segundo este tipo de
conhecimentos não são críveis, não existem, não são visíveis
(BOAVENTURA, 2007, p. 29).
Assim, os conhecimentos, os métodos, as práticas e os espaços reconhecidos
como legítimos na promoção de uma possível educação institucional dominante, estão
ligados aos enquadres e aos modelos produzidos por esta racionalidade ocidental
hegemonicamente instalada nas instituições oficiais de ensino. Este panorama acaba por
desconsiderar nas instituições de ensino, outros métodos, saberes, espaços e práticas,
como a própria prática da Capoeira, que se tecem às redes educativas dos sujeitos
praticantes de um cotidiano vasto, múltiplo e rico em potência, intensidade e criação.
Entretanto, podemos problematizar o próprio Universo “das Capoeiras”, com
seus diferentes saberes, escolas e estilos, que produzem e naturalizam diversos
currículos e conhecimentos considerados “oficiais” por alguns Mestres e Professores,
direcionando todos praticantes num tipo de aprender e de saber.
45
É neste sentido que pensamos os cotidianos com “as Capoeiras” de Viçosa,
buscando acompanhar quais currículos elas colocam em prática e quais são as redes
educativas que se conectam e atravessam seus praticantes, pois “dessa maneira, o
dentrofora que esses contatos permitem exige que pensemos bem largamente os
conhecimentos e os conteúdos que formam e conformam os currículos” [...] (ALVES,
2013, p. 41).
Diante disto, Nilda Alves (2013) nos fala que a compreensão deste dentrofora e
das marcas que todos nós carregamos a fez afirmar que é impossível os processos
sociais mais amplos, não estarem incorporados aos processos desenvolvidos nos
currículos. Portanto, as tantas marcas que carregam os praticantes das escolas e das
Capoeiras, foram criadas nas redes educativas vivenciadas pelos mesmos, dentrofora
destes mesmas Capoeiras.
Inês Barbosa de Oliveira (2013) nos fala, portanto, que os currículos não são
produções neutras e desencarnadas, mas “pensadospraticados” numa produção
curricular dos “praticantespensantes” cotidianos, para além das propostas oficiais das
escolas (e das Capoeiras) buscando compreender, com apoio em Certeau (1998; 2002),
as formas de invenção destas alternativas curriculares e as “artes de fazer” dos
praticantes marcados pelo local de reprodução. Assim, ela nos diz que:
Entendendo esses praticantespensantes como criadores de currículos nos
cotidianos, assumimos esse processo criador como resultado, sempre
provisório e, por isso, recriado cotidianamente, de diálogos e enredamentos
entre conhecimentos formais – advindos das diferentes teorias com as quais
entraram em contato em diversos momentos e circunstâncias de suas vidas –
e outros conhecimentos, dando origem, portanto, a currículos
pensadospraticados (OLIVEIRA, 2013, p. 47).
O nosso desafio é buscar compreender os modos que estes praticantes, que neste
caso pertencem às Capoeiras, produzem, consomem e usam de diferentes maneiras estas
Capoeiras. Para Oliveira (2013) toda criação curricular envolve processos de reflexão e
produção de ações enredadas em um movimento circular denominado de
“práticateoriaprática”, sendo que sua preocupação recai sobre o potencial emancipatório
do currículo praticado no cotidiano. Tal emancipação é entendida:
[...] como possibilidade de criação de relações mais ecológicas entre os
diferentes conhecimentos, temporalidades, culturas, escalas e sistemas de
produção, por meio da superação das monoculturas hegemônicas nas
sociedades ocidentais da atualidade, considerando indissociáveis o campo
epistemológico e o político (OLIVEIRA, 2013, p. 48-49).
Diante deste contexto, Oliveira (2013) nos fala da busca por desinvisibilizar
práticas sociais/educacionais não compreendidas ou percebidas nas lógicas das
46
monoculturas hegemônicas, amparando-se na Sociologia das ausências e emergências
que buscam ampliar o presente através do reconhecimento das experiências
desperdiçadas pela redução da realidade produzida pela razão indolente. Assim,
entendidos como invenção invisibilizada pelo pensamento hegemônico ocidental, esses
currículos praticados e seus saberes fabricados, seja nos cotidianos das escolas ou das
Capoeiras, podem e devem ser acompanhados e discutidos de maneira que possamos
compreender para além daquilo que neles obedecem às normas, às regras e ao controle.
Um dos nossos objetivos é dar visibilidade a uma possível multiplicação de
experiências emancipatórias que dialogam de alguma forma com as dinâmicas
apresentadas nos espaços das Capoeiras estudadas. Portanto, no campo desta pesquisa,
ao compreendermos estes currículos praticados como invenções nos cotidianos dos
praticantes das Capoeiras, estaremos observando os usos singulares que estes sujeitos
fazem das normas e regras que são dadas para o consumo. Assim, por meio de um
diálogo entre estas diferentes instâncias, apostamos na perspectiva que as redes de
conhecimento tecidas por estes praticantes constroem currículos emancipatórios
relacionados aos embates políticos e ideológicos que circundam todos os espaços da
sociedade brasileira, como as escolas, as Capoeiras e as políticas curriculares.
Acreditamos que, cotidianamente, são criados conhecimentos e saberes
relevantes não só para a vida, mas também para o desenvolvimento de múltiplas
Capoeiras e novas maneiras de praticá–las. Portanto, o cotidiano das Capoeiras não é
um espaço/tempo apenas para a mesmice e para a repetição das normas, regulamentos,
regras e gestos, mas um espaço/tempo que contribui para a invenção de conhecimentos
e saberes, para a produção dos sentimentos, pensamentos e para ações voltadas para a
emancipação social. Diante disto, à medida que esta emancipação desinvisibiliza outros
modos de produção de conhecimento que questionem as hegemonias e as relações
hierárquicas, ela permite reconhecer os praticantes como produtores de saberes,
valorizando outras formas de conhecer, ser e estar no mundo.
Na próxima etapa, vamos descrever os caminhos percorridos por esta pesquisa,
além dos passos seguidos por este pesquisador/ professor/praticante buscando uma
reflexão epistemológica e metodológica conectada às perspectivas das pesquisas com os
cotidianos, que aqui são dos grupos de Capoeiras de Viçosa-MG.
47
3 CAMINHOS COTIDIANOS
O cotidiano se inventa com mil maneiras da caça não autorizada
(CERTEAU, 2002, p. 38).
Acredito que para produzir uma pesquisa, é preciso construir caminhos nunca
antes percorridos, abrir trilhas por onde nunca passamos, sem saber para onde iremos.
Diante disto, para construirmos estes caminhos da pesquisa foi necessário experiencia-
lo, pois o cotidiano se faz como processo em constante movimento e dotado de
imprevisibilidade.
Assim, entendo as metodologias de pesquisa como movimentos e ações que
também têm que levar em conta o inusitado, a imprevisibilidade e o inédito, não
limitando este caminhar à representação de uma suposta realidade estática, mas
seguindo a diversidade dos processos que atravessam os sujeitos envolvidos na
composição de diferentes realidades.
Primeiramente, gostaríamos de anunciar que os caminhos desta pesquisa se
fabricaram também no meu próprio caminhar como pesquisador/professor/praticante de
Capoeira, pois me encontro mergulhado neste cotidiano, com suas tramas, conectado
aos outros sujeitos praticantes. Portanto, trata-se de uma pesquisa qualitativa que busca
investigar as produções de conhecimento e as diversas formas de viver, emergidos
através do uso (CERTEAU, 1997) cotidiano dos produtos que são colocados para o
consumo nos espaços/tempos das Capoeiras. E, diante deste contexto, “Guardadas as
devidas diferenças entre métodos distintos, a pesquisa qualitativa persegue o mundo
social através das interpretações dos fenômenos, buscando as vivências, as experiências
e a cotidianidade” (ROMAGNOLI, 2009, p. 167).
Alves (2003) indica um breve histórico de como as pesquisas dos/nos cotidianos
escolares se enredaram no Brasil e nos conta que existem algumas diferentes tendências
destes estudos, sendo a primeira delas de origem norte americana identificando o
cotidiano das escolas com a metáfora da “caixa preta” de origem na mecânica, na
tecnologia, na teoria de sistemas e no ensino das ciências no qual professores utilizam
deste objeto inventado para estimular a invenção e criação dos alunos na tentativa de
“imaginar” o que há dentro da caixa.
Num segundo momento, processos de pesquisa são desenvolvidos apoiados em
duas concepções, em que a primeira introduz a dimensão cotidiana nos estudos de
48
currículo para a compreensão da escola e das relações estabelecidas com a realidade
social. Metodologicamente, a participação ativa é necessária através de reuniões em um
processo nomeado de pesquisa participante. A segunda concepção indica a necessidade
do cruzamento de fontes como a observação do que se passa com a impossibilidade de
generalizações das conclusões.
Assim, inicia uma maneira de se pensar o cotidiano escolar incorporando a ideia
de complexidade e multiplicidade nos processos deste cotidiano. Posteriormente,
através de outros estudos do conhecimento dos múltiplos sujeitos, os
professores/pesquisadores são fundamentais no questionamento das diversas práticas
através das identificações e das análises nos processos de pesquisa. Isto possibilitou
intervenções no cotidiano das escolas que acabaram desenvolvendo alternativas às
propostas oficiais.
Outros estudos incorporaram o entendimento de descrever as escolas não só
pelos aspectos negativos, mas pelo que se faz e se cria como uma saída possível, sem
julgamentos de valor, estudando a realidade produzida pelos múltiplos sujeitos que a
praticam. Com os estudos culturais introduzidos no Brasil e a criação de grupos de
pesquisa em torno das questões emergidas dentro deles, foi possível a ampliação dos
trabalhos através da compreensão das relações entre os múltiplos cotidianos dos sujeitos
levando em consideração os aspectos culturais com os quais estes sujeitos tecem suas
relações.
Diante disto, variadas discussões em torno dos tantos cotidianos em que vivemos
nos dias de hoje fazem uma crítica ao modelo da ciência moderna, que, no seu
constituir, considerou os conhecimentos cotidianos como “senso comum” a ser
superado pelos conhecimentos científicos. Assim, Alves (2003) conclui que:
Buscando superar este entendimento moderno, vem sendo desenvolvida uma
série de reflexões que permitem, ao ensaiar respostas diferentes das
hegemônicas, avanços na compreensão do que são e do que podem
representar os chamados estudos culturais no/do cotidiano para a ampliação
do nosso entendimento a respeito de alguns processos sociais que foram
negligenciados pelo fazer científico, na modernidade (p. 65).
A partir deste contexto, Ferraço (2007) provoca uma reflexão sobre o cotidiano e
as pesquisas “com” o cotidiano, não fechando esta questão a uma estrutura ou sistema
universalizante, mas, pelo contrário, apontando para a complexidade da vida cotidiana e
suas invenções. Portanto, as pesquisas com o cotidiano indicam para o estudo da
complexidade, e uma diversidade de caminhos e outras possibilidades teórico-
epistemológico-metodológicas. Assim, a ideia é “superar o aprisionamento do cotidiano
49
em categorias prévias, e a impossibilidade de assegurar usarmos o singular para tratar a
diversidade que se manifesta na vida” (FERRAÇO, 2007, p.73).
Ferraço (2007) discute a respeito das redes saberes/fazeres e as invenções
cotidianas que extrapolam os limites territoriais do objeto de estudo, e que se encontram
conectadas a vários sujeitos cotidianos. O pesquisador ainda discute sobre os
movimentos de tessitura destas redes e sua influência na produção das questões de
pesquisa, que podem emergir cotidianamente diante das necessidades e dos usos dos
sujeitos. Este autor ainda defende que uma metodologia de análise a priori, que antecede
a experiência “com” o pesquisar, exclui a possibilidade do “fazer junto”; prevê, mas não
pode garantir o que poderá acontecer.
Para Ferraço (2007), as categorias, as estruturas e os conceitos se mostram como
elementos operacionais que facilitam as análises e embasam academicamente as
alternativas metodológicas. Contudo, neste trabalho, ao invés de uma estrutura e de um
sistema formal embasado na categorização, conceituação e classificação da vida
cotidiana, pensamos o cotidiano como “redes” de saberes/fazeres tecidos “junto” aos
sujeitos praticantes das Capoeiras (de variadas faixas etárias) dentro e fora dos
territórios e espaços (das academias, escolas e estilos) que contemplam o nosso “objeto”
(Capoeira) de pesquisa. Ferraço ainda destaca que “as redes não estão no cotidiano. Elas
são o cotidiano!” (2007, p. 78). Assim, ele conclui que:
Com isso, assumimos que qualquer tentativa de análise, discussão, pesquisa
ou estudo com o cotidiano só se legitima, só se sustenta como possibilidade
de algo pertinente, algo que tem sentido para a vida cotidiana, se acontecer
com as pessoas que praticam esse cotidiano e, sobretudo, a partir de questões
e/ou temas que se colocam como pertinentes às redes cotidianas. Isto posto,
precisamos considerar então que os sujeitos cotidianos, mais que objetos de
nossas análises, são, de fato, também protagonistas, também autores de
nossas pesquisas (FERRAÇO, 2007, p. 78).
Outro indício deixado por Ferraço (2007), e seguido por nós, é o de ser seduzido
pela vontade de ajudar os sujeitos praticantes deste cotidiano pelo fato da pesquisa
“com” cotidiano estar envolvida com “nós” mesmos, com nossas histórias, nossas
identidades e nossos lugares. Assim, a presente pesquisa com os cotidianos das
Capoeiras vem sendo tecida em processos de constituições das redes em diferentes
espaços/tempos vividos por sujeitos praticantes destas Capoeiras na cidade de Viçosa-
MG.
Por fim, nas pesquisas “com” os cotidianos há uma busca por “nós” mesmos e
pela realidade construída a partir das informações produzidas pelos instrumentos
metodológicos, juntamente com as percepções e análises do pesquisador/participante,
50
que deverão compor um mapa das redes emergidas (entre os sujeitos, o objeto e o
pesquisador) como uma entre múltiplas possibilidades de produção cotidiana dos
territórios, das identidades, da cultura e de formas de educar e de construção de
conhecimentos na cidade de Viçosa. Assim,
É neste sentido que a experiência da pesquisa ou a pesquisa como experiência
faz coemergir sujeito e objeto de conhecimento, pesquisador e pesquisado,
como realidades que não estão totalmente determinadas previamente, mas
que advém como componentes de uma paisagem ou território existencial.
Habitar o território da pesquisa permite compreender que o fenômeno
estudado é um mundo amplo e diversificado, tal como o mundo da capoeira
(ALVAREZ; PASSOS, 2010, p. 148).
Neste contexto, o pesquisador é introduzido numa rotina singular que não separa
ação e reflexão, teoria e prática, e que acolhe e ao mesmo tempo é acolhido na diferença
que emerge nas relações entre pesquisador e pesquisado, sujeito e objeto, eu e mundo.
Entretanto, não temos a pretensão de nomear uma metodologia específica para esse
trabalho acadêmico.
Nosso percurso metodológico constituiu-se ao “inventar” alguns movimentos
práticos para se produzir os dados. Posso descrever que, no primeiro movimento, me
lançava à campo nas aulas de capoeira como professor, com objetivos e planejamentos,
mas atento aos sinais como se estivesse num jogo da roda (da vida), sem qualquer
previsão ou planejamento prévio, apenas agindo e reagindo com a imprevisibilidade de
uma aula. Os acontecimentos fora das aulas ligados às tramas das Capoeiras também se
faziam como sinais e pistas de composições para o presente trabalho.
Um segundo movimento para produção dos dados, foi o que se utilizava da
memória para os registros e anotações das observações, dos fatos e das experiências
diárias em um caderno de campo usado como um diário para a descrição das rotinas das
aulas e dos acontecimentos dos encontros com os grupos posteriormente retomados
numa releitura em um processo de reflexão. Este diário depois passou a ser o
computador. Este exercício prático se repetia todas as terças e quintas, após as
observações obtidas na inserção do campo com o grupo da Ginga Brasil (grupo A) e
depois nos encontros com os outros dois grupos (B e C). O grupo A é identificado por
se tratar do grupo no qual pertenço e sou responsável.
As reflexões e os agenciamentos aconteciam muitas vezes horas, dias ou
semanas depois dos fatos, como também outras lembranças que emergiam no momento
da releitura e reescrita dos registros. As leituras e as referências teóricas nos
acompanharam o tempo todo nas reflexões, discussões e escritas.
51
As entrevistas foram os momentos de mais emoção e alegria que afetaram
alguns praticantes. Estes encontros aconteceram fora das salas de aula das Capoeiras e
em momentos específicos, geralmente nas residências ou espaços escolhidos pelos
entrevistados. As entrevistas constavam de 10 questões pré-estabelecidas a respeito do
contato dos praticantes com as rotinas, as normas e os outros praticantes que poderiam
abordar qualquer temática e/ou serem acompanhadas nos discursos e nas experiências
observadas no campo.
Portanto, realizei um trabalho de 3 meses de acompanhamento entre os meses de
setembro e dezembro de 2017, composto pelas anotações, descrições e, posteriormente,
análise das rotinas e acontecimentos das aulas do grupo a qual pertenço da academia
Ginga Brasil- Viçosa, que se intitula como uma Capoeira Contemporânea, e aqui é
representada nesta pesquisa como grupo A.
Para compor este trabalho, escolhi outros dois grupos pela proximidade com a
Ginga Brasil, mesmo sendo de escolas diferentes de uma Capoeira Contemporânea e
outra de Capoeira Angola. Distingui os 3 grupos por possuírem diferentes lideranças,
modos e espaços voltados para a prática das aulas. O nosso contato com os outros
grupos (B e C) da cidade foi realizado por meio de visitas, que chamamos de encontros,
nos dias e locais dos treinamentos. Neste universo das Capoeiras, é difícil o acesso às
rotinas dos grupos e aos discursos dos praticantes sem um vínculo anterior ou de
proximidade, devido às disputas por espaços e alunos e pelos confrontos de corpos e de
ideias.
A princípio, foram programados 3 encontros para o grupo B e mais 3 para o
grupo C, sendo 1 encontro voltado apenas para a observação, outro para a participação
direta nas atividades e um terceiro para as entrevistas, não havendo uma ordem definida
destas etapas. Portanto, com estes dois grupos utilizei 6 encontros para a construção dos
textos, sendo 3 em cada um deles.
Assim, na produção dos dados com os 2 grupos (B e C), foram realizados 2
encontros como observador-participante e 1 como entrevistador, sendo que somente
com o grupo A foram utilizadas 2 entrevistas, pois o grupo foi acompanhado durante 3
meses através da minha prática de atuação como Professor responsável pela academia
Ginga Brasil - Viçosa.
Estes grupos pesquisados serão apresentados pelas narrativas das nossas visitas
relacionadas a episódios do cotidiano e das rotinas do trabalho com a prática. Os
52
encontros foram com duas Capoeiras Contemporâneas e uma Capoeira Angola, estando
estes trabalhos voltados para crianças, jovens e adultos.
As narrativas de alguns praticantes estarão presentes nas conversas e nos
diálogos produzidos também longe dos gravadores, e podem nos dar indícios dos
processos de produções de saberes e afetos a se anunciarem em desejos e nas formas de
pensar, falar e agir. Realizamos no total 12 entrevistas semi–estruturadas somadas a
todos os grupos com os praticantes com mais de 6 meses de prática em cada, sendo 8
entrevistas no grupo A e 4 entrevistas voltadas para os praticantes e responsáveis pelos
grupos B e C. Para todas as entrevistas, utilizamos os apelidos (usados ou não nas
Capoeiras), com a devida autorização, como forma de identificar o praticante no
trabalho e ao mesmo tempo manter em sigilo os nomes reais dos praticantes.
Alguns diálogos e conversas foram emergindo com os praticantes e exploradas
quando tínhamos o indício da existência de algo que poderia ser discutido. Algumas
destas conversas aconteceram nos momentos dos treinamentos ou fora do espaço de
treino por meio de um encontro específico para tal finalidade.
Agora, vamos imergir nos cotidianos de três grupos de Capoeira da cidade de
Viçosa acompanhando seus praticantes e suas invenções, como também suas dinâmicas
através das rotinas e das regras buscando mostrar os sinais dos encontros com outros
corpos praticantes que nos indicaram outras formas de produção de conhecimento e
subjetividade expressa nos modos de ser e estar com o mundo.
Mergulharemos, então, nas produções dos modos de existir e afecções dos
praticantes cotidianos destas 3 Capoeiras pesquisadas da cidade de Viçosa, narrando
fatos e cenas utilizando das entrevistas e das conversas, além de tentar estabelecer um
diálogo com os teóricos que fundamentam esta pesquisa, atentos aos movimentos
produzidos nas relações entre os indivíduos e com os grupos.
53
4 AS CAPOEIRAS DE UMA CIDADE, SEUS PRATICANTES E A
PRODUÇÃO DE REALIDADES
Aprende–se a ser humano não pelo somatório de
informações ou a mera acumulação dos fatos, mas
pelo mergulho em relacionamentos que promovem
contágios entre as diferentes dimensões da
existência. Aprende–se tomado em agenciamentos
(LOPES, 2010. p. 90).
Nesta etapa, apresentarei as narrativas que dizem respeito aos encontros
produzidos em 3 diferentes Capoeiras da cidade de Viçosa - MG, e suas produções de
realidades através das relações com as diversas formas de viver, jogar e pensar as
Capoeiras. Acompanhei algumas tramas e formas de viver que me chamaram a atenção
pelos incômodos, e que acabaram dando indícios para as produções de conhecimentos,
de afetos e de subjetividades pelo objeto Capoeira. Os grupos foram escolhidos pelos
laços próximos de amizade com os seus professores responsáveis, o que potencializou o
acesso às rotinas e ao cotidiano repleto de repetição, invenção e uso. Seguimos e
elencamos alguns praticantes que afetaram por meio das suas falas, gestos e condutas,
potencializando uma conexão com as teorias discutidas, mais que engendravam
múltiplas realidades e formas de viver.
4.1 O grupo A e “uma Capoeira de São Paulo”
O grupo A de Capoeira é representado pela Academia Ginga Brasil da Cordão
de Ouro – Viçosa, que possui sua matriz em Taubaté- SP, local de uma parte da minha
formação na Capoeira.
Atualmente, este grupo se encontra localizado numa academia de lutas da
cidade de Viçosa, no interior de Minas Gerais, mas foi criado no ano de 2011, após um
acontecimento que mudou a minha vida em 2010 produzido no encontro que me uniu a
Rapunzel, uma ex- praticante do grupo B desta pesquisa.
Neste grupo A, seguimos as normas e o regulamento geral da academia Ginga
Brasil, construída por Mestre Quebrinha, aluno de Mestre Suassuna, fundador da
54
Cordão de Ouro. Atualmente, a academia Ginga Brasil (com raízes na Cordão de Ouro)
em Viçosa, é composta por dois grupos de alunos, sendo um constituído em uma escola
particular da cidade e outro construído numa academia de lutas de Viçosa.
Através das maneiras próprias de se fabricar a Capoeira, a Ginga Brasil de
Viçosa mistura os seus próprios processos às normas de sua matriz, demarcados no
símbolo dos uniformes e na obrigatoriedade da compra e do uso deles, na formação da
bateria e uso dos toques, no ritual de entrada na roda para o momento do jogo, no
sistema de graduação e disciplinamento do corpo, na modelação da conduta e nas
obrigatoriedades financeiras. Essas diretrizes norteiam às ações de atuação do grupo A
na cidade de Viçosa, em Minas Gerais, mas alguns escapes produziram processos
inventivos e de singularização no cotidiano desta Capoeira. É interessante destacar que,
desde 2011, o grupo A atravessou e foi atravessado por mais de 400 praticantes nos
trabalhos com escolas públicas e privadas, por meio de editais e projetos, ou por
iniciativas próprias e de cunho social mencionadas nesta pesquisa.
O trabalho na academia de lutas teve início no ano de 2015, e atualmente o
grupo é dividido em duas turmas que se encontram estruturadas em aulas voltadas
especificamente para as crianças de 3 a 13 anos, na rotina de 2 treinos por semana, no
período da manhã e, além disto, aulas direcionadas para o público adulto em 2 treinos
por semana no período da noite.
Atualmente, a turma que estaria direcionada para o público infantil, mas se
fabrica como turma mista e conta com 15 praticantes, entre 4 e 47 anos de idade,
compondo uma Capoeira que conta com a participação de algumas famílias com irmãos
e mães. É interessante destacar que alguns dos praticantes adultos deste grupo
utilizaram a turma infantil como porta de entrada para a prática de uma Capoeira, que
pôde ser usada pelos adultos deste grupo “infantil” como forma de se aproximar da
família ou como uma maneira de vencer a barreira da timidez diante dos desejos em
aprender Capoeira.
A turma voltada para os adultos, do período da noite, é composta por 9 alunos,
sendo 4 homens e 5 mulheres entre 20 e 59 anos. Portanto, o grupo A pesquisado
contou com 24 praticantes de Capoeira entre homens, mulheres e crianças da academia
como participantes em potencial, pois os participantes não haviam sido escolhidos
previamente antes da realização da observação nas aulas.
Entretanto, como o grupo poderia se multiplicar com a chegada de “novos”
sujeitos, avaliei a possibilidade de envolver diferentes praticantes, como também
55
instrumentos diferentes de produção e análise dos dados. Para os adultos, realizamos
conversas, 5 entrevistas semiestruturadas e observações que anotamos em um caderno
de campo para as descrições e reflexões dos fatos ocorridos nas aulas coproduzidas.
Com as crianças que possuem entre 3 e 13 anos de idade, realizamos também as
observações participantes das aulas e 3 entrevistas semiestruturadas.
As duas praticantes entrevistadas deste grupo, e apresentadas neste trabalho,
treinam atualmente nas 2 turmas (das crianças e dos adultos), mas suas histórias com
esta Capoeira tiveram início nas aulas voltadas para as crianças, no grupo infantil que
pratica no período da manhã no espaço do subsolo da academia. Esta turma é resumida
por alguns praticantes como “escondida dos julgamentos dos adultos”. O maior contato
com as duas praticantes, devido à maior frequência nos treinamentos tanto nas turmas
da manhã e da noite do grupo de praticantes, foi fundamental na escolha das entrevistas
apresentadas.
4.1.1 Porcelana e sua “Capoeira sensível”
Porcelana é nascida na cidade de Viçosa- MG e atua como professora de Inglês
após ter se formado em Letras, sendo que atualmente cursa Psicologia numa faculdade
particular da cidade. Ela possui 34 anos de idade e, além da Capoeira, atualmente
pratica balé e yoga. Esta praticante nos contou que, por muitas vezes, assistiu a
Capoeira na praça central da cidade, e após ter retornado ao Brasil depois de ter residido
por 2 anos nos Estados Unidos, resolveu tentar realizar o desejo de anos atrás, buscando
saber em Viçosa onde poderia encontrar um espaço fechado voltado ao ensino da
prática da Capoeira. Inicialmente, não encontrou um espaço que tivesse as aulas apesar
da cidade oferecer e abrigar várias Capoeiras.
Diante disto, um dia, por acaso, foi até o Centro de Treinamento (CT) da
academia de lutas procurar saber a respeito de outras modalidades. Então, chegando à
academia, descobriu que lá possuía aulas de Capoeira para crianças e adultos. Assim,
logo se matriculou na turma das crianças, pois se sentia muito envergonhada em expor
seu corpo a um possível fracasso ou julgamento, além de recear uma possível queda que
fosse lhe machucar.
56
Após algum tempo, Porcelana contou que percebeu nas aulas de Capoeira uma
boa dinâmica pautada de uma capacidade de manter o lúdico das atividades e
brincadeiras das crianças e sanar as dificuldades e limitações dos adultos. No início não
entendi o que ela me disse, mas percebi que a Capoeira estava fazendo bem para ela.
Porcelana já pratica Capoeira há dois anos e frequenta os treinos quatro vezes
por semana, sendo dois no período da manhã e dois no período da noite, chegando a
deixar um emprego para não perder as aulas da noite. Nas suas lembranças, ela relata as
dificuldades e os afetos que emergiam nos primeiros contatos que teve com a prática da
Capoeira no grupo A:
Ahh... sabe o que eu lembro que você falou e a gente estava aquecendo e era
para tipo, tinha uma dinâmica de montar cavalinho. Aí, por exemplo eu
seguraria o Raul (nome fictício) enfim... e ali e, a partir desta aula de
capoeira, que eu fui vendo que eu tinha dificuldade com o toque. Eu nem
sabia isso, porque eu não era assim antes da minha experiência em outro país.
Enfim, eu tive bastante dificuldade de chegar muito perto de outras pessoas e
tal... de ter esse contato físico com o outro!21
Neste acontecimento, a afecção pelo tato e pelo contato com outro corpo até
então desconhecidos por ela, diminuiu a potência de Porcelana produzindo o bloqueio
das ações e uma tristeza com esta Capoeira, que acabaram interferindo nas ações desta
praticante no momento da aula. Diante deste contexto, percebi que as rotinas dos treinos
com chutes e quedas, ou que possuem certo tipo de contato físico, tornaram-se para ela
uma enorme dificuldade e grande barreira a ser vencida literalmente com suor e
lágrimas derramadas em algumas situações de treino.
Porcelana possui duas irmãs, sendo uma irmã mais velha e outra mais jovem e
vem de uma família de base cristã, onde desde pequena conviveu com o cotidiano da
igreja. Os seus pais não concordam com a participação dela neste grupo de Capoeira,
pois justificam que a prática traz muitos riscos à saúde (corpo) da praticante. Já para as
irmãs, a Capoeira ainda é um sonho, supõe Porcelana. E assim, devido ao seu sonho,
nossa praticante explica porque ainda continua treinando:
Nossa!... pra mim o que me fez continuar foi a mudança que houve na minha
vida no meu interior. Eu fui buscar a capoeira porque era, como eu falei, era
um sonho que eu tinha mas eu não acreditava que conseguiria por causa das
limitações né? Nunca pratiquei esporte na minha vida nunca havia feito
nenhuma luta... então assim, tinha acabado de chegar dos Estados Unidos,
tinha uma vida sedentária, uma alimentação terrível, e quando eu comecei a
fazer a capoeira, dentro de mim algo foi mudando; uma felicidade interior de
olhar pra mim, de ver que eu consegui fazer alguns movimentos que por mim
eram idolatrados e, como você sabe no começo as aulas eram... e eu só
frequentava segunda e quarta lá em baixo no subsolo... eu não ia lá em cima!
21 Trecho da entrevista do dia 15/10/2017 para esta pesquisa.
57
Não à noite porque era todo mundo né ...saudável e buscando. Eu tinha muita
dificuldade com essa questão da imagem mesmo, então eu não conseguia
olhar no olho do outro e nem me olhar no espelho. Então eu continuei na
capoeira porque a capoeira me fez conseguir olhar pra mim e conseguir ver
que eu sou capaz.
A maneira de se enxergar através de produção de sentimentos de menos valia e a
forma de habitar um mundo se escondendo dos desafios é expressa na relação de
Porcelana com seu corpo e sua imagem, que, após seu encontro com a prática da
Capoeira do grupo A, atravessaram os contornos da roda.
Entretanto, os sentimentos foram se modificando com o tempo, e Porcelana
passou a se compor com a alegria de se sentir capaz, abandonando em alguns
momentos, as paixões tristes das normas, regras e hierarquias desta Capoeira. Além
disto, Porcelana possui um jeito próprio de se compor com as regras do regulamento
deste grupo, burlando por várias vezes as imposições destas normas. Assim, por
diversas vezes, Porcelana não respeitou a obrigatoriedade do uso do uniforme branco
com o cordão que representa o nível de graduação, além dos atrasos constantes
relacionado aos horários dos treinos. A praticante, por diversas vezes, também burlava a
execução de vários exercícios ou o número de repetições destes nas aulas. Isso muitas
vezes também me afetava, levando-me a chamar a sua atenção para estes compromissos
assumidos ao praticar a Capoeira com o grupo.
Apesar disto, para ela, estes modos de disciplinamento são saberes fabricados no
dia a dia através destas normas, como o próprio uso do uniforme e do cordão.
Entretanto, estes modos podem se modificar de acordo com os usos dos praticantes ou
através de processos singulares produzidos nas relações diárias entre os corpos
engendrados em acontecimentos imprevisíveis nos cotidianos das práticas.
Em uma ocasião, em uma das aulas, Porcelana chegou atrasada e um pouco
nervosa para treinar sem seu uniforme e seu cordão, e após ser cobrada a respeito, caiu
em prantos descontroladamente, pois neste dia ela estava com muitas dores. Segundo
ela, um caso com uma lição que produziu um saber, pois:
[...] o que que eu aprendo com você como educador...você me perdoou como
pessoa né? Com este estresse que tive, você me acolheu no momento que eu
chorei muito naquele dia e você me recebeu como se nada tivesse acontecido
na outra aula.
Neste mau encontro, muito tenso por sinal, fui muito afetado e a partir daí, a
obrigatoriedade do uso do uniforme branco com o cordão ganhou uma flexibilidade que
58
não possuía antes, principalmente em relação aos corpos femininos, que durante o
período menstrual não precisam treinar de branco.
A praticante ainda contou que, na Capoeira, sua autoestima e sua relação com o
corpo se transformaram. Quando discutimos a respeito dos aprendizados produzidos
com a Capoeira, ela nos fala a respeito da produção do “saber observar a roda”, que:
Pra mim, foi fundamental ver, o que que é observar a roda? Antes da gente
entrar na capoeira e fazer o nosso jogo, é ver com quem tá jogando, qual é a
intenção da pessoa então quando eu chego no ambiente. Eu tenho mania de
só fazer aquilo que tem na minha cabeça e agora eu consigo observar o
ambiente antes de mergulhar nas minhas vontades... então foi uma lição
tremenda!
Aqui, Porcelana nos fala a respeito da capacidade de regular os desejos e refrear
as ações, além do seu encontro com o outro, com a alteridade e com o espaço alheio.
Segundo ela, este saber se traduziu para o cotidiano, sendo usado (CERTEAU, 2002)
quando foi convidada por um amigo para uma festa e, chegando ao local, cumprimentou
a todos com “boa noite”, sendo que, naquele exato momento, uma das pessoas da mesa
se virou, dando as costas com a cadeira. Antes de ela se aproximar, Porcelana “observou
a roda” e, através da ação daquela pessoa, percebeu que sua presença não era bem
vinda. Após isso, segundo ela, a situação ficou muita tensa.
Outro saber importante foi a persistência, pois ela e outra praticante apelidada de
Sabiá, eram as únicas adultas no grupo das crianças e, ambas apresentavam muitas
dificuldades no aprendizado dos movimentos e gestos. Porcelana confessou que um dos
maiores desafios encontrados na Capoeira foi participar das aulas voltadas para os
adultos, pois na sua concepção, os adultos eram todos atletas e saudáveis. Assim, ela
manifesta a produção de um conhecimento de si como frágil e “doente”, incapaz de se
assumir como uma potência.
A companhia de outros praticantes como Sabiá, Brigadeirão (apelido) e Vovojão
(apelido), representou um grande estímulo para Porcelana, pois ela nos fala da
solidariedade construída pelo grupo, principalmente com os membros iniciantes onde
“todos param sua Capoeira para ajudar o novo membro”. Para Porcelana, tudo passou a
ser uma questão “familiar”, em que os membros do grupo se produziam como uma
família que acolhe e que abriga, que segundo ela, “no balé, por exemplo, não acontece,
pois a maioria dos praticantes são medianos ou avançados e não existe este cuidado com
os membros iniciantes”.
Além de não haver aquele vínculo como família, no balé, segundo suas palavras,
quase ninguém sabia o seu nome. Para ela, portanto, não havia “aquele momento e
59
ensinamento de se conhecer e viver bem”, pois sempre, no final das aulas, discutimos a
respeito das coisas sobre a vida e nossos relacionamentos. A problemática de Porcelana
com a Capoeira atravessa seus desejos e expectativas de cuidado e acolhimento, pois ela
possuía o medo de se ver exposta e desamparada. Portanto, o acolhimento naquele
grupo de Capoeira se compunha para ela como “família”.
O saber suportar críticas, piadas e brincadeiras são frequentes no cotidiano desta
Capoeira e isso é uma das coisas que ensinaram Porcelana a ser forte e, ao mesmo
tempo, ter senso de humor, pois segundo ela, sua sensibilidade era exposta de uma
forma e acolhida de outra ao mesmo tempo.
Para Porcelana, tanto na prática da Capoeira como na prática das aulas de inglês,
se sentia exposta a riscos, mas mesmo assim, tentava exercitar diariamente sua coragem
e persistência como ela fazia com a Capoeira. Desta maneira, para ela, a melhor forma
de aprender “é levar a prática para nossa vida e para o dia a dia” e, como faz com a
Capoeira, ela orienta os seus alunos a fazerem o mesmo com o inglês, tentando praticar
de alguma maneira todos os dias, seja lendo um texto, escrevendo um poema ou
assistindo um filme.
Após algum tempo, a transformação relacionada às normas e autoestima foi
manifestada numa mudança de comportamento relacionada a uma maior adesão e
compromisso no uso do uniforme e cordão, aos modos de se exercitar, ou, como ela
mesmo resume, no modo de se olhar no espelho, vendo-se conquistando etapas e
objetivos, além da maneira como é admirada por alguns não capoeiristas. Quando
perguntada a respeito do que mais gosta na Capoeira, Porcelana respondeu:
[...] Eu vou falar do aspecto físico e do aspecto espiritual (risos). Dos
aspectos físicos, digamos assim, da luta em si, dos golpes. Eu adoro ficar de
cabeça pra baixo, fazer o Aú. Era um sonho de criança fazer uma estrelinha,
mas eu não podia porque é arriscado. Então eu nunca tive permissão pra
tentar porque eu nunca tentei e nunca fiz uma estrelinha. Então, na capoeira,
eu tive a oportunidade de aprender... E a parte espiritual ligada também à
questão cultural né? Essa luta, a história da capoeira como resistência àquilo
que as pessoas do nosso país passaram, aquilo que elas fizeram, àquilo que
representou a capoeira... Mas eu acho que o mais forte, o principal que me
faz querer ficar na capoeira para sempre, é essa possibilidade de me olhar no
espelho e um dia me ver como capoeirista... Eu me vejo ali. Eu gosto de estar
com o uniforme, porque quando me vejo com uniforme, me vejo como
capoeirista e me ver como capoeirista nunca foi possível.
Na relação com esta Capoeira, Porcelana foi deslocada sendo colocada diante de
regimes de sensibilidade que ela vivenciava como alguém que enfrentava os fracassos,
mesmo estando diante do medo de errar e sofrer. A respeito das limitações, ela nos
conta que possui muitas e nos diz que a principal estava relacionada à sua “mente”, que
60
possuía uma tendência a enxergar mais suas falhas e defeitos, deixando as coisas boas
de lado. Diante disto, esta pista nos aponta uma realidade na qual ela se sentia oprimida
diante das suas expectativas, sendo uma visão de mundo que acompanha diversos
praticantes.
A praticante nos confessou que sua tendência é de se produzir frágil diante dos
desafios, mas praticar Capoeira com Sabiá a fez enxergar seu lado potente permitindo-
se errar mais e também arriscar-se e sofrer nessa tentativa. Algo impossível para ela até
então.
Podemos observar, então, a produção de outra experiência de “eu”, pois esta
Capoeira forçou novas produções de si, diante de praticantes constituídos em diferentes
afecções. Portanto, Porcelana sensivelmente se produz frágil e insegura diante de uma
Capoeira que a força a sair da sua “zona de conforto”, marcada por um modo de
produzir a vida em que parece se enxergar incompetente em várias dimensões. Assim,
ela não se considerava capaz de enfrentar as pressões desta Capoeira e da vida, pois
iniciou seu contato com a prática no treino voltado para as crianças da academia,
temendo ser avaliada pelos adultos. Entretanto, a praticante conseguiu fabricar
movimentos singulares, a partir desta Capoeira, que a possibilitaram questionar sua
autoimagem como incompetente e frágil como verdade para orientar suas lutas na roda
da vida.
Na invenção de si com a Capoeira, ela me surpreendeu entregando um poema22
(figura 11) que escreveu após um bom encontro com esta Capoeira depois de uma aula.
22 Parte escrita em inglês: “dois caminhos dobrados”; “palavra de dois gumes”; “é uma captura perdida”.
61
Figura 11-Poema escrito e entregue por Porcelana no dia 15/10/2017 na entrevista.
Fonte: Arquivo Professor Veizada.
Porcelana foi muito auxiliada em sua inserção na Capoeira por Sabiá (apelido),
nossa próxima entrevistada. Esta praticante também é mulher e companheira de treino
desde o início de Porcelana na turma das crianças. Apelidada pelo grupo de “Sabiá”, ela
adora cantar, tocar e escutar músicas de Capoeira.
4.1.2 Sabiá, seu canto e a “família Capoeira”
Quando da pesquisa, Sabiá tinha 47 anos, era casada e possuía três filhos que
praticavam Capoeira. Ela trabalhava como Médica Veterinária de animais de pequeno
porte e, além da Capoeira, também praticava balé. Sua família foi fundamental para o
estreitamento dos fios entre ela e a Capoeira, uma vez que, Sabiá teve seu primeiro
contato com as aulas através dos seus dois filhos mais velhos, que já praticavam há 2
anos. Apesar de nunca se imaginar praticando, em um dia em que foi levar os meninos
para à academia, foi apresentada à proposta de uma aula mista entre crianças e adultos,
sendo convidada pelo professor e por Porcelana a realizar uma aula experimental.
62
Atualmente, toda a sua família joga Capoeira, ou seja, os três filhos (dois
meninos e uma menina) e o marido, apelidado de Tico-tico. Seus pais são admiradores
desta prática como atividade física, mesmo assim, Sabiá afirma que somente quem
pratica Capoeira tem a noção da sua dimensão. Para ela, “você aprende a cantar, você
aprende a tocar”, mas as pessoas podem escolher e praticar, fazendo o uso apenas como
atividade física, se assim desejarem. Mas, cotidianamente a relação muda porque:
Na hora que você vê, você já tá inserido. Não é assim: “eu vou à toa numa
roda” não. Você já faz parte daquele grupo, você vai naturalmente, você quer
ir. Não é que: Nossa! Tenho que ir naquela roda. Nossa! Tenho que ir
naquele lugar. Então você vai porque sua turma está lá, porque as pessoas
estão lá. Você gosta daquilo, você quer cantar, você quer rir. É pra todo
mundo.23
.
A cooperação e os gestos solidários produzidos com esta Capoeira através dos
processos fabricados nas aulas, nas rodas e nos eventos constroem saberes importantes
que mantêm praticantes como Sabiá neste grupo. Com relação à questão do grupo,
Regina Duarte Benevides de Barros (1991) sustenta que:
O grupo não tem relação com a vida privada dos indivíduos que se reúnem
em determinado espaço, por um certo tempo, para cumprir certos objetivos.
Ele é (ou pode ser) um dispositivo quando trata de intensificar em cada fala,
som, gesto, o que tais componentes acionam das instituições
(sociais/históricas) e de como nelas constroem novas redes singulares de
diferenciação (p. 154).
Diante deste contexto, o grupo é pensado na composição com processos de
subjetivação. Isso porque consideramos que a produção do sujeito-indivíduo é coletiva,
e pode–se dar por processos de homogeneização universalizante ou também processos
de composição heterogênea. Barros (1991) compreende o grupo como dispositivo,
sendo que para Foucault (2000) dispositivo:
é um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do
dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos
(FOUCAULT, 2000, p. 244).
Portanto, dispositivo aqui é entendido como conjunto heterogêneo de fatores
que “fazem ver” e funcionar maneiras de existir. Assim, o grupo como processo
coletivo é composto em diferentes dispositivos de subjetivação no traçar encontros,
fabricar afetos e rupturas, como também tentar produzir “possibilidades de
desordenação do modo de produção de subjetividades capitalísticas” (BARROS, 1991,
23 Trecho da entrevista concedida no dia 04/11/2017 para esta pesquisa.
63
p. 153). Então, entendemos que tanto práticas discursivas, como não discursivas, como
os corpos nas danças das Capoeiras, participam da construção de um dispositivo, que se
encontra conectado às dimensões do saber, do poder e dos modos de subjetivação.
Diante disto, esta Capoeira, a exemplo de outras Capoeiras e práticas, se produz
como parte de um dispositivo que possui processos de subjetivação que coloca em
movimento modos de pensar, condutas, disciplinas e moralidades que modelam as ações
dos seus praticantes cotidianos não só deste grupo, mas também de outros como aqueles
que já acompanhamos.
4.2 O grupo B e a “Capoeira nativa”
Em 2010, vindo de São Paulo para um evento de Capoeira na cidade de Viçosa,
que envolvia o batizado do grupo Cordão de Ouro de Viçosa (e aqui chamado de grupo
B), conheci Rapunzel, uma praticante da Capoeira deste grupo. Após este fato, afetado
por este encontro, me mudei para a cidade, o que gerou o nascimento do grupo A de
Capoeira, aqui apresentado. Pode-se dizer então, que este acontecimento foi um evento
não só de Capoeira, mas na vida de praticantes como Rapunzel e eu, em 2010. Daí
pode-se dizer que o grupo A nasceu do meu encontro com o grupo B através de
Rapunzel.
Este grupo surgiu da iniciativa de 4 amigos que resolveram treinar de forma
independente após a saída seu antigo Professor da cidade. Neste processo, outro Mestre
conhecido do antigo grupo assumiu os 4 praticantes que ainda se encontravam na
condição de alunos, dando um certo suporte ao grupo. Após a mudança de 3 destes
amigos para outras cidades, um deles ficou como responsável pelo grupo e desde o ano
de 2010, data do meu primeiro contato com o grupo, este já tinha apenas um professor
supervisionado por um Mestre da Cordão de Ouro que reside em de Belo Horizonte.
Aos poucos, o grupo B foi aumentando, com a chegada de novos praticantes e,
após algum tempo, o grupo se filiou ao grupo Cordão de Ouro, com origem em São
Paulo, cujo Mestre fundador Suassuna, foi diplomado por Mestre Bimba, como também
um dos pioneiros da Capoeira em São Paulo no início da década de 1970, além de
64
criador do “estilo miudinho”, considerado, por muitos praticantes, como um novo
“modo” ou “estilo” de se jogar Capoeira caracterizado pela não violência.
Assim, este grupo B possui fortes marcas do estilo da Capoeira Contemporânea
que defende uma prática não violenta, mais livre, criativa e democrática que eleva e
prioriza os valores da amizade, solidariedade e cooperação. O ano de 2011 foi
importante porque engendrou a miscigenação de um evento, realizado em conjunto
pelos dois grupos, e que envolvia a participação dos praticantes de ambos na realização
de seminários e aulas práticas com vários Mestres convidados e com a produção de 2
batizados (figura 12), com objetivo principal de agregar os alunos, fortalecer os laços de
amizades entre os praticantes e promover a divulgação da Capoeira da cidade com a
realização de um grande evento de Capoeira.
Figura 12- Evento realizado pelos grupos A e B em conjunto em 2011.
Fonte: Arquivo pessoal do Professor Veizada.
Uma das características daquele grupo era a participação de muitas mulheres,
como o caso de Rapunzel, geralmente na posição de namoradas ou companheiras dos
responsáveis pelo grupo, não havendo nenhuma mulher na posição de responsável ou de
destaque na hierarquia daquele grupo. No ano de 2017, este grupo realizou um grande
evento que envolvia aulas de Capoeira, o batizado e sua 1ª formatura, com destaque
para a participação de uma mulher como primeira formanda do grupo.
O evento contou com várias aulas durante a semana e com o batizado dos alunos
das cidades de Viçosa e Coimbra. Para fins desta pesquisa, o meu primeiro encontro
65
com este grupo correspondeu ao convite que recebi para dar uma aula aos alunos de um
projeto social em parceria com uma Associação de moradores em uma escola Municipal
da cidade. Na chegada à escola, fui recebido pelo Mestre responsável pelo grupo B na
cidade de Viçosa, que logo me levou à quadra onde seria realizada a aula.
Este projeto na escola Municipal representava um dos trabalhos realizados pelo
grupo B, que também desenvolvia outras atividades com a Capoeira em outras cidades
da região da Zona da Mata em Minas Gerais. Naquela ocasião, as crianças do projeto se
misturavam aos outros alunos adultos do grupo e a alguns alunos da Ginga Brasil
Viçosa, que também estavam presentes naquele dia.
O evento aconteceu durante uma semana inteira, e aquele era o segundo dia do
evento, que ainda contaria com aulas de Mestres convidados de São Paulo e Belo
Horizonte e com a formatura realizada no penúltimo dia, se encerrando com o batizado
realizado no sábado. No término desta aula, contatei “a Estrangeira”, praticante
experiente com quase 10 anos de prática, para uma entrevista, após uma conversa que
me chamou a atenção e dizia a respeito do comportamento de alguns Mestres homens.
No início, contatamos a praticante mulher responsável pelas aulas de Capoeira
do projeto para uma possível entrevista relacionada à pesquisa do Mestrado e algumas
possíveis visitas ao projeto da escola. Neste período, as aulas aconteciam as segundas e
quartas, mas como os praticantes tiveram férias logo após o evento, não foi possível a
continuação dos encontros em 2017, vindo a retornar no início de 2018.
Foi através do acompanhamento de uma aula deste grupo B, em outro encontro,
após aquele evento, que pude acompanhar realidades do grupo B fomentadas na
persistência, quando o Professor24
incentivava os alunos a tentarem aprender a
movimentação dizendo que o “não vou conseguir possui três palavras” e o “vou tentar,
apenas duas”, demonstrando o valor da persistência e da não preguiça na prática do
grupo.
Neste encontro citado, o Professor também realizou um trabalho para
desenvolver o equilíbrio através do ensino da “bananeira”, em que os praticantes
deveriam ficar de ponta cabeça, colocando o queixo no peito. Muitas modificações de
corpos foram acontecendo nas quedas e tombos. Ouvi vários alunos se queixando de
tonturas e outros caindo como se estivessem embriagados. O “saber cair e levantar”
24 Quando retornei ao grupo do projeto da escola, no início de 2018, para retomar os encontros, a
praticante mulher que havia se formado não estava mais no comando do projeto sendo agora um professor
homem também recentemente formado pelo grupo B.
66
suportando as dores do corpo e da mente, acompanhado do controle das ações do corpo
no treino de equilíbrio, dialoga com as filosofias de persistência ativadas no grupo B.
O Professor também fabricou muitos momentos de descontração, arrancando
risos com suas brincadeiras e exemplos caricatos dos alunos que se encontravam,
segundo ele, de “corpo mole”. O corpo mole também pode ser fabricado tanto como um
corpo flexível, ágil, leve e rápido na execução dos movimentos e gestos de ataque e
defesa, como também sendo um corpo lento, preguiçoso e sem vontade de agir. Assim,
a primeira ideia de “corpo mole” representa o modo de modelização do corpo
fomentada por este grupo B.
Um detalhe que me chamou a atenção foi a chegada de João (nome fictício), um
adulto ligado à Associação de moradores e praticante idealizador do projeto da Capoeira
para as crianças deste Bairro. Segundo o Professor, João foi um dos que deu início às
aulas do projeto e sempre se empenhou em convidar outras crianças da localidade a
participar, chegando a ir buscá-las em casa para irem à Capoeira.
Por chegarem atrasados, o Professor mandou João e seu filho “pagar” 30
polichinelos como forma de punição. Após sanar sua dívida pelo atraso, João se juntou
aos outros praticantes não se intimidando com a diferença de idade, de corpo e de
habilidades comparado aos meninos praticantes do projeto.
É interessante destacar que, mesmo tendo quase o dobro da idade do Professor,
João respeitou, acatou e cumpriu a “punição” dada a ele como forma de exemplo aos
outros praticantes do grupo B. Isto, de certa maneira, é indicativo de processos que
reforçam as hierarquias e os disciplinamentos dos corpos com esta Capoeira. Segundo
João, estes disciplinamentos modificaram o comportamento das crianças e dos
adolescentes do projeto, fomentando maneiras de conviver e respeitar os colegas, além
da obediência ao Professor do grupo.
Após aquele fato, o Professor ainda contou que João, certa vez, pediu para que
ele não modificasse a aula por sua causa, pois o projeto era para os garotos e ele que
teria que se adaptar ao estilo da aula e da Capoeira praticada.
O exercício realizado com o movimento da “ponte” naquela aula exigiu muita
flexibilidade e força dos ombros, o que acabou causando muitas quedas de costas no
chão duro, acarretando no pedido do Professor para que os colegas auxiliassem na
segurança e, após alguns minutos de “erros e acertos”, ele pediu novamente, mas agora
para que todos formassem uma roda para trabalhar o jogo, o canto e o toque do
pandeiro. O Professor ainda explicou que a roda seria de compra, que permite a entrada
67
apenas de um jogador por vez, e que, para entrar, é preciso comprar o jogo de frente
para o escolhido como parceiro.
Diante disto, esclareceu que, tradicionalmente nas rodas de Capoeira, entram
dois jogadores por vez, mas que, em certos casos, quando a roda acelera ou se encontra
perto do fim, é usado este tipo de jogo. Ele ressaltou a importância de pedir o
consentimento da compra do jogo ao Mestre que se encontra comandando a roda.
Após esta situação, mais uma vez, o Professor ressaltou a importância de seguir
e obedecer às regras e as hierarquias da Capoeira, que se encontram conectadas aos
modos de subjetivação deste grupo produzidos com os rituais e com as tradições. Outra
preocupação do Professor foi a respeito do comportamento e da postura dentro da roda,
que deveria ser de atenção, sem conversas paralelas, batendo palmas e cantando o coro.
Neste caso, estas normas estão ligadas à conduta e ao controle das ações dos praticantes
do grupo. Ele ainda explicou rapidamente como se toca o pandeiro e pediu para que os
alunos se revezassem tocando.
Como uma maneira “bem comum” presente nos costumes de muitas Capoeiras,
o anúncio do fim da roda se deu no canto de “Adeus, adeus, boa viagem”, que naquele
grupo foi fabricado com o aumento da velocidade dos toques e, consequentemente, do
jogo. O Professor explicou o tipo de jogo desenvolvido e o cuidado nestas situações,
caracterizado, por sua fala, “como um jogo rápido, solto e com golpes giratórios sem
tocar o colega”, pois era preciso ficar atento para não machucar os colegas, uma vez que
os meninos esboçavam um desejo de um maior contato físico no jogo.
De início, citei que ao término do primeiro encontro com este grupo B, contatei
“a Estrangeira” pela sua experiência de anos com a prática e por uma fala que me
chamou muito a atenção, pois a mesma praticante, em uma conversa informal, após a
aula, comentou sobre uma tentativa de assédio que ela teria sofrido de um Mestre em
sua recente visita a uma Capoeira nos Estados Unidos. Naquela ocasião, ela nos relatou
que um Mestre tentou embebedá-la em uma festa utilizando da sua autoridade na
Capoeira, tendo a mesma que possuir “mandinga” e “malícia” para esquivar-se da
deselegante situação. Após aquele encontro, refleti a respeito da situação enfrentada por
Estrangeira e da participação das mulheres nas Capoeiras. Foi então que resolvemos
acompanhar um pouco suas falas, suas ideias e sua história com a Capoeira. Este relato
nos levou a pensar sobre as questões da produção das realidades femininas, e as relações
com os modos de subjetivação das Capoeiras.
68
4.2.1 A Estrangeira e as “Capoeiras femininas”
Nascida na Colômbia, ela possui 38 anos de idade e reside no Brasil há 11 anos,
desde quando veio fazer Mestrado na Universidade Federal de Viçosa. Estrangeira é
Médica Veterinária, e atualmente faz pós–doutorado no curso de Zootecnia desta
Universidade Federal.
Na época em que residia na Colômbia, Estrangeira pensava que a Capoeira era
uma dança e, quando chegou ao Brasil, descobriu que próximo à sua casa havia uma
aula de Capoeira que se encontrava no seu caminho para a Universidade. Certa vez,
quando passava em frente à academia, o Mestre responsável pelo grupo B se encontrava
sentado à porta com alguns alunos e, sendo convidada por estes, resolveu realizar uma
aula experimental. Depois disto, ela nunca mais parou e já fazem 10 anos que
Estrangeira pratica a Capoeira daquele grupo. É importante destacar que, em todos estes
10 anos de prática, ela só adotou o grupo B como escola.
O acolhimento dos outros praticantes é muito importante, fazendo toda diferença
na produção coletiva das Capoeiras. Assim, mais uma vez, o saber solidariedade ligado
à cooperação e à ajuda entre os praticantes é citado como um modo de construir laços de
amizades entre os capoeiristas. Para ela, a Capoeira disciplina as pessoas através do
esforço em conciliar os treinamentos com outras atividades, nos dizendo que “isso é
para poucas pessoas”, principalmente aquelas que fisicamente são exigidas em outras
atividades. Ela afirma, por exemplo, que os estudantes universitários tendem a não se
comprometerem com as responsabilidades da Capoeira, sendo as Capoeiras facilmente
trocadas pelas festas e pela vida noturna da cidade.
E para ela:
Capoeira não é só luta. Não é só esta parte folclórica dentro de uma roda
dentro do grupo, sendo que você tem que levar isso para a vida inteira. Então
você aprende a ter autocontrole, você aprende a ter paciência, você aprende a
pensar rápido, você aprende que você tem que cair e tem que levantar, você
aprende que existe uma diversidade grande de grupos e de pessoas com
pensamentos e filosofias diferentes. Então eu acho que a pessoa que se chama
de capoeirista é isso, levar a Capoeira para a vida mesmo!25
25 Trecho retirado da entrevista concedida no dia 19/02/2018.
69
Portanto, o autocontrole, a paciência, o pensar rápido, o movimento de cair e
levantar e a existência da diversidade de praticantes e grupos são exemplos dos modos
de disciplinamento dos corpos através dos processos de subjetivação (das aulas, das
rodas, das relações, etc.) presentes na filosofia cotidiana do grupo B, de acordo com as
palavras de Estrangeira.
Estrangeira acredita que uma das principais dificuldades encontradas pelas
Capoeiras não está apenas na questão física, mas também no preconceito produzido
entre os próprios praticantes e a falta de respeito com as diferenças dos corpos, e das
habilidades. Isto nos indica uma possível dificuldade dos capoeiristas com a questão da
diversidade, e, para Estrangeira, “existem muitos donos da verdade” nas Capoeiras,
sendo que os Mestres “não lidam muito bem” com a questão da existência de múltiplas
concepções de realidades que ressaltam a diversidade no universo desta prática,
indicando a ausência de totalidades em harmonia.
Pensando nas conjecturas de futuro, Estrangeira pretende praticar Capoeira para
o resto da vida, pois considera uma experiência rica e muito gratificante, seja
participando e tocando nas rodas, assistindo vídeos, conversando e se relacionando com
outros praticantes, lendo a respeito e ouvindo histórias. Estrangeira complementa sua
fala, dizendo que “o que ela mais gosta nas Capoeiras são essas vivencias com os outros
sujeitos”, evidenciando como Sabiá e Porcelana, uma composição de solidariedade
presente também nos modos e valores de/com outros grupos.
Contudo, no que concerne às diversidades, principalmente a de gênero,
Estrangeira pondera que:
Todo mundo falando da importância da mulher na Capoeira, e que a capoeira
se abriu para o mundo quando a mulher começou a entrar na academia e na
roda de Capoeira, que as pessoas de fora começaram a ver de uma forma
diferente. Ainda sinto que tem muita segregação em questão da mulher. E, eu
falo pelo fato de eu ir nas rodas e, como mulher, ser difícil eu jogar. Então o
Mestre que comanda a roda, vira e fala: “então; agora é roda de mulher” e eu
acho isso um absurdo. Porque sendo gêneros diferentes e obviamente a gente
tem um estilo diferente, uma forma de jogar diferente eu acho que a gente
não tem problema de jogar com homem, não tem problema não, mas isso me
irrita bastante, o fato de fazer muito encontro feminino, mas você não vê as
mulheres na bateria, você não vê as mulheres dando aula.
Diante de alguns relatos de confrontos físicos com os homens e mulheres do
grupo B e de outros grupos, Estrangeira nos indicou uma indiferença dos homens do
grupo diante das especificidades no jogo e na composição física, biológica e anatômica
dos corpos de homens e mulheres, produzindo uma repressão dos corpos femininos por
meio do contato físico nas rodas. Ela nos relatou que a visita de sua mãe ao Brasil e à
70
sua academia de Capoeira foi marcada pelo episódio em que a praticante, num jogo com
um homem do grupo na roda, teve o punho lesionado, causando desconforto e tristeza
em sua mãe com relação à prática.
Ampliando esta questão para o universo macro das Capoeiras, ela ainda nos
contou que, certa vez, foi a um dos maiores eventos de Capoeira do Brasil, realizado no
litoral sul da Bahia, numa formatura feminina e percebeu que as mulheres não
protagonizavam, comandando as aulas e as rodas. Estrangeira complementou que as
mulheres deixam as coisas muito nas “mãos dos homens” porque a proporção de
homens que tocam bem é muito maior do que a de mulheres, por exemplo. Nossa
praticante apontou que muitas mulheres praticantes ainda se encontram na posição de
companheiras dos homens capoeiristas, sendo esposas, namoradas, filhas.
Para esta praticante, a questão pessoal atrapalha muitos debates entre os gêneros
na relação com as Capoeiras. Ela contou que conhece dois Mestres capoeiristas casados
em que o Mestre homem não permite que sua esposa, também Mestre, ministre aulas de
Capoeira relegando a ela apenas as aulas de outras danças26
ligadas a Capoeira. Outro
episódio relatado por ela foi perceber que, durante a aula de uma Professora, em um
evento que possuía uma bateria de instrumentos composta apenas de Mestres homens,
estes aumentavam o som dos instrumentos toda vez que ela dava alguma instrução ou
ensinava alguns exercícios.
Na percepção de Estrangeira a respeito das Capoeiras, os homens ainda
permanecem na posição de controle e destaque dentro das hierarquias dos grupos e dos
eventos, tentando manter a imagem de provedores e fortes, conduzindo os trabalhos dos
grupos e secundarizando a presença e a participação feminina neste universo.
Josivaldo Pires de Oliveira e Luiz Augusto Pinheiro Leal (2009) nos contam que
a prática da Capoeira no início do século XX na Bahia foi associada ao universo dos
homens por:
comportar elementos constitutivos da masculinidade, a exemplo do biotipo e
das ações de violência física. Porém, alguns registros existem sobre a
presença de mulheres neste universo, como é o caso de Salomé, personagem
da memória da capoeira baiana (p. 117).
Salomé era considerada uma mulher valente que participava das rodas de
Capoeira, de samba e de batuque entre as décadas de 1920 e 1930, e ficou famosa por
enfrentar os homens nas rodas de Capoeira. No entanto, os dois historiadores nos
26 Danças como o maculelê, dança do fogo, a puxada de rede e o samba de roda se encontram conectadas
ao universo das Capoeiras.
71
contam que são poucos os registros deste período que identificam as mulheres
capoeiras, entretanto, há muitos outros registros que identificam mulheres com as
características de Salomé como a própria valentia com que disputavam os espaços
sociais com os homens “ a golpes de navalhas, cacetadas e pontapés” (p. 117).
Os espaços urbanos das ruas de Salvador no início do século XX eram de
domínio masculino, pois às ruas eram locais violentos, do trânsito, do trabalho e da
criminalidade, mas também espaços onde as relações se teciam na supremacia do
gênero masculino sobre o feminino. Entretanto, as mulheres não deixaram de ocupar
estes espaços através de atividades ligadas ao trabalho como o caso das ganhadeiras,
que circulavam e vendiam seus produtos, ou aqueles que transitavam para realizar seus
afazeres, como também mulheres que vendiam seus serviços como as prostitutas
(OLIVEIRA; LEAL, 2009).
As mulheres, segundo os historiadores, tinham uma maneira peculiar de habitar
as ruas, de preferência como extensão do espaço doméstico, sendo que a mulheres das
classes privilegiadas deveriam ter comportamentos diferentes das mulheres das classes
populares. A ampliação da ocupação das mulheres das classes mais altas nas ruas
produziu certo desconforto em relação às outras mulheres e aos homens de forma geral.
O corpo, as condutas, as vestimentas das mulheres deveriam corresponder com as boas
condutas e com a moral, sendo que suas ações passaram a ser mais vigiadas
socialmente.
As fontes utilizadas pelos autores, como periódicos, jornais e a documentação
pública policial forneceram muitas informações de como as mulheres se comportavam
nas ruas e indicavam um policiamento da imprensa e da própria polícia com relação a
conduta feminina. Assim, Oliveira e Leal (2009, p. 121) complementam que: “este
universo da valentia, desordem, e prática de capoeiragem, não estava restrito ao homem;
também pertencia às mulheres valentes”.
Segundo os historiadores, nas três primeiras décadas da República, muitos eram
os casos de atos de valentia atribuídos às mulheres, e que ganharam destaque nas
páginas dos principais jornais de Salvador. As notícias anunciavam arruaças; e
desordens causadas ou com o envolvimento feminino. Diante disto, quando uma mulher
se destacava na luta corporal era chamada de “valentona”, mas quando o feito era com
mais de uma pessoa o uso era chamar de “endiabrada”.
As mulheres podiam agir sozinhas ou em grupo ganhando destaque nas
manchetes dos casos de grande repercussão, como o caso de uma “mulher valente” que,
72
após desentendimento com outra, enfrentou nove policiais, além da sua rival27
. Eles
também apontam para os confrontos entre as mulheres pobres e os próprios capoeiras
pelo espaço de poder, e outro destaque foi o conflito entre o Pedro Porreta e a prostituta
Chicão. Destemido por outros feitos de valentia com homens, Pedro certa vez invadiu a
casa de Chicão para apanhar os pertences de sua inquilina Maria do Socorro, sendo que
Chicão, com o mesmo porte físico de Pedro, desferiu lhe uma pancada que feriu a sua
cabeça28
.
A conclusão dos dois historiadores é que existem indícios, através dos registros
citados, da presença de mulheres no universo das Capoeiras no início do século XX nas
cidades de Salvador e Belém, sendo infelizmente impossível precisar se elas praticavam
de fato a capoeiragem. Entretanto, estes acontecimentos pontuam a existência de setores
femininos nos espaços e cotidianos das ruas onde as Capoeiras eram praticadas que
ressaltam formas de enfrentamento dos problemas cotidianos pelas mulheres, com uso
da Capoeira pela violência. As mulheres, além de já sofrerem com a violência física,
sofriam também com as punições através das prisões e com a exposição das imagens
pelos jornais.
Atualmente, o que podemos dizer é que as mulheres praticantes enfrentam
também outros tipos de violência nas Capoeiras além da violência física das rodas,
como os próprios exemplos das experiências trazidas pela nossa praticante Estrangeira,
sendo importante ressaltar que a luta pelo espaço e pelo poder nas Capoeiras ainda
continua sendo desigual e de predomínio do universo masculino.
Ilnete Porpino Paiva (2007) inicia seu texto trazendo um trecho de uma música
conhecida nas rodas que canta que as Capoeiras: “É pra homem, menino e mulher” (p.
98), mas nem sempre essa foi, ou ainda é, a realidade vivida nas rodas e nos grupos,
pois esta prática sempre foi identificada socialmente como “coisa de homem”. Ela nos
revela que, até a década de 1970, o número de mulheres era insignificante e buscar as
razões disto é acompanhar a situação da mulher na sociedade brasileira. Assim,
De um modo em geral, a situação da mulher no Brasil até a primeira metade
do século XX era muito diferente. Se fizermos uma reconstrução histórica da
condição feminina no país, podemos constatar que elas estavam destinadas à
subordinação, à submissão, à repressão, à discriminação e à desvalorização.
27 O caso foi registrado pelo jornal de notícias de Salvador do dia 10 de fevereiro de 1914 (apud
OLIVEIRA; LEAL, 2009). 28
Caso registrado pelo O ESTADO da Bahia, 29 ago. 1935. In: ABREU, Frederico José de. Bimba é
Bamba: capoeira no ringue. Salvador: Instituto Jair Moura, 1999. p. 15.
73
Havia uma absoluta sujeição da mulher ao homem, prevalecendo o
tratamento desigual (PAIVA, 2007, p.100).
Por fim, ela complementa que o papel da mulher, desde a Colonização do Brasil,
era cuidar dos filhos e da casa, mas devido às transformações século XX, as mulheres
ocuparam espaços reservados apenas para os homens. Estas transformações atingiram
tanto as mulheres brancas e da elite brasileira, como também as mulheres pobres e
negras. Mestre Pirajá fala sobre a ausência da mulher no universo da Capoeira até os
anos de 1970:
Era machismo, era machismo mesmo. Porque a sociedade brasileira sempre
foi machista. Hoje tá diminuindo. Mas, veja bem, a mulher apesar das
grandes conquistas que já teve, mas ela sempre era vista apenas como dona
de casa, criadora de menino e parideira. Só. Esse era o pensamento daquela
época antiga. Entendeu? Da época dos meus pais, dos meus avós. Hoje em
dia não. A mulher conquistou um espaço (Apud PAIVA, 2007, p. 100).
Será mesmo que os corpos femininos conquistaram seus espaços nas rodas ou no
jogo da vida dos dias atuais? Pelo que pudemos constatar nos dados de Estrangeira o
pensamento machista ainda se encontra presente nos dias atuais em pequenas ações e
gestos que corroboram e reproduzem o pensamento e as ações machistas no universo
das Capoeiras. O que fica evidente é que as mulheres, com as Capoeiras, não sofrem
apenas com a violência física, mas também com outros tipos de violência produzidos
pelas subjetividades machistas.
Paiva (2007) problematiza esta questão da subjetividade, pois a ideia do domínio
masculino é social e generalizada, sendo reproduzida por homens, mas também pelas
mulheres. Um exemplo disto é quando Estrangeira diz que as mulheres se acomodaram
ao papel de submissão e não lutam pelos seus lugares nas rodas e nos grupos das
Capoeiras. Mestre Pirajá (PAIVA, 2007) explicou que, até o final da década de 1970,
não ensinava Capoeira para mulheres sob a forte influência da tradição da Capoeira de
Mestre Bimba, em que as mulheres participavam apenas para compor o coro e as
palmas no cantar das apresentações e rodas. As mulheres também faziam os shows de
Samba de roda.
Entretanto, como toda tradição se reinventa, ele conta que, em seu grupo, 40%
dos praticantes são mulheres, mas como Paiva (2007) afirmou, isso não garante que as
mulheres tenham uma presença significativa e em condições semelhantes às condições
dos homens.
Isso nos faz pensar a respeito do preconceito, do racismo e da discriminação
associado às ideias inadequadas e socialmente construídas sobre as Capoeiras como
74
produtos dos homens negros escravos ou ex-escravos, marginalizados economicamente,
além da inserção no contexto de violência, o que já impediu a participação de muitos
homens, se agravando ainda mais no caso das mulheres. É interessante destacar que, em
nenhum dos três grupos pesquisados, encontramos a figura feminina na posição de
destaque, apesar da efetiva participação das mulheres na construção cotidiana das
Capoeiras e dos grupos.
Paiva (2007) ainda problematiza o espaço das Capoeiras para os dois gêneros
como um movimento recente em que o número de mulheres aumentou
significativamente, mas ainda se produz de forma desigual e o número de mulheres
diminui à medida que se aproximam do título de Mestres das Capoeiras. Assim ela
pergunta: onde estão as Mestras de Capoeira?
Durante minha jornada com as Capoeiras em Viçosa desde 2011, pude vivenciar
o predomínio do público feminino nos grupos na condição de alunas praticantes. Isso
me levou a realizar, por duas vezes, (nos anos de 2012 e 2013) um “Evento feminino”,
no qual Estrangeira participou, com a presença de Mestres, Professores e Professoras
convidados de outros grupos. No primeiro evento, em 2012, houve uma polêmica, pelo
fato de ter sido confeccionado uma “camisa rosa” (figura 13), que seria usada tanto por
homens quanto pelas mulheres participantes do evento. Este fato gerou muita discussão
por parte de alguns alunos que gostariam que fosse feita outra cor de camisa para o
público masculino.
Figura 13- Camisa rosa do evento feminino que gerou a polêmica entre alguns praticantes Fonte: Arquivo professor Veizada.
75
Neste evento divulgado pela imprensa local (figura 14 e 15), os protagonistas
das aulas de Capoeira também foram os homens com a presença de 2 Mestres e 1
Mestra de Capoeira, pois a outra Mestra convidada não pôde comparecer, sendo
representada por seu marido no evento. Isto nos mostra que a própria Mestra mulher se
encontra inserida numa subjetividade masculina das Capoeiras. Reforçar o
protagonismo dos homens num evento direcionado ao protagonismo das mulheres
reproduz os processos de subjetivação que fabricam a superioridade masculina no
universo das Capoeiras.
Figura 14- Divulgação do evento feminino pelo jornal Folha da Mata
Fonte: Arquivo Professor Veizada.
76
Figura 15- Matéria realizada pelo jornal Folha da Mata após a realização do evento
Fonte: Arquivo Professor Veizada.
77
Figura 16- Cartaz do 1º evento feminino em 2012
Fonte: Arquivo do Professor Veizada.
No segundo ano, a presença feminina foi mais efetiva com a presença de três
professoras recentes formadas e com uma maior variação dos estilos, através de um
casal de Mestres de uma escola de Capoeira Angola, sendo todos Professores e Mestres
convidados de outros grupos de São Paulo e da Bahia. O evento foi aberto a todos os
grupos da cidade com a participação de vários alunos de outros grupos, inclusive de
Estrangeira e Cachaça dos grupos B e C, e participantes da pesquisa. Desta vez, para
não gerar polêmica, a cor da camisa foi o verde e o azul (figura 17).
78
Figura 17- Roda na praça do 2º evento feminino em 2013
Fonte: Arquivo do Professor Veizada.
É interessante destacar que, durante uma roda de conversa com o grupo do
projeto “Mães da Capoeira”, a Mestra mulher debatia, ao mesmo tempo em que
carregava sua filha bebê nos braços, a respeito da participação efetiva da mulher na
Capoeira e dos privilégios dos homens em todas as funções, inclusive nas obrigações
com os filhos socialmente instituídas para as mulheres. Por várias vezes, essa Mestra
desabafava que o marido, também Mestre de Capoeira, tinha privilégios sociais e
capoeirísticos recebendo muito mais convites de trabalho, ou permanecendo por muito
mais tempo dedicado à Capoeira, enquanto ela se dedicava mais à família, aos filhos
que à academia, mesmo contra sua vontade.
Momentos e temas como este, de discussão e reflexão entre os praticantes
homens e mulheres, Mestres e Mestras, alunos e alunas, foram de grande importância
no trânsito das ideias e ações. Estes eventos atingiram os praticantes de Capoeira de
Viçosa, mais diretamente, os praticantes de 2 projetos que atendiam as “Mães da
Capoeira”; um grupo formado apenas por mulheres de várias idades; e o grupo das
crianças formado pelos filhos capoeiristas do projeto infantil “Capoerê”, abordando
questões relacionadas as famílias dos praticantes.
79
Através da minha experiência de anos com a prática das Capoeiras, posso
afirmar que esta realidade atravessa muitas Capoeiras com relação aos modos de se
construir os homens e as mulheres, os pais e as mães e o maridos e a esposas nas
Capoeiras em geral, produzindo ideias, afetando os corpos e fabricando modos de viver
dos praticantes.
Figura 18- Cartaz do 2º evento feminino "Ginga Mulher" em 2013
Fonte: Arquivo Professor Veizada.
Diante disto, podemos problematizar como se produzem cotidianamente estas
Mestras e Professoras das Capoeiras? Ao acompanharmos as Capoeiras, os cotidianos e
os discursos de algumas praticantes mulheres alunas das Capoeiras de vários grupos,
pude observar o domínio dos homens no topo das hierarquias destes grupos, apesar da
produção de vários discursos de equidade em relação à participação efetiva da mulher
na Capoeira.
Ainda com relação aos Mestres e Professores de Capoeira, Estrangeira acredita
que para ser um profissional da Capoeira não basta ter apenas os conhecimentos
específicos (parte física, instrumentos, folclórica e etc.) da prática, mas é preciso ter um
comportamento íntegro, que abarca o respeito à figura e a diferença da mulher, como
80
também ações sociais solidárias, que se afastam de condutas ilícitas ou imorais pelo fato
da figura ser exemplo para os alunos. E mais uma vez, ela frisa que os conhecimentos
aprendidos servem para a vida, pois:
Não adianta você falar, gente, capoeira é uma luta, mas a ideia é não
machucar o colega porque é o seu colega treino se você vai fazer isso. Então
eu acho que é isso, não vale a pena você falar “gente, nós temos que respeitar
os outros” se você entra numa roda de Capoeira de outro grupo já se achando,
já brigando, já querendo bater nos outros.
Então, ela nos apontou que há uma diferença entre o discurso disseminado pelas
lideranças da Capoeira, expressado também no grupo B, e as ações dos seus praticantes
homens no dia a dia. Para ela, não basta ter os conhecimentos se o comportamento e as
ações não condizem com o respeito ao próximo, podendo este ser um colega de trabalho
ou de treino. Por fim, ela atravessou a questão da diferença nas/das/com as Capoeiras
sinalizando que ainda há muito desrespeito às diferenças de gênero, corpo, habilidade,
de filosofia, de aprendizado e de vivências dos praticantes, independente dos grupos,
escolas e estilos de Capoeira. Isto revela a ambiguidade na produção das lógicas de
respeito à diversidade e às diferenças, que na maioria dos grupos se encontram mais
ligados às noções de obediência, submissão e disciplinamento dos corpos de homens e
mulheres.
Por fim, vamos seguir o nosso encontro com a Capoeira do Grupo C, ligado ao
estilo de Capoeira Angola da escola de Mestre Pastinha, e que é produzido e praticado
na “Casa da Angola” (nome fictício), localizada na Universidade Federal de Viçosa.
4.3 O grupo C e a “Capoeira da Casa da Angola”
Na chegada do primeiro encontro com esta Capoeira no dia 7 de março de 2018,
avistei Gafanhoto (apelido), aluno graduado na hierarquia do grupo C, tocando um
berimbau na companhia de mais uma praticante, e logo o cumprimentei perguntando a
respeito de Cachaça (apelido), Professor responsável do grupo. Após aguardar uns 30
minutos no local, encontrei Cachaça e expliquei novamente a respeito da pesquisa,
aproveitando para pedir o seu consentimento para realizar os três encontros e a
entrevista necessária para a produção de dados da pesquisa.
81
Ao entrar na Casa da Angola que fica localizada na Vila29
Gianetti da
Universidade Federal de Viçosa, me deparei com três meninas e dois meninos na parte
de fora do quintal da Casa preparando instrumentos que logo fariam parte desta
experiência prática de afecção com o grupo C (figura 19).
Cachaça autorizou as nossas visitas para a realização dos encontros e as
entrevistas para a produção dos dados da pesquisa, complementando com o comentário
que a sua casa de Capoeira estava aberta para todos, e que às vezes a tradição que
mantém hábitos e rituais também mantém hierarquias que prendem os capoeiristas a
seus Mestres numa relação de via única, onde quem se beneficia é apenas a figura do
Mestre. Aqui, Cachaça expressa sua crítica e seu descontentamento com algumas
hierarquias existentes nos modos das Capoeiras.
Além disto, nesta fala ele já apresentou indícios do que considera importante, e,
logo após, anunciou que há pouco tempo havia rompido com seu antigo Mestre,
seguindo um caminho próprio com a Capoeira, sozinho e sem ligação direta com a
alguma escola ou grupo de Capoeira. Cachaça desabafou que a tentativa de controle de
algumas das suas ações no grupo C foi o ponto principal do desligamento com o grupo
do Mestre da Bahia, ao qual até então era filiado.
É importante destacar que o rompimento de Cachaça foi especificamente com o
seu antigo Mestre, que possuía sua matriz na ilha de Itaparica na Bahia. Contudo, este
rompimento não se estendeu a outros processos de subjetivação dos corpos, das
hierarquias, das normas e das tradições da Capoeira Angola. Sendo assim, ele revela
que, nos fundamentos da Casa da Angola, não é permitido fazer uso de bebidas
alcoólicas, de cigarro e de bermudas, como também participar das aulas e rodas estando
sem camisa e descalço sempre respeitando às tradições da Capoeira Angola de Mestre
Pastinha.
Diante disto, quero destacar, porém, que minha participação em uma das aulas,
contrariou as normas por não imaginar o acontecimento, pois me encontrava de
bermuda e calçado, sendo que ele, gentilmente, me recebeu, fazendo uma concessão à
essa norma da Casa. Ele novamente frisou que a Capoeira, em alguns momentos, tem
que romper com as tradições, “que às vezes puxam a Capoeira para atrás”, sendo que
essas rupturas servem para poder “andar para frente”, segundo suas palavras.
29 Incialmente nascida como vila residencial de Professores da universidade, na década de 1980, passa a
ser ocupada com laboratórios e unidades acadêmicas abrigando vários projetos.
82
Cachaça frisou que este grupo de Capoeira Angola vem se reunindo naquela
Casa, desde quando iniciou suas atividades no ano de 1997, a partir da ação de 2
praticantes, Pardal e Castor, que treinavam com o Mestre da ilha de Itaparica – BA.
Castor era aluno da Universidade Federal de Viçosa e Pardal um praticante “nativo” da
cidade.
Figura 19- Grupo C realizando uma roda na "Casa da Angola"
Fonte: Arquivo do Professor Cachaça.
4.3.1 Cachaça e sua “luta com as Capoeiras”
Atualmente, Cachaça é o Professor da Capoeira praticada na Casa da Angola, e
iniciou seu aprendizado em 1998 com um Mestre de Viçosa em um projeto social no
bairro Amoras, na cidade de Viçosa, sendo aquele primeiro grupo mais inclinado à
Capoeira Regional.
Cachaça também se lembrou do carinho com que o Mestre o recebeu no início
da sua prática, afirmando que isto foi muito importante para continuar naquele projeto
gratuito, frisando que tudo isso não foi por dinheiro, pois ele não podia pagar pelas
aulas. Ele lembrou que devido à idade já um pouco avançada, as aulas do Mestre eram
mais de incentivo, sendo este um momento feliz na sua formação.
Entretanto, sua migração para a Capoeira Angola se deu devido à afecção
produzida pela musicalidade diferente, como algo que ele não soube muito bem
explicar, entretanto ainda carrega muitos ensinamentos do antigo Mestre que sempre
83
dizia que “o Capoeira tem que saber jogar em cima e em baixo” e não pode se limitar a
um tipo de jogo, sendo o mais difícil, o jogo do respeito, o jogo do somar, o de
fortalecer e de aguentar “as peia” quando escolher um caminho, pois várias coisas vão
contradizer e, nestes momentos, Cachaça disse que pôde contar com o incentivo do
Mestre nas palavras. Cachaça falou que traz sempre este conhecimento aprendido com o
Mestre, pois:
Eu cheguei na Bahia com os princípios de conhecimento de saber chegar e
não me ensinaram a chegar. Na Capoeira Angola eu aprendi a chegar no
primeiro momento que cheguei na Capoeira, entendeu? Aquilo que o Mestre
me falou faz muito sentido até hoje, pois eu chego em todos os lugares com
os primeiros passos que o Mestre me passou30
O início da prática da Capoeira foi difícil para Cachaça, pois sua família não
apoiava e acreditava que sua conduta e seu comportamento iriam ser afetados de
maneira negativa e violenta. Mas, surpreendentemente, sua mãe, que frequenta uma
igreja evangélica, apoiou e reconheceu a Capoeira de forma educativa pela mudança de
comportamento de Cachaça se referindo à Capoeira como uma “luz” na sua vida.
Segundo ele, sua mãe nunca falou da Capoeira por uma ótica religiosa ou
preconceituosa, mas como uma prática física e saudável.
Observamos aqui a conexão desta Capoeira com as redes religiosas produzidas
na relação com sua mãe, que mesmo seguindo as doutrinas que concebem a Capoeira
como prática profana, também reconhecia a mesma como prática importante na
construção dos valores morais e sociais no comportamento de Cachaça. Entretanto,
dentro da sua família, ele ainda convive com a discriminação em relação à Capoeira,
pois segundo o próprio, “ainda existe uma má impressão a respeito da prática” associada
à imagem do vagabundo, do malandro e da pessoa sem estudo e instrução.
Cachaça e seu antigo Mestre da Capoeira Angola se conheceram no ano de
2007, na cidade de Viçosa, em uma visita do Mestre. Logo depois, Cachaça rumou para
Bahia para se aproximar e desfrutar das vivências e dos modos de produção de uma
Capoeira Angola com raízes diretas na escola de Mestre Curió, discípulo direto de
Mestre Pastinha.
Um episódio, no ano de 2010, na ilha de Itaparica, o marcou e ele vem levando
essa história para todos os lugares desde então. Neste ano, seu Mestre não se encontrava
na ilha e infelizmente Cachaça sofreu um acidente num jogo de Capoeira com outro
30 Trecho da entrevista concedida para esta pesquisa no dia 15/03/2018.
84
aluno numa roda, permanecendo durante uma semana hospitalizado com traumatismo
craniano, tendo seu tratamento se estendido para mais 2 meses na Bahia, a fim de que se
tratasse das consequências daquele acontecimento.
Na pluralidade da roda, segundo ele, o jogo combinado entre ambos seria o jogo
de floreio, onde os jogadores tentam desenvolver o jogo o mais próximo possível do
companheiro demonstrando habilidade e controle corporal dos movimentos, além de
uma sintonia refletida na sincronia dos gestos dos dois jogadores como um diálogo
corporal sem o objetivo marcial de luta. Entretanto, Cachaça foi pego desprevenido com
uma joelhada no rosto, que para ele foi proposital.
Cachaça revelou que seu companheiro (adversário) se mostrou arrependido com
o ato dando toda assistência, ainda dizendo que seu adversário não lhe deu uma
joelhada, mas sim o ensinou muita coisa como a vulnerabilidade da vida diante da
imprevisibilidade dos acontecimentos, pois nas suas palavras: “ninguém está livre
destes acontecimentos”.
O que a gente tem que manter com a gente é aquela força e ir em frente e isso
aí que me mantém hoje na Capoeira com muita vontade de treinar e eu tenho
muito respeito pelo cara e o cara tem um trabalho bonito até hoje entendeu? E
o cara se educou, tá muito melhor, eu também, a gente se encontra e conversa
e a vida segue.
Apesar do mau encontro e das tristezas emergidas, Cachaça mostrou uma força e
um aumento de potência na produção do desejo em treinar e dos sentimentos bons de
respeito e perdão pelo conhecimento adequado baseado no controle das ações e do
refreamento dos afetos paixões que são nocivos e diminuem a potência de agir.
Durante os dois meses que permaneceu na Bahia, Cachaça ficou assistido numa
casa com várias pessoas, mas também realizou trabalhos ressaltando o poder de
transformação deste acontecimento nas vidas tanto do agressor quanto na dele, o
agredido.
Este praticante considerou que se educou na Capoeira, pois alegou que vinha de
uma história difícil, pautada na falta de recursos e na violência cotidiana devido à rixa
entre os bairros da periferia da cidade. Ele acredita que deve dar continuidade a esses
trabalhos, pois foi através desta Capoeira que pôde melhorar suas condições de vida e se
aproximar de outras pessoas. Cachaça já trabalha também há 25 anos como motoboy,
mas hoje apenas complementa sua renda com este trabalho, pois através das aulas de
Capoeira, consegue tirar seu sustento.
85
A respeito da Capoeira como profissão, Cachaça nos contou que sua semana é
muito atarefada, sempre resolvendo os problemas que aparecem no seu grupo, seja entre
os alunos ou nos projetos, tomando a maior parte de seu tempo. Assim, segundo ele, “na
Capoeira não tem folga e não tem férias”, e ainda afirma: “que Capoeira para ele é vida,
e quem tira férias de viver morre”, mas para não “morrer” em sua Capoeira, Cachaça
compôs com confrontos internos dentro do próprio grupo.
No ano de 2001, ele iniciou sua prática na Capoeira Angola com Castor que se
formou na Universidade Federal de Viçosa, e retornou para sua cidade natal, assumindo
Cachaça a frente da Capoeira da Casa da Angola e outros projetos sociais.
Quando ainda era aluno, Cachaça vivenciou o rompimento entre os criadores
daquele grupo em Viçosa com Pardal e Castor. Pardal se afastou e quando Castor se
formou, Cachaça assumiu também a frente da Capoeira dos projetos sociais como “a
tribo do morro”, que levava esta Capoeira Angola para os bairros de baixa renda da
cidade. Atualmente, na sua rotina são três aulas diárias na Casa da Angola e em outros
projetos espalhados pela cidade.
Cachaça nos contou que tentou incluir Pardal ao grupo novamente, mas logo
Pardal se “queimou”, tentando falar mal dele, Cachaça, para seus próprios alunos. Ele
nos revelou que deixou tudo acontecer para ver até onde iria aquela atitude, pois o fato
de Pardal saber tocar muito bem o berimbau contribuía com o prolongamento da sua
permanência no grupo de alguma forma. Diante disto, ele acabou elogiando Pardal por
várias vezes para que este ensinasse tudo o que sabia de melhor, mesmo diante das
difamações quanto à sua forma de jogar e cantar.
As tramas pelo poder na Casa da Angola se sustentam nas relações de
legitimação dos praticantes na figura de Professor ou Mestre como responsáveis pelo
grupo, pois, apesar do tempo de prática para o desenvolvimento das habilidades e dos
conhecimentos específicos contarem na construção de um Professor ou Mestre de
Capoeira, o reconhecimento como tal está envolvido também a uma trama de
legitimação de um território de poder.
Ele nos esclareceu que, na sua Capoeira, sempre tentou estabelecer o diálogo
ressaltando que as Capoeiras da cidade não se encontram unidas, havendo em jogo
muita vaidade, inveja e disputa de ego, revelando que sempre frisa aos seus alunos que
o capoeirista é um artista e que a Capoeira se encontra no “feijão com arroz”, que, para
ele, significa “levantar todos os dias as 6 horas da manhã, montar numa moto e fazer
entregas até a noite, como também é sair de baixo de chuva para realizar uma roda, ou
86
se indispor com a família para participar de um evento ou de uma aula nos finais de
semana e férias.
O que podemos observar é que Cachaça se encontra na Casa da Angola em meio
as lutas singulares e cotidianas, seja pelo sustento financeiro, pelo poder do grupo C
com o Mestre e com Pardal, ou na luta por reconhecimento na família, para se manter
“vivo” nas rodas de Capoeira. Em Cachaça, temos que sua permanência na Capoeira
condiz com a sua própria afirmação da vida e significância. Ou seja:
De você ta ali sentado numa roda e do lado tá um cara que é doutor, do outro
lado tá um pedreiro, do outro um lavador de carro, e onde mistura criança,
adulto, a pessoa mais idosa, e as pessoas cantam as mesmas músicas. Você
vai num evento e senta na mesa e come a mesma comida, e essa vontade de
integração ao meio social né, que no meu caso se fosse diferente, eu não tinha
pra onde ir, não tinha um grupo onde se encontrar no final de semana,
entendeu?
Nosso entrevistado não considera a Capoeira violenta, apesar da sua convivência
fora da roda de Capoeira ter sido com pessoas violentas, pois a prática o inseriu na
convivência com pessoas não violentas, e com o disciplinamento de seus modos de agir
e reagir. Diante disto, quando perguntado se aprendeu algo com a sua Capoeira, ele nos
respondeu: “Cara, eu aprendi tudo o que me faz bem”.
Diante disto, a conclusão é de que todo acontecimento é singular e flui nas
multiplicidades do coletivo e do privado tecido nas dimensões sociais, estéticas,
políticas, corporais e incorporais.
Enquanto também desabafava nesta conversa, Cachaça nos dizia que agora que
se encontrava livre da subordinação de um Mestre, iria percorrer e rodar por muitas
outras Capoeiras que já desejava conhecer, além de outras que ainda não conhecia e que
também poderá realizar os eventos convidando os melhores na sua concepção, mas que
não eram aceitos pelo seu antigo Mestre. Isso indica uma busca desta Capoeira pela
diversidade, o que, por sua vez, não deixa de produzir tensões, uma vez que o romper
com os códigos identitários que territorializam uma prática produz igualmente
incertezas. A abertura ao diverso sempre traz consigo a oportunidade das vertigens e da
incerteza, assim também como a chance de ampliação dos coeficientes de invenção de
um grupo.
Ele nos contou também que sempre “luta” com a filha de 13 anos e com a
namorada para realizar as rodas e os eventos nos finais de semana, que para este
Professor de Capoeira Angola é muito importante para a manutenção e produção da
tradição que está se perdendo. Assim, segundo sua fala “se não fizermos estas rodas e
87
eventos com a comunidade, as tradições da Capoeira vão se perder, pois somos nós
(Professores) os responsáveis em manter e criar as tradições”.
Aqui, tradição da roda, por exemplo, pode ser entendida tanto como produção e
invenção de outros modos de subjetivação nas perspectivas dos usos dos produtos que
nos é dado (CERTEAU, 2002), como também algo que deva ser reproduzido e mantido
como um dos costumes que caracterizam a prática. Assim, a roda se fabrica como um
modo que engendra processos de individualização e singularização (GAUTTARI;
ROLNIK, 1996).
O rompimento de Cachaça com a hierarquia e com as normas do antigo Mestre
não impede, pois, que ele, assim como outros praticantes que também se encontram na
posição de Professores e Mestres, inventem ou criem outros modos e processos nas suas
Capoeiras, produzindo outras maneiras de se praticar a Capoeira e outros modos de
viver a existir.
Modos de existir estes que se atualizam em cada detalhe da prática: na
organização do espaço, na postura do corpo, nos modos de conduta. Um exemplo disso
foi quando pedi para entrar na Casa da Angola, que deve possuir uns 30 metros
quadrados, para poder participar da aula de instrumentação que acontecia em meio a
esta conversa com Cachaça, que prontamente concordou. Entrei para participar do
momento e logo perguntei se poderia pegar um pandeiro vermelho em cima do banco.
Havia dois bancos nos cantos da parede no formato em v, onde um residia os 3
berimbaus (gunga, médio e viola nesta ordem).
A formação da orquestra continuou no outro banco com dois padeiros, agogô,
reco-reco e atabaque. Rapidamente Cachaça explicou como cada um tocaria e quais
deveriam ser os toques executados pelos berimbaus. Além disto, ele explicitou o que
seria as variações do “jogo baixo” e do “jogo alto”31
. Assim, ele sinalizou alguns modos
musicais e suas relações com os modos dos jogos construídos na Casa da Angola.
Depois de algum tempo tocando, de repente Cachaça fez a chamada do berimbau
para efetuar a parada da bateria e encerrar aquele momento, em que eu estava
totalmente afeccionado pelas variações do berimbau viola que eu acabava de pegar e
pela harmonia rítmica com os outros instrumentos. A parada aconteceu para chamar a
atenção diante da postura de alguns tocadores, que nesta escola devem permanecer
31 O “jogo alto” desta capoeira é representado por um jogo mais veloz com os jogadores dentro dos toques
mais rápidos de Angola, São Bento grande e dos repiques dos berimbaus gunga, médio e viola.
Entretanto, o “jogo baixo” representa o inverso do “jogo alto”.
88
eretos e alinhados utilizando o pequeno espaço do banco, pois para Cachaça “a postura
na roda é a postura diante da vida”. Aqui vemos outro modo ligado à postura do corpo
que se encontra engendrado nas maneiras de se comportar diante das dificuldades da
vida.
Além disto, também não fiquei ileso na chamada de atenção daquele momento
pois, como eu já sabia, muitas Capoeiras não permitem que seus tocadores cruzem as
pernas na bateria por acreditarem que este gesto bloqueia e fecha o fluxo e a circulação
da energia da roda. Assim, estas subjetivações do corpo, presentes naquele grupo
participam dos modos de existir dos praticantes, pois as posturas na roda se imprimem à
disciplinarização da vida dos praticantes.
Portanto, pudemos observar a produção de modos expressos na crença, no
disciplinamento das condutas e na tentativa do controle dos corpos Capoeiras desta
escola, apesar de muitos discursos enaltecerem a liberdade dos seus praticantes.
Apesar de Cachaça ser um praticante que reflete e questiona os processos de
disciplinamento de outras Capoeiras, neste pouco tempo que permaneci imerso naquele
grupo, não observei a produção de um espaço de expressão, discussão e questionamento
dos alunos em relação aos processos, aos modos e às práticas exercitadas na Casa da
Angola.
Na composição da bateria desta escola, o berimbau berra boi (o maior) marca o
toque de “Angola”, o médio transita entre a marcação do toque “São Bento grande ou
pequeno”, com as evoluções e os repiques, e o viola traz a criatividade, a alegria e a
invenção dentro das evoluções e repiques. Sendo assim, o que mais me chamou a
atenção foi a afecção de arrepio no meu corpo através do som do berimbau viola, que
me produziu um enorme desejo em tocá-lo. Quando Cachaça permitiu a troca, logo
realizei meu desejo produzindo uma enorme alegria e uma afecção de um calafrio no
estômago.
Neste momento, fiz uma pergunta à Cachaça relacionada à permissão dos
instrumentos da percussão (pandeiro, agogô, reco-reco e atabaque) em realizar
evoluções e repiques como os berimbaus. Ele me respondeu que ia depender do tocador,
pois, segundo suas palavras, se “o cara for músico” e saber o que está fazendo sem
estragar a harmonia da roda, tudo bem! Cachaça complementou sua resposta dizendo
que “a viola é do violeiro, sendo o violeiro aquele responsável pela criação e invenção
proporcionada pelos repiques nos toques, mas o coração da roda é mesmo o atabaque”.
Quando perguntado a respeito do que mais gosta na Capoeira, ele nos respondeu:
89
O que eu mais gosto da capoeira é assim, é aquele campo harmônico da
musicalidade, daquela coisa sabe! Quando tá todo mundo na mesma sintonia,
seja Angola ou Regional, que tá todo mundo cantando junto, todo mundo se
aplaudindo, todo mundo se divertindo, esse é o momento mais contagiante
sabe? Todos são um só!
Para Cachaça, a totalidade da Capoeira é alcançada através deste campo
harmônico musical que une todos os corpos na concepção de um único corpo composto
e expresso no formato da roda. Diante disto, se “a roda de Capoeira” deve imitar “o jogo
da vida”, ou vice-versa, segundo as lógicas do grupo C, a vida, como a roda, deve se
construir em harmonia, sendo esta praticada e exercitada nas relações cotidianas
construídas com respeito, alegria, atenção, obediência e invenção através de ações que
promovam bons encontros.
Naquele encontro musical, após realizamos a troca dos instrumentos, Gafanhoto
tomou posse do berimbau médio, e a partir daí, as afecções provocadas em meu corpo
pelos sons dos instrumentos nesta experiência musical com esta Capoeira, variavam
transitando em momentos de transe, arrepios e calafrios na barriga potencializados por
uma suave disputa rítmica pelo berimbau, entre eu e Gafanhoto com seus respectivos
instrumentos. Para mim, o fato de pertencermos a escolas e estilos de Capoeira
diferentes, sendo eu de uma escola Contemporânea e Gafanhoto da Capoeira Angola
potencializou o encontro. Os instrumentos de percussão como pandeiros, agogô, reco-
reco e atabaque permaneceram numa marcação de três batidas, conforme foi ensinado
por Cachaça.
No início, me incomodei com essa maneira toda peculiar de se sentar e de se
comportar diante dos instrumentos e do ritual de aprendizado da musicalidade desta
Capoeira, mas, após isso, refleti sobre a minha própria prática musical e de ensino-
aprendizado da instrumentação, do ritmo e das músicas da minha escola de Capoeira.
Cachaça, depois disto, frisou novamente que aquele espaço era um espaço “livre” para
qualquer um chegar, pegar o instrumento, mas primeiro era preciso saber armar e
desarmar os instrumentos e tocar respeitando toda uma maneira de fazer da sua escola
de Capoeira.
Portanto, quem não estivesse afinado com estas maneiras, estaria subvertendo as
regras da Casa, podendo ser impedido ou impossibilitado de participar. Assim, que
liberdade é essa expressada na fala de Cachaça? Não seria uma liberdade entendida e
produzida nas ações direcionadas dos praticantes, contanto que essas ações se submetam
aos modos de disciplinamento daquele grupo?
90
Algumas músicas conhecidas foram cantadas como também outras
desconhecidas, e após 1 hora e meia mergulhado naquela Capoeira, cantamos o “Adeus,
adeus, boa viagem”, como é de costume nas três Capoeiras acompanhadas neste
trabalho, marcando assim, o final daquela experiência musical. Como era de costume
nesta Capoeira, todos deram as mãos no ritual de despedida e gritaram por três vezes a
palavra “Axé”. Por fim, agradecemos a todos do local e isso encerrou um dos nossos
encontros com a Capoeira da Casa da Angola.
Apesar dos rituais, das normas e das hierarquias, Cachaça entende que a
Capoeira vem acompanhada da flexibilidade não só do corpo, pois nas suas palavras “se
você tem o corpo duro, e não consegue sair dos movimentos e às vezes os movimentos
te pegam, é porque você precisa ser mais flexível e, quando você fica mais flexível na
Capoeira, você fica mais flexível na vida”. Este praticante, de outra maneira, não estaria
nos dizendo que isso seria uma forma de refrear as tristezas e os maus encontros com as
Capoeiras e com a vida? Então, como podemos potencializar bons encontros e a
produção das alegrias com as redes cotidianas? Como devemos nos compor com as
normas disciplinadoras e os modos dominantes operantes nas Capoeiras e em outros
espaços cotidianos? Como conseguiremos produzir resistências por meio dos usos das
práticas aos modos dominantes produtores de ideias e ações ligadas às injustiças e
intolerâncias que operam na sociedade em geral?
Estas questões, e tantas outras, se encontram conectadas aos diversos grupos e
capoeiristas que se encontram espalhados pelo Brasil e pelo mundo, mais também aos
cotidianos de outras práticas e espaços sociais. Além disto, estas questões tecem
rizomáticamente a dimensão micro desta pesquisa com as Capoeiras de Viçosa e seus
praticantes, a dimensão macro da sociedade brasileira por meio de uma reflexão de
como as normas de disciplinamento e os modos dominantes atuam simultaneamente
com os processos de produção de saberes por meio dos usos e das invenções que
compõem os sujeitos engendrando formas de viver, pensar e agir.
Por fim, provocamos a reflexão de como esta operação simultânea dos modos
das capoeiras que reproduzem as normas e inventam saberes, também atua na
fabricação dos afetos, das ideias e das ações que podem se pautar tanto na intolerância,
na desigualdade e na discriminação, quanto na solidariedade, na cooperação e na
amizade. Será que podemos produzir Capoeiras como espaçotempo de liberdade, de
respeito à diversidade e de resistência no combate contra as desigualdades e às
injustiças sociais?
91
ADEUS, ADEUS, BOA VIAGEM
Adeus camarada adeus, adeus que eu já vou me
embora, quem parte fica a saudade, quem fica soluça
e chora...
(CONTRA- MESTRE RAFAEL LAMBA)
Nestes processos que acompanhei, que envolvem a vida de alguns participantes
de três grupos de Capoeira pesquisados da cidade de Viçosa, acabei atravessando
diversas dimensões dos praticantes capoeiristas, dos grupos e das redes relacionais que
me fizeram encontrar com várias formas de jogar, de tocar e se comportar; com os
ritmos e a música; com os debates religiosos e de gênero; de lidar com as normas e as
hierarquias; e com produção dos afetos e desejos, que sinalizaram o quanto as Capoeiras
de Viçosa que percorri estavam compostas por diferentes questões, tensões e propostas
que possuem conexões e divergências entre si. Isto ainda sinaliza uma produção de
conhecimento pautado nos currículos praticados por meio dos processos relacionais
cotidianos.
As dinâmicas das Capoeiras de Viçosa pesquisadas não se restringiam apenas
aos seus grupos de forma isolada, se fabricando como experiências de articulações
possíveis nas tramas configuradas em diferentes territórios enredados em processos
estéticos, musicais, gestuais, políticos, filosóficos entre vários outros. Assim, estes
processos em redes engendram modos de viver no pensar e no agir nas conexões que
configuram práticas de conhecimentos que atravessam diversas expressões como um
indivíduo, um grupo, uma aula, uma roda, um evento, um gesto, uma palavra, uma
música, ou um sentimento.
Diante disto, esta constituição de redes de conhecimentos nas Capoeiras,
incluindo os conhecimentos específicos da prática, nos faz deparar com miscigenações
que demarcam a inexistência de qualquer prática e conhecimento “puro” e “verdadeiro”.
Segundo Lopes (2011), “Isto porque não existe conhecimento que não seja mestiço; que
não tenha bebido em várias fontes, ainda que, instituído em seu território de verdade,
venha a negar a validade de diversas águas que anteriormente nutriram sua formação”
(p. 240).
É importante ressaltar que, nesta relação, entre múltiplas territorialidades
também se produziu ignorâncias, tensões, identidades, preconceitos e discriminações em
meio à ampliação de mundos, às diferenças e aos conhecimentos produzidos. Nesta
92
rede, a pluralidade dos mundos é legitimada na coexistência das relações. A exemplo
disto, percebemos as conexões e desconexões que entre os grupos se construíram
conhecimentos a respeito do corpo, da mente, de si, do poder dos afetos, das normas,
das hierarquias, das discriminações, dos gêneros, e outras instâncias que não
harmonizam os encontros, mas constroem outras maneiras de pensar.
Portanto, ao acompanharmos o enredamento da dimensão pessoal e grupal de
alguns praticantes, fomos levados a relatos de acontecimentos e encontros conectados
com os seus conhecimentos articulados e muitas vezes ignorados, problematizados ou
abortados por dimensões opressoras, discriminatórias ou solidárias. Estes episódios
marcaram e interferiram na vida dos praticantes.
Em outubro de 2016, uma roda que o nosso grupo realizou no CT voltada para a
entrega de um cordão de graduação a um aluno foi um acontecimento que registrou um
encontro dos 3 grupos pesquisados (figura 20), mas mais que isso, fez emergir a
conexão das redes temporárias tecidas entre aquelas Capoeiras de Viçosa. Naquele
período, ainda cursando o 2º semestre do Mestrado em Educação, não imaginei traçar os
caminhos que me levaram a este estudo que buscou atravessar os cotidianos destas
mesmas Capoeiras, diante das possibilidades de tantas outras tramas, escolas e grupos
que eu poderia ter acompanhado.
Figura 20- Roda que conectou os 3 grupos (A, B e C) de Capoeira pesquisados.
Fonte: Arquivo pessoal do Professor Veizada.
Esta pesquisa me envolve diretamente, pois fui instigado a estudar os processos
de subjetivação e singularização, além da importância dos sentimentos nas relações de
Educação para tentar compreender primeiramente o que sinto pela Capoeira e como ela
me produz como sujeito rígido e flexível, múltiplo e complexo, mas também singular.
Após isso, problematizei quais possíveis mundos e realidades capoeirísticas
eram produzidas além das minhas na cidade e quais eram os outros modos e processos
93
educativos? Os encontros com os 3 grupos na roda materializou a conexão destas
formas de produzir as Capoeiras atravessando as teorias utilizadas, como também
possibilitou o encontro com outros processos coletivos, outras singularidades e redes
educativas, afetivas, culturais e musicais.
Poderíamos ter caminhado por outras rodas e grupos, o que não desqualifica o
valor de outras Capoeiras e práticas que não totalizam os praticantes, mas que podem
indicar a produção de vida engendrada nas normas e na invenção. Assim, mesmo diante
das diferenças entre os grupos, posso afirmar que nestas Capoeiras há uma convivência
construída por fios emaranhados com base na disputa e na solidariedade, na cooperação
e na competição e na tolerância e na disputa da roda, em nome do amor à prática, apesar
de muitas vezes se apresentarem inclinadas a hierarquias, preconceitos e intolerâncias,
pois nossas ações podem se construir por caminhos já conhecidos e “confortáveis” ou
por caminhos inventados. Quando fiz escolhas durante a pesquisa, optei por caminhos
pontuais, pois não temos como estabelecer uma linha reta e exata da nossa conduta na
multiplicidade das relações e nos vários pertencimentos grupais que somos constituídos
cotidianamente.
Diante de um plano social considerado em “crise” diante do contexto da
intolerância com relação à diversidade e às diferenças de ideias, pensamentos e
condutas presentes na sociedade brasileira, os encontros com as Capoeiras produzem
boas lições de convivência, diálogo e respeito às diferenças e à multiplicidade, que
podem ser observadas nos gestos do jogo, nos pensamentos, nos ritmos, nos ritos, nas
filosofias e nas músicas. As Capoeiras de hoje são produtos não só da sociedade
brasileira, mas de uma sociedade global que possui a tecnologia e a informática
afetando as relações de tempo e espaço produzindo outras realidades e outras relações
subjetivas.
Isto só mostrou que não existe um receituário a respeito das relações e dos
processos educativos, mas que é preciso exercitar ações práticas de transformação ao
que é imposto pelos modos de individualização dos sujeitos. Apontamos a importância
para a compreensão de que é possível ao corpo e à mente conviver com as práticas,
tanto de forma autoritária, triste, serializada e hierarquizada, quanto de maneira criativa,
feliz e caótica composta por bons encontros e processos de singularização e
individuação.
O caminhar dos nossos praticantes continua em outros ritmos e velocidades, em
outros espaços e rodas da vida regadas nas relações de transformação. Porcelana
94
diminuiu seu ritmo nos treinos e agora, além trabalhar dando aulas de inglês, também se
dedica ao curso de Psicologia ao contrário de sua amiga Sabiá, que agora treina todas as
noites se engajando no projeto de montar uma turma de adultos em um clube da cidade.
Estrangeira continua seus treinos com o grupo B já pensando e sonhando com o futuro
profissional sem largar mão da Capoeira, pois sua bolsa de Pós-doutorado já encerrou, e
segundo suas palavras, ela precisa arranjar um emprego.
O recente Professor formado pelo grupo B continua no projeto social da escola e
agora também está ministrando aulas da Capoeira numa academia de musculação da
cidade. Cachaça continua com a sua Capoeira da guerra e da paz na luta cotidiana como
motoboy e capoeirista nos projetos sociais, nas rodas nos finais de semana, na
construção de praticantes e rituais, nos eventos que planeja realizar e nas pessoas que
deseja conhecer.
No entanto o jogo da Capoeira continua sendo uma pequena representação da
roda da vida, sendo que muitos grupos e praticantes ainda permanecem oferecendo
passagem para novas conexões e encontros constituindo relações engessadas ou
produtoras de mundos, de jogos e rodas inéditas e nunca acabadas.
Com este trabalho, compreendemos os diferentes modos de usar e produzir as
Capoeiras visibilizando múltiplas experiências construídas nos espaços das Capoeiras.
Diante disto, apostamos nas redes de conhecimentos tecidas pelos praticantes que
constroem currículos praticados relacionados aos embates políticos e ideológicos que
circulam dentrofora destes espaços.
Por fim, defendemos que o espaçotempo das Capoeiras não é só de mesmice e
repetição de normas e regulamentos, mas espaçotempo de invenção de conhecimentos e
de saberes para a produção dos sentimentos, pensamentos e ações voltadas para um
ganho de potência diante de uma realidade cotidiana múltipla, complexa e imprevisível.
Para finalizar, traçamos um pequeno mapa das redes de saberes e conhecimentos
das conexões envolvidas nos processos educativos tecidos no caminhar da construção
desta pesquisa (figura 21).
95
Figura 21: Mapa das redes.
96
REFERENCIAIS
ALVAREZ, Johnny; PASSOS, Eduardo. Cartografar é habitar um território existencial.
In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da
cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre:
Sulina, 2010. (p.17-51; p. 131-149).
ALVES, Nilda. Cultura e cotidiano escolar. Revista Brasileira de Educação, n°23.
Maio/jun/jul/ago. 2003.
ALVES, Nilda. Currículos e pesquisas com os cotidianos. In: FERRAÇO, Carlos
Eduardo e CARVALHO, Janete Magalhães (Orgs.) – Currículos, pesquisas,
conhecimentos e produção de subjetividades. Petrópolis, RJ: DP et Alii; Vitória, ES:
Nupec/Ufes, 2013.
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. CAPOEIRA: The History of an Afro-Brazilian
Martial Art. First published by Routledge, an imprint of Taylor & Francis, 2005.
BRASIL, Ministério da Cultura. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Dossiê: Inventário para Registro e Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio
Cultural do Brasil. Brasília, 2007.
BARROS, Maria Elizabeth Barros de. Formação de professores/as e os desafios para a
(re)invenção da escola. Cotidiano escolar, formação de professores (as) e currículo/
Carlos Eduardo Ferraço (organizador). 2. ed. – São Paulo: Cortez, 2008.
CAMPOS, Héllio. Capoeira Regional: a escola de Mestre Bimba. – Salvador:
EDUFBA, 2009.
CERTEAU, Michel; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: morar,
cozinhar.10ª edição. Editora Vozes, Petrópolis: RJ. 1997.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 8ª. ed., 2002.
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
97
FALCÃO, José Luiz Cirqueira. O jogo da Capoeira em jogo e a construção da práxis
capoeirana. Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da
Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em Educação. - Salvador, 2004.
FERRAÇO, Carlos Eduardo – Pesquisa com o cotidiano. In: Educação & Sociedade.
Campinas: CEDES, v. 28, jan/abr 2007.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000.
GARCIA, Alexandra. Esboços e composições cotidianas: currículo, políticas e matizes
na formação de professores. Universidade- escola: diálogos e formação de
professores/ Maria Luiza Süssekind, Alexandra Garcia (orgs.).- Petrópolis, RJ: De
Petrus et Alii; Rio de Janeiro: Faperj, 2011
GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo.
4ªedição- Petrópolis: vozes, 1996.
LARRAURI, Maite. A felicidade segundo Spinoza /Maite Larrauri; [ilustrações] Max;
[tradução Sérgio Rocha Brito Marques]. --São Paulo: Ciranda Cultural, 2009. – (coleção
filosofia para leigos).
_________________. O desejo segundo Gilles Deleuze/ Maite Larrauri; [ilustrações]
Max; [tradução Sérgio Rocha Brito Marques]. --São Paulo: Ciranda Cultural, 2009a. –
(coleção filosofia para leigos).
LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre a experiência/ Jorge Larrosa; tradução
Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. — 1.ed.— Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2014. – (Coleção Educação: Experiência e Sentido).
LOPES, Eduardo Simonini – Praticantes de mundos: A invenção de cotidianos
discentes em uma Universidade. Tese de Doutorado. Centro de Educação e
Humanidades Faculdade de Educação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
Rio de Janeiro, 2011.
LUSSAC, Ricardo Martins Porto; TUBINO, Manoel José Gomes. Capoeira: A
história e trajetória de um patrimônio cultural do Brasil. Maringá, v.20, p. 7-16,
2009.
98
MANHÃES, Luiz Carlos Siqueira. Rede que te quero rede: por uma pedagogia da
embolada. In: Inês Barbosa de Oliveira e Nilda Alves (orgs.). Pesquisa nos/dos/com os
cotidianos das escolas- sobre redes de saberes. Petrópolis: DP et Alii, 2008.
MARCELLO, Fabiana de Amorim. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e
produção agonística de sujeito- maternos. In: Educação & Realidade, 29 (1), jan/jun,
2004, p. 199- 213.
MATTOS, Augusto Oliveira. A proteção multifacetada: as ações da Guarda Negra
da Redemptora no caso do Império (Rio de Janeiro 1888-1889). Dissertação
apresentada ao programa de pós-graduação em História – Área de concentração:
História Social. Linha de Pesquisa: Sociedade, Instituições e Poder – da Universidade
de Brasília para a obtenção do título de Mestre em História, 2006.
MESTRE Bimba e a Capoeira iluminada. Direção: Luiz Fernando Goulart. Produtora:
Lumen Produções, 2005. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=EHnPkKZxcmQ>. Acesso em: 05/01/18.
O ESTADO da Bahia, 29 ago. 1935. In: ABREU, Frederico José de. Bimba é Bamba: capoeira
no ringue. Salvador: Instituto Jair Moura, 1999.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Boaventura & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica,
2006.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Certeau e as artes de fazer: as noções de uso, tática e
trajetória na pesquisa em educação. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa de e ALVES, Nilda
(Orgs.) – Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas. Rio de Janeiro: DP et Alii,
3ª. ed., 2008.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Currículos e pesquisas com os cotidianos: o caráter
emancipatório dos currículos pensadospraticados pelos praticantespensantes dos
cotidianos das escolas. In: FERRAÇO, Carlos Eduardo e CARVALHO, Janete
Magalhães (Orgs.) – Currículos, pesquisas, conhecimentos e produção de
subjetividades. Petrópolis, RJ: DP et Alii; Vitória, ES: Nupec/Ufes, 2013.
OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. ; LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Capoeira, identidade
e gênero: ensaios sobre a história social da capoeira no Brasil – Salvador: EDUFBA,
2009.
99
O VELHO capoeirista: Mestre João Pequeno de pastinha. Direção: Pedro Abib, 1999.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MUp2Y7myKtU>. Acesso em:
04/01/18.
PAIVA, Ilnete Porpino de. A capoeira e os mestres. Tese (doutorado em Ciências
Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais – Natal, RN, 2007.
PASTINHA! uma vida pela Capoeira. Direção: Antonio Carlos Muricy. Produtora:
raccord produções, 1998. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-
unP_tdBiKI>. Acesso em: 05/01/18.
ROMAGNOLI, R. C. A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicologia e
Sociedade, 21(2), 2009, p. 166-173.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia
das emergências. Revista crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro, 2002. 237-280.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a
emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007.
SPINOZA, Benedictus de. 1632-1677. Ética; tradução de Tomaz Tadeu. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
100
APÊNDICE A- Termo de consentimento Livre e Esclarecido
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
Nome do participante:
Data de nascimento: sexo: Telefone:
Endereço: email:
Eu, Ludimar Paulo Pereira, responsável pela elaboração de um trabalho
acadêmico-científico, faço o convite para a participação, como voluntário (a) desta
pesquisa, desenvolvida no âmbito de uma pesquisa de Mestrado em Educação
intitulada: “Da escola da capoeira para o jogo da vida: os saberes e processos
educativos vivenciados por seus praticantes”. Essa pesquisa está vinculada ao
Programa de Bolsas da Capes do Departamento de Educação da Universidade Federal
de Viçosa, e coordenada pela professora-orientadora Rita de Cássia de Souza.
O objetivo do presente projeto é investigar os processos educativos e as redes de
conhecimentos construídos pelos diversos praticantes de capoeira de dois espaços
sociais distintos, e representados nesta pesquisa, por uma escola particular que oferece a
capoeira como atividade extra-curricular para crianças e uma academia de lutas que
oferece aulas para adultos da cidade de Viçosa/MG. Sendo assim, buscaremos
apresentar o cotidiano da capoeira nestes dois espaços com algumas experiências e
vivencias dos praticantes pesquisados. Além disto, esta pesquisa visa acompanhar e
descrever os processos de produção de conhecimentos destes praticantes nestes espaços
mapeando estes saberes produzidos com a capoeira.
Para tanto, definimos como instrumentos metodológicos para a produção de
dados, a observação participante, a entrevista semiestruturada com os alunos praticantes
de capoeira e outros participantes indiretos (como os pais) desta pesquisa e um grupo
focal para as crianças. Sua participação envolve então, uma entrevista direcionada para
o tema. Essa entrevista será gravada se assim você permitir, em dia, local e horário a ser
definido por você. A proposta é que as perguntas sigam uma formulação flexível sobre
o tema das avaliações externas, sendo que elas serão feitas de modo a permitir que você
discorra e verbalize seus pensamentos.
A sua participação nesse estudo é voluntária e se você decidir não participar ou
quiser desistir de continuar em qualquer momento, tem absoluta liberdade de fazê-lo,
101
pois você tem o direito de retirar sua permissão, a qualquer momento, sem nenhum tipo
de prejuízo pela sua decisão.
Com relação aos riscos, eles relacionam-se à possibilidade de surgir algum
constrangimento quando o entrevistado for confrontado com as perguntas da entrevista
semi-estruturada. Entretanto, nesse caso, o entrevistado poderá não responder à(s)
questão(ões) e/ou solicitar a exclusão de sua participação do processo de investigação.
Na publicação dos resultados desta pesquisa, sua identidade será mantida no
mais rigoroso sigilo. Serão omitidas todas as informações que permitam identificá-lo(a).
As informações desta atividade serão confidenciais e divulgadas apenas em eventos ou
publicações acadêmico-científicas, não havendo identificação dos voluntários. A sua
identificação só acontecerá entre os responsáveis pelo estudo, sendo assegurado total
sigilo sobre sua participação aos demais envolvidos nesse trabalho.
Com relação aos benefícios dessa pesquisa, você estará contribuindo para a
compreensão de alguns processos de produção de conhecimentos, bem como dos
saberes específicos e singulares construídos pelos sujeitos praticantes em relação com
outras práticas e espaços educacionais que interferem de alguma forma na composição
dos indivíduos. Consta que não haverá nenhuma despesa gerada pela participação na
pesquisa, como também nenhum ressarcimento ao voluntário.
É assegurada a assistência durante toda a pesquisa, bem como lhe é garantido o
livre acesso a todas as informações e esclarecimentos adicionais sobre o estudo e suas
consequências, enfim, tudo o que queira saber antes, durante e depois da sua
participação. Isso é valido para todo o período da pesquisa, tendo você o direito de tirar
qualquer dúvida ou pedir qualquer outro esclarecimento sobre a pesquisa, bastando para
isso entrar em contato comigo ou com a professora-orientadora. Somente em caso de
dúvidas relacionadas às questões éticas, o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
Humanos da Universidade Federal de Viçosa – CEP/UFV deverá ser acionado, dúvidas
sobre a pesquisa em si deverão ser tiradas comigo ou com a professora Rita de Cássia
de Souza.
Por fim, ressalto que esse termo foi redigido de acordo com a resolução
da CNS, número 466 de 12 de dezembro de 2012.
Eu, _______________________________, contato ____________________________,
autorizo minha participação e declaro que fui informado (a) dos objetivos da pesquisa
102
“Da escola da capoeira para o jogo da vida: os saberes e processos educativos
vivenciados por seus praticantes” de maneira clara e detalhada e esclareci minhas
dúvidas. Sei que a qualquer momento poderei solicitar novas informações e modificar
minha decisão sobre a participação se assim o desejar. Recebi uma via deste termo de
consentimento e me foi dada a oportunidade de ler e esclarecer minhas dúvidas.
__________________________________
Assinatura do pesquisador
Nome: Ludimar Paulo Pereira
Matrícula: 69792
Contatos: ludi.veizada@gmail.com
Cel.: (31) 99490-7507
____________________________
Local e data
Por estar de acordo com os itens supracitados, após me terem sido devidamente
esclarecidos, assino o presente Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE)
consentindo minha participação neste estudo e declaro ter recebido uma cópia deste
termo de consentimento.
_____________________________
Assinatura do participante
________________________________
Local e data
Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Viçosa –
CEP/UFV
Endereço: Universidade Federal de Viçosa, campus Viçosa, prédio Arthur Bernardes,
piso inferior.
Telefone: (31) 3899-2492
Correio eletrônico (e-mail): cep@ufv.br
103
APÊNDICE B- Roteiro de entrevista
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
1- POR FAVOR SE APRESENTE: NOME, IDADE, ESCOLARIDADE.
2- COMO VOCÊ CONHECEU A CAPOEIRA E ME CONTE COMO FOI
QUANDO VOCÊ ENTROU.
3- HÁ QUANTO TEMPO PRATICA? COM QUE FREQUÊNCIA?
4- JÁ PRATICOU CAPOEIRA EM OUTROS ESPAÇOS? ONDE?
QUANDO? E COMO ERA?
5- O QUE FEZ VOCÊ PERMANECER PRATICANDO CAPOEIRA?
6- VOCÊ CONSIDERA QUE APRENDEU ALGO PRATICANDO
CAPOEIRA? EXPLIQUE.
7- ALGO TE MARCOU NESTE TEMPO DE PRÁTICA DE CAPOEIRA?
RELATE.
8- VOCÊ PRETENDE CONTINUAR PRATICANDO? PORQUE?
9- VOCÊ ACHA QUE TEM ALGO QUE IMPEDE UMA PESSOA DE
PRATICAR CAPOEIRA? EXPLIQUE.
10- O QUE VOCÊ ACHA QUE É PRECISO PARA SER PROFESSOR DE
CAPOEIRA?
11- NO QUE VOCÊ PRENTENDE DE TRABALHAR NO FUTURO?
(EXCLUSIVO PARA AS CRIANÇAS)
104
ANEXO A- Parecer do CEP
105
106
107
108
109
ANEXO B– Autorização para a pesquisa na academia de lutas
Recommended