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VII Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica
UFMT – Cuiabá – 17 a 20/07/2016
Anais VII CIPA – ISSN 2178-0676
________________________________________________________________________________
DA ESCRITA NA AREIA À ERA DIGITAL:
HISTÓRIA DE VIDA, ITINERÂNCIAS FORMATIVAS E IDENTIDADE
PROFISSIONAL
Maristela Rocha Lima
UNEB/GRAFHO/GEO(BIO)GRAFAR/PIBID
stellarocha.geo@gmail.com
Jussara Fraga Portugal
UNEB/GEO(BIO)GRAFAR/GRAFHO/PIBID
jfragaportugal@yahoo.com.br
Contexto inicial
O presente artigo é resultado das reflexões vivenciadas no âmbito do componente
curricular Educação, Narrativas (Auto)Biográficas e Ruralidades do Programa de Pós-
graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC – UNEB, Campus I, Salvador,
ministrado no 2º (segundo) bimestre do ano de 2015. Trata-se de uma escrita que
contempla a história de vida, as itinerâncias formativas e profissionais, com ênfase no fazer
pedagógico, de uma professora multidisciplinar1.
A professora colaboradora deste trabalho, Elza Pereira da Silva, é licenciada em
Estudos Sociais pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS e atua na docência
há 31 anos, sendo 25 destes, dedicados ao Colégio Estadual de Bandiaçu, escola rural do
município de Conceição do Coité, no Território de Identidade do Sisal2, semiárido baiano.
1 Multidisciplinar, neste texto, se refere à condição da professora, personagem da história narrada, devido à
sua atuação profissional, ao lecionar os componentes curriculares – História, Geografia, Filosofia e
Sociologia. 2 O Território de Identidade do Sisal, mais conhecido como Região Sisaleira, está localizado no semiárido da
Mesorregião do Nordeste Baiano e é composto por vinte municípios: Araci, Barrocas, Biritinga, Candeal,
Cansanção, Conceição do Coité, Ichu, Itiúba, Lamarão, Monte Santo, Nordestina, Queimadas, Quijingue,
Retirolândia, Santa Luz, São Domingos, Serrinha, Teofilândia, Tucano e Valente. O Território de Identidade
do Sisal tem uma área de 20.454 km², ou seja, ocupa uma área de 3,6% da área total do Estado da Bahia, que
tem uma área de 564.692 km².
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As narrativas que dão sentido e significado ao presente texto foram extraídas da
entrevista narrativa, realizada com a professora Elza, a qual foi convidada a colaborar com
este trabalho por ser considerada uma professora-referência, uma profissional reconhecida
pelo trabalho que desenvolve, uma intelectual, amiga, parceira, comunicativa e dinâmica
tanto na escola onde atua, quanto na comunidade onde vive. É uma professora muito
querida e respeitada por todos da localidade onde mora e trabalha, pois o respeito e a
valorização de própria trajetória de vida, formação pessoal e profissional são elementos
muito presentes em sua prática. A realização desta entrevista teve como objetivo recolher
dados sobre as trajetórias de vida-formação-profissão da professora e as implicações da
história de vida em sua formação e atuação enquanto professora da Educação Básica de
uma escola rural.
Como base metodológica para o desenvolvimento deste trabalho foi usado o
arcabouço teórico-metodológico fundamentado no método (auto)biográfico, tendo a
entrevista narrativa como dispositivo para a coleta de dados usados na
fundamentação/discussão deste trabalho. Para fundamentar e justificar o uso do método
(auto)biográfico como base metodologia, buscamos embasamento teórico em autores que
discutem, em seus trabalhos, a importância de estudos a partir deste método de pesquisa:
Dominicé (1990), Nóvoa (1988), Souza (2006), Ferrarotti (1988), Chamlian (2006). A
entrevista narrativa como dispositivo de pesquisa é um importante instrumento de recolha
de dados, a qual identifica consideravelmente com o método (auto)biográfico, pois
proporciona ao entrevistado uma certa liberdade e confiabilidade ao falar de si, de sua
subjetividade. A mesma proporciona ao entrevistador conhecer elementos de sua história de
vida, vivências formativas, práticas do cotidiano. Para fundamentar a temática que discute
sobre o processo de construção da identidade pessoal e cultural de sujeito da roça que
vivem/moram, estudam e/ou trabalham em escola rural buscarei fundamentação e
embasamento teórico nas discussões de Rios (2011 e 2015), Souza (2012).
Professora Elza Pereira da Silva: “minha história de vida [...] minha história rural”
A história de vida desta professora rural perpassa por inúmeros fatos e situações que
marcaram sua vida. Fatos estes que a mesma utilizou como motivação para direcionar seus
desejos e conquistas pessoais e profissionais. Segundo Moita, “[...] Compreender como
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cada pessoa se formou é encontrar as relações entre as pluralidades que atravessam a vida”
(2007, p. 114), uma vez que “[...] Cada história de vida, cada percurso, cada processo de
formação é único” (Idem, ibidem, p. 117). As vivências pessoais desta professora
demarcam uma importância singular nas suas trajetórias de formação e atuação
profissional. A infância vivida na roça, em contato com a lavoura, a confecção de
artesanatos e muitas práticas de religiosidade são referências no seu fazer didático-
pedagógico ao criar e utilizar estratégias para desenvolver práticas de ensino em sala de
aula, que envolvem os alunos, conforme excerto da narrativa a seguir:
Recentemente fiz um trabalho de Filosofia sobre o corpo. Nossa! Eu
“mergulhei”, “mergulhei” no Ofício a Imaculada Conceição, na
Ladainha a Nossa Senhora, no lampião a gás, na vela! Mergulhei em
tudo isso! A diretora participou e chorou comigo, os alunos choraram!
Por quê? Porque foi graças a toda essa vivência que eu trago, que
consigo trazer detalhes para o hoje, para o agora e, isso, enriquece,
enobrece as minhas aulas. Claro que com a era digital, com o
computador, com tudo isso, agente faz aquela misturinha gostosa e dá um
resultado extraordinário. (Professora Elza – Entrevista Narrativa, 2015)
Conforme sinalizado, as memórias e vivências pessoais da menina da roça, são
consideradas no momento do planejamento e realização das práticas na sala de aula. Ao
planejar uma abordagem sobre o corpo na aula de Filosofia, a professora Elza buscou
referências nas suas experiências e vivências no âmbito da escola primária, da universidade
e da vida religiosa para promover tal discussão, articulando, os saberes da prática com os
saberes específicos do componente do currículo escolar.
O que realmente faz a diferença na prática desta professora é a forma como ela
consegue transcender o passado para o presente. As reminiscências dos tempos da infância
são rememoradas e contribuem para o fazer pedagógico desta educadora. No contexto de
lembranças da infância, das muitas lutas, desafios e dificuldades, a professora Elza
consegue tornar-se uma profissional apaixonada pela profissão e por valores culturais
rurais. Memórias e histórias que trazem marcas de superação, de luta para (re)escrever sua
própria história e consolidar sua identidade de oriunda do espaço rural, ao afirmar que:
Minha história de vida [...] minha história rural, a formação que recebi
dos meus pais, na minha aprendizagem da areia para os livros, isso foi
muito rico na minha formação universitária. Inclusive meu trabalho final,
na minha especialização de Metodologia de Ensino e Pesquisa e
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Extensão, dediquei ao meu professor primário Ducil e foi um dos
momentos mais importantes de minha vida. No dia da apresentação
muitas pessoas se emocionaram e choraram porque eu fui real, eu fui
verdadeira, eu não inventei histórias bonitas de cidade grande nem de
norte-americano, nem de músicas norte-americanas. Eu fui realista; eu
contei, eu falei de mim, da minha vida, da minha vivência, das minhas
aprendizagens: que eu tomava água na fonte com a cuinha na mão junto
com os passarinhos, com os sapos, e isso, para mim, não era problema.
[...] às vezes passei até fome por não ter água para fazer, para cozinhar a
comida ou não tinha comida mesmo para nos alimentarmos. Então tudo
isso eu não neguei, eu fui realista. (Professora Elza – Entrevista
Narrativa, 2015)
E assim, ao revisitar as memórias, a professora Elza vai tecendo e narrando histórias
que retratam fatos, acontecimentos, vivências, experiências e as contribuições de um
professor que é uma referência nas suas escolhas e itinerâncias. E assim, reflete e teoriza
sobre a sua história de vida-formação, sobre a sua trajetória. (SOUZA; PINHO; GALVÃO,
2008) “Trajetória singular, experiências plurais que contam uma história feita de e com
tantas outras histórias.” (PORTUGAL, 2013, p. 33)
Ao narrar sobre a sua trajetória profissional, a professora Elza, no exercício da
profissão há 31 anos, alega que, mesmo com todos os requisitos para requerer a
aposentadoria, tem adiado esse direito por conta da sua paixão pelo trabalho, conforme
excerto da narrativa:
Tenho 31 anos de sala de aula e eu não consigo, eu não sei como eu vou
sair, eu não consigo! Porque a sala de aula para mim é o ar que eu
respiro, e eu não consigo me imaginar fora da sala de aula [...] é o que
me enobrece, eu me sinto uma rainha em sala de aula, me sinto
poderosíssima, me sinto dona de ‘todos os saberes’! Por quê? Porque me
faz tanto bem [...] Eu me sinto uma jovem, talvez uma recém-formada,
uma recém-professora, é como se eu tivesse a cada dia começando tudo
de novo. Cada ano é um desafio, uma descoberta, cada aluno é algo de
novo é um desafio novo! [...] E se eu nascesse de novo eu seria professora
Elza de História, Sociologia, Filosofia, Geografia, Português...
(Professora Elza – Entrevista Narrativa, 2015)
Nesta demonstração de amor à profissão, a professora Elza vai adiando a
aposentadoria, afirmando que a sala de aula é o lugar onde se sente realizada, feliz, jovem,
lugar do recomeço e de reencontro com sua própria história de vida. O amor que esta
professora tem à profissão é algo verdadeiramente admirável, o qual é manifestado pelo
vigor, disposição e dedicação que esta professora evidencia ao viver a profissão.
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História de vida e formação: sentidos e significados de “ser” da roça
A categoria roça vem sendo revelada como um importante campo de estudo, pois é
um espaço de diversidade e de significações, principalmente para quem vive neste espaço.
Segundo Rios (2015, p. 66), “a roça é um espaço de diversidade: diversidade de pessoas,
espaços, tempos, saberes, linguagens, gênero, etnia, geração.” Neste contexto de
diversidade, a roça também é um espaço de significações que coexistem com as relações
interpretativas que se manifestam neste espaço tão diverso. Sendo assim, Lima (2015, p.
39-40) evidencia que a roça pode ser compreendida também como:
Um espaço em que as interpretações, sejam para as posições econômicas
ou agronômicas e povos e comunidades tradicionais, permanecem por um
tempo. Estão em constante reformulação. Na concepção de área física a
noção roça corresponde à área de cultivo. Um debate em que a concepção
física a partir das relações sociais é ao mesmo tempo representada como
material e imaterial. O econômico seria o material, e a relação da
produção com a circulação a partir das relações sociais gera algo
imaterial, um conhecimento. A roça implica em conhecimento, um saber
específico que se reveste nos discursos dos agentes sociais. Esse
conhecimento é imaterial, não é físico. (LIMA, 2015, p.39-40)
Neste contexto de diversidade e significados que a roça permeia sobre a vida das
pessoas que nela vivem e para a sociedade que concebe como um importante espaço de
estudo, a qual é, também, concebida como uma categoria teórica que, segundo Santos
(2003), possui múltiplos sentidos que imbricam na caracterização desse lugar, podendo,
desse modo retratar:
1) a localidade distante da cidade (assim, parece ser sinônimo de “zona
rural”: “Moro na roça”); 2) pode ser referido também como sinônimo de
“terreno”, propriedade (“Eu tenho uma rocinha”; “Vamos na roça de
Fulano?); e 3) ainda pode se referir à plantação “roça de milho”; “roça de
mandioca”; “roça de feijão”). (SANTOS, 2003, p. 149)
Ainda segundo Santos (2003), “esses múltiplos sentidos se complementam e se
entrelaçam na vida cotidiana do povo que vive nesses espaços, na “roça”, ora determinada
como “zona rural”, apesar desta última ser insuficiente para traduzir o sentido que a
expressão “roça” exprime e carrega.” (PORTUGAL; OLIVEIRA, 2012, p. 295 - 322).
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Dentre estas várias possibilidades de estudo, a categoria roça como espaço de
vivência e formação é evidenciada nas histórias de vida da professora colaboradora desta
pesquisa, que viveu toda sua infância e parte da adolescência, na roça.
A professora Elza Pereira da Silva nascida na Fazenda Arco, município de Serrinha,
filha de Elisa Pereira da Silva e Benício Pereira da Silva, trabalhadores rurais que
dedicaram suas vidas ao trabalho rural/artesanal, criação e educação dos filhos e à vida
comunitária. Sobre esta vida em comum com a família e a comunidade rural a professora
Elza narrou:
[...] vivíamos um pelo outro, [...] no momento das festas, do trabalho
comunitário, dos batalhões de roça, das batas de feijão, raspa de
mandioca, os reisados e os presépios, as ladainhas, as novenas, todos
estávamos juntos, eram crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos.
Era uma coisa comum, não existia aquela coisa de separação, de
individualismo, seria o caso de um por todos e todos por um, era assim,
foi assim que eu vivi na minha comunidade, ajudando o vizinho, ajudando
a matar a fome do vizinho! (Professora Elza – Entrevista Narrativa, 2015)
A vida no espaço rural é marcada por inúmeras particularidades, singularidades,
dentre elas a vivência comunitária, característica que costuma ser marcante na vida das
pessoas que vivem na roça. Foi neste contexto, que a professora Elza viveu sua infância,
cercada por muito trabalho, principalmente o coletivo, muita solidariedade, muita doação
de si, e de sua família em favor do próximo. Uma história de vida marcada por muita luta...
história que emergem da sua memória, cujas marcas de uma infância sofrida, necessitada de
inúmeros bens materiais, consequência, principalmente das características naturais do lugar
aonde nasceu e viveu parte de sua vida, mas, também, marcada pela vivência e pelo amor
familiar e comunitário, como a própria personagem do enredo deste texto fez questão de
afirmar: “uma vivência, dolorida mais ao mesmo tempo confortável, porque era
comunidade, era doação, era entrega, era acolhimento, vivíamos um pelo outro”. É neste
contexto de vida e vivência rural, coletiva, que a professora Elza passou sua infância, sendo
alfabetizada aos 7 (sete) anos pela mãe, conforme a narrativa a seguir:
Não existia luxo, não existia nada de especial, inclusive o processo de
aprendizagem foi também nessa base do natural. Ela (a mãe) se
aproveitava da Lua bonita para ensinar a gente na areia do terreiro a
escrever o ABC, escrever o nosso nome e as operações matemáticas. Ela
só sabia as operações de somar e subtrair eram as duas operações que
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ela sabia. [...] Só fui para escola mesmo quando tinha 7(sete) anos
porque ela me ensinou o ABC, a cartilha e ensinou na areia porque não
tinha caderno, aproveitava a Lua bonita e a gente aprendia. Usava
também o papel que embrulhava os pães que o meu pai comprava, nos
fins de semana, porque não se comprava pão todos os dias, só no final de
semana. Então, aquele papel ela ia juntando, pegava uma agulha, uma
agulha chamada agulha de costurar chapéu, e ali ela fazia um caderno
com aquele papel de pão, riscava as linhas (pautas) com uma madeirinha,
porque não tinha régua, e ali ela fazia o caderno pra gente escrever
cópias e ditados, cópias que ela mandava copiar dos livros e os ditados
que eram as palavras que ela citava pra gente escrever. Então, depois
que eu fui alfabetizada na areia e no papel de pão, eu fui para a escola.
(Professora Elza – Entrevista Narrativa, 2015)
É perceptível como esta professora traz viva em sua memória, a forma como foi
alfabetizada. Esta realidade era algo comum no sertão baiano nas décadas de 1950/1960,
para aqueles que tiveram a oportunidade de aprender a ler e escrever. As necessidades
materiais que as pessoas que viviam no espaço rural passavam eram comuns e buscava-se
na natureza e nos poucos recursos que se tinha para se conseguir adquirir instrução escolar.
Esta era uma realidade que evidencia a precariedade e o descaso da educação rural
no Brasil no passado, porém, atualmente, não é algo que pode ser considerado
solucionado/superado. Na verdade, o que existe é um descaso e uma tentativa de se maquiar
as precariedades da educação e das escolas rurais no Brasil. O que se vê são inúmeras
escolas rurais sendo fechadas no Brasil a cada ano. Segundo o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP mais 4.084 escolas rurais
fecharam suas portas no Brasil em 2014. Nos últimos 15 anos foram mais de 37 mil
unidades educacionais a menos no espaço rural. Se dividirmos esses números ao longo do
ano, temos 8 (oito) escolas rurais fechadas por dia em todo país. As consequências, dentre
inúmeras, é que essas crianças são deslocadas para outras escolas, em outras localidades,
percorrendo quilômetros de distância diariamente e, na maioria das vezes, em meios de
transportes inadequados, frequentando salas superlotadas e, com um único professor (em
sua maioria) para atender a todos os alunos. Além desta realidade, os alunos ainda são
sujeitos a privações alimentares, pois, alimentam-se em horários inadequados a fim de
garantir o horário do transporte escolar e, a merenda escolar, quando tem, é insuficiente e
de qualidade duvidosa. Algo semelhante é evidenciado na narrativa da professora Elza
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quando esta relata as condições de acesso e de alimentação quando ingressou na escola,
ainda, na década de 50:
A escola ficava de três a quatro quilômetros de distância de minha casa e
eram percorridos a pé todos os dias chovendo ou fazendo sol; [...]
Saíamos meio dia de casa e chegávamos mais ou menos 1 (uma) hora da
tarde. A escola ficava na fazenda Lagoa da Cruz onde tinha um professor
polivalente que na verdade ele era leigo [...] e todos o chamava de Ducil.
Ducil vem de pessoa doce e, naquela sala que era um quadrado que eu
nem sei se tinha 5m (cinco metros), 4m (quatro metros) de largura por 5m
(cinco metros) de comprimento talvez, estudavam mais ou menos 100
(cem) alunos de todas as séries e idades: da alfabetização ao [...] 5° ano.
[...] Não existia merenda, quando chegava a hora do recreio a gente ia
para as roças procurar ouricuri, arioba, serrote, e até as coisas da casa
dele (o professor) dava pra gente comer: farinha, beiju, o que tinha na
casa dele. Era tudo assim, tipo familiar. (Professora Elza – Entrevista
Narrativa, 2015)
Ao revisitar as memórias dos tempos de escola, no começo da sua trajetória de
escolarização, a professora Elza descreve a sua escola, as situações experienciadas e,
sobretudo, a importância do seu primeiro e inesquecível professor. Neste contexto, percebe-
se que ainda em pleno século XXI as escolas rurais trazem marcas históricas de mais de 6
(seis) décadas, o que evidenciam o descaso do poder público pela educação pública e rural,
sobretudo, no que concerne a questões como: formação de professores, transporte dos
alunos, qualidade e oferta da merenda escolar, infraestrutura das escolas, número de alunos
por turma, dentre outras.
O rural é um espaço dinâmico e de uma riqueza cultural inigualável, porém, quando
o aluno estuda em uma escola que não valoriza o contexto e o lugar de vivência, ele é
educado para migrar para a cidade. A cidade é apresentada ao aluno como o lugar do
desenvolvimento, das oportunidades. Sendo o rural, a roça o oposto. As crianças/jovens são
iludidas e educadas a terem vergonha de sua história e sua identidade rural, passando a
sonhar e desejar uma realidade que vai negá-lo e descriminá-lo.
Este modelo de educação é uma realidade no sistema educacional brasileiro, porém,
é algo inadmissível, pois, o espaço rural é tão dinâmico e diverso quanto à cidade, oferece
oportunidades de vida e crescimento profissional para seus jovens, o que está faltando são
políticas públicas que potencializem os jovens/pessoas do espaço rural, terem acesso a uma
escola que o valorize, que garanta o conhecimento que eles precisam e que esteja em
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consonância com sua realidade de vida. Hoje, o espaço rural tem potencial para oferecer
aos jovens formação e opção de vida digna, o que não foi o caso narrado pela professora
Elza. Para ela conseguir estudar e ter uma profissão precisou deixar o espaço rural e viver
na cidade por mais de duas décadas passando por situações de medo, preconceito,
privações, descriminação que qualquer pessoa da roça tende a passar quando deixa a roça e
vai morar na cidade. O deslocamento do espaço rural para a cidade é uma realidade que fez
e ainda faz parte da vida de muitas pessoas que deixam o rural na esperança de que na
cidade todos os sonhos: educacionais, profissionais, melhoria na qualidade de vida serão
realizados e poderão ajudar na sobrevivência da família. Esta também foi a realidade
experienciada pela professora Elza. Vejamos:
Um dos motivos que me levou a querer sair da roça e ir morar na cidade
foi a vontade de continuar os estudando, mesmo porque eu morava
distante de Serrinha e de Coité que era onde existia colégio e meu pai não
tinha condição financeira de me manter nessas cidades para estudar. O
segundo motivo foram as dificuldades que eles tinham (meu pai e minha
mãe) para manter a família. As secas constantes e, eu sentia aquela
necessidade, aquela vontade de querer ajudar a minha família. Então,
isso ai praticamente me levou, me empurrou, me impulsionou para eu sair
para estudar, tentando melhorar talvez, a nossa condição de vida.
(Professora Elza – Entrevista Narrativa, 2015)
Fora de casa, longe do convívio familiar, foi a mais difícil das inúmeras situações
por ela vivenciadas que poderiam ter a feito desistir do objetivo de ter uma profissão, mas a
vontade, o desejo, a necessidade, o sonho foram maiores que a saudade da vida no espaço
rural junto da família. Muitos foram os preconceitos e descriminações que ela sofreu,
inclusive na universidade, lugar onde experienciou momentos de desrespeito, por parte de
colegas de turma ao seu gosto cultural, a sua identidade, ao seu modo “matuto” de ser,
conforme o excerto da sua narrativa:
[...] entre os vários fatos que ocorreram lá na universidade existe um bem
presente em minha memória: [...] no primeiro semestre, no segundo dia
de aula, quando estava no momento de apresentação o professor [...]
começou a perguntar quem era a gente, de onde tinha vindo e, quando
chegou meu momento eu disse que tinha vindo da escola rural e contei um
pouco de minha história. Aí, ele perguntou qual a música que você gosta?
O tipo de música? Eu disse: eu curto forró, gosto demais de Luiz
Gonzaga que é meu ídolo! Quando eu falei que Luiz Gonzaga era meu
ídolo, muitos colegas deram risada de mim, ficaram diminuindo meu
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gosto pela música. Aí, o professo os deixou rirem a vontade e depois disse
assim: ‘olha eu admirei bastante a fala da Elza e a originalidade dela, ela
nos traz muitas informações importante!’ Porque o que eu estava vendo
ali, naquele curso, era um punhado de “mauricinhos” e “patricinhas” ou
se não eram, se faziam! E, eu, uma menina assim, meio rústica que tinha
uma história assim, meio primitiva, meio matuta, mas rica em detalhes. E
aí, o professor ficou entusiasmado inclusive pediu para eu falar mais um
pouco sobre minha história no campo. E, durante todo o curso na
universidade, eu contribuí bastante com as minhas histórias de oriunda
do campo nas apresentações, nas falas, em fim, em vários momentos!
(professora Elza – Entrevista Narrativa, 2015)
Assim, como esta professora que saiu da roça e foi para a cidade em busca do sonho
de melhorar sua condição de vida e de toda sua família, viveu inúmeras situações de
desrespeito a sua cultura e a sua identidade. Entretanto, mesmo assim, nunca negou as suas
origens e a sua cultura. Ainda hoje, muitos jovens que saem das escolas rurais para
estudarem nas escolas da cidade sofrem o desrespeito e rotulações como: “menos
inteligentes”, “matutos”, “desatualizados”, “desinformados”. Esta, ainda é uma realidade
que persegue crianças e jovens que são obrigados, por um sistema excludente,
urbanocêntrico e homogeneizador, através do fechamento de escolas, a se exporem a
situações de julgamentos preconceituosos quando adentram as escolas da cidade.
A cultura de um povo, suas vivências e histórias têm significados para os sujeitos da
roça e precisam ser respeitados dentro do processo de formação em que estão inseridos. A
escola/universidade/sociedade não têm o direito de negar os valores trazidos por estas
pessoas. E, a escola rural está inserida num contexto no qual deve respeitar e valorizar seu
educando e as vivência e experiências trazidas por ele. A escola do rural precisa fazer parte
da construção da identidade dos sujeitos da roça. Sobre a construção da identidade de um
povo Castells afirma:
[...] Entendo por identidade o processo de construção de significado com
base em um atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributos culturais
inter-relacionados o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de
significado. (CASTELLS, 1999, p. 22)
A escola rural na qual a professora Elza estudou foi um importante espaço de
formação pessoal que teve significativa relevância para a formação de sua identidade
pessoal e profissional.
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Aquela escola além de ser um lugar de aprendizagem também era um
lugar de muito amor, de muitas orientações; inclusive de orientações
sexuais, orientações para a vida. A família do professor era como se fosse
também nossa família! Nós almoçávamos juntos se fosse necessário, se
estivéssemos com fome, merendávamos a farinha, o beiju da residência
dele, a farinha de tapioca, ajudávamos também nos serviços quando tinha
arranca de mandioca, batalhão de esteira. [...] Então, se fazia batalhões
de esteira que era um grupo de pessoas tecendo esteira [...] assim como
tinha batalhão de roça, bata de feijão, batalhões roubados [...] Então, nós
vivíamos assim, e na nossa escola também existia isso: o trabalho
comunitário, quando estava na época do plantio, da colheita, todos os
alunos ajudavam ele (o professor) no trabalho, tanto é que a plantação
dele acontecia rapidinha era tudo com amor, tudo mesmo, não existia
nada obrigado, não existia briga, não existia nada disso. (Professora Elza
– Entrevista Narrativa, 2015)
Neste excerto é perceptível o quanto a escola foi importante para a
construção/formação da identidade pessoal e cultural desta professora. A escola por ela
retratada como “lugar de muito amor”, “orientações para a vida”, “trabalho
comunitário”. Lugar onde se aprendia valores como amor ao próximo, solidariedade,
partilha, coletividade, dentre outros importantes valores para a formação de qualquer
pessoa. Além da formação pessoal, a escola primária desta professora, também contribuiu
significativamente para a sua formação profissional. Atividades/dinâmicas vivenciadas por
ela quando criança, ainda hoje são reproduzidas na sua prática docente.
E você sabe onde foi que eu aprendi mais ou menos essa dinâmica do
corpo? Não tudo isso, eu dei uma melhorada, uma trabalhada: na minha
escola rural! Foi lá que eu aprendi a vivenciar e a trabalhar a
importância e a valorização do corpo. (Professora Elza – Entrevista
Narrativa, 2015)
Desta forma, é perceptível o quanto esta professora busca dinamizar sua prática
inspiradas em vivências dos tempos da escola da infância. São vivências que contribuíram
significativamente para a construção da identidade pessoal e profissional da professora
Elza, as quais reverberam no seu modo de ser-fazer à docência.
Palavras finais...
A narrativa transforma os acontecimentos, as ações e as
pessoas do vivido em episódios, em enredos e em
personagens; ordena os acontecimentos no tempo [...]. Pela
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narrativa, os homens tornam-se os próprios personagens de
suas vidas e dão a elas uma história.
(DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 39).
Contemplar as narrativas de uma professora de escola rural do sertão baiano como
fontes de uma pesquisa é um modo de promover uma reflexão sobre o lugar de onde o
sujeito narra as suas histórias e o modo como compreende a vida e ao compreendê-la,
narra... colocando-se como o autor-ator-narrador das suas histórias.
As memórias evocadas e as histórias narradas pela professora Elza contemplam a vida
no espaço rural, as sua trajetórias de vida numa comunidade que valoriza o trabalho
coletivo, a religiosidade e vida familiar. Narram também a sua trajetória de escolarização e
a importância da escola como lugar de sociabilidade e aprendizagens, as quais, ainda hoje,
são valorizadas no seu fazer didático-pedagógico, ao abordar questões envolvendo a
discussão de gênero, questões culturais, produção e sustentabilidade no campo, dentre
outras temáticas que a riqueza da história de vida desta professora nos oferece.
Para finalizar, nos reportamos ao texto de Delory-Momberger (2012) que abre esta
ultima seção do texto: “[...] Pela narrativa, os homens tornam-se os próprios personagens de
suas vidas e dão a elas uma história.” E a história da professora Elza é um convite a
refletirmos também sobre nossa própria história de vida. Então, quais os fatos,
acontecimentos, episódios e pessoas compõem o enredo da sua história?
REFERÊNCIAS
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