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Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 5 • novembro 2011
1
DIÁLOGOS POSSÍVEIS - MIKHAIL BAKHTIN E PIERRE BOURDIEU: A
NATUREZA SOCIAL DA LINGUAGEM
Angela Francisca Mendez de Oliveira1
mendez_oliveira@yahoo.com.br
Resumo: Este artigo busca aproximar as concepções de Pierre Bourdieu e Mikhail Bakhtin acerca do discurso. Para
tanto, faremos primeiro um exposição das principais ideias presentes no círculo de Bakhtin, no que se referem à
filosofia da linguagem. Após, trataremos de esboçar as ideias do sociólogo Bourdieu, na sua sociologia da
linguagem, para em seguida travarmos o diálogo entre ambos os teóricos.
Palavras-chave : Linguagem, Social, Bourdieu, Bakhtin.
INTRODUÇÃO
Durante os estudos dos conceitos e ideias do Círculo de Bakhtin, nota-se que todo o
invólucro da linguagem é explicado por articulações entre o material verbal e as condições sócio-
ideológicas envolvidos na sua produção, recepção e circulação (GRILLO, 2005, p. 1). Tais
estudos tornam-se mais profícuos quando aprofundada a teoria sociológica envolvida nas ideias
de Bakhtin e, para tanto, um encontro interdisciplinar envolvendo saberes provenientes de
campos diversos mostra-se eficaz. Assim, buscaremos evidenciar possíveis articulações entre as
teorias do círculo de Bakhtin, concentradas na filosofia da linguagem, e os conceitos firmados
pela sociologia da linguagem, desenvolvidos pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.
Os autores de que trataremos, além de dedicarem-se a diferentes áreas de estudos,
nasceram em países distintos e em épocas distantes. Mikhail Bakhtin é um pensador russo que
viveu entre 1895 e 1975, desenvolveu suas ideias na União Soviética marxista em meados da
década de vinte - data de suas primeiras publicações - e foi vítima de perseguições por parte do
1 Mestranda PPGL UniRitter. E-mail: mendez_oliveira@yahoo.com.br
2
regime stalinista. Considerado o filosofo da linguagem, os estudos de Bakhtin privilegiam a
natureza social da linguagem. Pierre Bourdieu, por sua vez, nasceu e viveu na frança entre 1930 e
2002, dedicou-se à sociologia concentrando seus estudos na relação entre estruturas sociais e
constituição da subjetividade, e suas publicações começam a circular no final da década de
cinquenta. Ainda que entre Bakhtin e Bourdieu existam pontos cruciais de divergência2, o
pensamento de ambos os autores firma-se na contraposição ao objetivismo reinante e ao
subjetivismo ainda presente e influente as suas respectivas épocas. Conforme explica a professora
Sheila Vieira de Camargo Grillo3, “sem cair na visão do sujeito como consciências livre, auto-
reflexiva e criadora, própria do subjetivismo, os dois teóricos se contrapõem a uma concepção da
língua e da sociedade, como sistema sem sujeito” (2005, p.152). Bakhtin, assim como Bourdieu,
tratam de reinserir o sujeito nos objetos de estudo de suas respectivas áreas de conhecimento,
tratando de situá-los em uma dinâmica social. Em síntese, as críticas que instauram ao
subjetivismo e ao objetivismo, à lógica social presente em seus pensamentos de modo a
possibilitarem a inserção da linguagem, do sujeito sócio-histórico nos estudos científicos,
aproximam as ideias de Bakhtin às de Bourdieu e vice e versa, mostrando possível um diálogo
entre as teorias.
A FILOSOFIA DA LINGUAGEM DE BAKHTIN
As ideias e proposições do Círculo de Bakhtin já têm consolidado seu lugar na história
dos estudos linguísticos. O conhecido Círculo trata-se de grupo de intelectuais russos,
multidisciplinar - agregava profissionais de diversificadas áreas de estudos, tais como arte,
literatura, filosofia, biologia, linguística, entre outros -, que se reunia periodicamente entre 1919 e
1929. Proposto por Bakhtin, à época em que se formara em História e Filologia pela
2 Os teóricos se distanciam substancialmente quando na concepção do papel da língua na comunicação humana. Tais
aspectos estão definidos no artigo “A noção de campo nas obras de Bourdieu e do Círculo de Bakhtin: suas
implicações para a teorização dos gêneros do discurso”. Publicado em: Revista da ANPOLL. São Paulo: v. 19, p.
151-184, 2005.
3 Pesquisadora e Professora Doutora da Universidade de São Paulo, atuante da área de Teoria e Análise Linguística,
autora de alguns artigos que aproximam a sociologia de Pierre Bourdieu à linguística, entre eles “Bourdieu e os
lingüistas: a discussão dos conceitos de língua, comunicação e gramaticalidade” e “A noção de campo nas obras de
Bourdieu e do Círculo de Bakhtin: suas implicações para a teorização dos gêneros do discurso” (vide referências).
3
Universidade de São Petersburgo, os participantes do Círculo, conforme podemos ler em Carlos
Alberto Faraco (2009), tinham em comum a paixão pela filosofia e pelo debate de ideias, que
progressivamente levou-os a paixão também pela linguagem.
Sobre a consistência e fundamento das discussões do grupo, Beth Brait4 aponta que "vale
dizer que, antes de refutar qualquer tese, esses pensadores russos delineavam um panorama das
ideias e dos conceitos abordados e, partindo de aspectos pouco explorados, propunham novas
concepções".
Na Rússia da década de 1920 tinham destaque as teorias de Karl Marx - o marxismo -
que, ultrapassando suas bases político-sociais, expressou-se também no campo das ciências
humanas, isto é, “no campo da psicologia, da teoria da literatura, da filosofia da linguagem, etc.”
(PONZIO, 2008, p.71). Bakhtin e o Círculo, explica Ponzio, partem da “carência do marxismo no
que se refere ao estudo da consciência, da linguagem e da formação de ideologias concretas”
(idem) para fundamentar suas teorias. Observaram, negando-se a “reduzir a reação verbal a um
fenômeno de caráter unicamente fisiológico, do qual se exclui o elemento sociológico” (ibdem, p.
73), que a língua sofria influências do contexto social, da ideologia dominante e da luta de
classes. Por isso entenderam que a linguagem era ao mesmo tempo produto e produtora de
ideologias. Bakhtin e o seu grupo contrapuseram-se às duas correntes do pensamento filosófico
linguístico, o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato, que prestigiavam uma dimensão
monológica da linguagem.
O psiquismo individual constitui a fonte da língua. As leis da criação linguística – sendo
a língua uma evolução ininterrupta, uma criação contínua – são as leis da psicologia
individual, e são elas que devem ser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da
linguagem. Esclarecer o fenômeno linguístico significa reduzi-lo a um ato significativo
(por vezes mesmo racional) de criação individual. (BAKHTIN, 1990, p. 72)
O que diferencia Bakhtin dos outros filósofos que se ativeram a estudos semelhantes no
cerne da linguagem é ter colocado, assim, em sua filosofia da linguagem, a dinâmica social da
prática observável da linguagem como força especificadora que estrutura as relações
4 Revista Nova Escola disponível em http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/mikhail-bakhtin-
498487.shtml Acesso em: 10 de abril de 2011.
4
interpessoais. O que o distingue, em outras palavras, é sua ênfase na linguagem como prática
tanto cognitiva quanto social, aspectos esses que lhe permitem compreender e explicar os
complexos fatores que tornam possível o diálogo que abrange, simultaneamente, as diferenças.
Para Bakhtin, o social é uma “construção historicamente especificada em relação às
diferentes formas de produção material e, portanto, da organização cultural, e diversificada com
relação à divisão do trabalho” (PONZIO, 2008, p. 110). Em sua filosofia da linguagem,
compreendida, então, a partir de uma concepção histórica e social, Bakhtin diz que a
compreensão dos signos dá-se em ligação com a situação, o contexto em que ele toma forma e
esse contexto, essa situação é sempre social. O signo ideológico na constituição do sujeito, afirma
o filósofo, parte do exterior para o interior, ou seja, do “social para o individual”, e a palavra nada
mais é do que “produto de interação viva das forças sociais”. Na construção de sua filosofia da
linguagem, o autor passa a valorizar a fala – “a enunciação” -, deixada de lado por Saussure.
Opera este o resgate do sujeito nos estudos linguísticos, pensando as relações da linguagem como
um todo, vista do ponto de vista da interação humana. Os conceitos de Bakhtin se contrapõem à
concepção de língua como sistema sem sujeito, pois é preciso “considerar que o organismo
humano não pertence a um meio natural abstrato, mas faz parte integrante de um meio social
específico” (BAKHTIN, 1990, p.53).
A língua, nessa concepção, é a “realidade material específica da criação ideológica”
(idem, p. 25). Na visão do filósofo, a ideologia é algo intrínseco ao semiótico, pois “o domínio do
ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o
signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor
semiótico” (ibdem, p. 32).
A ideologia para o Círculo de Bakhtin, conforme explica Faraco, comporta várias esferas
ideológicas, que identificam áreas da produção intelectual humana, ideologia “é o nome que o
Círculo costuma dar, então, para o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a
religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais” (2010, p.46). Para o
Círculo, então, todo e qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias, ou seja, no
interior de uma das atividades humanas. Faraco apresenta a seguinte definição de ideologia:
5
Algumas vezes, o adjetivo ideológico aparece como equivalente a axiológico. Aqui é
importante lembrar que, para o Círculo [de Bakhtin], a significação dos enunciados tem
sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo.
Desse modo, qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico – para
eles, não existe enunciado não ideológico. E ideológico em dois sentidos: qualquer
enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no interior de uma das áreas da
atividade intelectual humana) e expressa sempre uma posição avaliativa (i.e., não há
enunciado neutro; a própria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica).
(FARACO, 2010, p. 47)
Tudo que é ideológico possui um significado e é, portanto, um signo, conclusão que se
reflete na afirmativa de Bakhtin que diz que sem signo não existe ideologia, firmando com isso
que o universo da criação ideológica é de natureza semiótica. A ideologia, uma vez que é
constituída pelo semiótico, é inerente à consciência, “Meu pensamento, desde a origem, pertence
ao sistema ideológico e é subordinado às suas leis” (BAKHTIN, apud SOUZA, 1994, p. 114).
Bakhtin acredita que os signos foram criados nas relações interindividuais, portanto, são
carregados de valores conferidos por diferentes interlocutores. Com isso conclui que a
consciência, além de ideológica, é social.
A separação da língua de seu conteúdo ideológico constitui um dos erros mais grosseiros
do objetivismo abstrato. Assim, a língua, para a consciência dos indivíduos que a falam,
de maneira alguma se apresenta como um sistema de formas normativas. O sistema
linguístico tal como é constituído pelo objetivismo abstrato não é diretamente acessível à
consciência do sujeito falante, definido por sua prática viva de comunicação social
(BAKHTIN, 1990, p. 96).
Elemento também forte do pensamento do Círculo, então, é a dialogização das vozes
sociais que é, em poucas palavras, a dinâmica, a relação dialógica estabelecida no encontro
sociocultural dessas vozes que se dão em uma intrincada cadeia responsiva – “os enunciados, ao
mesmo tempo em que respondem ao já dito (não há uma palavra que seja a primeira ou a última),
provocam continuamente as mais diversas respostas” (FARACO, 2010 p.58). Para caracterizar
essa dinâmica inerente à criação ideológica, o Círculo de Bakhtin adota a metáfora do diálogo
que, conforme Faraco, “dará um arremate às reflexões do Círculo sobre a linguagem e sobre a
criação ideológica em sua totalidade [...]” (idem, p.73). Para Bakhtin a vida humana é dialógica e
“ser significa se comunicar”, o que resulta naquilo que Faraco chama de “utopia bakhtiniana” de
6
um mundo polifônico. O termo polifônico ao qual se refere Bakhtin vai além do conceito da
multiplicidade de línguas sociais, pois se trata de “um mundo de vozes plenivalentes em relações
dialógicas infindas” (ibdem, p.79).
Bakhtin foi, portanto muito além da filosofia das relações ideológicas criada por ele e
por seu círculo e se pôs a sonhar com a possibilidade de um mundo radicalmente
democrático, pluralista, de vozes eqüipolentes, em que, dizendo de modo simples,
nenhum ser humano é reificado; nenhuma consciência é convertida em objeto de outra;
nenhuma voz social se impõe como a última e definitiva palavra. (FARACO, 2010,
p.79).
A lógica das relações dialógicas do Círculo de Bakhtin está intrinsecamente ligada às
múltiplas relações e interações socioideológicas, em que o sujeito “vai-se constituindo
discursivamente, assimilando vozes sociais”. O mundo interior é então “uma arena povoada de
vozes sociais em suas múltiplas relações de consonância e dissonancias” (FARACO, 2010, p.
84). Sendo o sujeito um ser social, imerso em uma determinada cultura, logo todo enunciado
expressa consigo o posicionamento do sujeito, com o que, para o Círculo “não há enunciado
neutro”, mas há, podemos inferir, discursos reproduzidos inconscientemente.
Nossos enunciados emergem – como respostas ativas que são no diálogo social – da
multidão das vozes interiorizadas. Eles são, assim, heterogêneos. Desse ponto de vista,
nossos enunciados são sempre discurso citado, embora nem sempre percebidos como tal,
já que são tantas as vozes incorporadas que muitas delas são ativas em nós sem que
percebamos sua alteridade (na figura bakhtiniana, são palavras que perderam as aspas).
(FARACO, 2010, p. 85).
Exposto que “ser é se comunicar”, Faraco explica a noção de lógica do sujeito ideológico.
O sujeito, mergulhado nessas múltiplas interações socioideológicas vai se constituindo
discursivamente, assimilando e internalizando vozes sociais múltiplas. Com isso, afirma o
Círculo, que nossos enunciados emergem da multidão das vozes interiorizadas, mas, esclarece
Faraco, recusando o determinismo absoluto e afirmando a singularidade. Para o Círculo “cada ser
humano ocupa um lugar único e insubstituível, na medida em que cada um responde às suas
condições objetivas de modo diferente de qualquer outro” (2010, p.86). O sujeito tem, desse
7
modo, a possibilidade de singularizar-se, de assumir a posição autoral. O autor criador, para o
Círculo, é entendido como “uma posição estético-formal cuja característica básica está em
materializar certa relação axiológica com o herói e seu mundo” (idem, p.89). O autor criador, não
é passivo, não se presta ao papel especular de mero registro da vida. Ele os recorta e os
reorganiza esteticamente a partir de sua posição axiológica, refratando e refletindo a realidade.
A SOCIOLOGIA DA LINGUAGEM DE PIERRE BOURDIEU
Nas palavras de Wacquant, “os maiores pensadores de qualquer época são aqueles que
não apenas “fazem descobertas” importantes – essa é a tarefa de qualquer cientista [...], mas
também são aqueles que causam naqueles à sua volta uma mudança no modo de pensar, indagar e
escrever” (2002, p. 96). O sociólogo francês Pierre Bourdieu pertence a essa categoria, uma vez
que sua ideias e reflexões alteraram a maneira como exercem seus ofícios os estudiosos e
cientistas da sociedade, da cultura e da história.
Bourdieu concebia uma Ciência Social unificada como um “serviço público” cuja
missão é „desnaturalizar‟ e „desfatalizar‟” o mundo social e “requerer condutas” por
meio da descoberta das causas objetivas e das razões subjetivas que fazem as pessoas
fazerem o que fazem, serem o que são, e sentirem da maneira como sentem. E dar-lhes,
portanto, instrumentos para comandarem o inconsciente social que governa seus
pensamentos e limita suas ações, como ele incansavelmente tentou fazer consigo
próprio. (WACQUANT, 2002, p. 96)
O sociólogo francês, em meados da década de setenta, estabeleceu diálogo direto com a
linguística, o que o levou a um “aprofundamento de sua teoria das trocas simbólicas, aplicada a
uma de suas manifestações: as trocas linguísticas” (GRILLO, 2004, p. 513). Bourdieu propõe,
então, a teorização de uma sociologia da linguagem a partir da crítica e oposição aos conceitos de
língua, gramatilidade e competência linguística, bases da teoria linguística à época. As reflexões
de Bourdieu acerca da linguagem estão desenvolvidas no artigo A economia das trocas
8
linguísticas5, publicado originalmente em 1977 na revista Langue Française, e mais tarde no
livro Ce que parler veut dire. L´économie des échanges lingüístiques, (1982). No referido artigo,
Bourdieu explica ao leitor porque um “sociólogo se imiscui, hoje, na linguagem e na linguística”,
ao que esclarece:
Na verdade, o sociólogo não pode escapar a todas as forças mais ou menos larvares de
dominação que a linguística e seus conceitos exercem ainda hoje sobre as ciências
sociais se não tomar a linguística como objeto numa espécie de genealogia, ao mesmo
tempo interna e externa, visando antes de tudo trazer à luz, conjuntamente, os
pressupostos teóricos das operações de construção de objeto através dos quais esta
ciência se fundou e as condições sociais de produção e, sobretudo, talvez da circulação
de seus conceitos fundamentais. Quais são os efeitos sociológicos que os conceitos de
língua e palavra [...] produzem quando se aplicam ao terreno do discurso ou, a fortiori,
fora desse terreno; qual é a teoria sociológica das relações sociais que está implícita na
aplicação prática desses conceitos? (BOURDIEU, 1977, p. 1)
A crítica primeira de Bourdieu parte da abordagem linguística chomskyana, na qual a
linguagem é apreendida enquanto fenômeno lógico-gramatical. Na visão de Bourdieu, o domínio
prático da gramática isolado de suas condições sociais reais de produção, recepção e circulação
não representa competências práticas, que é “o domínio prático da linguagem e o domínio prático
das situações, que permitem produzir o discurso adequado numa situação determinada6”
(BOURDIEU, 1977, p. 3). Bourdieu refuta essa perspectiva de Chomsky por entender que “a
compreensão da linguagem envolve necessariamente o seu uso social, pois se trata de uma
práxis” (GRILLO, 2004, p. 514). Na sequência, também Saussure é alvo das críticas de Bourdieu,
quanto a sua compreensão baseada na existência de um núcleo linguístico comum a todos os
5 Reproduzido de BOURDIEU, Pierre. L'économie des échanges linguistiques. Langue Française, 34, maio 1977.
Traduzido por Paula Montero. Disponível em: http://antropologias.descentro.org/files/downloads/2011/05/Pierre-
Bourdieu-A-economia-das-trocas-simbólicas.pdf. Acesso em: maio 2011.
6 Bourdieu, em nota explicativa, esclarece: “o domínio prático se distingue da competência erudita (ou escolar) que
tendo sido adquirida nas situações irreais de aprendizagem escolar – onde a linguagem é tratada como letra morta,
como simples objeto de análise – isto é fora de toda situação prática, encontra o problema do Kairós quando, como é
o caso para os sofistas e seus alunos, deve ser posta em prática em situações reais (1977, p.3). Bakhtin ao criticar os
estudos linguístico, ainda que não se refira ao ensino em si, alerta que existe uma parte muito importante da
comunicação ideológica “trata-se da comunicação na vida cotidiana” (1990, p.37). Para Bakhtin não utilizamos a
língua como sistema de formas normativas, “o que importa não é o aspecto da forma linguística [...] o que importa é
aquilo que permite que a forma linguística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às
condições de uma situação concreta dada (1990, p.92-93)
9
falantes de uma comunidade. O sociólogo propõe uma ciência linguística que atribua à
competência a relação com o mercado no qual são ofertados os produtos da competência
linguística, que substitua a questão “saussuriana das condições de possibilidade da intelecção
(isto é, a língua) pela questão das condições sociais de possibilidade da produção e da circulação
linguísticas”, ao que explica:
O discurso deve sempre suas características mais importantes às relações de produção
linguísticas nas quais ele é produzido. O signo não tem existência (salvo abstrata, nos
dicionários) fora de um modo de produção linguístico concreto. Todas as transações
linguísticas particulares dependem das estruturas do campo linguístico, ele próprio
expressão particular das estruturas das relações de força entre os grupos que possuem as
competências correspondentes (ex: língua “polida” e língua “vulgar” ou, numa situação
multilinguística, língua dominante e língua dominada) (BOURDIEU, 1977, p. 4).
Bourdieu acusa a linguística, assim, de “silencia as condições sociais de possibilidade de
instauração do discurso, em favor de um artefato teórico – o conceito de língua- cuja função é a
dominação linguística (GRILLO, 2004, p. 514). Para o sociólogo o conceito saussuriano de
língua “é um artefato que, universalmente imposto pelas instâncias de coerção linguísticas, tem
uma eficácia social na medida em que funciona como norma, através da qual se exerce a
dominação dos grupos”. (BOURDIEU, 1977, p. 6). Devemos lembrar que para o entendimento
do pensamento de Bourdieu faz-se fundamental o conceito de campo - espaço autônomo onde
ocorrem relações entre agentes, que atuam segundo certas leis e regras - e de habitus, ambos
recuperados7 e reformulados por Pierre Bourdieu. Esses se apresentam, ainda, como uma
perspectiva teórico-metodológica especialmente produtiva quando na compreensão da dinâmica
social dos gêneros discursivo (GRILLO, 2005, p.151).
Na concepção de Bourdieu, importante ter claro ainda que, - o que representa sua terceira
crítica - “a língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento,
mas um instrumento de poder” (BOURDIEU, 1977, p.6). Estabelecem as interações linguísticas
7 Segundo Wacquant, Bourdieu “recuperou e retrabalhou o conceito aristotélico-tomista de habitus para elaborar uma
filosofia disposicional da ação como propulsora dos socialmente constituídos e individualmente incorporados
esquemas de percepção e apreciação. Ele forjou a nova ferramenta analítica do campo, designando espaços
relativamente autônomos de forças objetivas e lutas padronizadas sobre formas específicas de autoridade, para dar
força à estática e reificada noção de estrutura e dotá-la de dinamismo histórico” (WACQUANT, 2002, p. 98).
10
relações de “força simbólica”, baseada numa relação “autoridade-crença”, ou seja, existe para
Bourdieu um aspecto de autoridade na linguagem que não tem senão a função de relembrar, a
cada ato, essa autoridade e de remeter à crença que ela exige. “O que fala nunca é a palavra, o
discurso, mas toda a pessoa social” (idem).
Bourdieu explica que o princípio gerador e unificador de todas as práticas linguísticas é o
“habitus linguístico”, que é em verdade uma dimensão do habitus de classe, disposições produto
das relações, disputas, leis e regras do campo em que o sujeito está inserido, assim melhor
definido pelo autor:
[...] sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das
estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos determinismos objetivos e de
uma determinação, do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende a produzir
práticas e, por esta via, carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas
(BOURDIEU, 1994, p 52).
Na sociologia da linguagem de Bourdieu reafirma a natureza intrinsicamente social da
língua, e critica a linguística da época por esquecer, em suas teorias e análise, as leis sociais e as
disposições estruturantes que permeiam os enunciados, ou seja, a natureza social da língua.
Bourdieu em seu artigo sobre as trocas linguísticas expõe que para explicar o discurso é preciso
atentar para o discurso, mas também para fora dele. É preciso voltar-se para a função social que
ele preenche, pois “entre os pressupostos da comunicação linguística [...], estão as condições de
sua instauração, o contexto social no qual se instaura e, em particular a estrutura do grupo no qual
se realiza” (BOURDIEU, 1977, p. 8).
DIÁLOGOS POSSÍVEIS: PIERRE BOURDIEU E MIKAHIL BAKHTIN
Podemos observar nas teorias apresentadas que os aspectos que permeiam os enunciados
lingüísticos são explicados por articulações entre a linguagem e as condições sócio-ideológicas
de sua instauração. Ambas as concepções rompem com o subjetivismo idealista e transcendental
11
e com o objetivismo cartesiano ao inserirem a ordem social, a história e os sujeito em suas teorias
sócio-históricas. “Sem cair na visão do sujeito como consciência livre, auto-reflexiva e criadora,
os dois teóricos se contrapõem a uma concepção de língua e da sociedade, como sistema sem
sujeitos” (GRILLO, 2005, p.153).
Tanto Bakhtin quanto Bourdieu concentram seus estudos na relação entre estruturas
sociais e constituição da subjetividade, o primeiro, porém, privilegia o estudo da natureza social
da linguagem. Localizam, Bakhtin e o Círculo, na interação verbal o espaço de constituição e
existência da língua, colocando em jogo condições sócio-históricas de duas ordens. Primeiro, o
horizonte social comum, o conhecimento e compreensão da situação, compartilhados pelos co-
enunciadores. Segundo, o contexto social mais amplo definidos pela relação entre os campos
ideológicos e a ideologia do cotidiano. Aqui, a questão de sentido do enunciado é resolvida pela
distinção entre significação e tema, além da evidencia de que toda palavra é constituída por um
acento de valor ou apreciativo, agregados pelo sujeito - reintroduzido agora na linguagem.
Na concepção de Bourdieu é justamente a noção de habitus que cria uma via de
reintrodução do sujeito, ou agente, na linguagem, sem desconsiderar as coerções sociais de sua
ação. Podemos com isso entender que para Bourdieu, assim como para Bakhtin, o sujeito se
constitui do social para o individual, ao que podemos inferir que os sujeitos são formados pela
incorporação de disposições (habitus) produzidas no interior de um dado espaço social (campo),
“mas que são redimencionadas em razão da trajetória individual e da posição ocupada pelo
sujeito nesse campo” (GRILLO, 2005, p. 156).
Tanto as práticas sociais de Bourdieu quanto as avaliações subentendidas de
Bakhtin/Voloshinov são produzidas pelos sujeitos sociais sob condições sócio-históricas
determinadas que lhe prestam um sentido que vai de si, sobre o qual pouco se questiona
[...]. Como vimos anteriormente, a avaliação social está articulada, na obra do círculo, à
interação verbal, da qual é componente. Em Bourdieu, a incorporação do habitus
comporta modos de percepção e de apreciação da realidade. Dessa aproximação,
podemos concluir que os autores estão descrevendo aspectos inter-relacionados,
uma vez que as avaliações bakhitinianas são uma das práticas engendradas pelo habitus
que, por sua vez, é produzido sob condições sociais específicas. (GRILLO, 2005, p.157)
12
Do que foi exposto percebemos semelhanças entre as ideias e os modos de concepção das
teorias dos dois teóricos em questão. Ambos questionam as mesmas duas correntes de
pensamento, o subjetivismo e o objetivismo, reafirmam a importância do sujeito na linguagem,
partindo da constituição sócio-histórica desse sujeito agente, “que não é um produto de um
determinismo mecânico da estrutura, mas também não é uma individualidade auto-consciente e
livre de coerções” (GRILLO, 2005, p.158). Por fim, a lógica social presente em seus
pensamentos, de modo a possibilitarem a inserção da linguagem e do sujeito sócio-histórico nos
estudos científicos, aproximam as ideias de Bakhtin às de Bourdieu e vice e versa, mostrando
possível um diálogo entre as teorias.
REFERÊNCIAS
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Vieira. São Paulo: Hucitec, 1999.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. Tradução Paula Montero, 1977.
Disponível em: http://antropologias.descentro.org/files/downloads/2011/05/Pierre-Bourdieu-A-
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BOURDIEU, Pierre. Sociologia. São Paulo: Ática, 1994.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin.
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GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. A noção de campo nas obras de Bourdieu e do Círculo de
Bakhtin: suas implicações para a teorização dos gêneros do discurso. Revista da ANPOLL. São
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13
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Revista Educar para Crescer. O filósofo que deu vida a linguagem. Disponível em:
http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/mikhail-bakhtin-498487.shtml. Acesso em: 20 de abril 2011
Recebido Para Publicação em 30 de outubro de 2011. Aprovado Para Publicação em 22 de novembro de 2011.
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