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Da preservação da memória histórica ao trabalho pedagógico: um estudo de caso do processo de
produção de um acervo de história oral.
SOELI REGINA LIMA
Introdução
´ Este trabalho analisa o processo de produção de um acervo de história oral, como
possibilidade de dar visibilidade às memórias de sujeitos sobre a colonização da região do
Contestado, com recorte para os planalto Norte catarinense e ainda como recurso metodológico
na produção do conhecimento histórico regional. A pesquisa, subsidiada pelo programa Fundo
de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior - FUMDES (2015-2017),
contou com 11 entrevistas semiestruturadas versando sobre as seguintes temáticas: Guerra do
Contestado; monge João Maria; colonização local (famílias pioneiras, imigrantes, indígenas);
desapropriação de terras para implantação do Campo de Instrução Marechal Hermes-CIMH;
serraria Lumber; cotidiano familiar, sociocultural e educacional. A edição dos depoimentos,
para o trabalho em sala de aula, com a seleção de informações, delimitação de tempo do
documentário, inserção de legendas explicativas, sonorização, assinatura da carta de cessão de
divulgação e elaboração da ficha catalográfica para a base de dados, foi foco de análise para
compreensão das interferências daquele que edita e organiza o conteúdo das memórias
reveladas.
Do trabalho com a memória história e o ensino da História
Trabalhar com o ensino de História, na sociedade atual, exige que seja ultrapassado o
enfoque positivista1 o qual enfatiza o estudo dos grandes líderes, seus feitos e monumentos
históricos. Este avanço consiste em um trabalho com a memória histórica, através da micro-
história,2 por meio de procedimentos que favoreçam a produção do conhecimento, onde o aluno
faça parte do processo, seja copartícipe. “Por isso o trabalho, do professor se define como de
UnC, Mestre em Geografia, apoio FUMDES. 1 O Positivismo objetivava a cientifização do pensamento e do estudo humano, procurando a obtenção de
resultados claros, objetivos e completamente corretos, onde o conhecimento se explica por si mesmo, num ideal
de neutralidade, isto é, na separação entre o pesquisador/autor e sua obra. 2 Sobre micro-história ver: LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história”. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da
história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin
Guerre. Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro-RJ: Paz e Terra, 1987. (Coleção Oficinas da História, v. 04).
mediador entre aluno e conhecimento histórico. Ele não só promove o diálogo com o
conhecimento já sistematizado oficialmente, mas também com as memórias vivenciadas dos
alunos” (HORN, 2003:174). Para tal, além do uso do conhecimento histórico, já produzido
sobre determinados temas, urge que seja promovido o diálogo da memórias históricas
possibilitando ao aluno desenvolver habilidades de compreensão das permanências,
similaridades vividas em diferentes temporalidades e espacialidades.
Nesta perspectiva, as aulas de História apoiadas em pesquisas, com atividades que
extrapolem o espaço de sala de aula, que envolvam metodologias3 significativas com o uso de
recursos como: documentação histórica, museus, patrimônio histórico, história local e história
oral, transformando o aluno de mero receptor para produtor do conhecimento histórico. Desta
forma, o ensino de História contribui para a formação cidadã, pois “Somente a partir do
momento em que a sociedade resolve preservar e divulgar seus bens culturais é que se inicia o
processo de construção de seu ethois cultural e de sua cidadania” (NORA, 1993:138). Destaca
ainda o autor, que a população precisa se identificar com o passado para a preservação do
patrimônio histórico cultural.
Pensando a pesquisa histórica na Educação Básica, verificamos que: “A pesquisa é
sempre uma tentativa de investigação que se faz com objetivos definidos de descoberta ou
reavaliação e que envolve a dimensão intelectivo-racional da problemática e das escolhas e a
dimensão intuitiva e criativa que permite a chegada a um dado novo” (FÉLIX, 1988:70). Neste
sentido, “O passado deve ser interrogado a partir de questões que nos inquietam no presente (caso
contrário, estuda-lo fica sem sentido). Portanto, as aulas de História serão muito melhores se
conseguirmos estabelecer um duplo compromisso: com o passado e com o presente” (PINSKY;
BASSANEZI PINSKI, 2005:23). Pautando a pesquisa no trabalho com a história oral, constatamos
que esse recurso possibilita a compreensão da questão temporal bem como situa o objeto de estudo na
contextualização passado e presente. Para tal, o trabalho com a história oral requer uma ampla
compreensão da memória.
A memória pode ser trabalhada de forma individual ou coletiva. Em relação à memória
coletiva, Silva (2009:276), afirma que seria aquela “composta pelas lembranças vividas pelo
indivíduo ou que lhe foram repassadas, mas que não lhe pertencem somente, e são entendidas
como propriedade de uma comunidade, um grupo”. Ela se desenvolve a partir de laços de
convivência familiares e sociais. Ainda sobre a memória coletiva, ela gira quase sempre em
torno do cotidiano social, fundamentando a própria identidade do grupo ou comunidade.
3 Ver: Historia oral: MELHY (2002), ALBERTI (1990, 2004); museus CRUZ (1993), ALMEIDA, A M. ;
VASCONCELLOS C. M.(1997), NETO (1988); História local (1994), MANIQUE, A P.; PROENSA, M. C.
(1994), GARBINATTO (2000), BITTENCOURT (2012).
A memória individual é composta de diferentes níveis que a compõem: o involuntário,
o perceptível, afetivos ou imaginativos. A memória involuntária ou reminiscência é aquele em
que a memória é violentada por choques provenientes de signos sensíveis, diríamos que as
reminiscências dependem sempre dos quadros sociais em que o indivíduo está mergulhado no
presente. Seu caráter social está nos hábitos, gestos, atitudes. Já a memória
voluntária/perceptível é o que chamamos de lembranças. A lembrança, ao contrário da
reminiscência requer tempo para organizar os estímulos emitidos pelos signos, seu caráter
social se define desde o momento que esta utiliza a linguagem para ser expressa. Ela procede
por instantâneos. Quanto ao nível imaginativo, este operam a invenção, o desejo, a fantasia. A
partir de fragmentos de imagens e sensações experimentadas, somos capazes de inventar novas
imagens a partir de novos desejos e novas fantasias (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007).
As memórias individuais e coletivas são interdependentes e uma se explica pela outra.
“A memória individual apenas serve para dar sentido às situações sociais, convém supor
atenção prevalente à memória grupal, que, contudo, é sempre filtrada pelas narrativas pessoais”
(MELHY, 2002:61).
Ou ainda:
As memórias individuais não podem ser tomadas como alicerces da consciência
individual ou coletiva, mas sim como pontos de interseção de várias séries ou
correntes mentais aproximadas pelas relações sociais e por isso falar duma Memória
como unidade subjetiva, como individualidade e não como subjetivação
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007:199).
A história oral envolvida com questões de memória, sendo aplicada nas pesquisas
históricas seguindo o modelo de entrevistas nos conduz a seguinte reflexão: “A entrevista
significa realmente duas pessoas que estão se olhando. E é nesse olhar-se um ao outro que a
fonte oral se justifica, porque constitui num processo de aprendizado” (VILANOVA, 1994: 47).
Ainda que muitos se valham do conceito de História oral para qualquer forma de
entrevista, modernamente ela só é assim considerada se decorrente de um projeto que reconheça
sua intenção, determine os procedimentos e a devolução pública dos resultados (MELHY,
2002).
Transportando para a sala de aula, através da entrevista, os alunos não apenas revivem
os fatos históricos sob o ponto de vista do entrevistado, como também desvendam os
pormenores, detalhes do cotidiano que estão impossibilitados de serem visualizados em fontes
escritas. A história oral é um “completar” lacunas criadas na análise documental.
Da organização do acerco de história oral com entrevistas semiestruturadas.
A história oral, tendo a memória humana como objeto de estudo, nas décadas de 1980 e
1990 desenvolve suas pesquisas, sobretudo, seguindo o modelo de entrevistas. “A entrevista
significa realmente duas pessoas que estão se olhando. E é nesse olhar-se um ao outro que a
fonte oral se justifica, porque constitui num processo de aprendizado” (VILANOVA, 1994:47).
Ainda que muitos se valham do conceito de História oral para qualquer forma de
entrevista, modernamente ela só é assim considerada se decorrente de um projeto que
reconheça sua intenção, determine os procedimentos e a devolução pública dos
resultados (MELHY, 2002:108).
No que se refere a organização do acervo de história oral, ele deve ser trabalhado em
forma de projetos que sistematize todas as etapas do processo. Quanto ao projeto de pesquisa
cabe ressaltar que “A condução do projeto de história oral deve ser observada desde a fase de
apresentação dos motivos das entrevistas e retomada nos acertos de conferência até as soluções
de publicidade dos resultados” (MELHY, 2002:89). Já em relação ao entrevistado “É relevante
considerar que o colaborador deve ter ampla liberdade para se expressar e apenas revelar o que
lhe é liberado pelo próprio juízo, por sua consciência ou sua memória” (MELHY, 2002:110).
Uma problemática a ser resolvida está no processo de seleção dos entrevistados e do
número de entrevistas a ser realizadas. Quanto à escolha dos entrevistados “é no contexto de
formulação da pesquisa, durante a elaboração do projeto, que aparece a pergunta: `quem
entrevistar´?” (ALBERTI, 2004:31). Para definir quem será o entrevistado requer, por parte do
entrevistador, o embasamento teórico sobre a temática para iniciar o “rastreamento” das fontes
orais. O pesquisador envolvido em leituras e na busca da documentação escrita ou iconográfica,
ao investigar a temática tende a receber novas informações.
Cabe ressaltar de que sendo um tema em que há um grande número de sujeitos
envolvidos, capazes de fornecer informações, “a escolha dos entrevistados não deve ser
predominantemente orientada por critérios quantitativos, por uma preocupação com
amostragens, e sim a partir da posição do entrevistado no grupo, do significado de sua
experiência” (ALBERTI, 2004:31).
Tona-se necessário, no processo de escolha do sujeito a ser entrevistado a coleta de
informações sobre o mesmo em relação à profissão, idade, local, tempo de residência, laços de
parentesco e alguns aspectos de sua personalidade. Poder-se-á, assim, ter uma prévia do que
poderá vir a ser a entrevista, para não ocorrer de apenas elencar nomes, criar roteiros, definir
datas e quando deparar-se com o entrevistado descobrir que este não concede entrevistas, não
quer falar sobre o assunto, é muito ocupado, marcando e remarcando entrevistas, entre outros
empecilhos comuns enfrentados por aqueles que se utilizam da história oral.
Já no que concerne ao roteiro de entrevistas, é preciso ter claro o tipo de entrevistas que
serão aplicadas. Elas podem ser fechadas/estruturadas ou então abertas/semiestruturadas. “Nas
chamadas `entrevistas fechadas´, o entrevistador estabelece roteiros, direciona a conversa e
procede conforme seus interesses, que, na maioria das vezes, moldam o `eu´ do narrador
segundo a imagem e semelhança de quem entrevista”. (MELHY, 2002:116). Já no que se
referem às semiestruturadas, Manzini (1991) as define como aquelas que estão focalizadas em
um assunto sobre o qual elaboramos um roteiro com perguntas principais, complementadas por
outras questões inerentes às circunstâncias momentâneas à entrevista. Para o pesquisador, esse
tipo de entrevista possibilita circunstancias propicias às novas informações, visto que as
respostas não estão condicionadas a uma padronização de alternativas.
Outro autor que advoga a questão é Triviños (1987). Para ele a entrevista
semiestruturada tem como característica questionamentos básicos que são apoiados em teorias
e hipóteses relacionadas ao tema da pesquisa. Este tipo de entrevista “[...] favorece não só a
descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade
[...]” (TRIVIÑOS, 1987:152), além de manter a presença consciente e atuante do pesquisador
no processo de coleta de informações.
Ainda em relação ao tipo de entrevista a ser realizada, estas podem ser biográficas ou
temáticas. “As entrevistas temáticas são aquelas que versam prioritariamente sobre a
participação do entrevistado no tema escolhido, enquanto as de história de vida têm como centro
de interesse o próprio indivíduo na história (...)” (ALBERTI, 2004:37).
No que diz respeito à elaboração do roteiro de entrevistas, é preciso observar quando
das entrevistas temáticas, ou seja, diferentes sujeitos vivendo um mesmo fato histórico. Para
estas, os roteiros deverão seguir certa uniformidade, pois assim, haverá maior facilidade na
organização, seleção, comparação e apresentação final das informações coletadas. Mesmo o
roteiro sendo padrão há a necessidade de criar um espaço para que o entrevistado tenha
oportunidade de ir além do previsto no seu relato, pois são nestes momentos que as informações
fluem, apontando novos caminhos e mesmo podendo dar forma às informações, por vezes, já
coletadas e até então incompreensíveis.
Ainda quanto ao roteiro, já na sua elaboração, é possível vislumbrar partes da narrativa
a ser elaborada após a realização das entrevistas. É necessário fazer uma previsão de como estas
informações poderão ser apresentadas. É evidente, que nem todas, mas algumas já oferecem
possibilidades, tais como em forma de quadros, tabelas, percentuais, ou mesmo de como
poderão ser dispostas no texto, como citações, textos na íntegra. O interessante é ter uma ideia,
de antemão, de como poderão ser analisadas e descritas às informações coletadas.
Outro ponto a destacar, está voltado ao número de questões a serem elaboradas. Estas
devem ser direcionadas a um item que remeta ao foco da temática pesquisada, que nem sempre
precisa estar explicito no roteiro. Quando o roteiro é extenso e apresentado ao entrevistado, com
antecedência, ele tende a desanimar ou mesmo intimidar-se, sentindo-se coagido, “cansado”
antes mesmo de iniciar o processo de entrevista.
Entrevistar é uma atividade que requer certa habilidade. Thompson (1998) afirma que
existem diferentes estilos de entrevistadores, desde aquele que conduz a entrevista numa
conversa amigável e informal até o estilo mais formal e sistemático. O já citado autor apontou
como habilidades necessárias o “interesse e respeito pelos outros como pessoas e flexibilidade
nas reações em relação a eles; capacidade de demonstrar compreensão e simpatia pela opinião
deles; e, acima de tudo, disposição para ficar calado e ouvir” (THOMPSON, 1998:254).
Da realização das entrevistas, edição e possibilidade do trabalho pedagógico
O presente acervo de História oral foi articulando em três momentos, a primeira etapa
consistiu em uma ampla revisão bibliográfica sobre a temática, seleção dos entrevistados,
organização do roteiro e realização das entrevistas. O segundo momento consistiu na edição,
organização das fichas catalográficas, coleta de autorização de publicação e organização do site
para divulgação. Por fim, a divulgação do site com as entrevistas editadas.
Para a realização deste trabalho foram realizadas, inicialmente, 11 entrevistas
semiestruturadas com moradores da região do Contestado, acima de 70 anos.
As entrevistas semiestruturadas, filmadas, tiveram um roteiro cronológico, de cunho
biográfico, acompanhando a trajetória dos antepassados do entrevistado quando a origem e
residência, dos aspectos socioculturais, familiares, quanto a educação, namoro, casamento,
datas festivas, religiosas e suas formas de comemoração. Aspectos históricos da região como a
Guerra do Contestado (Jagunços), monge João Maria, índios, coronelismo se fizeram presentes
no roteiro.
No segundo momento, após análise dos resultados obtidos, realizada a transcrição da
entrevista passamos para a edição. Aspectos de cunho pedagógico foram analisados, tais como
o tempo da entrevista. Elas foram delimitadas entre 05:00min a 15:00min minutos, visando o
trabalho pedagógico, visto que as aulas em média são de 45:00min, o que facilita a concentração
dos alunos e favorece a organização das atividades docentes. Outro fator que mereceu destaque
foram as legendas explicativas e sonorização. As legendas preparam o ouvinte para o relato do
depoente, possibilitam a sequência de ideias, além de direcionar e favorecer a assimilação do
conteúdo narrado.
Vejamos quanto a questão do tempo de duração dos vídeos:
Entrevistado (a) Data
Nascimento
Entrevista
Original
Entrevista
editada -01
Entrevista
editada -02
01 Alexandre Iurkiv 04/03/1928 16:80min. 08:07min.
02 Francisco Manoel Guimarães 03/10/1929 22:43min. 09:14min.
03 Izabel Mattos Mota 10/07/1922 29:95 min. 12:26min. 05:15min.
04 Leonór Crecêncio Boava 22/06/1935 59:92min. 03:34min. 05:06min.
05 Lutércio Pacheco 29/01/1939 35:77min. 07:37min
06 Maria Kovalski Procheira 17/05/1929 37:15min 12:26 min
07 Sybila Montes Ribas Gemra 12/06/1931 42:39min. 09:10min.
08 Walfrido da Silva Lima 25/12/1938 47:59min. 13:18min.
09 Antonio Berdum Simas 15/09/1942 55:93min. 07:14min.
10 Luis César Pacheco 01/10/1951 24:50min 03:02min. 08:04min.
11 Neusito Branco Pacheco 24/04/1938 40:50min. 11:03min.
Quadro - 01 Tempo de entrevista
Fonte: Da autora
É interessante ressaltar que: “A história oral se explica no âmbito de uma relação
tridimensional de narrador; pesquisador; e público consumidor do resultado” (MELHY,
2002:92). Neste sentido, todas as fases do processo, (do contato inicial, da entrevista e da
produção da narrativa), devem estar pautadas no trabalho ético. A coleta de histórias de vida
tem, por parte do pesquisador, um enquadramento histórico dos relatos, com sua inscrição no
tempo e com a combinação das várias histórias, contadas separadamente, em uma narração
complexa e unificada, pois a projeção destas histórias para fora do circuito familiar e da
comunidade geram uma troca de olhares sobre um mesmo evento histórico, onde “o que
realmente torna significativa a história oral é o esforço de estabelecer um diálogo entre e para
além das diferenças” (PORTELLI, 2010:210).
“É importante o entrevistador saber distinguir a forma narrativa do entrevistado para
poder compreender melhor a sessão e interagir de maneira mais eficiente. Da mesma forma, é
significativo notar que há narradores com práticas de entrevistas” (MELHY, 2002:139). Neste
último caso eles têm a facilidade de narrar o que lhes interessam, cortando palavras, conduzindo
um discurso narrativo e sequencial. Em outros casos, quando não há a experiência, o
entrevistador deve ir conduzindo o diálogo, tomando o cuidado de não induzir pensamentos e
respostas.
“Toda narrativa é sempre inevitavelmente construção, elaboração, seleção dos fatos e
impressões. Portanto, como discurso em eterna elaboração, a narrativa para a história oral é
uma versão dos fatos e não os fatos em si” (MELHY, 2002:50). O papel do pesquisador pode
então ser compreendido como o de organizar as informações coletadas de forma a ser
apresentada com lógica, coerência textual somada à articulação com fontes documentais,
produzindo assim a narrativa histórica dos fatos.
Outro ponto a destacar está direcionado a questão ética e legal. Algumas informações de
cunho pessoal, citando nome de familiares, conflitos, situações pessoais foram omitidas na
edição para não comprometer o entrevistado e as pessoas citadas. Como exemplo podemos citar
a fala de um entrevistado: “Era gente boa, mas bebia até cair e aí ninguém guentava”. Outra
questão estava na questão de preconceitos, estereótipos relacionados a etnias. Como exemplo:
“Eu tenho cor de índio e negro, já minha irmã é clarinha, bonita. Ela puxou a outra avó”. A
opção se fez necessária para não comprometer o entrevistado perante a atual legislação
brasileira de preconceito racial e mesmo opção sexual.
A entrevistada Dona Izabel,4 no que se refere a forma de conceber o trabalho, como
fator cultural indígena, revela a permanência no imaginário coletivo dos primeiros discursos de
documentos oficiais e dos colonizadores:
Índio é meio parado, português também não é muito do trabalho, é mais da oportunidade né.
Índio com português já viu. Daí a minha avó que era estrangeira era mais ativa. [...] Ela já era
mais culta, tinha cultura, vieram de Palmeira. Ela que trouxe a moda para as filhas dela, tudo,
aqueles corpete, aquelas coisas (MOTA, 2017).
Torna-se necessário, no uso da história oral em sala de aula, alguns cuidados quanto ao
vocabulário e dialetos regionais empregados pelo entrevistado. Fator este que possibilita o
trabalho docente com as diferentes formas de linguagem. Como exemplo, podemos verificar o
sotaque polonês da entrevistada Dona Maria Kovalski Procheira,5 quando ela descreve a sua
infância e o convívio com os índios nas proximidades da sua residência.
Pra pai ir pra vila, juntava os vizinhos. Então minha mãe, já tinha casa, mas não é parede assim
com tábua, era com rachão do mato. Já se guardava ligeiro de dia, tinha que se esconder.
Quando viu, veio já e encheu de coisa nas portas, de galho, de tudo. Então mãe, não podia abrir.
Depois, de dia, não podia sair pra fora. Daí, deu trabalho pra mãe. Nóis tava chorando, queria
ir pra fora, não podia sair. Mais isso tava triste! E não deu pra mexer com eles, porque eles
subiram na árvore e tavam dando risada, quando isso já estava clareando o dia. E a cachorrada
tavam avançando neles. Eles tinham muito medo de cachorro (PROCHEIRA, 2014).
4 Izabel Mattos Mota, nascida em 10/07/1922, filha de José Tomas de Mattos e Ana Maria de Mattos é descendente
de família colonizadora da região de Canoinhas-SC. Descreve aspectos da posse de terra em relação com a
estrutura familiar. 5 Maria Kovalski Procheira, descendente de poloneses, relata a experiência de seus antepassados com os índios na
formação das colônias de imigrantes na região de Rio Negro-PR. Nascida em 17/05/1929 morou nas localidades
de Craveiro, Colônia Beker e Iracema (Itaiópolis-SC), pertencente ao município de Rio Negro-PR até sua
emancipação política.
Após a edição das entrevistas houve o retorno do trabalho para os entrevistados visando
coletar a autorização de divulgação.6 Momento ímpar, por dois momentos, o primeiro foi o da
satisfação do entrevistado em saber que suas memórias serão úteis para o trabalho de pesquisa
de cunho pedagógico e o do reconhecimento familiar. Os familiares, dos entrevistados, passam
a respeitar e ouvir os idosos, valorizando suas memórias. Nesta fase foi explicada novamente a
finalidade do trabalho e o porquê dos cortes das falas no processo de edição.
Direcionando o trabalho para sala de aula temos o papel do docente como de
fundamental importância. Propomos um roteiro de trabalho divido em três etapas. A primeira
com a análise da entrevista por parte do professor, o segundo de preparar o aluno para assistir
a entrevista e o terceiro nas atividades a ser realizadas após a exibição.
Após assistir a entrevista, os alunos, em duplas/grupos, poderão preencher a ficha a
seguir, como forma de sistematizar as informações visualizadas.
Questões para análise Resposta dos alunos
Entrevistado(a)
Nascimento
Origem familiar
Questão temporal (época)
Aspectos geográficos
Aspectos familiares
Aspectos sociais e econômicos
Aspectos culturais
Vocabulário de época:
Contextualização passado presente
Curiosidades
Quadro – 02 Modelo de questões para análise dos alunos
Fonte: Da autora
Outra sugestão de atividade está em situar a entrevista com a realidade dos alunos
através de questionamentos: Você conhece pessoas com a mesma história de vida? Em sua
família os idosos costumam contar histórias? Você conhece outras pessoas que poderiam relatar
fatos vividos por seus familiares no passado? A partir destes questionamentos é possível
identificar a forma como vem sendo tratada a história local no âmbito familiar e na comunidade
escolar.
Na sequência os alunos poderão realizar entrevistas, orientadas pelo professor. A
princípio o docente deverá formar grupos de trabalho, escolher um tema histórico gerador e
6 As entrevistas editadas estão disponíveis no site: https://www.ecosdocontestado.com/memorias, além de serem
divulgadas no jornal impresso local “A Gazeta Tresbarrense”.
criar um roteiro básico de questões, prazos para realização da atividade e forma de apresentação.
A “liberdade” dos alunos na realização da entrevista e edição tornará o trabalho mais prazeroso
pelo uso da tecnologia a seu dispor. Cabe ressaltar da importância do preparo e
acompanhamento docente na realização das entrevistas, observando as etapas e cuidados já
citados neste artigo.
A partir do momento que o aluno seja coparticipe da atividade com história oral ele
poderá através do convívio com os idosos, além de produzir o conhecimento histórico valorizar
os relatos de histórias de vida.
Considerações finais
O trabalho propiciou repensar a relação da história oral usada em pesquisas históricas
com o seu uso didático-pedagógico.
A edição de entrevistas na perspectiva pedagógica cria certas delimitações de
informações, onde a opção do editor acaba por direcionar a narrativa do entrevistado.
O acervo de história oral, pautado em entrevistas semiestruturadas cumpre uma dupla
finalidade, garantir a preservação da memória histórica local/regional e ao mesmo tempo
possibilita o trabalho docente com recursos de tecnologias em sala de aula.
O papel do docente é de suma importância para a produção do conhecimento histórico.
Uma mesma entrevista pode surtir efeito de ensino aprendizagem diferenciados dependendo da
postura do professor na forma de trabalhar a mesma em sala de aula.
O trabalho docente com o material produzido é de fácil acesso, através do site
https://www.ecosdocontestado.com/memorias. A divulgação7 do acervo está ocorrendo através
de panfletos informativos e palestras aos docentes.
Na sequência deste projeto será realizado o acompanhamento de docentes no uso das
história oral como recurso metodológico no ensino da História. Mas esse é assunto para futuras
pesquisas.
7 Escolas estaduais dos municípios pertencentes a 24ª GERED de São Bento do Sul/Mafra; escolas municipais e
da rede privadas nos municípios de Três Barras, Canoinhas, Porto União, Major Vieira, Papanduva, Irineópolis,
Bela Vista do Toldo, Porto União.
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