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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Pós Graduação em Ciências da Religião
Camila Campos Marçal da Cruz
DIÁLOGO E SENTIDO:
Vida espiritual e encontro inter-religioso na sociedade contemporânea
Belo Horizonte
2017
Camila Campos Marçal da Cruz
DIÁLOGO E SENTIDO:
Vida espiritual e encontro inter-religioso na sociedade contemporânea
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião, da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Ciências da Religião.
Orientador: Prof. Dr. Roberlei Panasiewicz
Área de Concentração: Religião e Cultura.
Linha de Pesquisa: Pluralismo, Imaginário Religioso
e sociedade.
Belo Horizonte
2017
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Cruz, Camila Campos Marçal da
C957d Diálogo e sentido: vida espiritual e encontro inter-religioso na sociedade
contemporânea / Camila Campos Marçal da Cruz. Belo Horizonte, 2017.
148 f.: il.
Orientador: Roberlei Panasiewicz
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
1. Psicologia fenomenológica. 2. Espiritualidade - Experiências. 3.
Alteridade. 4. O Contemporâneo. 5. Pluralismo religioso. 6. Religião e cultura. I.
Panasiewicz, Roberlei. II Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. III. Título.
CDU: 248
Camila Campos Marçal da Cruz
DIÁLOGO E SENTIDO:
Vida espiritual e encontro inter-religioso na sociedade contemporânea
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião, da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Ciências da Religião.
Orientador: Prof. Dr. Roberlei Panasiewicz
Área de Concentração: Religião e Cultura.
Linha de Pesquisa: Pluralismo, Imaginário Religioso
e sociedade.
____________________________________________________
Prof. Dr. Roberlei Panasiewicz PUC – Minas (Orientador)
____________________________________________________
Prof. Dr. Miguel Mahfoud - UFMG
____________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Agostinho Nogueira Baptista PUC-Minas
Belo Horizonte, 30 de agosto de 2017.
Ao meu querido filho, Theo, com muito amor e gratidão.
E a todos aqueles que não desistem dos seus sonhos e que se realizam fazendo desse mundo,
um lugar melhor de se viver.
AGRADECIMENTOS
A Deus pela oportunidade e pelo cuidado que tem comigo e que se mostra palpável
através de tantas pessoas especiais que “encontro” pelo caminho. Espero poder retribuir,
sendo também fonte de cuidado.
A todos os responsáveis pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
PUC/MG e aos colegas pelo comprometimento com a qualidade do curso e acolhimento em
todo o meu processo enquanto discente. Aos colegas do REPLUDI, pela troca sempre tão rica
e importante para o meu crescimento acadêmico. Em especial ao colega (e sempre professor)
Alexandre Kaitel e aos professores Antônio Cantarela e Fabiano Campos, pelas orientações
pontuais e cuidadosas.
Aos amigos e companheiros de vida, sempre fonte de amor, diálogo e incentivo;
sobretudo, aos amigos Júlio Giovanni, Angélica Martins, Leonardo Koury, Júlia Leite,
Ranucy Campos e Rita Grassi, pelas conversas que foram oportunidades de aprofundamento e
ampliação reflexiva sobre a temática da pesquisa.
Ao Paulo Pacheco pelo acolhimento e disponibilidade demonstrados desde a época da
faculdade, como professor e orientador. E, principalmente, pela confiança e amizade, que se
tornaram apoio fundamental para que eu seguisse na trajetória acadêmica e vida pessoal
buscando ser coerente com os meus desejos de realização e valores.
A toda a minha família, em especial aos meus pais e irmãs, pelo apoio e suporte no
cuidado com o meu filho nos momentos em que eu precisei me ausentar para a pesquisa. Sem
vocês, isso não teria sido possível.
Às pessoas da banca que se dispuseram a ler e avaliar essa pesquisa. Ao Paulo
Agostinho por ter sido um leitor atento desde o momento do projeto, com instruções pontuais
e questionamentos que me fizeram crescer ao longo desse período. Ao Miguel Mahfoud, que
ao longo da minha trajetória acadêmica, se tornou uma referência como psicólogo e educador.
Sua presença torna esse momento ainda mais cheio de significado. Obrigado por ter aceitado
o convite em contribuir com suas orientações.
Agradeço, especialmente, ao meu orientador, professor Roberlei Panasiewicz, por sua
orientação e cuidado durante toda essa trajetória. Ter sido acompanhada por você foi um
privilégio, que fez valer a pena cada dificuldade enfrentada antes e durante essa etapa. Sua
compreensão tornou esse período de descobertas, tanto pessoais quanto acadêmicas, mais leve
e inesquecível!
O sentido da minha vida é ajudar as pessoas a encotrar o sentido da vida delas.
Viktor Frankl
RESUMO
Ao analisar o desenvolvimento da sociedade moderna, percebemos que, a despeito de todo o
progresso econômico e tecnológico, a sociedade vive um momento de crise espiritual. Na
realidade brasileira, esse contexto de globalização e pluralidade, somado à procura cada vez
maior das pessoas por experiências espirituais e religiosas, torna o convívio com as
diversidades religiosas um desafio urgente. Sendo assim, o objetivo dessa pesquisa é refletir
sobre as necessidades e possibilidades do ser humano contemporâneo encontrar sentido para
sua vida e, principalmente, compreender como as religiões podem contribuir para favorecer
esse movimento ontologicamente humano. Não obstante todos os meios de comunicação que
favorecem o contato, o ser humano contemporâneo tem se mostrado cada vez mais fechado e
intolerante em relação às diversidades. Precisamos pensar critérios para um convívio com as
diversidades que considere-o em sua totalidade e que proporcione mais sentido e paz para a
humanidade. Nesse sentido, acreditamos que as religiões podem contribuir, através do diálogo
entre elas, para a ampliação da consciência em relação às alteridades, através do cultivo do
cuidado consigo, com o outro e com a nossa casa comum. As premissas do diálogo inter-
religioso pressupõem abertura dialogal, humildade, conhecimento de si, reconhecimento da
alteridade e, portanto, vão ao encontro da estrutura humana e da necessidade que temos de nos
constituirmos como pessoa e de oferecer um sentido para a nossa existência, a partir e através
dos nossos relacionamentos. Como procedimento metodológico, foi dada preferência para
revisão bibliográfica. Em um primeiro momento, contemplamos a estrutura humana de acordo
com a perspectiva da psicologia fenomenológica. Destacamos o ser humano como um ser
relacional, que se estrutura a partir do convívio com as alteridades e que, no contato com o
mundo, busca um sentido para sua existência. Em seguida, apresentamos as características da
sociedade contemporânea em relação aos axiomas que a sustentam e quais as consequências
desse modo de vida na compreensão que o ser humano tem de si mesmo, dos outros e do
mundo. Por fim, mostramos a importância do diálogo, sobretudo do diálogo inter-religioso
nesse contexto de pluralidade. E tendo em vista a responsabilidade das religiões na construção
dessas pontes, consideramos que uma práxis dialogal pode favorecer a construção da
subjetividade humana e uma convivência com a diversidade que priorize o cuidado com as
alteridades.
Palavras-chave: Psicologia Fenomenológica. Crise de sentido. Alteridade. Diálogo inter-
religioso.
ABSTRACT
In analyzing the development of modern society, we realize that despite all the economic and
technological progress, society is experiencing a moment of spiritual crisis. The Brazilian
context of globalization and plurality, added to the increasing demand of people for spiritual
and religious experiences, makes living with religious diversity an urgent challenge.
Therefore, the goal of this study is to reflect on the necessities and possibilities of the
contemporany human being to find life meaning, and specially to understand how religions
can contribute in favor of such ontological human movement. Despite all the means of
communication that favor contact, the contemporary human being has become increasingly
closed and intolerant in relation to diversity. We need to think about criteria for living with
diversities that considers human beings in their entirety, and offers greater meaning and peace
to humankind. Our hypothesis is that religions can contribute to the expansion of
consciousness in relation to otherness, through dialogue amongst them and through
cultivating caring for oneself, for others and for our common home. The premises of
interreligious dialogue presupposes dialogical openness, humility, knowledge of self,
recognition of otherness and, therefore, meets the human structure and our need to constitute
ourselves as persons and to offer meaning to our existence from and through our relationships.
As methodological procedure, preference was given to bibliographical review. At first we will
contemplate the human structure in accordance to the perspective of phenomenological
psychology. Thus highlighting the human being as a relational being, whose structures are
based in living with otherness and in contact with the world, seeking for the meaning of
existence. Then we will present the characteristics of contemporary society in relation to the
axioms that sustain it and what are the consequences of this way of life in the understanding
that human beings have of themselves, of others and the world. Finally, we will show the
importance of the dialogue, particularly of interreligious dialogue in this context of plurality.
And in view of the responsibility of religion in the construction of these bridges, reflect on
how a dialogical praxis may favor the construction of human subjectivity and a coexistence
within diversity that prioritizes caring for otherness.
Keywords: Phenomenological Psychology. Crisis of meaning. Otherness and interreligious
dialogue.
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 - Pertença religiosa da população brasileira...................................................... 86
TABELA 2 - Conteúdo disponibilizado pelo Observatório das Religiões............................ 131
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 - Diversidade dos pesquisadores do Observatório........................................... 132
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................ 12
2 O SENTIDO DO SER HUMANO................................................................................... 19
1.1 2.1 Uma visão da Psicologia Fenomenológica sobre a estrutura humana...................... 19
2.1.1 Estrutura transcendental: abertura para fora e para dentro de si.............................. 21
2.1.2 Dimensões constituintes do ser humano....................................................................... 22
2.1.3 O aspecto dialógico do reconhecimento de si.............................................................. 26
2.1.4 A primazia do outro na formação do eu....................................................................... 30
1.2 2.2 Uma leitura fenomenológica sobre a busca de sentido.............................................. 32
2.2.1 Religião como fonte de significado último................................................................... 33
2.2.2 Dimensão espiritual na perspectiva fenomenológica .................................................. 36
2.2.3 Liberdade dinamizadora da pessoa humana................................................................ 40
2.2.4 Solidão existencial: um espaço de encontro................................................................ 43
2.3 Experiência como núcleo para o diálogo e busca por sentido................................... 45
2.3.1 Experiência religiosa e experiência de Deus............................................................... 48
2.3.2 Experiência elementar e a construção da empatia...................................................... 50
2.3.3 Por uma educação que favoreça uma formação humana da pessoa........................... 51
2.3.4 Ser pessoa em uma comunidade................................................................................... 54
3 O SER HUMANO NA CONTEMPORANEIDADE..................................................... 57
3.1 Crise de sentido social contemporânea........................................................................ 58
3.1.1 Panorama histórico da Idade Média até a Modernidade............................................ 59
3.1.2 Desenvolvimento e crise da Modernidade: Pós-modernidade..................................... 61
3.1.3 Mercado como suprasentido da Modernidade............................................................. 64
3.1.4 Contribuições da Pós-modernidade para a formação de um ser humano integrado:
esperanças e resistências.................................................................................................
67
3.2 Crise do ser humano contemporâneo.......................................................................... 70
3.2.1 Adoecimento da dimensão espiritual humana.............................................................. 71
3.2.2 Ênfase da dimensão psíquica na contemporaneidade.................................................. 73
3.2.3 Percepção do corpo na cultura contemporânea.......................................................... 77
3.2.4 Lugar do outro na contemporaneidade........................................................................ 79
3.3 Senso religioso e democracia no Brasil contemporâneo .......................................... 82
3.3.1 Campo religioso do Brasil contemporâneo.................................................................. 85
3.3.2 Senso religioso contemporâneo.................................................................................... 88
3.3.3 A construção de uma sociedade democrática: religião, ética e política..................... 91
4 O PLURALISMO RELIGIOSO E A EMERGÊNCIA DE UMA PRÁXIS
DIALOGAL.........................................................................................................................
95
4.1 Diálogo: uma resposta à crise espiritual contemporânea.......................................... 96
4.1.1. Uma compreensão acerca da estrutura do diálogo e da linguagem........................... 97
4.1.2 Ausência e urgência de diálogos na Pós-modernidade............................................... 101
4.1.3 Condições para o diálogo inter-religioso.................................................................... 104
4.1.4 Compreensão das formas de diálogo inter-religioso pela perspectiva do
sentido............................................................................................................................
106
4.2 Construção de sentido via diálogo inter-religioso....................................................... 109
4.2.1 Contribuições do diálogo das religiões para a contrução de sentido.......................... 110
4.2.2 A emergência de uma ética da alteridade por uma sociedade tolerante..................... 113
4.2.3 O diálogo entre as religiões como potencializador do relacionamento com as
diversidades.........................................................................................................................
115
4.2.4 Uma educação dialogal que favoreça a consciência e o reconhecimento do
outro......................................................................................................................................
117
4.2.5 As lideranças no diálogo das espiritualidades em prol do cuidado com o
planeta............................................................................................................................
119
4.3 Diálogo inter-religioso como uma práxis..................................................................... 121
4.3.1 Brasil: um espaço de encontro e de tensões................................................................. 122
4.3.2 Promovendo encontros inter-religiosos e discutindo a diversidade religiosa no
Brasil.....................................................................................................................................
125
4.3.3 Observatório Transdisciplinar das Religiões............................................................... 127
4.3.4 Análise da práxis dialogal do Observatório das Religiões.......................................... 130
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................... 134
REFERÊNCIAS.................................................................................................................. 139
12
1 INTRODUÇÃO
Abordar a questão do sentido da vida como tema de pesquisa, teve origem na minha
busca pessoal, mas encontrou relevo, sobretudo, na dor das pessoas ao meu redor. Assistir ao
número cada vez maior de suicídio, depressão, queixas em relação ao vazio e falta de sentido,
suscitou questionamentos acerca do nosso modo de vida atual. Consciente de que a maneira
como as pessoas respondem ao sentido da vida, exige um posicionamento pessoal, mas sofre
influências das características predominantes de cada época, me perguntava sobre quais eram
os valores que norteavam o nosso tempo.
Qual o sentido da vida? Qual o sentido da minha vida? Eram perguntas que
acompanharam e sustentaram toda a minha trajetória. No decorrer do tempo pude perceber
que essas questões existenciais não eram privilégio da minha pessoa, mas uma característica
humana que perpassava toda a história da humanidade, se tornando, inclusive, um dos
motivos para o surgimento das religiões.
Provocada pelo interesse em encontrar alternativas para a crise de sentido atual, me
perguntei se as religiões, que entre outras coisas, se ocupam principalmente com questões
relativas ao sentido último da vida, poderiam contribuir para a realização dessa busca de
maneira mais totalizante, mas coerente com as necessidades do ser humano contemporâneo.
Durante a graduação de Psicologia, foi perceptível a quase ausência de assuntos
ligados à religião ou experiências religiosas ou a sua abordagem de maneira restrita e/ou
negativa, resquícios de uma histórica cisão entre ciência e religião, onde esta última, de
acordo com Belzen:
Foi vista como sendo impossível e em outros tida como inútil, e isto, a maioria das
vezes, em razão do desinteresse pessoal ou até da animosidade contra ela por parte
de quem a praticava. Seja como for, muitos psicólogos se perguntavam admirados se
uma Psicologia de cunho científico poderia se ocupar de um objeto tão obscuro
quanto à religião. [...] Contudo, as relações entre Psicologia e religião voltaram
desde fins do século XIX a ser debatidas com maior frequência. (BELZEN, 2013, p.
319).
Não obstante a isso, no decorrer da prática como psicóloga clínica, era recorrente o
aparecimento de temas relacionados à religiosidade, espiritualidade, moral e ética. Um
acompanhamento psicoterápico aborda, em grande parte das vezes, aspectos relacionados a
valores do paciente e inevitavelmente, valores da família e da sociedade na qual estamos
inseridos, valores esses que influenciam diretamente na formação da subjetividade humana:
13
Quando um cliente procura uma psicoterapia, ele não traz para o trabalho apenas
determinadas partes de si, e sim seu todo. Esse todo inclui sua religiosidade, de
modo que ela é parte integrante dos diálogos terapêuticos, mesmo quando não
explicitamente nominada. A religiosidade sustenta crenças e posturas diante da vida,
nutre valores e escolhas, influencia a espiritualidade e o contato corporal. (PINTO,
2013, p. 684).
A psicologia fenomenológica – abordagem teórica utilizada nesse trabalho, ao
contrário de algumas das principais abordagens apresentadas durante a graduação em
psicologia, tem um olhar cuidadoso para as experiências religiosas em geral. De acordo com a
fenomenologia, o ser humano possui uma estrutura transcendental, sendo constituído por uma
dimensão biológica, psicológica e espiritual (BELLO, 2004), onde a dimensão espiritual do
ser humano é a responsável pelas perguntas existenciais (FRANKL, 1989), e que pode
coincidir com o aspecto religioso, mas que não se limita a ele.
Apesar de todo esse contexto, ainda existe um tabu em relação ao tema da religião
entre os profissionais de psicologia, tanto em relação à religiosidade do profissional, quanto à
forma adequada de se abordar e/ou conduzir assuntos relacionados à espiritualidade do
paciente, sem que isso possa se confundir com uma atitude apologética ou confessional, mas
que respeite toda a riqueza presente nessa busca que é humana. Resistência que pode ser
comprovada quando, em 2004, ao realizar o trabalho de conclusão de curso sob o tema:
“senso religioso e autoconhecimento” deparei-me com a falta de apoio da instituição em
relação ao tema e à dificuldade em encontrar professores que pudessem oferecer uma
orientação. Dificuldade que foi superada ao encontrar um professor temporário com formação
em fenomenologia e interesse e experiência na área de experiência religiosa1.
Diante desse histórico, e do permanente desejo de me qualificar melhor enquanto
psicoterapeuta e de aprofundar o conhecimento sobre a dimensão espiritual humana, refleti
sobre a possibilidade de continuar os meus estudos em outra área. De acordo com Ferreira e
Senra (2012, p. 263), a área de Ciências da Religião, por sua “pluralidade das disciplinas
científicas favorece uma compreensão mais dinâmica e aberta sobre o objeto em questão, o
fato religioso. Essa demarcação epistêmica permite que se abram sempre novas possibilidades
analíticas sobre o objeto a ser conhecido”. E foi assim, que as Ciências da Religião, se
revelou como uma possibilidade e espaço científico adequado para conhecer mais sobre o ser
humano que busca por sentido e sobre as características da sociedade contemporânea no que
tange ao seu aspecto religioso.
1 Trabalho apresentado como requisito para conclusão do curso de graduação em Psicologia pela PUC/MG, no
ano de 2005, sob orientação do prof. Dr. Paulo Roberto Andrada Pacheco.
14
A sociedade ocidental pós-moderna é marcada pelo convívio com diferentes culturas,
proporcionado pelos avanços da modernidade, sobretudo pela globalização e desenvolvimento
das tecnologias de comunicação. Apesar de todos os benefícios alcançados pelos avanços da
modernidade, eles não são suficientes para garantir o convívio com a diversidade e
reconhecimento das alteridades.
O momento atual coloca-nos diante do convívio com uma diversidade cultural imensa
e, sobretudo quando falamos das diferenças religiosas, esse convívio é vivido com tensões. As
religiões coexistem, mas existe pouca ou, em alguns casos, nenhuma disposição para o
diálogo: “O reinado do eu se impõe. Nem sempre de forma agressiva. Prefere prescindir do
outro, desconhecê-lo, a gastar energia em combatê-lo”. (LIBANIO, 2002). Além disso,
assistimos à busca cada vez maior por experiências religiosas dentro e fora das instituições. A
pluralidade religiosa é um fato.
Acontecimentos como a queda do muro de Berlim, a crise do socialismo real e do
neo-liberalismo, a crise ética e de sentido e a fragilização do equilíbrio do universo,
provocaram a perda ou enfraquecimento do potencial de plausibilidade das
narrativas de orientação e sustentação do mundo. O reconhecimento e a acolhida da
diferença emergem hoje como contrapontos à lógica excludente da identidade
egocêntrica que marcou a modernidade e sintonizam um momento novo de busca de
sentido. (TEIXEIRA, 2010a).
Nesse contexto, que alguns autores chamam de crise espiritual contemporânea, urge
pensar critérios para retomar a nossa humanidade e uma boa convivência com essa
diversidade. Será que as religiões, no contexto da pós-modernidade, podem contribuir para
superar essa crise e ajudar as pessoas a encontrarem sentido para a vida?
O pluralismo religioso pode ser um campo repleto de possibilidades de encontros. O
encontro com uma pessoa que possui uma pertença ou experiência religiosa diferente da nossa
é uma ocasião que permite o aprofundamento das próprias vivências. Na medida em que
existe uma entrega e reciprocidade nessa vivência de diálogo, esse encontro se torna uma
possibilidade de problematização do sentido da vida, a partir da provocação que aquele
relacionamento é pra nós. E esse relacionamento pode se tornar uma referência de cuidado,
que pode se estender na responsabilidade por todas as alteridades. Além disso, na perspectiva
do sentido, se "possuímos uma atitude de abertura, mesmo se o encontro que realizamos não
for gerador de diálogo, ainda assim ele pode ser uma possibilidade de reelaboração da própria
experiência, pelo critério da não correspondência". (GASPAR, 2014, p. 19).
Para a compreensão da experiência humana presente na vivência da diversidade
cultural e religiosa atual e do lugar do diálogo inter-religioso nesse cenário, abordaremos o
15
pluralismo a partir do conceito de pluralismo religioso de princípio, proposto por vários
teóricos do diálogo inter-religioso como, por exemplo, Claude Geffré (2004). Ele amplia o
conceito de pluralismo para além da constatação de uma variedade cultural e religiosa
existente (pluralismo de fato), para um pluralismo percebido como intencional, como um
desígnio de Deus (pluralismo de princípio), mesmo que ainda misterioso para nós, o que nos
leva a considerar a diversidade como algo que deve ser valorizado.
A pós-modernidade tem como um de seus desafios superar a fragmentação humana
advinda da ênfase dada pela modernidade ao progresso, ao pensamento técnico-científico e ao
individualismo e propor uma nova forma de convívio. Para isso, precisamos reaprender a
elaborar a nossa própria existência, considerando todas as dimensões humanas, sobretudo
através do cultivo da dimensão espiritual, que nos permite fazer reflexões mais aprofundadas
e retomar a importância das nossas relações no processo de conhecimento de si e no
reconhecimento do outro enquanto pessoa.
As alteridades ocupam um lugar de destaque na construção subjetiva dos sujeitos, não
sendo possível pensar uma formação humana que desconsidere a sua importância. Porém, não
sabemos lidar com as diferenças, nem nossas, nem dos outros. “O intolerante desconhece a si
e, portanto, é incapaz de reconhecer a humanidade que habita no Outro, encarnado pela sua
fragilidade, precariedade, provisoriedade.” (ZAMBAM, 2015, p. 373).
Nesse contexto, precisamos pensar formas de convívio com as diversidades que
mantenham a nossa abertura às alteridades e fomentem o cuidado com o mundo e com as
relações de maneira geral. O reconhecimento do valor dessa pluralidade permite-nos perceber
a diversidade como algo positivo e que pode ser aprendido. Mas pra isso, é preciso empenho e
educação, no sentido de que precisamos reaprender esse cuidado e esse reconhecimento do
que nos faz humanos. Sem esse acompanhamento, o pluralismo religioso tende a gerar uma
violência e um vazio ainda maiores.
O objetivo do presente trabalho de pesquisa é refletir sobre as necessidades e
possibilidades do ser humano contemporâneo encontrar sentido para sua vida e,
principalmente, compreender como as religiões podem contribuir para favorecer esse
movimento ontologicamente humano na pós-modernidade.
As religiões, de maneira geral, tratam de questões existenciais e de valores éticos e
morais. Tendo em vista a importância da alteridade na construção subjetiva humana e do
diálogo na formação da nossa identidade, mas diante de um contexto de pluralidade religiosa,
de individualismo e intolerância em relação às diversidades. Nossa hipótese era que o diálogo
inter-religioso poderia contribuir para a busca de sentido individual, pois suas premissas, -
16
humildade, conhecimento de si, reconhecimento da alteridade -, que tinham como objetivo
principal a construção de uma sociedade mais pacífica, iam de encontro à estrutura humana de
abertura dialogal, de nos constituirmos como pessoa e de oferecer um sentido para a nossa
existência a partir e através dos nossos relacionamentos.
Esse tema e estudo se justificam como uma tentativa de conhecer melhor as
características da sociedade e do lugar das religiões nesse contexto, além de contribuir com
possíveis caminhos de retorno para que as pessoas se reconheçam em sua humanidade e se
posicionem respeitando o seu senso religioso e a diversidade religiosa. Mostra-se pertinente
nas Ciências da Religião, na medida em que vai de encontro ao interesse dessa área em se
assumir enquanto Ciência interdisciplinar e transdisciplinar, colocando em diálogo Psicologia
e Religião.
Dentro do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da PUCMG, essa
pesquisa se realizou através da área de concentração em: Religião e Cultura, sob a Linha de
Pesquisa: Pluralismo, Imaginário religioso e sociedade. E se enquadra na subárea de Ciências
da Religião Aplicada, que tem como temas correlatos a religião e espaço público; política;
ética; tolerância; diálogo inter-religioso; educação religiosa.
A Psicologia, assim como a Ciências da Religião, não se ocupa em provar a
veracidade de determinada religião ou crença, “antes, é o estudo científico, descritivo e
objetivo, do fenômeno religioso no que se refere ao comportamento humano – por excelência,
objeto e trabalho da Psicologia.” (RODRIGUES; GOMES, 2013, p. 333). Se interessa pelo
estudo das religiões e de todas as suas formas de manifestações, na medida em que
compreendê-las, pode ajudar a compreender os processos de subjetivação individuais e as
características culturais de uma época que influenciam nesse processo.
Sendo assim, considerando que a psicologia fenomenológica acredita em uma
antropologia que considera o ser humano através das dimensões biológica, psicológica e
espiritual; antropologia que vai de encontro ao que a Organização Mundial de Saúde
compreende enquanto estrutura humana, incluindo o cuidado com a dimensão espiritual como
fundamental para a saúde humana2. Torna-se extremamente relevante compreender como se
organiza espiritualmente a nossa época.
2 “A Organização Mundial de Saúde, desde 2008, incluiu o bem-estar espiritual como uma das dimensões de
saúde, ao lado dos aspectos físicos, psicológicos e sociais. Esse movimento indica o reconhecimento de uma
relação preterida pelos moldes clássicos da Medicina, que, sob o paradigma empirista das Ciências Naturais, não
legitimava a espiritualidade como parte integrante da saúde humana. Do ponto de vista da Psicologia, é vital para
o trabalho clínico a compreensão da espiritualidade como uma dimensão humana, que pode fornecer conteúdos
interpretativos para comportamentos e vivências do sujeito.” (FRANCO, 2013, p. 402).
17
A multiplicação e a diversidade de movimentos religiosos que emergem tanto dentro
como fora de igrejas cristãs despertam a atenção dos que observam o campo
religioso no século XX e no século XXI. A crescente globalização, o
questionamento das tradições culturais e também a valorização da autonomia
individual são fenômenos inter-relacionado que têm sido identificados como
explicação para essa multiplicação de movimentos religiosos e enfraquecimento das
instituições tradicionais. (MARIZ, 2013, p. 301).
Para verificar a nossa hipótese, a metodologia usada foi a de uma revisão bibliográfica.
E nosso trabalho foi sustentado e orientado, sobretudo, pelo marco teórico da fenomenologia e
da teologia do pluralismo religioso.
No primeiro capítulo, apresentaremos a nossa compreensão de ser humano ancorada
na fenomenologia, que tem como pressuposto resgatar o humano nas investigações científicas
e na psicologia fenomenológica, que compreende o ser humano a partir de uma totalidade que
inclui as dimensões biológica, psíquica, espiritual, que se revela no social. Mostraremos como
se dinamiza essa estrutura humana transcendental e capaz de transcendência, que possibilita
uma consciência de si, que, no contato com o real, constrói a sua subjetividade.
Destacaremos o lugar das alteridades nesse reconhecimento do eu e na construção de
uma vida com sentido, e a função da dimensão espiritual, como dimensão de aprofundamento
da vida, nesse processo. A espiritualidade humana é a dimensão que permite, no contato com
a vida, agir com liberdade e responsabilidade diante de tudo que nos acontece. Essa
possibilidade de decisão livre surge a partir dos relacionamentos, mas exige também um
distanciamento reflexivo que permita olhar para as próprias vivências e elaborá-las. Esse
processo de construção subjetiva nunca cessa de acontecer e exige um contexto que favoreça
a sua realização de forma saudável, considerando a totalidade da estrutura humana.
Sendo assim, no segundo capítulo, nós analisaremos como se organiza a sociedade
contemporânea ocidental em relação à necessidade humana de construção de sentido. Para
isso, faremos um breve panorama dos principais pilares que sustentaram a sociedade desde o
início da modernidade até o momento atual e mostraremos como esses axiomas levaram ao
que chamamos de crise espiritual contemporânea.
Em seguida, apresentaremos como essa crise pode ser percebida através dos sintomas
provocados pela fragmentação do ser humano pós-moderno; como a forma que a sociedade
contemporânea se organiza influencia na percepção que o ser humano tem de si mesmo e nas
suas relações. Nossa contextualização estende-se à compreensão do processo de
secularização e pluralismo no Brasil; das características do campo e do senso religioso
brasileiro atual e do lugar que as religiões ocupam hoje na construção de uma democracia.
18
No último capítulo, trataremos da urgência e da importância do diálogo no contexto da
contemporaneidade, como uma possibilidade de superação da crise espiritual e dos episódios
de violência, sobretudo. Convidamos à reflexão sobre como as religiões poderiam contribuir
para a retomada da humanidade e a construção da paz na realidade atual, marcada pelo
individualismo e pela intolerância, considerando as premissas e formas do diálogo inter-
religioso. Em seguida, apresentaremos a necessidade de que as religiões dialoguem, tanto
entre si, como em outros âmbitos da sociedade, promovendo a construção de sentido humana,
através do diálogo com as diversidades. Esse diálogo necessário deve estar sustentado por
uma ética que privilegie a importância da alteridade e que reconheça o papel fundamental de
uma educação e de educadores que se orientem em prol de uma formação humana integral e
em constante abertura dialogal.
Por fim, tendo em vista a necessidade de uma práxis dialogal, mostraremos algumas
características específicas da realidade brasileira, um espaço que se mostra como
possibilidade tanto de encontros quanto de tensões, que necessita, portanto, de consciência e
comprometimento, para que consigamos favorecer os diálogos em detrimento da violência.
Para Paulo Freire (2011, p.52), “a práxis, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para
transformá-lo”, portanto, apresentaremos também algumas iniciativas de diálogo inter-
religioso no nosso contexto e faremos a apresentação e análise de um espaço virtual que se
propõe a ser um espaço de conhecimento transdisciplinar acerca das religiões e de diálogo
inter-religioso.
19
2 O SENTIDO DO SER HUMANO
Neste primeiro capítulo abordaremos uma ontologia do ser humano a partir da
Psicologia Fenomenológica. Detalharemos alguns conceitos da estrutura humana que
consideramos pertinentes aprofundar, para que possamos alcançar o nosso objetivo de
compreender se, e como, o diálogo inter-religioso pode contribuir para que as pessoas
encontrem sentido em suas vidas. As categorias detalhadas serão a abertura à transcendência,
a dimensão espiritual do ser humano e o conceito de experiência. Todas essas categorias serão
apresentadas, tendo em vista o papel fundamental da espiritualidade na construção de sentido
da pessoa humana.
Quando tentamos responder à pergunta “o que nos faz humanos?”, buscamos
identificar uma estrutura que nos caracterize e nos diferencie dos outros seres. Não com o
objetivo de eliminar a diversidade humana, pois “cada pessoa tem suas características
individuais, ainda que haja uma estrutura em comum com todos; todavia, cada um vive de
forma absolutamente pessoal as suas experiências” (ALES BELLO, 2004, p. 133), mas com o
objetivo de, tendo em vista a estrutura humana universal, pensar maneiras de favorecer o
dinamismo propriamente humano, para que cada pessoa possa se expressar de maneira única
diante do mundo e responder ao que a vida lhe propõe, dando maior sentido à sua existência.
Para atingir o nosso objetivo de compreender o ser humano através de uma abordagem
antropológica, primeiro apresentaremos sua estrutura transcendental, dimensões corpórea,
psíquica e espiritual, a formação da consciência de si e a construção de identidade e
alteridade. Em seguida, faremos uma leitura fenomenológica sobre a busca de sentido,
apresentando os conceitos de religião e espiritualidade; espiritualidade antropológica;
liberdade e responsabilidade; solidão e silêncio. Por último, trabalharemos o conceito de
experiência como núcleo para o diálogo e a busca por sentido, onde apresentaremos as
categorias de experiência religiosa e experiência de Deus; experiência elementar e empatia;
formação da pessoa; pessoa e comunidade.
2.1 Uma visão da Psicologia Fenomenológica sobre a estrutura humana
Responder à pergunta sobre o que nos faz "seres humanos" exige uma investigação
existencial. Não podemos falar de uma estrutura transcendental - que também nos constitui -
somente através de conceitos, mas também e principalmente através de observação. Cada
pessoa vê ou entende as coisas segundo sua subjetividade: “o real não pode simplesmente ser
20
pensado de fora, o real deve passar pela mediação da subjetividade, que é a verdadeira
reveladora do real” (TREVISOL, 2014, p. 13). Sendo assim, a fenomenologia torna-se a
abordagem mais apropriada para a nossa pesquisa, pois ela tem como pressuposto resgatar o
humano nas investigações científicas. Usaremos uma definição apresentada por Ales Bello,
uma grande estudiosa da obra de Husserl3, para explicar melhor as contribuições da
perspectiva fenomenológica para a compreensão do ser humano. De acordo com esta autora,
Quando se fala em pessoa, na maioria das vezes, inclusive no âmbito das psicologias
que se autodefinem como alternativas, tais como as abordagens holísticas e
transpessoais da atualidade, dever-se-ia também levar em conta o aspecto espiritual
do ser humano, e não apenas a dimensão psíquica, coisa que não acontece. Pelo
contrário, a psicologia fenomenológica se caracteriza pela insistência na dimensão
espiritual, e recorre uma antropologia filosófica que evidencie a estrutura da pessoa.
Com relação a todas as outras posições filosóficas e psicológicas, a novidade na
perspectiva fenomenológica é a modalidade de alcançar os níveis do corpo, da
psique e do espírito através das vivências. (ALES BELLO, 2004, p. 112).
Essa definição do ser humano, constituído pelas dimensões corpórea, psíquica e
espiritual, vem da fenomenologia, em contraponto ao dualismo positivista - com raiz no
pensamento cartesiano, que separa o ser humano em mente e corpo e coloca o pensamento
como soberano. De acordo com Ales Bello (2004), a fenomenologia husserliana propõe uma
visão de homem e de mulher que considera o ser humano na sua dimensão metafísica: “toda
análise que ele [Husserl] propõe, através do processo de redução à essência ou redução
transcendental, visa entender como o ser humano é feito.” (ALES BELLO, 2004, p. 129).
Husserl introduz o conceito da busca pela essência do ser humano em sua estrutura e em cada
momento vivido, trazendo a noção de consciência como fundamental para a compreensão do
mesmo.
Essa concepção da psicologia fenomenológica busca perceber um aspecto do universal
nas particularidades, pois considera que a expressão do eu é particular e universal ao mesmo
tempo e o faz identificando os movimentos do sujeito no processo de constituição do seu
próprio mundo. De acordo com essa concepção, quais seriam as estruturas que nos fazem
humanos?
3A fenomenologia, enquanto uma corrente filosófica, foi fundada por Edmund Husserl (1859-1938). Este autor,
pretendia, através da fenomenologia, criar um novo método de pesquisa, em contraponto ao positivismo
cientifico da época, sobretudo nas ciências humanas.
21
2.1.1 Estrutura transcendental: abertura para fora e para dentro de si
O ser humano é aquele que faz investigação – sujeito da pesquisa – e também aquele
que pode ter a si mesmo como objeto de investigação. Essa consciência possibilita a cada
pessoa capacidade de refletir sobre as coisas e sobre si mesmo. Mas antes mesmo da
percepção da consciência sobre eu, sobre quem eu sou, eu já sou. Não é o fato do ser humano
pensar que fundamenta o seu ser, mas o fato dele ser, antes mesmo de pensar sobre ele.
A consciência de abertura é algo fundante do ser humano. Nós somos sujeitos porque
temos esse movimento contínuo de busca, denominado de estrutura transcendental, onde
transcendente seria o que está fora e transcendental aquilo que transcende o objeto, mas serve,
também, para conhecê-lo. Ou seja, tudo aquilo que temos dentro (a priori), que serve para
conhecer o que tem fora, é transcendental. É por isso que nós temos a capacidade de
questionar a nossa própria capacidade de questionar. Isto pode ser levado à condição do
infinito, é o que possibilita o aprofundamento do ser.
Essa característica do ser humano, de ser um ser que interroga e que se interroga, é
denominada por Giussani (1997) de senso religioso. E, de acordo com ele, essa característica
não pode ser eliminada.
Existem perguntas que estão ligadas à própria raiz do nosso agir humano: ‘porque
vale a pena viver? Qual é o significado da realidade? Que sentido tem a existência?
O senso religioso está exatamente no nível destas perguntas. Elas são expressões de
todas as pessoas, mesmo aquelas que negam o valor teórico e filosófico de tais
perguntas. [...] O senso religioso é uma dimensão de todo e qualquer gesto, de todo e
qualquer minuto da existência. Trata-se de uma energia que dirige o fim das nossas
ações para uma determinada direção. (GIUSSANI, 1997, p. 18).
Esses questionamentos são possíveis porque o ser humano possui uma capacidade de
transcendência que se volta para fora e para dentro de si mesmo (RAHNER, 1989). Essa
capacidade de transcender, de ter uma experiência reflexiva que nos permite sair de nós
mesmos para ter uma dimensão existencial da nossa própria vida, revela a própria estrutura
humana.
Aprioridade e abertura essencial. A estrutura do sujeito é antes ela mesma estrutura
apriorística, ou seja, ela constitui lei prévia que regula o que e a maneira como algo
pode anunciar-se ao sujeito que conhece. Como um buraco da fechadura constitui lei
que determina qual chave lhe serve, mas precisamente por isso revela também algo
da própria chave. (RAHNER, 1989, p. 31).
22
Essa estrutura transcendental permite à pessoa apreender os significados da realidade e
reconhecer o Mistério presente em cada momento. Ela é possível, pois o ser humano possui
uma dimensão espiritual, mas a consciência de não se reduz ao espírito, ela diz respeito ao
todo – corpo, psiqué e espírito: “isso implica que a consciência não é um lugar físico, não é de
caráter espiritual ou psíquico, mas é um ponto de convergência das operações humanas, que
nos permite dizer o que estamos dizendo ou fazer o que fazemos como seres humanos.”
(PINTO, 2013, p. 183).
Essa consciência de permanece nos acompanhando o tempo inteiro. Trata-se de uma
consciência que determina o nosso modo de nos relacionarmos com tudo, por causa dessa
abertura que possuímos tanto para o interior quanto para o exterior. Rahner (1989) faz ainda
uma distinção entre consciência de e consciência para, sendo a primeira uma consciência que
trata a consciência em relação às escolhas que fazemos no nosso cotidiano e, a segunda, a
consciência da somatória de todas essas escolhas e da direção que elas apontam na nossa vida.
O ser humano possui a originalidade de refletir sobre sua própria existência, mas para
que ele possa tematizar sobre algo, é necessário que tenha existido um contato anterior à
reflexão: “todos nós somos sujeitos e existe uma estrutura comum entre todos nós, que é dita
transcendental. E indica que nós temos dentro de nossa estrutura algumas potencialidades, ou
vivências, que ativamos no contato com a realidade externa.” (ALES BELLO, 2004, p. 95).
Existem vários modos de conhecer e de entrar em contato com o mundo. Alguns deles
são os nossos pensamentos, sensações, emoções e sentimentos. E como esse contato humano
com o mundo exterior se processa na realidade?
2.1.2 Dimensões constituintes do ser humano
A vida é um processo em constante expansão, que se dá através da articulação entre as
dimensões biológica, psicológica e espiritual.
A corporeidade está especialmente representada pelas disposições genéticas, pelo
sensorial e pela sexualidade, compondo, com a intencionalidade, o corpo vivido; o
psiquismo está especialmente presente na possibilidade de se ter presentes a
institualidade, a percepção, as emoções, os sentimentos, a cognição, a inteligência, a
memória, a atenção, compondo a apropriação da realidade e o senso de identidade, e
influenciando fortemente o comportamento; a espiritualidade está especialmente
presente na possibilidade de hierarquização dos valores (ética), nas decisões, na
reflexão profunda sobre a existência e sobre os impulsos psíquicos, e,
fundamentalmente, na necessidade que tem o ser humano de tecer um sentido para a
sua vida, de ter um bom motivo e um horizonte para continuar vivendo. (PINTO,
2013, p. 683).
23
O conhecimento do mundo e de si mesmo se inicia através do corpo, sendo este, ao
mesmo tempo, limite e abertura para o mundo e também espaço onde emerge a nossa
percepção de afeto. O ser humano se estrutura através do afeto que recebe desde o primeiro
dia de vida (muitos dizem que ainda no útero) e isso se dá, principalmente, através do contato
com seu corpo, tornando assim, o toque físico a nossa primeira linguagem.
O corpo é o lugar dos sentimentos, da vontade, das tomadas de decisões. O corpo
não é a prisão da alma, mas é o que torna a pessoa visível e a coloca em contato
direto com as coisas e com os outros seres humanos. Pelo corpo é possível penetrar
na experiência dos outros seres humanos e no seu ‘mundo’ interior. Quando se vê
uma pessoa sorrindo ou chorando, olhando a expressão facial, sabe-se o que se passa
com a pessoa. O primeiro elemento que salta aos olhos quando se encontra alguém e
que desperta a atenção é a corporeidade. (ROSA; SILVA, 2015, p. 96).
Inicialmente nos percebemos como sendo nosso corpo, para só depois passarmos à
compreensão de ter um corpo. “O foco central da existência humana é que o ser humano
nasce corpo biológico, se exterioriza, mas, ao dar intencionalidade a sua existência no contato
intersubjetivo e na contemplação cósmica, desenvolve suas potencialidades e passa a construir
um mundo com sentido. Isso é propriamente tornar-se humano.” (PANASIEWICZ, 2011,
p.17). Essa intencionalidade se dá primeiro através do corpo, pois mesmo que ainda não
tenha desenvolvido uma linguagem formal, ali acontece uma apreensão do outro e uma
expressão de si mesmo.
Percebemos e somos percebidos pelo outro, primeiramente, através do nosso corpo. A
corporeidade é a nossa primeira dimensão de contato com o mundo e através dela
apreendemos a vida que acontece em nós e fora de nós. Essa apreensão acontece por meio de
três pontos de consciência importantes: a consciência de si; a consciência de sermos
delimitados e, por último, a de compreendermos o outro como diferente.
Nossos primeiros relacionamentos constituem a base do nosso conhecimento. E a
gênese da nossa experiência de humanidade - enquanto criança - acontece principalmente
através do contato físico. É pelo toque que apreendemos (sentimos) o amor quando estamos
recém-nascidos e, através da separação – e da consciência dessa separação - dos corpos, se dá
o início do nascimento do eu. Porém, o corpo humano não é estático, ele é animado por uma
força vital de onde emerge a nossa pessoalidade que, de acordo com Ales Bello (2004),
seriam as nossas dimensões psíquica e espiritual:
O aspecto vital do ser humano se divide em dois grupos de atos: atos que têm
características psíquicas (no sentido de que imediatamente temos uma reação) e dos
que têm capacidade de controlar essas reações (como por ex. a reflexão), que
24
chamamos de atos do espírito. A capacidade de reflexão não é percepção, nem
reação afetiva, sendo ativada pela vontade: ‘eu quero refletir’. O ser humano é um
ser cultural, porque é um ser espiritual, ou seja, é um ser que sabe produzir, que se
expressa no nível que chamamos espiritual. (ALES BELLO, 2004, p. 56).
A dimensão psíquica se encontra entre o corpo e o espírito e é a percepção humana
que interioriza o mundo exterior, a maneira como nós sentimos a nossa realidade e tudo que
nos acontece: nossas emoções, sentimentos, instintos.
Se, por um lado, a presença do mundo através do corpo acontece de forma imediata,
ou seja, ele se apresenta no aqui e agora da história, por outro lado, a presença no
mundo através do psíquico passa a ser mediata. Antes a construção do eu corporal
processava-se na passagem de uma presença natural para uma presença intencional
no mundo. Agora, há a presença do filtro da percepção e do desejo. Aqui, a
passagem do estar-no-mundo para o ser-no-mundo provoca a interiorização do ser
humano. Seu mundo interior começa a aflorar cada vez com maior intensidade. É o
emergir da sua consciência. (PANASIEWICZ, 2011, p. 17).
O psiquismo dinamiza-se através da maneira como a realidade ressoa dentro de cada
pessoa - a subjetivação do real – quando tornamos nosso aquilo que está fora. Essa
ressonância é registrada através da nossa afetividade. Segundo Giovanetti4(2006), existem
quatro formas de registro da nossa afetividade: 1) prazer, que seriam as sensações agradáveis;
2) emoção, percebidas através do medo, susto, raiva, cólera; 3) sentimentos, sensações mais
duradouras, que implicam a representação do outro e 4) estados de ânimo, como a tristeza e
alegria.
A fragmentação da vida e a falta de afeto provocam abalos no nosso psiquismo, pois
não nos estruturamos psiquicamente sem afeto. De acordo com Bowlby (2006), o afeto
recebido na primeira infância é de extrema importância para a formação psíquica do ser
humano, tendo importância crucial para o seu desenvolvimento, já que “muitas das mais
intensas emoções humanas surgem durante a formação, manutenção, rompimento e renovação
de vínculos emocionais.” (BOWLBY, 2006, p. 98). O afeto, ou a falta dele, tem importância
decisiva na formação da personalidade, podendo até mesmo influenciar no desenvolvimento
de doenças psiquiátricas futuras:
Foi sistematicamente apurado que duas síndromes psiquiátricas e duas espécies de
sintomas associados são precedidos por uma elevada incidência de vínculos afetivos
desfeitos durante a infância. Personalidade sociopática e a depressão, a delinquência
e o suicídio. (BOWLBY, 2006, p. 101).
4 Aula ministrada pelo Prof. Dr. José Paulo Giovanetti, no curso de especialização em Psicologia Existencial e
Gestalt, na FEAD, em Belo Horizonte, no ano de 2006. José Paulo Giovanetti é graduado em filosofia e
psicologia, possui mestrado, doutorado e pós-doutorado em psicologia.
25
[...] Seja qual for o primeiro padrão a se estabelecer é esse que tende a persistir. Esta
é uma das principais razões por que o padrão de relações familiares que uma pessoa
experimenta durante a infância se reveste de uma importância tão decisiva para o
desenvolvimento de sua personalidade. (BOWLBY, 2006, p. 141).
Ter consciência desse dinamismo humano coloca-nos diante do desafio de refletir
sobre as nossas relações e os valores sobre os quais estamos alicerçando a nossa sociedade e o
cuidado com as nossas crianças. Nas palavras de Boff (2009, p. 93), precisamos “conferir
centralidade ao que é mais ancestral em nós, o afeto e a sensibilidade. [...] Com isso não
desbancamos a razão, mas a incorporamos, no seu aspecto autoreflexivo, como
imprescindível para o discernimento e a priorização dos afetos, sem substituí-los”. Com essa
afirmação, começamos a vislumbrar a dimensão espiritual do ser humano.
As duas primeiras experiências – corpórea e psíquica – são assumidas pelo espírito,
possibilitando que ele se afirme, mantenha e aprofunde sua interioridade. É no
espírito que a unidade do ser humano (ontológica) torna-se realidade. É pelo espírito
que o corpo e psiquismo tornam-se transcendentais e é pelo corpo e pelo psíquico
que o espírito torna-se imanente, ou seja, participa do mundo. [...] A dimensão
espiritual possibilita olhos para que o ser humano reveja, reconfigure e ressignifique
fatos e acontecimentos de sua vida passada e olhos para enxergar com utopia o
futuro que se vislumbra. (PANASIEWICZ, 2011, p. 19).
A capacidade de refletir e analisar a realidade não pode ser considerada superior ao
mundo que se apreende através das afetividades (psiquismo), mas a dimensão espiritual é
fundamental para ajudar a compreender o que sentimos e discernir sobre qual atitude tomar
em relação a esse sentimento. “Através do espírito, a pessoa toma consciência e se posiciona
diante dos aspectos psíquicos e utiliza seu corpo como instrumento ao seu dispor,” (ROSA,
SILVA, 2015, p. 98), para se realizar. Isso fica evidente, por exemplo, no contexto das mães
em período de puerpério ou de um casal apaixonado. Eles precisam discernir sobre qual
atitude tomar em relação ao que sentem. Não se trata apenas de seguir o que sentem, pois se
fosse assim as mães simplesmente cederiam ao cansaço físico e emocional ou uma pessoa
apaixonada iria em direção ao ser amado, independente do contexto.
A nossa psique funciona como um impulso, uma força mobilizadora e a nossa
espiritualidade seria responsável por direcionar essa força de acordo com os nossos valores.
Por isso, não devemos negar nem duvidar daquilo que apreendemos através dos sentidos, mas
refletir sobre o que apreendemos, tanto através das sensações corpóreas como através dos
sentimentos, e permitir que um sentido ajude na compreensão do outro, sem simplesmente
tentar controlar, negar ou explicá-los isoladamente. O ideal seria que, através da observação e
26
da reflexão sobre nossos sentimentos e sensações, pudéssemos dar-nos conta dos nossos
limites, potências e até mesmo das contradições, permitindo a emergência de um eu mais
consciente de si.
A dimensão espiritual não é uma parte do ser humano, ela é o que nos permite uma
percepção da totalidade, sendo a responsável, nas palavras de Leonardo Boff, por “colocar
questões fundamentais e captar a profundidade do mundo, de si mesmo e de cada coisa.”
(BOFF, 2002a, p. 56). Tais questões devem ser refletidas sempre em um contexto relacional,
pois as três dimensões humanas se dinamizam e ganham unidade no social, como pode ser
ilustrado no seguinte exemplo:
Ao elaborar suas vivências e conferir sentidos ao mundo, singularizando-se, a pessoa
transita entre as diversas dimensões. Para que os conteúdos do psiquismo se
expressem, eles precisam de um lugar que veicule tais reações e as tornem visíveis e
sensíveis, e este lugar é o corpo. A própria percepção tem sua origem na
corporeidade, nos sentidos. No entanto, para que uma pessoa avalie como reais suas
percepções, é preciso que exista um espectador, alguém com quem compartilhar o
fenômeno vivido. É preciso um reconhecimento, pois o homem não se faz sozinho, e
sim na coexistência. Paralelamente a este processo, a pessoa constitui valores e
crenças, exercendo a vontade, a liberdade e a responsabilidade, dentro de seus
limites. Assim, novos sentidos são construídos e decisões são tomadas sobre a
própria vida. Há portanto, uma inseparabilidade das quatro dimensões humanas: o
homem é de fato um ser biopsicossocial e espiritual, construindo-se de forma
integrada. (LUCZINSKI; ANCONA-LOPES, 2010, p. 77).
Essa articulação entre as dimensões corpo, psique e espírito ganha conteúdo no social,
através da dimensão relacional. Sobre isso, Schillebeeckx (1994, p. 73) diz, inclusive, que “a
nossa estrutura pessoal mais profunda é social. O homem é socializado desde a infância, antes
mesmo da consciência pessoal”. Tendo em vista que as nossas vivências se completam nesses
quatro movimentos, como se dá o processo de reconhecimento de si?
2.1.3 O aspecto dialógico do reconhecimento de si
O outro ocupa um papel fundamental no processo de estruturação humana, pois o ser
humano não consegue se conceber enquanto um Eu, se não estiver em relação com um Tu.
Esse sentido que Buber (2001, p. 32) atribuiu ao conceito de relação, “aliado à radical
distinção ontológico-existencial, é uma aquisição que terá profundas influências para a
abordagem da existência humana. Não se pode mais prescindir destas reflexões em qualquer
perspectiva que se tome do humano, seja na antropologia filosófica ou em ciências humanas.”
Essa nossa exigência de ser, segundo Mahfoud (2012), é uma exigência que não objetiva
27
autonomia, mas ao contrário, se trata de uma exigência radical, que depende do outro para se
realizar.
Para ser, dependo: dependo de que alguém tenha me criado, mas também de que
alguém me receba no mundo humano. Que a existência de minha pessoa faça
sentido, não depende só de mim mesmo: não basta um sentido que fosse válido
somente para mim mesmo; o sentido da minha existência se refere à minha presença
para alguém, no mundo, na história. A formulação do sentido da minha existência
depende de que ela faça diferença num certo contexto, de que faça diferença, de que
eu deixe minha marca. Sem ser recebido no mundo humano, eu não teria condições
de exercer meu dinamismo próprio, não chegaria a ser eu mesmo. (MAHFOUD,
2012, p. 55).
A capacidade de fazer perguntas acerca da própria existência e de se interrogar sobre
o sentido da vida diferencia a pessoa humana dos outros seres existentes no mundo. Cada ser
humano possui uma identidade que é capaz de dizer quem nós somos e nos diferenciar das
outras pessoas. Essa identidade não é nem estática, nem totalmente mutável. Nossa identidade
é formada, ao mesmo tempo, por uma identidade idem e uma identidade ipse5, sendo a
primeira aquela parte de nós que permanece intacta, fixa, apesar do passar dos anos, e a
segunda, aquela nossa parte que se modifica a partir dos acontecimentos que vivemos.
A consciência da nossa existência e finitude nos coloca em relação com algo que é um
mistério gerador de angústias e questionamentos sobre nós e nossa maneira de viver, mas que
ao mesmo tempo se estabelece como uma possibilidade de perceber quem somos e nos
fazemos constantemente. A construção identitária, portanto, não cessa de acontecer até o fim
da vida e se dá através de uma constante interação entre o conteúdo subjetivo interno e os
acontecimentos externos. A unidade básica e estrutural do ser humano é dinâmica e se faz nas
relações. Sendo que, nessa concepção, tanto o agir pessoal quanto o sistema social se
influenciam mutuamente.
O eu individual aparece nas filosofias ocidentais predominantes da subjetividade e
em consequência na maioria das formas da moderna sociologia como algo que está
fora da sociedade, vive em espaço interior, enquanto de outra parte, a sociedade,
muitas vezes inimiga, é colocada fora dos indivíduos: como duas grandezas
autônomas, que, todavia, têm algum contato entre si. Põe-se então aí todo o peso ou
no interior pessoal do homem ou na sociedade. Nos dois casos, um dos polos acaba
sendo de segunda ordem. (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 72).
Esse dinamismo humano, de ser ao mesmo tempo agente passivo e ativo em relação ao
social, evidencia o fato de que não somos seres prontos a serem descobertos e nem seres
5 O conceito de identidade idem e identidade ipse foi apresentado e elaborado por Paul Ricouer, em sua obra “O
si-mesmo como um outro”, em 1991.
28
totalmente construídos. Diariamente nos fazemos e refazemos, através de escolhas e ações.
Compreender que o ser humano é um ser em constante mutação exige que superemos essa
polaridade entre ser humano e sociedade e, além disso, que reconheçamos a presença de uma
alteridade presente dentro de nós.
É preciso destacar, aqui, algo de muito importante: no Eu sou eu já existe uma
dualidade implícita – em seu ego, o sujeito é potencialmente outro, sendo, ao mesmo
tempo, ele mesmo. É porque o sujeito traz em si mesmo a alteridade que ele pode
comunicar-se com outrem. É por ser o produto unitário de uma dualidade
(reprodução por cisão, nos unicelulares; por encontro de dois seres de sexos
diferentes, na maioria dos seres vivos) que ele traz em si a atração por um outro ego.
A compreensão permite considerar o outro não apenas como ego alter, um outro
indivíduo sujeito, mas também como alter ego, um outro eu mesmo, com quem me
comunico, simpatizo, comungo. O princípio de comunicação está, pois, incluído no
princípio de identidade e manifesta-se no princípio de inclusão. Como consequência
do princípio de exclusão, há sempre uma incomunicabilidade do que existe de mais
subjetivo em nós; mas, graças à linguagem, podemos comunicar, pelo menos, nossa
incomunicabilidade. (MORIN, 2003, p. 123).
A alteridade nos constitui e deixa evidente a importância do conhecimento de si e
também do reconhecimento de que, apesar de todo conhecimento, carregaremos sempre uma
alteridade em nós (intra), a ser descoberta diariamente. A consciência dessa alteridade em nós
pode favorecer o reconhecimento do outro, na mesma medida em que reconhecer o outro em
sua alteridade dinamiza o aprofundamento do conhecimento de si, em um processo incessante
e de mútua implicação. O indivíduo só se torna pessoa através do outro.
Portanto, o reconhecimento desta alteridade constitutivamente presente em nós abre
caminho para aprofundar o relacionamento com o outro e com o mundo. O que se
coloca em jogo não é o auto-centramento em que o outro é ocasião para
autoafirmação, objeto a ser disputado/controlado/dominado ou alguém que me é útil.
O reconhecimento de um ponto que nos permite dizer “eu” nos dá condições de
dizer “tu” em termos radicais. Daí emerge sintonia entre “nós”, a um só tempo
dramática (pois cada um precisa trilhar o seu caminho), surpreendente (pois é uma
proximidade na diferença) e transformadora (pois aquele encontro enriquece a
consciência de quem está nele envolvido). (GASPAR, 2014, p.20).
Para compreendermos a formação da identidade torna-se imprescindível que
reconheçamos que cada pessoa é um ser singular, que possui um jeito próprio de manejar
algumas determinações que lhe são inerentes, tais como as características biológicas, culturais
e familiares. Nunca conseguimos fixar o conhecimento sobre outra pessoa, pois ela sempre
nos escapa nas suas infinitas possibilidades de nos surpreender. Definir o outro seria perdê-lo
em sua humanidade.
29
A socialização primária e secundária são fundamentais na construção identitária e no
reconhecimento da ambiguidade da alteridade que nos apresenta ao outro que existe fora de
nós e, ao mesmo tempo, coloca-nos diante da alteridade que existe em nós.
Destacamos que a forma como se deram os cuidados recebidos pela criança nos seus
primeiros anos de vida, durante a socialização primária, tornam-se variáveis que podem ser
determinantes para o desenvolvimento da criança, no que tange à percepção de si mesma e à
empatia. “A empatia compreende um componente emocional e um cognitivo. [...] Existem
fatores internos e externos que influenciam no desenvolvimento da empatia, sendo os fatores
externos: imitação, estilos parentais e relacionamento entre pais e filho.” (JUSTO;
CARVALHO; KRISTENSEN, 2014, p. 512). Existem práticas parentais que podem ser
realizadas, que ao mesmo tempo que auxiliam a criança a se conhecer, favorecem o
desenvolvimento da empatia. Ou seja, para eu reconhecer que o outro é uma alteridade, eu
preciso, antes, reconhecer os meus sentimentos em toda sua ambiguidade.
Além do reconhecimento de alteridades diante de nós, uma alteridade também se
insinua em nós mesmos. Esse conjunto de exigências e evidências é de algum modo
uma alteridade em nós mesmos e precisa ser respeitada para sermos nós mesmos.
Permanece a possibilidade de ser silenciada, desclassificada, esvaziada, reduzida,
negada; mas se for assim, o sujeito vai contra a si mesmo. Se for ouvida, colocada no
centro, em ponderada, acolhida, afirmada, aí o sujeito pode ser cada vez mais si
mesmo. (MAHFOUD, 2013, p. 117).
Ao mesmo tempo que somos influenciados pelo meio também trazemos algo em nós,
como um dado. O ambiente pode favorecer o emergir e o florescer disso que já é meu, ou
pode dificultar e até mesmo impedir o seu reconhecimento e desenvolvimento, mas não pode
suprimi-lo. Ambientes e sociedades opressoras dificultam o reconhecimento e o emergir do
eu, mas mesmo que não tenhamos total consciência de quem realmente somos, não deixamos
de sê-lo. Ao colocarmos um peso muito grande no indivíduo, desconsiderando a força do
social e das relações para o conhecimento de si, reforçamos a perpetuação de uma construção
subjetiva alienada de si mesmo. Sem conhecimento de que somos seres relacionais, da
importância do outro, da alteridade em nossa vida, não conseguimos avançar no
conhecimento de nós mesmos. Mas como conhecer a nós mesmos, reconhecer a nossa
pessoalidade e, ao mesmo tempo, reconhecer o outro como pessoa?
30
2.1.4 A primazia do outro na formação do eu
A fenomenologia nos propõe uma percepção do mundo que se dá na relação com o
mundo. Não existe um sujeito puro, nem mesmo um objeto puro, nós só existimos na relação
com outro. Não sabemos dizer quem somos se não for em relação a algo ou alguém, uma
dependência originária que leva a uma necessidade constitutiva de que o outro dê retorno
sobre nós mesmos.
A noção do outro ressalta que a diferença constitui a vida social. À medida que esta
se efetiva através das dinâmicas das relações sociais. Assim sendo, a diferença é,
simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito. A
experiência da alteridade e a elaboração dessa experiência leva-nos a ver aquilo que
nem teríamos conseguido imaginar, dado a nossa dificuldade em fixar nossa atenção
no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos evidente. (LEAO,
2015, s/n).
Somos seres únicos, mas nos estruturamos inicialmente a partir de um olhar externo,
sendo o outro sempre anterior a nós. A consequência disso é que a percepção que temos de
nós mesmos está estreitamente relacionada à maneira como somos percebidos. As pessoas só
conseguem reconhecer os outros como pessoas, se antes, elas se reconhecerem (existirem),
enquanto um eu, contudo, esse eu não se define sozinho, ele é atravessado por intervenções
sociais. A percepção que temos de nós mesmos, desde bebês, é marcada por uma dependência
que sofre influências genéticas e socioculturais e depende, principalmente, da forma como
nosso corpo é cuidado e também do contexto linguístico em que estamos inseridos, do
conteúdo das palavras que nos são direcionadas, sempre carregadas de intencionalidade.
Existe um dinamismo intrínseco de formação, uma consciência de si que se estrutura
na relação com o outro desde o nosso primeiro dia de vida.6 A consciência da nossa
“individualidade surge verdadeiramente para nós apenas quando encontramos outros seres em
nosso mundo e nos distinguimos deles”. (EDWARDS, 1995, p. 40). Não vivemos, nem
sequer sobrevivemos, se outra pessoa não se responsabilizar pelos nossos cuidados. Sem a
afirmação do outro, a pessoa não se conhece. A consciência de si e do outro é uma
responsabilidade recíproca, que brota da fecundidade de cada encontro que estabelecemos
desde o nascimento.
6 "O bebê vive numa esfera psíquica, passiva: chora porque está se sentindo mal. Mesmo o adulto reage por
sentir uma dor: é um “acontecimento cego”. Também para os animais acontece assim. Até cinco meses, o bebê
vive em acontecimentos cegos; com o passar dos anos, vai amadurecendo a capacidade de se colocar em relação,
por exemplo, por meio da linguagem. Perguntar: “por que isso e aquilo e aquilo”. É uma busca de sentido, que
indica a manifestação de uma vida espiritual". (ALES BELLO, 2015, p. 61).
31
O processo de conhecimento de si, através da nossa dimensão espiritual, permite
romper com o pensamento dualista que gera culpa, estagnação, ódio, alienação. Essa
compreensão do ser humano na sua totalidade mantém a abertura ontologicamente humana de
busca em uma constante reflexão sobre si mesmo e sobre a realidade. Contribui para a
percepção da nossa humanidade, com todos os seus limites, e abre a possibilidade de
admirarmos a beleza do limite e da diversidade presente em toda alteridade.
O que significa que o outro é um ser humano? Através da entropatia reconheço que é
um outro como eu, e procuro entender o que há dentro deste outro. Posso também
negar, no sentido de ver que o outro é outro, mas não querer aceitar. E isto é
preconceito, faz dizer: “não é”. E pode ser tão forte a ponto de não reconhecer o
outro como ser humano. Isto é realmente muito importante para o relacionamento
entre as culturas. Frequentemente não queremos reconhecer o outro por ser
diferente. A diferença cria para nós uma situação psicológica de insegurança; todas
as nossas seguranças são colocadas em crise. Então a entropatia pode ser negada em
nível psicológico, isto é, reconhecer, mas não querer reconhecer, que o outro seja
outro. Uma reação conduz à negação da entropatia mesma: se dá então, uma luta
entre vivências. Para superar isso, é necessário ir a um outro nível, ao nível
espiritual. Ou seja: ‘não me agrada, mas é assim’. Para dizer ‘é assim’ preciso
realizar uma ação intelectual e voluntária, de controle, sobre o momento psíquico.
Porque a reação pode acontecer para todos, todos nós vivemos a reação, sobretudo
no relacionamento com culturas diferentes. Todos os dias nós encontramos pessoas
diferentes e nossa primeira reação – estou dizendo até em sentido pessoal – é a de
afastar o diferente. Para não fazer isso, é necessário ir além e dizer ‘esse é um ser
humano, tem o seu sofrimento, a sua vida difícil aqui’. Porque há diversas
possibilidades: diferença, estranhamento e alteridade; o diferente, o estranho e o
outro. Encontro alguém que é diferente, que não é da minha cultura, a diferença se
torna tão forte, que ele se apresenta a mim como estranho, então o afasto. Como
podemos chegar a dizer que se trata de uma alteridade – e não somente da
diversidade ou estranhamento? Há uma diferença de cultura, é claro, mas também
uma unidade na alteridade: ele também é ser humano. [...]. A alteridade se reconhece
através da entropatia, mas depois, em última análise, é preciso uma tomada de
posição espiritual. (ALES BELLO, 2004, p. 191).
A nossa vivência só se completa (corpo, psique, espirito e social) em um contexto
relacional e que necessita, portanto, do reconhecimento de uma alteridade. Nós temos uma
estrutura que tem condições de, mas sua potência pode não se realizar. Portanto, é preciso
aprender a tornar continuamente atual aquilo que nós somos em potência, através de uma
reflexão, que seja coerente com a estrutura humana de abertura e de busca por sentido. Que
nos ajude a olhar para o nosso vivido e elaborá-lo, continuamente. E como se dá essa busca
por significação?
32
2.2 Uma leitura fenomenológica sobre a busca de sentido
A estrutura transcendental do ser humano, que tem consciência e que, portanto,
questiona a vida e a sua própria existência, nos leva à afirmação de que a busca por sentido é
genuinamente humana. A experiência de sentido constitui a dimensão mais profunda da vida,
pois todos nós precisamos de uma razão para viver. Berger e Luckmann (2004, p. 15) dizem
que o “sentido nada mais é do que uma forma complexa da consciência: não existe em si, mas
sempre possui um objeto de referência. Sentido é a consciência de que existe uma relação
entre as experiências.” Sendo assim, o sentido se confunde com a construção da nossa
identidade, na medida em que esta última, por seu próprio caráter relacional, solicita uma
elaboração do sujeito sobre tudo o que vivencia e essa elaboração tende a ganhar mais
significado quando consideradas em relação com as outras vivencias.
A construção de sentido é central no ser humano, mas emerge em um contexto social
de seres relacionais. Ela abarca toda a existência e, portanto, é considerada por Clodovis Boff
como anterior a todas as questões humanas, senão a mais importante. Para este autor:
O “problema número um” da humanidade não se põe, decididamente, na ordem
social ou próxima a ela, onde se situam os problemas econômicos (fome,
desemprego, mercado, finanças, globalização, neoliberalismo, capitalismo), ou os
problemas políticos (guerra, terrorismo, democracia, liberdades), ou os problemas
culturais (gênero, mulher, identidades), ou ainda os ecológicos (poluição,
desertificação, efeito estufa). A grande questão se põe, antes, na ordem existencial, e
é aí que se situa precisamente a “questão do sentido”. Essa questão é, por si mesma,
a mais importante em si mesma. É sua própria natureza que lhe dá tal precedência.
É, com efeito, uma questão essencial e profundamente humana, que diz respeito à
vida como um todo e ao destino do ser humano como tal. (BOFF, 2014, p. 566).
A necessidade de sentido pode emergir à partir do psiquismo ou da nossa
corporeidade, mas é elaborada por nossa dimensão espiritual. Ela é que nos permite oferecer
um significado àquilo que sentimos a partir da própria reflexão sobre o vivido. E o sujeito que
emerge dessa elaboração é uma pessoa espiritualmente mais forte, pois a busca de sentido
coincide com a busca pelo próprio ser:
As categorias essenciais que estruturam o ser humano – corpo, psiquismo e espírito-,
possibilitam que ele se realize e construa uma vida feliz. Essas são as grandes razões
da existência humana. Ao buscar construir sua realização e felicidade, ele estabelece
várias relações, que estimulam o encontro consigo mesmo. Cada vez que é
provocado por algo externo a si mesmo, seja por outra pessoa ou por desafios de
outra ordem, o ser humano volta-se para si buscando novas respostas e lapidando
sua identidade. Isso possibilita que a ‘pedra preciosa’ do seu interior brilhe com
mais luz e ilumine os que estão a sua volta. As múltiplas relações que estabelecemos
ao longo da vida, seja no nível econômico, político, social, familiar e religioso,
33
devem ser pensadas e, portanto, mantidas, aprofundadas ou alteradas tendo em vista
esta disposição essencial à realização e à felicidade. (PANASIEWICZ, 2011, p. 27).
Cada pessoa, nos limites oferecidos pelo seu próprio contexto, busca encontrar
elementos que dão razão de ser a sua existência. Trata-se de uma liberdade limitada, mas
ainda sim, uma possibilidade de responder ao que foi proposto por uma situação concreta da
vida com liberdade. Essa busca caracteriza-se como um processo que implica uma
consciência de si como uma totalidade que pode abarcar, inclusive, um sentimento de dor. Ela
possibilita um posicionamento da pessoa diante de cada situação vivida, podendo se tornar um
hábito dinamizador da própria experiência de ser quem somos. “Todos buscamos significado:
dele temos exigência, o vazio de significado exacerba a exigência, assim como um significado
encontrado também dinamiza o sujeito para buscá-lo mais, para estruturá-lo, para criticá-lo”.
(MAHFOUD, 2013, p. 114).
Nesse processo humano de busca por significações, as religiões podem ocupar um
lugar privilegiado, pois na medida em que são fonte de sentido último e totalizante de todas as
experiências concretas que vivemos, cumprem um papel de contribuir para essa busca de
sentido humano. As religiões funcionariam como um norte, oferecendo um horizonte para que
cada situação vivida seja julgada pela pessoa.
2.2.1 Religião como fonte de significado último
De acordo com Giussani (1997, p. 96), as religiões nasceram da tentativa
ontologicamente humana de responder à pergunta: “qual o significado do instante contingente
em relação com o todo?". Sendo a busca desta relação um fenômeno inevitável para a razão
humana, nenhuma definição consegue abarcar por completo a multiplicidade de significações
e papéis que a religião representa para as pessoas e sociedade ao longo da história e em todas
as culturas, podendo ser compreendida tanto em seus aspectos físicos e estruturais, quanto
metafísicos.
Faustino Teixeira (2017), ao abordar a experiência religiosa à partir da perspectiva das
Ciências da Religião, afirma que esta experiência pode ser captada por diversos olhares,
envolvendo campos de saberes distintos que se inter-relacionam e dialogam, permitindo uma
compreensão dinâmica desse fenômeno. “Abordar a questão da experiência religiosa é
adentrar-se por caminhos extremamente complexos e cada vez mais problematizados nesse
tempo de crise das instituições tradicionais de sentido. A própria categoria religião ganha uma
pletora de significados, assim como o campo religioso abrange hoje outros aspectos que não
34
se enquadram precisamente no âmbito das religiões”, tornando a análise dessa experiência na
atualidade ainda mais complexa. De qualquer forma, para este autor, a experiência religiosa
diz respeito ao envolvimento com o sagrado, evocando na consciência questões que tocam o
âmbito essencial do sentido.
O ser humano não consegue ficar sem sentido e ao longo da história, a religião surge
como uma possibilidade de dar sentido a acontecimentos como a morte, doenças e fatos
inevitáveis. Ao responder às perguntas existenciais que povoam a mente e os corações dos
humanos sobre para onde iremos, o sentido da vida e da morte, as religiões se fortalecem
dentro do universo humano, “pois oferecem um escudo contra o terror da angústia e do sem
sentido”. (BERGER, 1985, p. 40).
Faremos uma distinção entre religião e espiritualidade. De acordo com Wolff (2016,
p. 17), o termo “religião apontaria para o aspecto externo da vida do crente (o ato ritualístico,
cúltico, doutrinal), enquanto o conceito espiritualidade mostra a sua interioridade. A
espiritualidade é o coração de uma religião, sem o que esta seria apenas rito sem sentido,
como um corpo sem alma.” Dessa forma, nos ateremos, neste trabalho, aos seus aspectos
internos, pois podemos perceber que, apesar das inúmeras variações relativas às formas
religiosas, existem nelas e independente delas, elementos fundamentalmente humanos, que
dizem de qualidades éticas. Nas palavras de Leonardo Boff (2016, p. 52), “observa-se uma
estrutura comum – até mesmo para quem não a concebe como divina – com dois elementos
fundamentais: ser objeto de interesse último na vida de alguém, ter relação com o nosso ser”.
Além da espiritualidade estar contida nas religiões, considerando seu aspecto ético,
embora a religião não se resuma a esse aspecto, existe uma outra distinção que podemos fazer
em relação à religião, agora no que tange às formas como o ser humano se relaciona com ela.
De acordo com Dalai Lama, o ser humano pode:
Julgo que a religião esteja relacionada com a crença no direito à salvação pregada
por qualquer tradição de fé, crença essa que tem como um de seus principais
aspectos a aceitação de alguma forma de realidade metafísica ou sobrenatural,
incluindo possivelmente uma ideia de paraíso ou nirvana. Associados a isso estão
ensinamentos ou dogmas religiosos, rituais, orações e assim por diante. Considero
que a espiritualidade esteja relacionada com aquelas qualidades do espírito humano
– tais como amor e compaixão, paciência, tolerância, capacidade de perdoar,
contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia – que trazem
felicidade tanto para a própria pessoa quanto para os outros. Ritual e oração, junto
com as questões de nirvana e salvação, estão diretamente ligados à fé religiosa, mas
estas qualidades interiores não precisam estar. Porém, a fé religiosa, exige prática
espiritual. (DALAI LAMA, 2000, p. 33).
35
Essa distinção pode ajudar a compreender o lugar de cada um desses conceitos e seus
possíveis intercruzamentos. Entretanto, não devemos “tornar independentes os conceitos de
religião e espiritualidade, sem considerar sua relação, visto que, do ponto de vista experiencial
- tão decisivo para o que chamamos espiritualidade, as religiões são muito semelhantes, pois
se encontram no que há de profundamente humano. No que tem de profundamente humano,
elas se encontram. Não tendo como separar totalmente espiritualidade, religião e
religiosidade.” (FRANCO, 2013, p. 401).
A forma ou qualidade desse relacionamento do ser humano com a religião pode
produzir processos de subjetivação distintos, indo desde uma mera repetição de ritos, moral,
regras, dependência de favores, hilética, medo, fascinium ou pode ser noética.
Quando, uma experiência religiosa, seja ela impulsionada ou vivida
preponderantemente pela via noética (via intelecto) ou hilética (via dados sensíveis), leva a
uma transformação do sujeito, nós podemos dizer que a pessoa viveu uma experiência de
correspondência totalizante. Uma experiência radical, que alguns autores chamam de
experiência de Deus.
Não é qualquer experiência humana e religiosa que se legitima como experiência de
Deus. Um caminho importante é identificar nas experiências religiosas e espirituais
elementos que qualificam a existência humana, levando as pessoas a viverem uma
plenitude ou sentido radical que lhes dignifique a existência. A religião é boa e
verdadeira, na medida em que serve à humanidade, na medida em que por suas
doutrinas de fé, de ética, seus ritos e instituições, ela promove a identidade humana,
o sentido e sentimento de valor das pessoas. (WOLFF, 2016, p. 28).
Dessa forma, a religião, quando vivida como fonte de significado último, pode ser
oportunidade da pessoa ressignificar a própria vida. A experiência religiosa que brota da
capacidade do ser humano de questionar e buscar por sentido é capaz de dinamizar a
responsabilidade consigo e com o outro, tanto quanto uma vivência religiosa que não é capaz
de tocar o ser humano em sua dimensão ética, pode ser desumanizadora e violenta. Por isso,
para Clodovis Boff,
Deus só funciona como sentido quando é “sentido” existencialmente, ou seja, quando
é experienciado espiritualmente e inclusive seguido eticamente. Assim, o “sentido de
Deus” é condição para o “sentido da vida”. Quanto mais Deus, quanto mais sentido.
Melhor, quanto mais uma fé é experienciada e assumida, tanto mais a vida se enche de
sentido. Ao contrário, quanto mais uma fé se restringe ao plano meramente exterior ou
convencional, tanto mais perde substância significante e deixa de “encher” a vida de
sentido. Por isso, um crente meramente cultural, se não reativar as fontes de sua fé,
sucumbirá à crise de sentido, assimilando-se, assim, a quem “não tem esperança nem
Deus neste mundo”. (BOFF, 2014, p. 568).
36
De acordo com Frankl (1992) no homem verdadeiramente religioso, ser responsável e
ser consciente coincidem. Para este autor, o homem religioso é capaz de assumir a sua vida
como uma missão a ser cumprida. A experiência religiosa está inserida na caminhada por uma
vida plena de sentido, na qual o homem explora a força da sua dimensão espiritual,
permitindo-se ser conduzido por Tu, advertido na dinâmica da própria consciência.
É possível ao ser humano viver uma experiência religiosa, pois ele possui em sua
estrutura uma dimensão espiritual que busca por significado. Por isso podemos falar de uma
espiritualidade como uma condição fundante do ser humano. Essa dimensão espiritual pode
se tornar religiosa, mas isso não é condição para que o ser humano encontre significado para
sua vida. É essa dimensão espiritual, estruturante e, portanto, anterior à experiência religiosa,
que se torna oportuno compreendermos melhor ao falar do sentido.
2.2.2 Dimensão espiritual na perspectiva fenomenológica
A fenomenologia apresenta uma ontologia humana que se mostra de maneira
totalizante, mas que se estrutura sobre as dimensões biopsicossocial e espiritual, sendo a
dimensão espiritual a dimensão que possibilita a elaboração das vivências, a construção de
valores éticos e a capacidade de decidir com liberdade e responsabilidade diante de cada
circunstância da vida.
De acordo com Sberga e Massimi (2013, p. 178), que fizeram uma leitura da estrutura
humana proposta por Edith Stein7, a pessoa que possui um certo domínio sobre si, apesar de
não ter controle total por causa dos mecanismos psíquicos, possui uma espiritualidade
pessoal:
A espiritualidade pessoal significa vigilância e abertura. Vigilância como forma
originária de tomar consciência de si, que lhe permite saber o que se vive e o modo
como se vive. Mas esta consciência não é só a reflexiva, que se realiza por meio da
autoanálise de uma vivência, é também uma luz que ilumina a vida espiritual e lhe
indica direções a seguir. E abertura como possibilidade de dois movimentos: um em
relação a si mesmo, voltado para o mundo interior, e outro, em relação ao tu, voltado
para o mundo exterior.
A partir dessa compreensão da estrutura humana como abertura para ao outro e para a
reflexão, apresentaremos o conceito de dimensão espiritual a partir da perspectiva da
psicologia fenomenológica, fundamentada, principalmente, na dimensão noética / espiritual
7Edith Stein foi discípula de Edmund Husserl e possui uma grande contribuição no campo da fenomenologia,
sobretudo no que tanje à compreensão do ser humano em seus aspectos formativos. (SBERGA, 2014).
37
proposta por Viktor Emil Frankl, que se baseou na fenomenologia enquanto método e visão
antropológica8. O elemento espiritual proposto por este autor acrescenta à pessoa qualidade e
dignidade humana, pois por meio da dimensão noética / espiritual é que se abrem as
possibilidades para falar de sentidos e valores, liberdade e responsabilidade.9
Este autor constituiu a sua abordagem em contraponto às teóricas vigentes em sua
época, início do século XX, que compreendiam o ser humano como um ser determinado ou
pelas forças internas do seu inconsciente ou por forças externas/internas, estimuladoras do
comportamento. A sua terapia atua como uma “análise dirigida à existência, a fim de enfocar
o ser humano em sua dimensão vivida, concreta e, portanto, existencial, uma vez que o
sentido, por essa ótica, não é passível do alcance objetivante e explicativo, só sendo atingido
de modo vivencial [...] Ele compreendia o ser humano como um ser espiritual, que escapa a
qualquer redução ôntica, coisificada ou objetiva.” (LIMA NETO, 2013, p. 221).
Para Frankl (1992), o cerne antropológico do ser humano sintetiza-se em um binômio:
ser consciente e ser responsável, uma vez que o homem é sempre em intencionalidade no
mundo. Ser consciente e ser responsável são duas faces da pessoa humana, duas
características ontológicas do modo de ser humano, pois toda resposta do homem, toda
afirmação da vida é consciente, assim também como toda consciência se dá na afirmação da
vida, na resposta da palavra princípio Eu-Tu proposta por Buber (2001):
O nível espiritual engloba, ainda, a questão do mistério que atravessa as experiências
humanas, apontando para a capacidade de transcendência. O homem sempre
transcende a si mesmo, por estar continuamente voltado para algo ou alguém fora de
si. Nesse movimento, busca também ultrapassar os limites do mundo sensível e
relacionar-se com seres que situa em outra ordem, como deuses, espíritos, energias
cósmicas, entre outros. Buscando significar sua existência, o homem se pergunta
sobre o sentido último da vida ou a que esta se destina, dentro ou além do período de
tempo que a abarca. (LUCZINSKI, ANCONA-LOPES, 2010, p. 76).
Frankl (1992) afirma que o entrelaçamento humano com o absoluto se expressa ao
nível do sentido, na medida em que existem duas possibilidades de sentido: o sentido
encontrado através da dimensão concreta da vida, nas situações cotidianas; e o suprasentido,
que seria um sentido último, capaz de oferecer um sentido para todos os acontecimentos de
8A psicologia fenomenológica utiliza conceitos e concepções vindos de uma tradição filosófica – a
fenomenologia – alterados em linguagem psicológica e colocados em interação com a teoria e prática dos
atendimentos. (LUCZINSKI; ANCONA-LOPES, 2010).
9 O enfoque da possibilidade humana em relacionar-se com o absoluto é uma característica inerente ao espírito, e
é este quem Frankl pretende evidenciar na sua escola psicoterápica. (LIMA NETO, 2013).
38
uma pessoa ao longo da vida.10
De acordo com Lima Neto (2013, p. 227), a espiritualidade
para Frankl pode ser compreendida sinteticamente como “a dimensão propriamente humana
que se abre para o mundo e a religiosidade como a qualidade do espírito que está em relação
com a totalidade, constituindo-se como a palavra dirigida ao absoluto”.
De acordo com Frankl (1991), existem três possibilidades básicas para encontrar o
sentido na sua própria vida e criar valores. A primeira seria quando fazemos ou criamos algo,
a segunda seria quando vivenciamos uma experiência de amor e a terceira seria quando, na
impossibilidade de conseguir mudar uma situação dolorosa que vivemos, optamos por
transformar como percebemos aquela situação. O próprio autor nos esclarece melhor essas
definições:
A primeira, o caminho da realização, é bastante óbvio. A segunda e a terceira
necessitam de uma melhor elaboração. A segunda maneira de encontrar um sentido
na vida é experimentando algo – como a bondade, a verdade e a beleza –
experimentando a natureza e a cultura ou, ainda, experimentando outro ser humano
em sua originalidade única – amando-o. [...] Através do seu amor a pessoa que ama
capacita a pessoa amada a realizar estas potencialidades. Conscientizando-a do que
ela pode ser e do que deveria vir a ser, aquele que ama faz com que estas
potencialidades venham a se realizar. [...] A terceira forma de encontrar um sentido
na vida é sofrendo. [...] Quando já não somos capazes de mudar uma situação,
somos desafiados a mudar a nós próprios. [...] É preciso deixar perfeitamente claro,
no entanto, que o sofrimento não é de modo algum necessário para encontrar
sentido. Insisto apenas que o sentido é possível mesmo a despeito do sofrimento –
desde que, naturalmente, o sofrimento seja inevitável. (FRANKL, 1991, p. 100).
A espiritualidade caracteriza-se, portanto, como uma dimensão humana e existencial
que, por ser aberta ao transcendente, pode se relacionar com a totalidade, tomando-a enquanto
um horizonte de sentido. Exatamente por não possuir ligação direta com nenhuma religião é
que a “espiritualidade, como forma particular de sistema de crenças, pode apresentar inclusive
uma desvinculação da ideia de Deus, podendo existir tanto em contextos religiosos quanto em
ateus.” (FRANCO, 2013, p. 401).
Essa compreensão da espiritualidade, como uma dimensão humana que possibilita ao
ser humano aprofundar sua própria vida através de questionamentos e reflexões, é o que
permite que ela atinja crentes e não crentes. Possibilita também que aquelas pessoas que
pertencem a uma religião possam aprofundar e até mesmo questionar a própria fé,
10
"O sentido último seria a configuração de todas as possibilidades realizadas, de todas as gestaltens
desdobradas ao longo da existência de uma pessoa particular e, o qual a pessoa estaria direcionada. Seria como
se todas as configurações de possibilidade constituídas enquanto gestaltens, e, portanto, enquanto sentidos,
reunidas, chegassem a uma ultima configuração. O horizonte para o qual a autotranscendencia humana aponta
desde os primeiros sentidos desvelados na vida de cada pessoa. Portanto, em cada primeiro sentido desdobrado,
por meio das primeiras palavras princípio Eu-Tu proferidas, pois o próprio desdobramento de sentido dar-se com
um momento dialógico, já se mostra presente o Tu eterno. A instância do absoluto surge como horizonte, sempre
presente desde o primeiro sopro espiritual da pessoa humana". (LIMA NETO, 2013, p. 227).
39
compreender suas tradições, dogmas e inclusive, questioná-los11
. A espiritualidade é a
dimensão que nos impede de nos deixar ser guiados apenas por nossos instintos e
preconceitos, abrindo a possibilidade para questionar toda a nossa existência, inclusive o que
sentimos e desejamos.
Portanto, a ideia corrente hoje em termos de espiritualidade é a de que ela está
vinculada a uma busca pessoal de sentido, com ênfase no aperfeiçoamento do
potencial humano. E isso pode envolver ou não valores religiosos, mas de toda
forma envolve concepções de sentido ligadas ao exercício da fé. A fé seria o
elemento unificador dessas instâncias aqui tratadas, e a palavra fé está sendo
abordada em seu sentido amplo, como elemento que dá sentido à vida, ou tomada de
posição básica diante da vida, diferentemente da fé religiosa, que implica a
“afirmação pelo menos implícita de um absoluto, incondicionado, transcendente,
fonte última de sentido, em quem se deposita confiança”. (FRANCO, 2013, p. 401).
Neste trabalho nós usaremos o conceito de espiritualidade como uma dimensão
antropológica e, portanto, fundamental para o ser humano conhecer a si mesmo, suas crenças,
seus valores, sua sociedade e o outro, que possui outra crença e outros valores e ambos
buscam pelo sentido da vida. “Espiritualidade tem a ver com experiência, não com doutrina,
não com dogmas, não com ritos, não com celebrações.” (BOFF, 2016, p. 43). No seu sentido
antropológico fundamental, “não precisa ter uma inscrição num credo ou instituição religiosa.
Ela apresenta a dimensão de profundidade e a condição humana como condição espiritual.”
(BOFF, 2002a, p. 57). Leonardo Boff acrescenta ainda a importância dessa dimensão
espiritual para a nossa percepção de totalidade.
Colocar as questões fundamentais e captar a profundidade do mundo, de si mesmo e
de cada coisa constitui o que se chamou espiritualidade. Não é uma parte do ser
humano. É aquele momento pleno de nossa totalidade consciente, vivida e sentida
dentro de outra totalidade maior que nos envolve e nos ultrapassa: o universo das
coisas, das energias, das pessoas, das produções histórico-sociais e culturais. Pelo
espírito captamos o todo e a nós mesmos como parte e parcela desse todo. O espírito
nos permite fazer uma experiência de não dualidade. (BOFF, 2002a, p. 56).
A espiritualidade, como caminho de interioridade e aprofundamento, não precisa
coincidir, necessariamente, com religiosidade e busca por sentido último. “Em sua
espiritualidade, a pessoa religiosa procura Deus em si mesma e a si em Deus, e quanto mais
11
Antropologicamente, entende-se por espiritualidade a expressão do espírito de uma pessoa, suas motivações,
seus ideais, suas utopias. É a forma como ela cultiva sua interioridade, dando consistência ao horizonte de
sentido da sua própria vida. Espiritualidade é o que inspira o progresso do ser e do agir humanos, a motivação
dos projetos existenciais. Teologicamente, espiritualidade indica a dimensão religiosa com que se vive a
motivação profunda da existência. É o horizonte meta-histórico da vida, alimentado por crenças e ritos
religiosos. Espiritualidade e religião não são sinônimos, mas estão intrinsicamente relacionados. (WOLFF, 2016,
p. 17).
40
conhece a Deus, mais sabe de si mesma. À medida que vai se desenvolvendo espiritualmente,
desenvolve-se também humanamente.” (WOLFF, 2016, p. 60). Mas ela permite também a
crentes e não crentes uma possibilidade de desenvolvimento da sua própria humanidade.
À luz do que disse Dalai Lama, cada um de nós é desafiado a perguntar-se: Qual é o
meu caminho? Onde é que desabrocha melhor minha humanidade? Onde posso ter
um encontro mais radical com Deus e dar a Ele o nome de minha reverência? Onde
posso tornar-me realmente um ser de irradiação, capaz de, com outros, crescer em
mais humanidade, em mais perdão, em mais capacidade de inclusão de todos, para
que ninguém fique excluído do nosso mundo, da nossa comunidade e do nosso
amor? (BOFF, 2016, p. 29).
O ser humano está em constante renovação para chegar a ser ele mesmo. É preciso
decidir ser ele mesmo, pois não existe constituição do seu sujeito sem uma decisão e um
posicionamento. Ser é uma experiência ontológica e quando a pessoa adquire consciência
sobre esse seu ser, ela passa a ter mais cuidado com suas próprias vivências, passa a fazer uma
leitura mais aprofundada sobre o que acontece a ela para além de sua imagem e
superficialidade.
Tudo que é superficial e ordinário pode ser simplesmente escolhido, sem maiores
consequências para a nossa vida. Porém, tudo que é mais profundo, enquanto um processo de
decisão, exige uma elaboração, envolve a iluminação de um projeto de vida. Ou seja, tudo que
é profundamente vital é decidido, ou pelo menos deveria ser.
Compreender o ser humano como um ser consciente da sua existência, onde “em sua
acepção sociológica, o conceito de consciência articula o autoconhecimento (quem somos), o
conhecimento experiencial da realidade (o que é o mundo) e o critério ético para o agir
transformador (em quê esse mundo deve ser mudado)” (OLIVEIRA, p. 2009, p. 30), nos leva
a pensar na força da liberdade como dinamizadora do processo de se tornar pessoa, em um
compromisso consigo e com o mundo que não pode ser imposto, mas ao qual deve-se aderir
livremente.
2.2.3 Liberdade dinamizadora da pessoa humana
O ser humano é uma pessoa e a sua pessoalidade emerge na medida em que as
dimensões humanas ganham unidade em cada sujeito12
. Sendo assim, considerar o ser
humano como uma pessoa equivale, de acordo com teologia cristã, a percebê-lo como um “ser
12
A noção de pessoa no pensamento cristão, utilizada para a compreensão de Deus Trindade, foi elaborada, pelo
menos nos começos, em termos teológicos, frequentemente por analogia com termos ou conceitos
antropológicos. (MORA, 2001).
41
de decisão-resposta, como ser dialógico, ser de acolhimento-abertura” (RUBIO, 1996, p. 280).
Em contraposição ao indivíduo que é determinado em seu ser, a pessoa é livre. Ela possui
uma dimensão espiritual que não é determinada, mas determinante para a existência humana e
mostra-se, essencialmente, como a dimensão da responsabilidade e da vivência da liberdade,
pois sem liberdade não há expressão do humano.
“O ser humano, por não ser totalmente comandado por sua dimensão psíquica, pode e
deve ativar também a dimensão espiritual. E este é também um fundamento da vida moral, o
que implica responsabilidade e liberdade.” (PINTO, 2013, p. 682). Liberdade é se perceber
não determinado por nenhuma determinação, é estar frente às possibilidades. Quando percebo
que sou mais que as minhas determinações é que me dou conta do meu ser, frente a todas as
possibilidades, situação de maior liberdade possível, quando não estou preso a nenhuma.
Sendo, portanto, a liberdade o ato de “afirmar aquilo que eu reconheço como fundamental
para mim, de modo que nada me impeça de ir em direção àquilo que mais me corresponde.”
(MAHFOUD, 2012, p. 204).
Sendo assim, ser pessoa é ser um ser espiritual e livre que se constrói no encontro com
outras pessoas, e o eu, consciente de si mesmo, constitui um sujeito que pode dar um rumo,
um sentido para a própria vida. Sem o movimento da liberdade, as coisas deixam de
interessar. Para ser pessoa é preciso ter um posicionamento, uma decisão de se relacionar com
o mundo. Não é o fato de ser atraído que nos constitui, mas o fato de nos posicionarmos, pois
o mundo deixa de ser mundo pra nós, se não nos posicionamos. A não liberdade cria um
desarranjo.
A capacidade de ser pessoa, de se expressar de maneira única, de ser exatamente a
pessoa que somos, só é possível se formos livres e conscientes da nossa dependência.
Reconhecemos, por experiência, a liberdade como a possibilidade de realizarmos o
nosso próprio percurso. Note que isso não implica em não sermos determinados em
coisa alguma ou não termos vínculo algum. A chance de sermos livres está em
elaborarmos o mundo que temos. Portanto, liberdade não é ausência de vínculo ou
determinação, mas se dá no âmbito do fazer um percurso realmente próprio, de
forma tal a chegar a uma grande resposta às exigências. Dessa forma, é com a
realidade, as determinações e os vínculos que podemos chegar a fazer tal elaboração.
Insistindo na ausência de vínculos ou de determinações, acabamos reafirmando que
liberdade não existe. (MAHFOUD, 2012, p. 198).
Caracterizando-se por ser possível somente quando reconhecemos a importância da
alteridade na nossa vida, a liberdade traz consigo uma responsabilidade. “Se o homem é livre
para tomar posição perante qualquer circunstância, até mesmo perante si mesmo, a liberdade
da vontade nos remete, enfim, ao tema fulcral da análise existencial - a saber, a
42
responsabilidade” (MIGUEZ, 2014, p. 39). O que implica um processo incessante de reflexão
e decisão.
O conceito de existência se nutre do conceito de liberdade e seu correlato, a
responsabilidade. O indivíduo está sempre colocado entre a finitude da situação e a
infinita abertura da transcendência. E a ponte que liga esses dois polos é a própria
capacidade humana de distinguir os significados implícitos no momento existencial
e escolher quais deseja realizar para a eternidade. (MIGUEZ, 2014, p. 57).
Diante de cada situação apresentada pela vida, no exercício de sua liberdade, o ser
humano deve escolher como agir. “Ser livre significa ser ativo e poder escolher, desde essa
capacidade de aceitar ou refutar os impulsos que colocam em relação a um objeto. O ser
humano tem essa capacidade de “voltar-se para” e ao mesmo tempo escolher.” (ALES
BELLO, 2015, p. 61). A existência nos convoca a responder ao que nos é proposto, e essa
resposta implica uma responsabilidade que exige uma constante avaliação sobre quem somos
nós e sobre o que acreditamos, para que possamos distinguir se nossas atitudes são coerentes.
A liberdade é que permite ao ser humano assumir sua vida na verdade e
responsabilidade e também é a que colabora para um direcionamento seguro. O
dever de formar a si mesmo é um apelo dirigido à alma, à consciência, que adverte
ao ser humano sobre o tipo de comportamento que deve ter em determinado
momento e diante das circunstâncias. Exprime juízos sobre suas ações, faz a pessoa
tomar ciência das suas atitudes, classificando-as como boas ou más. Favorece o
desenvolvimento das suas potencialidades e induz a projetar seu futuro. (SBERGA;
MASSIMI, 2013, p. 178).
Essa liberdade existe até mesmo quando optamos por negar a própria liberdade e a
nossa abertura humana ontológica ao transcendente.
Portanto, a religião é uma atividade espiritual: o espírito, dando prosseguimento a
sua atividade, se abre em direção ao divino. O espírito está dentro e fora de nós. A
meu ver, existe uma estrutura presente em todos os seres humanos. Pode-se negar,
mas eu diria que o ateísmo teórico é sinal de liberdade, sinal de que o espírito é uma
abertura intelectual voluntária: argumentos intelectuais utilizados para dizer um não.
(ALES BELLO, 2015, p. 150).
Liberdade é uma oportunidade de ser eu mesmo, através de cada atitude e
posicionamento diante da vida e não deve ser confundida com livre arbítrio, nem
autoafirmação, pois é sempre determinada pela circunstância, é relacional. Sendo uma
categoria da nossa dimensão espiritual, ela permite termos horizontes amplos e não ficarmos
apenas na experiência imediata: “A pessoa livre e espiritual é a que tem um certo autodomínio
43
sobre si – apesar de não poder ter um controle total por conta dos mecanismos psíquicos – e
possuir uma espiritualidade pessoal.” (SBERGA; MASSIMI, 2013, p. 178).
Mahfoud (2012), quando questionado sobre qual seria a relação entre liberdade,
vontade e autoafirmação, responde que:
Colocando a nossa vontade na realidade, fazendo o que quisermos, nos concebemos
livres. Mas se essa vontade não está ligada ao que é mais elementar em nós, não
estamos sendo livres, estamos respondendo a alguma outra coisa que não é a nossa
própria exigência. E liberdade deve ser uma resposta a uma exigência ao que somos.
[...] Então, ou liberdade significa que nada nos impeça de caminhar segundo a
dinâmica que nos é mais autêntica, ou significa autoafirmação. Se tenho uma
propulsão de ir em direção ao Absoluto, à Beleza, à verdade, à realização total, se
existe algo que me detenha, é contra a liberdade. Inclusive se esse que impede o
processo seja eu mesmo. [...] E se ser livre é autoafirmação, então rompem-se as
relações, os vínculos, buscando ser mais si mesmos. Mas sem relações, sou o que?
(MAHFOUD, 2012, p. 138).
Sem o comprometimento de nossa pessoa com nós mesmos e a consciência de que
nossa realização depende do respeito à nossa estrutura transcendental e da exigência de
realização em nossa totalidade, deixamos de ser livres; e se não somos livres, não somos.
Exercer a nossa liberdade exige elaborar continuamente as nossas próprias vivências,
processo que acontece em um ato solitário e individual. Para que ela ocorra precisamos de
uma postura e de um ambiente favoráveis ao conhecimento de si. Mas como se constrói um
ambiente que ofereça subsídios para se exercer essa liberdade?
2.2.4 Solidão existencial: um espaço de encontro
Para a pessoa se posicionar diante das situações cotidianas de maneira livre, ela
precisa se conhecer. Para alcançar o conhecimento de si, inevitavelmente, precisa encarar a
solidão. Não a solidão no sentido restrito de ficar sozinho, apesar de passar por esses
momentos também, mas principalmente no sentido de assumir sua própria solidão existencial,
de se aceitar como único.
A solidão pode ser vivificante. Pode tornar-se algo de que nos recusamos a fugir e,
ao contrário, algo que adotamos. Quando a solidão é aceita e não fugimos dela,
torna-se retiro, um lugar onde encontramos o mistério de nós mesmos e o mistério
que está além de nós. O retiro acontece quando procuramos conhecer a nós mesmos
diante de uma presença silenciosa que nos transcende. Há aceitação e paz vindas do
reconhecimento de que finalmente não podemos escapar à solidão. (EDWARDS,
1995, p. 52).
44
Para uma pessoa alcançar o conhecimento de si, faz-se necessário encarar e assumir
sua solidão existencial e mergulhar nessa descoberta. Em todo o planeta pessoas de várias
culturas diferentes e de várias épocas, que percorreram com profundidade o caminho na busca
de si mesmo, relatam a importância dos momentos de solidão nessa caminhada.
Quando a pessoa aceita a sua solidão existencial, ela olha para si mesma com interesse
de se descobrir. Quando se encontra sozinha, paradoxalmente, consegue se reconhecer nos
outros, identificando semelhanças, apesar de todas as diferenças. E o que antes poderia ser
uma sensação ruim de se sentir diferente vai se transformando em encantamento por se
descobrir e por descobrir o outro, possibilitando que aconteçam encontros. “O movimento
rumo ao silêncio, é um movimento duplo, em duas direções. O mergulho em si é, ao mesmo
tempo, a descoberta e a possibilidade de ir-se ao encontro do outro”. (PEREIRA, 2014, p.
239).
Nesse sentido, cultivar a solidão nos ajuda a ter relacionamentos melhores e conviver
melhor em sociedade, tornando-se uma possibilidade de libertação das prisões individualistas
impostas pela sociedade atual, pois nos oferece condições de discernir, até mesmo, as gaiolas
que nos são impostas, conforme nos aponta Schillebeeckx:
O moderno contraste entre objeto e sujeito exigiu também um contexto dos próprios
afetos e emoções, confirmando assim a impressão da interioridade do homem como
se se contrapusesse ao mundo objetivo exterior. O eu viveria então numa espécie de
gaiola. O resultado disso foram também mudanças estruturais individuais, recebendo
o eu ênfase ainda mais forte. Essa é a razão da solidão de muitos homens ocidentais.
A maior individualização e interiorização à partir do renascimento, pelos quais o
muro entre o mundo interior e exterior ficou mais espesso, mostram que este muro
consiste, em grande parte, em autocontrole cultural que funciona automaticamente
sobre os sentimentos humanos que em seguida se fecham voltando-se para o interior.
O que é controlado societariamente, depois vem a ser experimentado intensamente
em si como interioridade própria. Mas realmente o autocontrole social é o muro que
separa o que se chama interior do que se chama exterior. (SCHILLEBEECKX,
1994, p. 74).
Ter consciência de nossas amarras pode ser assustador, uma vez que ela nos coloca
diante do real que existe tanto fora quanto dentro de nós, sem máscaras, sem intermediadores.
Trata-se de uma convocação à reflexão que pode tirar todas as nossas certezas, mas que ao
mesmo tempo, nos aproxima de nós mesmos. Independente da forma como a solidão
existencial possa ser colocada em prática, o seu principal objetivo é o silenciamento egóico,
ou seja, o silenciamento de tudo que não coincide com nossa interioridade. O distanciamento
das exigências externas e a proximidade com nossa essência, nosso ser, contribuindo, assim,
para que estejamos inteiros e presentes em cada momento da nossa vida.
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Não procuro uma resposta que venha de fora, porque a única pessoa que sabe meu
sentido sou eu mesmo. Busco uma resposta que surja da vivência comigo mesmo. A
resposta que eu mesmo carrego. Procuro aquela resposta que brota do meu próprio
interior, onde me defronto comigo mesmo. Não quero ouvir o que os outros
encontraram. Quero que meu próprio ser me revele meu sentido, minha verdade.
Quero encontrá-la para mim e para os outros. Ela já se manifestou em forma de uma
vivência... um estremecimento. No fundo, sei quem sou. Somente a minha verdade
pode guiar-me naquilo que é o mais importante na minha vida, meu sentido. Ela
possui o segredo daquilo que sou. Para ser autenticamente, devo auscutá-la.
Permanecer num profundo silêncio e ouvir. Calar e me voltar para a minha própria
profundidade. Só o silêncio pode levar-me até ela. (POELMAN, 2013, p. 103).
Existem formas de cultivar e interpretações bem diferentes que podemos dar ao
silêncio em cada parte do mundo. De qualquer forma, assumir a solidão existencial e se
dedicar a momentos de silêncio é um caminho que nos aproxima do nosso eu. Para Merton
(1976, p. 213), existe uma fecunda relação entre o silêncio e o discernimento, e aqueles que
“fogem do silêncio, fogem também das distinções”. Para este autor, um grande místico da
contemplação, o silêncio é uma necessidade humana.
uma dimensão antropológica que aponta para um humano que almeja no fundo do
seu ser o descanso em águas tranquilas, como enquanto espaço de sobrevivência e
ascese em um mundo agitado e barulhento. [...] Como se o silêncio resguardasse um
tempo e um espaço intocáveis, permitindo que, em algum nível, o exercício de uma
liberdade plena e a fidelidade à própria consciência preservem a integridade da
pessoa no que esta ainda pode ser chamada de humana. (PEREIRA, 2014, p. 250).
Como se dinamizam na pessoa humana essas categorias de liberdade, responsabilidade
e solidão, na elaboração da própria experiência e construção de sentido singular?
2.3 Experiência como núcleo para o diálogo e busca por sentido
Temos destacado que o ser humano possui uma estrutura transcendental, que a sua
unidade se dá através das suas dimensões corpórea, psíquica e espiritual e que é a
espiritualidade o aspecto humano responsável pela elaboração da sua própria vida, momento
fundamental para que cada pessoa tenha conhecimento de si e se coloque no mundo de
maneira autêntica. Mas como acontece essa elaboração na prática? Como eu reconheço o que
me realiza, como eu descubro o sentido da minha vida?
A espiritualidade pessoal significa vigilância e abertura. Vigilância como forma
originária de tomar consciência de si, que lhe permite saber o que se vive e o modo
como se vive. Mas esta consciência não é só a reflexiva, que se realiza por meio da
autoanálise de uma vivência, é também uma luz que ilumina a vida espiritual e lhe
indica direções a seguir. É abertura como possibilidade de dois movimentos: um em
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relação a si mesmo, voltado para o mundo interior, e outro, em relação ao tu, voltado
para o mundo exterior. (SBERGA; MASSIMI, 2013, p. 178).
Vimos também que, por termos uma estrutura transcendental, a consciência de si, se
dá através da elaboração do nosso vivido, e essa elaboração acontece num diálogo constante
entre nosso mundo interior e o mundo exterior. Esse diálogo interno e externo, nos leva à
elaboração da nossa experiência.
Podemos examinar todas as vivências, nossas e dos outros, como fenômenos, como
aspectos da realidade que vêm ao nosso encontro. Qual é o sentido desse encontro?
O que descubro nesse encontro? Eis aqui a função do intelectual: compreender o que
está acontecendo, mas ao mesmo tempo deixar viver tudo aquilo que acontece na
sua dimensão, sem pretender substituir a realidade pelas suas análises. (ALES
BELLO, 2004, p. 162).
Essa abertura, que leva ao diálogo, também nos leva a perguntar pelo sentido de tudo
que nos acontece, por isso ela passa por todas as nossas experiências. A nossa dimensão
espiritual possui um dinamismo que interroga, que busca compreender cada vivência, um
processo reflexivo direcionado sobre cada ato de viver.
Podemos dizer que a experiência é o modo como interiorizamos a realidade e a
forma que encontramos para nos situar no mundo junto com os outros. Assim
entendida, a experiência deve, pois, ser distinguida da vivência. A vivência é a
situação psicológica, as disposições dos sentimentos que a experiência produz na
subjetividade humana. São as emoções e valorações que antecedem, acompanham
ou se seguem à experiência dos objetos que se fazem presentes no interior da psique
humana. Vivência não é sinônimo de experiência. É consequência e resultado da
experiência na psique humana. Ela pertence ao fenômeno total da experiência, mas
este é mais amplo e profundo do que aquele, a vivência. (BOFF, 2002b, p. 43).
Experiência não significa exclusivamente provar algo, ao contrário, um acúmulo
indiscriminado de experiências pode levar a pessoa a um vazio existencial. Ela coincide com
o ato de provar alguma coisa, mas, sobretudo, com o juízo que se dá àquilo que se prova,
oferecendo um significado, pois a pessoa é antes de tudo consciência.
Por isso, o que caracteriza a experiência não é tanto o fazer, estabelecer relações
com a realidade como fato mecânico; [...] o que caracteriza a experiência é
compreender uma coisa, descobrir-lhe o sentido. A experiência implica, pois, a
inteligência do sentido das coisas. Um juízo exige um critério a partir do qual seja
efetuado. Também na experiência religiosa, após haver desenvolvido a investigação,
é preciso perguntar-se qual critério adotar para julgar o que encontrou no decurso
dessa reflexão sobre si mesmo. (GIUSSANI, 2000, p. 23).
47
Ou seja, antes da elaboração, ou reflexão sobre algo que vivemos, é preciso que
tenhamos consciência de cada ato. Nas palavras de Pinto (2013, p. 683), “como as vivências
são registradas por nós, podemos ter consciência delas. Consciência, nesse caso, quer dizer
que temos a possibilidade de nos darmos conta do que fazemos a cada momento. Depois,
podemos fazer uma reflexão sobre essa consciência” e transformá-la em uma experiência.
Esse processo constante de tomada de consciência e elaboração das vivencias, influenciam e
sofrem influencia do meio no qual estamos inseridos, tanto micro, no sentido familiar, como
macro, no sentido cultural. “A maneira como se dá a reflexão sobre esses atos de vivência –
ligada às influências dos valores da cultura e de princípios universais – depende da educação
que a pessoa recebe e isso vai sendo incorporado à sua formação, permitindo a atualização das
suas potencialidades”. (SBERGA; MASSIMI, 2013, p. 174).
Sendo assim, “experiência e conhecimento conceptual não são a mesma coisa, pois a
experiência envolve ambos, o encontro e a interpretação do encontro.” (EDWARDS, 1995, p.
21). A experiência é sempre uma coisa que está sendo elaborada, em um processo constante.
A gente se conhece na ação, que chama o nosso olhar pra examinar a vivência. O mundo é
apreendido pela experiência que fazemos da realidade.
Entretanto, o elemento interpretativo na experiência não deve ser como algo que
ocorre apenas depois de um encontro, em um momento de reflexão. Mais
exatamente, o indivíduo traz a um encontro uma receptividade, ou falta dela, que foi
determinada pelas aptidões, livres escolhas e experiência anterior da pessoa. A
individualidade interpretativa precede o encontro, entra no encontro e se reflete no
encontro. [...] A percepção da maneira como o indivíduo entra na experiência (na
interpretação do que é encontrado) introduz uma nota crítica em nosso conceito de
experiência. Há sempre necessidade de estar criticamente cônscio da maneira como
a subjetividade da pessoa molda sua recepção da experiência. Ao mesmo tempo, é
importante insistir que há uma base subjetiva a experimentar no encontro original,
na pessoa que está experimentando e no que é encontrado. (EDWARDS, 1995, p.
22).
Ao refletir e interpretar os atos vividos, torna-se importante ter um horizonte mais
amplo com a qual você pode ser crítico com sua própria experiência. Sendo que a solidez não
está na capacidade de sustentar determinada situação e sim no horizonte em que eu a julgo. É
preciso que esse reposicionamento da própria experiência torne-se uma intenção habitual
dirigida à critica das nossas metas e caminhos. Esse horizonte de totalidade sobre o qual
julgamos nossas experiências é que permite que tenhamos uma experiência religiosa e uma
experiência de Deus. Mas quais são as características de cada uma delas?
48
2.3.1 Experiência religiosa e Experiência de Deus
A abertura ontológica humana ao transcendente constitui o que chamamos de
religiosidade. Essa abertura está presente e influencia na maneira como “recebemos” e
percebemos tudo aquilo que nos acontece. Construímos nossas experiências a partir das
reflexões que fazemos sobre o vivido, e esses atos vividos possuem característica dialogal,
acontecem dentro de um relacionamento, seja interno ou externo a nós.
Existem três experiências que sempre e necessariamente andam juntas – nossa
experiência de outrem, nossa experiência de nós mesmos e nossa experiência de
mistério infinito. Cada uma depende das outras duas. Todas estão presentes dentro
da consciência, embora possamos estar explicitamente cuidando apenas da outra
pessoa, que é o objeto do nosso conhecimento e amor. (EDWARDS, 1995, p. 41).
Dessa forma, como definiríamos as experiências religiosas e transcendentais e suas
contribuições para o conhecimento de si e convívio em sociedade?
Na busca por significado último, o sujeito pode encontrar resposta totalizante em sua
interioridade, provocada pela religião ou pelo seu ambiente social. “A religiosidade articula
no interior do ser humano infinitude e finitude, possibilitando duas novas experiências: a
experiência religiosa e a experiência do mistério transcendente (Deus).” (PANASIEWICZ,
2013, p. 593). Experiências que podem manter o ser humano na superficialidade da relação
com o transcendente ou estimular a buscar algo mais. “A relação com Deus é pessoal e
dialogal. É um encontro eu-tu, encontro entre desiguais que, pela abertura, a amizade e o
amor, estabelecem comunhão e inauguram uma aliança.” (BOFF, 2016, p. 30). Essa abertura
coloca-nos diante da possibilidade de que existe algo maior, para além do humano. E sob esse
horizonte de Mistério, julgamos nossa vida e nossa realidade. As experiências religiosas
referem-se “às áreas da vida humana em que o indivíduo e grupos veem-se relacionados ao
divino e ao sagrado.” (EDWARDS, 1995, p. 27). Dessa forma, a religião, enquanto
instituição, pode favorecer o desenvolvimento da experiência religiosa ou da experiência de
Deus.
Se considerarmos que as vivências possuem um momento anterior a elas, que
influenciam a maneira como elas acontecem e também, posteriormente, a forma como será
elaborada, precisamos reconhecer que as experiências, e inclusive a experiência de Deus,
pressupõe uma abertura, uma disposição, para que ela aconteça. Essa predisposição pode ser
adquirida através da primeira socialização em casa, numa sociedade regida sob referenciais
religiosos, em uma comunidade...
49
Examinamos o conceito de experiência e mostramos a diferença entre o encontro
experiencial original e o momento de interpretação reflexiva. Mostramos que a
experiência tem dimensões objetivas e, contudo, é recebida por um sujeito que
precisa interpretá-la pessoalmente. A experiência não se limita à experiência
sensorial nem à compreensão intelectual, mas inclui as experiências preconceptuais.
Essas experiências preconceptuais incluem alguns dos momentos mais importantes
da vida humana e nossa experiência de Deus é sempre uma experiência
preconceptual. (EDWARDS, 1995, p. 29).
A pessoa só pode estabelecer um relacionamento com Deus, se ela acredita nessa
possibilidade. A experiência de Deus, além da abertura ontológica que reconhecemos na
experiência religiosa, pressupõe uma experiência de fé, para que possa acontecer. Sendo fé
compreendida aqui como “disposição interior para dialogar e acolher ou não o mistério
transcendente, ato de profunda liberdade em que o ser humano se dispõe ou não a crer e a
compactuar com essa realidade que o atinge e perpassa”. (PANASIEWICZ, 2013, p. 601).
De acordo com Panasiewicz (2013), na experiência de Deus, o transcendente se torna
uma presença que ajuda a reler cada situação vivida pela pessoa e provoca um novo sentido,
uma experiência de sentido radical e de amor pleno, que a considera a partir de sua totalidade
e que, portanto, é transformador.
O ser humano sente e percebe a atuação de Deus em sua realidade, mistério tão
próximo e tão distante que se faz presente nas pequenas e, sobretudo, nas grandes
escolhas, pois provoca novos direcionamentos na vida. Realizar-se e ter uma vida
com sentido é resultado, em grande parte, das escolhas feitas. Por isso, torna-se
fundamental a escuta do eu interior no momento de tomada de decisão. O equilíbrio
entre corpo – dimensão de exterioridade -, psiquismo – dimensão de
intersubjetividade – e espírito – dimensão de aprofundamento humano – propicia
harmonia e tranquilidade no processo de discernimento para a tomada de decisões.
Esse discernimento confere transparência para que aconteça a experiência de Deus e
o sentido vivificador se instale. O receio no momento da escolha pode aparecer, mas
a presença do outro absoluto e do amor pleno relativiza e exclui perfeccionismos,
pois possibilita novos recomeços. Isso tranquiliza e permite a manutenção do
equilíbrio humano. (PANASIEWICZ, 2013, p. 598).
Feitas as distinções entre experiência de Deus - que se refere a uma experiência de
transformação; e experiência religiosa - que diz respeito a uma vivência religiosa, mas sem
ressonância no modo de viver da pessoa -, colocamo-nos diante de uma nova questão: Será
que existe alguma experiência que antecede essas experiências apresentadas e que até mesmo
possibilita que elas aconteçam?
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2.3.2 Experiência elementar e a construção da empatia
Percebemos que “a apreensão do valor da experiência vem junto com a vivência do
sentimento, mas a experiência tem uma estrutura mais global”. (MAHFOUD, 2012, p. 113).
Como devemos articular os nossos sentimentos em função da nossa busca de sentido, que
move o processo de conhecimento? O “sentimento serve como aproximação na medida em
que lidamos com nossa busca, na medida em que ele participa da afirmação de algo além do
sentimento mesmo.” (MAHFOUD, 2012, p. 117).
Mahfoud (2012) traz um conceito novo para a compreensão da experiência
propriamente humana que pode nos auxiliar não só na compreensão da pessoa, como iluminar
uma aproximação e um melhor convívio com a diversidade. A experiência elementar, “sendo
estruturalmente de todos, nos auxilia justamente a dar conta de dialogar contemplando as
diferenças e ao mesmo tempo oferecendo um crivo crítico para a avaliação de nossas próprias
tentativas de lidar com nossas exigências constitutivas”. (MAHFOUD, 2013, p. 116).
O conceito de experiência elementar deposita o olhar na vívida elaboração da
experiência, considerando sua intrínseca relação com alguma alteridade, apontando
uma típica dinâmica humana de transcender todo e qualquer objeto, rasgando
horizontes sempre mais abertos, até o horizonte último ou totalizante. (MAHFOUD,
2013, p. 110).
Como identificamos essa experiência elementar?
Identifica-se a dinâmica de abertura própria da experiência religiosa como dinâmica
da exigência de significado vivenciada na relação com todo objeto, como dinâmica
caracteristicamente humana. A exigência de significado é interminável, decisiva,
radical: há sempre uma abertura para um significado, até o sentido último.
Identifica-se tal dinâmica de abertura como dinâmica própria do humano: está
presente em tantas culturas diversas, está presente de forma própria em tantos
períodos históricos, está presente em diversas fases da mesma cultura, ou em
diversas etapas de desenvolvimento de uma mesma pessoa. (MAHFOUD, 2013, p.
110).
Eu não consigo estabelecer um diálogo sem primeiro me reconhecer como uma
pessoa. No momento em que eu me dou conta daquilo que me constitui, quando eu reconheço
em mim esse movimento, essa abertura à totalidade, eu também consigo reconhecer o outro
em sua humanidade, apesar de toda a diversidade, o que pressupõe conseguir olhar para as
nossas exigências fundamentais.
A maneira como nos relacionamos com as “outras” pessoas diz muito sobre a maneira
como nos relacionamos conosco e com nossos próprios limites. Caso queiramos melhorar as
51
nossas relações, precisamos melhorar a maneira como nos percebemos e como cuidamos de
nós mesmos. No cuidado com o outro temos contato com o nosso limite e também com todo o
nosso potencial. Portanto, quanto mais autoconhecimento, mais empatia. “A alteridade se
reconhece através da entropatia, mas, depois, em última análise, é preciso uma tomada de
posição espiritual”. (ALES BELLO, 2004, p. 193).
Precisamos cuidar dos outros, tanto quanto precisamos cuidar de nós mesmos, numa
via de mão dupla. Olhar com olhos de amor para o outro, prescinde que consigamos olhar
com olhos de amor para nós mesmos. “O que nos consente prestar atenção na experiência
elementar do outro é a nossa própria experiência elementar, pois permite o reconhecimento.
Sem isso, a alteridade estaria fadada a permanecer estranha, fora de mim; no mínimo, me
seria indiferente.” (MAHFOUD, 2012, p. 147).
A empatia é uma via privilegiada para a ação formativa. O educador concebe o
educando como uma alteridade, que tem uma individualidade própria, um si mesmo,
que precisa ser descoberto, considerado em seu processo de desenvolvimento e
ajudado a se atualizar, segundo suas próprias características. A partir desse olhar
empático, o papel do educador se torna indispensável na relação com os educandos
e, por meio deste contato de proximidade e abertura, o educando pode se confrontar,
se questionar e ressignificar sua história, como também traçar novas metas, projetos
que o ajudem a desenvolver suas capacidades e qualidades pessoais com mais
eficácia. (SBERGA; MASSIMI, 2013, p. 180).
Quando aprendemos a olhar o desenvolvimento da nossa experiência como um
processo de abertura, o outro se torna indispensável. Diante da importância das relações
interpessoais no processo de conhecimento de si e reconhecimento do outro, será possível,
através das próprias relações, favorecer o processo de formação da pessoa em sua totalidade?
2.3.3 Por uma educação que favoreça uma formação humana da pessoa
Conhecer o ser humano em sua estrutura e desejo de se realizar em sua totalidade nos
leva a pensar se existe uma maneira de contribuir para que o ser humano desenvolva a si
mesmo e se realize. Seria possível uma educação para a liberdade? Uma educação para o
diálogo? Como proporcionar um ambiente ou companhia favorável para que o outro possa ser
ele mesmo?
Sberga e Massimi (2013) afirmam que isso é possível através de uma antropologia
específica:
52
Uma antropologia que não segue a ciência da natureza, mas que segue a ciência do
espírito, que vai em busca da característica peculiar do ser humano, da sua
individualidade. Buscando o que é universal em todos os seres humanos. O ato
pedagógico que quer levar em consideração a formação da pessoa vai além do
ensino teórico e prático de certos conteúdos, implica a formação global do ser
humano que envolve suas disposições corporais, emocionais e espirituais. O que
diferencia o ser humano é a sua atividade espiritual, que lhe permite ter acesso à sua
interioridade e se tornar livre para agir com autonomia. (SBERGA; MASSIMI,
2013, p. 172).
O bebê não tem consciência de si, mas ele já possui uma forma humana, uma estrutura
que permite que ele se forme pessoa. A gênese da experiência de humanidade na criança, a
base do seu conhecimento se dá através das suas primeiras feições, a partir do amor materno.
É, principalmente, através dos cuidados físicos que a origem do espaço se constitui para o
recém-nascido. É nesse relacionamento que ele apreende sobre si mesmo e sobre a existência
do outro ou não.
Se por um lado as pessoas, enquanto bebês, ainda não possuem consciência de si,
apenas a vivência das dimensões corpórea e psíquicas, por outro lado, os seus cuidadores
possuem, ou pelo menos deveriam possuir. Existe no cuidado com o outro algo que é
reflexivo, que diz de motivações de nível espiritual, o que não permite que consideremos a
maternidade e/ou paternidade como funções instintivas. Na criança, tudo ainda é em potência
e, dependendo da personalidade das pessoas que cuidam dela, essa potência pode se
desenvolver ou não.
É preciso aprender a elaborar as nossas experiências e cultivar a nossa espiritualidade,
pois a “compreensão de si mesmo é dada através da consciência das próprias vivências. E é
onde se deve focar ao abordar o tema da formação.” (SBERGA; MASSIMI, 2013, p. 173).
O processo de formação da pessoa humana consiste em ajudá-la a aprender a fazer
escolhas que sejam coerentes com sua totalidade e correspondam a sua necessidade de
sentido. Para isso é necessário conhecimento do mundo e de si mesmo, o que permite ter
critérios para fazer essas escolhas. Para conhecer a si mesmo, é necessário compreender o
modo como a nossa consciência espera. Quanto maior a profundidade do homem, maior a sua
liberdade interior.
Facilitar que o outro faça o seu caminho é uma relação importante, pois a pessoa
sozinha não fica mais autônoma, mas ao contrário, fica mais manipulável, mais frágil. Essa
companhia deve ser uma companhia que ajude a pessoa em formação a tomar consciência de
si mesmo de maneira totalizante e que tenha um cuidado com todas as suas possibilidades de
vir-a-ser.
53
Edith Stein trata o tema da formação da pessoa de modo totalizante, porque admite
que a formação está conectada com a estrutura do ser humano, com sua real
quantidade de força vital, suas inclinações ou disposições originárias, com as
influências externas que recebe do próprio ambiente sociocultural, suas tradições e
valores, e com situações circunstanciais que podem favorecer o desabrochar de
características pessoais. A formação deve tratar da interação desses fatores e
compreender o que é possível fazer para que a própria pessoa se ajude neste
percurso de autoformação e o que um agente ou educador externo pode
complementar para facilitar o itinerário da construção pessoal. A formação se inicia
a partir de duas bases fundamentais: 1) aspecto interno: compreensão da estrutura da
pessoa e 2) aspecto externo: processo educativo que visa a favorecer o
desenvolvimento das potencialidades e especificidades da pessoa. (SBERGA;
MASSIMI, 2013, p. 167).
Apostar nesse tipo de formação é apostar na constituição de um mundo em que leve
em consideração as exigências fundamentais da pessoa, um mundo em que a educação se
refira à possibilidade de apreender significado e de posicionar-se diante dele, o que exige,
portanto, lealdade com a própria experiência. E quais seriam as pessoas que nos trazem a
possibilidade de realizar uma experiência da totalidade?
No processo de formação da pessoa, vários são os agentes que podem ser ativos nessa
formação. A começar pelos pais, passando pelos professores, líderes religiosos, terapeutas e
qualquer pessoa que leve a sério a vida e se interesse pela felicidade do outro. Essa
companhia, porém, não representa alguém que deve ser “imitado”, mas pessoas que se tornam
referências, pois nos ajudam a olhar para nós mesmos e despertam a nossa consciência,
agindo como uma consciência que é capaz de mudar o percurso de nossa vida e que nos lança
em novos horizontes.
Aceitar a pessoa como ela é implica conhecer a sua estrutura. E a totalidade humana se
faz através, também, da sua dimensão espiritual. Dessa forma, a “educação espiritual é
fundamental para a educação humana, na observação dos valores, direitos e obrigações que
sustentam a dignidade da pessoa.” (WOLFF, 2016, p. 59). Essa característica abre espaço para
que as religiões contribuam nesse processo de formação e de convívio com a diversidade, por
meio de uma educação para abertura, que respeita a dimensão espiritual e transcendental, que
é aquela que busca resposta, que transcende, que é relacional. Uma educação que não só
respeite, mas que favoreça esse dinamismo propriamente humano de busca de sentido.
A capacidade de regular as emoções é desenvolvida e, portanto, pode e deve ser
ensinada aos educadores e pais, para que, além de formá-los enquanto pessoa, possibilite-os
54
contribuir, através do seu relacionamento com seus filhos ou educandos, na formação de
pessoas mais conscientes e livres13
.
O eu só decide por algo que quer, a partir do momento que conhece. Conhecimento
e vontade estão em estreita relação. A pessoa que conhece o que é o bem para si tem
mais motivação e incentivo para decidir-se por ele. No confronto entre a atividade
de guia do educador e o espaço para a ação do educando é que se constitui a
formação, como desabrochar de potencialidades pessoais e aperfeiçoamento de
condutas sociais. (SBERGA; MASSIMI, 2013, p. 180).
O processo de formação da pessoa exige o cultivo da nossa liberdade, no sentido de ir
em direção ao que nos corresponde verdadeiramente, sem aderir apenas a aspectos
fragmentados da realidade. Contudo, esse processo apresenta-se como um desafio, que ao
mesmo tempo em que nos leva em direção à totalidade da nossa pessoa, também nos leva em
direção aos outros, permitindo a construção de uma sociedade. Como se dá essa dialética da
formação da pessoa e de uma comunidade?
2.3.4 Ser pessoa em uma comunidade
Um dos aspectos fundamentais da pessoa humana é que vivemos em sociedade e nos
estruturamos através das nossas relações, porém existe diferença entre os conceitos de
sociedade e comunidade, pessoa e indivíduo, e é importante que fiquem claras para o
desenvolvimento desse trabalho. Enquanto a sociedade é constituída por indivíduos, a
formação da pessoa acontece em uma comunidade, mas o que consiste e o que nos torna uma
comunidade?
A consciência de ser membro de uma comunidade suscita nos indivíduos uma
atitude de autoavaliação da sua conduta em relação à totalidade. Por outro lado, esse
processo não se dá do mesmo modo em todos os indivíduos e nem da mesma forma
em todas as épocas. Há os interesses segundo as características pessoais, a faixa
etária e o contexto da época. Mas a comunidade para sobreviver, necessita de
normas e valores, que são fundamentais para que a sociedade passa a ser
considerada uma comunidade. (SBERGA, MASSIMI, 2013, p. 188).
Existe uma permanência da nossa pessoa que só pode se dar no coletivo, em um meio
social e cultural, em um processo de articulação que permite que nossas experiências não se
percam, em uma permanência que se atualiza e nos torna continuamente atuais.
13
Bowlby (2006, p. 38) diz que “muita infelicidade e muita enfermidade mental se devem a influências
ambientais, as quais estão ao nosso alcance mudar”, pois uma das coisas que “caracterizam o indivíduo
psicologicamente doente é a sua incapacidade para regular satisfatoriamente seus conflitos”.
55
A sociedade/cultura em que estamos inseridos provoca-nos posicionamentos e o modo
como nos posicionamos tem a ver com o cuidado que temos conosco e com a busca da nossa
própria verdade e realização. Existe uma permanência, uma continuidade da cultura que nos
solicita sermos nós mesmos. Merton faz uma distinção antropológica importante entre pessoa
e indivíduo. Enquanto a ideia de “indivíduo sinaliza aquele que é contado apenas como um
número, uma variável estatística que estabelece e acentua a divisão; a pessoa é, para ele, uma
unidade que é amor, é indivisa em si mesma porque está aberta a todos, exatamente porque o
amor é a fonte e o fim de todas as pessoas”. (MERTON apud PEREIRA, 2014, p. 229).
Ales Bello (2015) faz uma distinção importante entre comunidade e sociedade, ao
afirmar que o que nos torna uma comunidade é o sentimento de uma unidade em comum.
Cada eu individual vive como pessoa e como comunidade. No segundo nível, nós
não somos absorvidos pela comunidade, pois permanecemos sempre como eu
pessoal. Assim, vivemos de modo pessoal aquilo que a comunidade vive. [...] O ser
humano vive singularmente, mas vive também na comunidade, onde se estabelece.
Não existe uma consciência da comunidade, pois a consciência é apenas individual.
Porém, a consciência individual pode viver as vivências comunitárias. (ALES
BELLO, 2015, p. 89).
Examinemos a segunda possibilidade de agrupamento humano que não é
comunidade: a sociedade. Trata-se de uma união de pessoas para uma finalidade
racional. Nela cada um é considerado por aquilo que serve à sociedade num
determinado momento, ou seja, não como pessoa. Numa sociedade financeira, cada
um coloca seu dinheiro e os outros o consideram tomando por base a proporção que
aquela quantidade representa no conjunto. No caso da comunidade, sabemos que
existe um vínculo pessoal, uma ligação moral – reciprocamente se estabelece uma
relação, inclusive a relação de responsabilidade: nasce a importante atitude de
solidariedade, que pode incluir aspectos políticos e econômicos, inclusive. (ALES
BELLO, 2015, p. 99).
Essas definições e distinções são importantes quando pensamos a pessoa e um
consequente convívio de paz em sociedade, pois consideramos que “o agir pessoal e o sistema
social mutuamente se influenciam”. (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 72). O que torna
imprescindível compreendermos como acontece esse processo e que lugar as pessoas ocupam
nele.
O próprio ego humano é processo sociocultural, e a própria assim chamada vida
interior é parte viva de processo cultural. No indivíduo lemos uma determinada
história cultural. Não existe dualismo, mas dialética de dois polos: nenhum dos dois
polos pode determinar-se sem o outro, embora contraponhamos, em nossa
experiência espontânea pré-crítica, simplesmente pessoa a comunidade. Mas tudo no
homem, também o seu interior, é social, o que de outro lado, não significa que o
social seria o aspecto único e o tudo no homem; são duas afirmações diversas.
(SCHILLEBEECKX, 1994, p. 73).
56
A compreensão dessa dialética entre indivíduo e sociedade, pessoa e comunidade, é
fundamental. Sobre esse processo dialético, Sberga e Massimi (2013) afirmam que “o ser
humano está sempre inserido em um mundo e a sua vida é uma vida em comunidade. A
inserção da pessoa em uma totalidade mais ampla, é uma necessidade da estrutura do ser
humano.” E dizem ainda que o que determina a “preciosidade de uma comunidade são os seus
valores e o empenho por eles. O que o indivíduo faz ou representa no mundo social
(estudante, filho, partido) contribui para determinar a forma de todo o seu ser psicofísico e do
seu pertencimento social.” (SBERGA; MASSIMI, 2013, p. 190).
Ao mesmo tempo em que o indivíduo influencia o seu meio, ele também é
influenciado por ele. “As estruturas humanas como corpo, psique e espírito são universais,
mas elas não devem ser entendidas de forma rígida, pois existem possibilidades de
organização cultural diferentes que as moldam”. (ALES BELLO, 2004, p. 159). Por isso,
apesar de termos identificado uma estrutura comum a todos os seres humanos, sabemos que
existem várias formas desse ser humano se expressar. Inclusive, quando responde a sua
antropológica busca por sentido.
Portanto, analisar a sociedade e o contexto cultural de uma época e as características
de uma comunidade, torna-se fundamental para compreendermos o ser humano a partir da sua
busca por sentido. Para pensar na construção de um mundo onde pessoas convivam de
maneira mais pacífica, precisamos nos conscientizar do que nos aproxima em humanidade,
apesar de todas as nossas diferenças.
A paz só triunfará na medida em que as pessoas e as coletividades se dispuserem a
cultivar, como projeto de vida, a cooperação, a solidariedade e o amor. [...] Só uma
ciência com consciência e com sentido ético pode encontrar saídas libertadoras para
a nossa crise, que inaugurarão um novo padrão de convivência do ser humano com
todos os seus semelhantes e com a terra. (BOFF, 2009, p. 80).
Nesse sentido, pensar a religião e o convívio entre diversas crenças pode ser um
caminho na construção da paz, pois o “espaço comunitário também é lugar privilegiado para a
experiência de Deus. Esse espaço favorece o encontro interpessoal que, por sua vez, ativa
ações éticas em função do bem comum”. (PANASIEWICZ, 2013, p. 598). Sendo assim, quais
seriam as características do ser humano, da sociedade e das religiões no momento atual, no
que tange a sua busca por sentido?
57
3 SER HUMANO NA CONTEMPORANEIDADE
Vimos no primeiro capítulo que o ser humano se constitui como ser através da
articulação entre as suas dimensões biológica, psíquica, espiritual e social. Sobre essa
formação humana, Berger diz que “a vida cotidiana está repleta de múltiplas sucessões de agir
social, e é somente neste agir que se forma a identidade pessoal do indivíduo.” (BERGER;
LUCKMANN, 2004, p. 17). Ou seja, o ser humano é essencialmente um ser cultural, que
constrói a sociedade ao mesmo tempo em que é construído por ela, numa relação mútua.
Sendo assim, após termos apresentado o ser humano em seus aspectos ontológicos,
agora faremos uma descrição das características culturais em que ele está inserido:
apresentando a situação espiritual do nosso tempo e como a busca por sentido revela-se nos
âmbitos pessoal, social e religioso na atualidade. As descrições apresentadas são mais
abrangentes e podem sofrer alterações e influências em cada microrregião. De maneira
geral,entretanto, acreditamos que compreender esse cenário cultural macro, nos auxiliará na
reflexão de possibilidades mais coerentes de superação e assimilação da crise como uma
oportunidade de crescimento:
A situação presente da humanidade constitui em si mesma uma grande ameaça ao
futuro da vida. É a própria crise que nos marca em nossos dias que leva a
humanidade a se questionar sobre as razões de ser da sua vida, sobre os fins últimos
de sua existência e do universo. O tratamento dessas questões radicais de sentido da
vida exige uma visão que tematize a totalidade do ser, articule uma compreensão das
estruturas fundamentais da realidade, do sentido da natureza, do homem, da
sociedade, que possa dar um rumo “legitimado” às ações através de que o ser
humano busca conquistar-se na história. (OLIVEIRA, 2013, p. 104).
Ao abordar a crise de sentido contemporânea, não pretendemos afirmar que se trata de
um período histórico em que vivemos uma crise maior em relação a outros períodos.
Entendemos por crise o que Leonardo Boff afirma como uma “descontinuidade e uma
perturbação dentro da normalidade da vida provocada pelo esgotamento das possibilidades de
crescimento de um arranjo existencial.” (BOFF, 2002a, p. 25). A crise não é um privilégio do
momento atual e nem mesmo acreditamos que ela esteja acontecendo de maneira mais forte
agora. O que diferencia essa crise de outras crises? Qual o caminho escolhido para conhecer o
que estamos chamando por crise de sentido contemporânea?
Para falar que vivemos uma crise, precisamos, antes, conhecer as características do
nosso tempo histórico, principalmente no que tange aos aspectos relacionados à construção de
sentido individual e social, e o faremos da seguinte maneira: primeiro apresentaremos um
58
breve panorama dos paradigmas norteadores da sociedade moderna ocidental e dos pilares
que sustentam a construção de sentido da pós-modernidade. Em seguida, mostraremos como o
ser humano posiciona-se dentro desse contexto e como esses pilares pós-modernos
manifestam-se na formação humana em suas dimensões biológica, psíquica, espiritual e
social. Por último, apresentaremos qual o papel da religião na construção de sentido
individual e social e como a espiritualidade é vivida na contemporaneidade.
3.1 Crise de sentido social contemporânea
Vivemos um período de crise que perpassa vários aspectos da nossa sociedade e que
não se restringe à realidade brasileira. Após analisar as crises do século XX, Morin (1986)
percebeu que a crise tornou-se o modo de ser da sociedade ocidental, em que o
desenvolvimento comporta em si próprio um caráter de crise:
A crise cultural, a crise dos valores, a crise da família, a crise do Estado, a crise da
vida urbana, a crise da vida rural, etc, são outros tantos aspectos do ser (que passou a
ser crítico) das nossas sociedades, que estão evidentemente ameaçadas pela crise
mas também vivem na crise. [...] Tudo neste mundo está em crise. Dizer crise é o
mesmo que dizer progressão das incertezas. (MORIN, 1986, p. 318).
Essa análise vai ao encontro da afirmação de que a crise atual não se restringe a um
setor ou âmbito específico da sociedade, mas que, justamente por sua generalização, podemos
dizer que se trata de uma crise de fé e, sendo assim, precisamos analisar também a questão
religiosa. Nós abordaremos a crise a partir da crise de sentido, sem pretensão de fazer um
julgamento moral do período em que vivemos, mas, ao contrário, nossa pesquisa parte do
lugar de quem acredita que todo problema traz em si mesmo uma solução e busca, através da
transdisciplinariedade, pensar em maneiras de agir e favorecer que os aspectos positivos desse
momento sejam reconhecidos e fortalecidos.
Para compreendermos a crise atual, precisamos, antes, compreender melhor o
momento ao qual nos referimos como atual. O que caracteriza a sociedade contemporânea
ocidental, mais especificamente a brasileira? Responder a essa pergunta é um grande desafio,
na medida em que buscamos definir um período histórico ao mesmo tempo em que vivemos
nele.
Não existe um consenso sobre o que caracteriza a sociedade ocidental contemporânea.
O período em que vivemos é chamado, dependendo do autor, de modernidade, modernidade
tardia, pós-modernidade, hiper-modernidade, modernidade líquida. Essa profusão de
59
perspectivas revela em si mesma uma das principais características do nosso tempo: um
tempo cercado de aforias, becos sem saídas e que não conseguem, talvez justamente por sua
multiplicidade de opções, oferecer uma resposta que seja mais totalizante.
Apesar de todas as diferentes interpretações, ao analisar a sociedade contemporânea, a
maioria dos autores parte de uma relação com a modernidade. Portanto, consideramos
adequado que retornemos um pouco na História, na expectativa de que, compreendendo um
pouco mais do caminho percorrido, possamos analisar melhor as características do ser
humano e da sociedade atual. Como chegamos até aqui? Quais eram as características do
momento anterior ao período contemporâneo e o que se esperava alcançar através dele?
3.1.1 Panorama histórico da Idade Média até a Modernidade
Seria um equívoco negar toda a história e pretender fazer uma análise do nosso tempo
partindo do zero. Somos seres culturais e históricos e, por isso, nossa análise será feita na
maioria das vezes, em relação a outros tempos e até mesmo contaminados por esse tempo,
pois uma saída completa com os termos que vieram da nossa tradição seria uma utopia.
Concomitante a isso, sabemos ser impossível abordar todos os aspectos envolvidos nesse
processo e, portanto, apresentaremos apenas um panorama geral, demarcando o eixo central
de cada período.
Consideramos contemporaneidade o período que se inicia a partir da metade do século
XX até os dias atuais, e que foi antecedido imediatamente pela modernidade, compreendida a
partir dos séculos XVII e XVIII e antes pela Idade Média. A Idade Média caracterizava-se
pela existência de uma parceria entre Igreja e Estado na organização da sociedade, onde o
conceito de liberdade confundia-se com o conceito de obediência às autoridades e essa
autoridade era exercida pelo clero e pela nobreza, pois seguiam uma estrutura teocêntrica, em
que o ser humano não tinha nenhum poder individualmente. Após séculos, os pilares da Idade
Média foram perdendo a sua força. O Iluminismo, que culminou na Revolução Francesa,
trazia como marcas principais os ideais burgueses de igualdade, liberdade e fraternidade.
O século XVIII surge com uma ideologia que clama pela liberdade e igualdade dos
seres humanos e culminou no individualismo do século XIX, que defende a necessidade não
da igualdade, mas da diferença entre os seres humanos, através da exploração da
individualidade de cada sujeito. A modernidade nasce, então, com as promessas de um ser
humano livre das dependências históricas ao Estado, à religião, à moral e à economia. Existia
a crença na liberdade do movimento do indivíduo em todos os seus relacionamentos sociais e
60
intelectuais, tendo a si mesmo como único referencial. Acreditava-se que essa emancipação
do ser humano estaria garantida através do uso da racionalidade e do progresso. Razão e
progresso passaram, então, a ser as metas do sujeito moderno. Elas deveriam ser alcançadas
através do trabalho e de constantes especializações, que nos manteriam dentro da competição
e garantiriam nosso constante progresso.
A globalização conecta comunidades e organizações em novas combinações de espaço
e tempo, tornando o mundo mais conectado, com acesso a várias culturas e formas de viver.
Ela configurou-se como um processo que favorecia o fortalecimento da subjetividade humana
através da racionalidade e do cultivo de si mesmo. Porém, no mesmo período, vivenciamos
uma revolução tecnológica que, junto com a globalização - a quebra das fronteiras comerciais,
mundialização do capital e deslocamento do poder nacional para o supranacional -, fortaleceu
o capitalismo moderno. Esse fortalecimento revela outra face da globalização que, reforçada
pelo neoliberalismo, reduz ao mínimo indispensável as ações do Estado no campo social. Ela
se intensifica e se expande, impondo modelos e referenciais em todo o mundo, norteados pela
busca por progresso e emancipação humana.
O capitalismo moderno constitui um sistema de produção e consumo que objetiva
arregimentar todos os tipos de consumidores e, independente das diferenças culturais,
incentivar o consumo em massa. Nessa etapa inicial da modernidade, de acordo com Petrini
(2005, p. 28), “o cristianismo foi considerado funcional aos interesses do capitalismo
emergente, garantindo o respeito e a aceitação das normas que regulamentavam a convivência
social, mesmo que alguns pontos da moral fossem contestados”. Num segundo momento,
porém, a ética herdada da tradição pareceu apresentar mais problemas do que soluções para
uma sociedade que necessitava de outros valores e de outros direitos, quase sempre
divergentes dos consolidados na tradição.
A necessidade de consumo passa por cima de qualquer diferença cultural, além de
formar redes e flexibilidades que individualizam as relações sociais de produção e provocam a
instabilidade estrutural do trabalho. Estávamos diante de um sistema econômico que trouxe
avanços, mas os seus benefícios de confortos e facilidades decorrentes do avanço tecnológico
restringiram-se a uma minoria da população mundial.
Com o avanço da ciência e o surgimento de duas grandes guerras mundiais, resultantes
da invenção de um armamento bélico poderoso e destrutivo, ficamos diante de uma crise
ecológica, que provocou reflexões acerca dos benefícios do progresso e de uma possível
dependência tecnológica. A modernidade, idealizada sob os pilares da igualdade e
fraternidade e de um ser humano autônomo em relação a sua tradição, não cumpriu todas as
61
suas promessas. E a descrença na racionalidade ofereceu condição favorável ao surgimento da
pós-modernidade. Sabemos que não existe um corte ou uma ruptura total das características
de um tempo ao outro e que essa mudança é um processo, - no nosso caso, um processo ainda
em andamento. Portanto, estamos sujeitos a todos os erros cabíveis àqueles que buscam
compreender o nosso contexto, pois o analisamos como se estivéssemos dentro de um trem
em movimento. Ainda assim, ousamos perguntar: quais seriam as principais características
dessa sociedade que denominamos pós-moderna? Como o ser humano contemporâneo
satisfaz a sua necessidade de sentido? Porque afirmamos que a nossa sociedade está em crise?
3.1.2 Desenvolvimento e crise da Modernidade: Pós-modernidade
A segunda metade do século XX caracteriza-se por um período de mudança tão
constante que dificulta a definição de conceitos que nos ajudem a compreender essa realidade,
definida por Bauman (2001) como modernidade líquida, em contraponto ao início da
modernidade, chamada por ele de sólida.
De maneira geral, o pós-modernismo:
é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades
avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o modernismo (1900-
1950). Ele nasce com a arquitetura e a computação nos anos 50. Toma corpo com a
Arte Pop nos anos 60. Cresce ao entrar pela filosofia, durante os anos 70, como
crítica da cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na
música e no cotidiano programado pela tecnociência (ciência + tecnologia invadindo
o cotidiano com desde alimentos processados até microcomputadores), sem que
ninguém saiba se é decadência ou renascimento cultural. (SANTOS, 1986, p. 7).
O avanço da globalização e a busca do progresso através da racionalidade instrumental
aceleraram o processo de modernização, provocando mudanças profundas em todas as esferas
da vida humana. Tais mudanças afetaram desde as formas de organização do trabalho, aos
processos educativos, às formas de comunicação e aos valores que norteiam as condutas
pessoais e sociais. Berger e Luckman (2004) consideram o pluralismo moderno uma condição
estrutural para a difusão das crises subjetivas e intersubjetivas de sentido, já que os processos
modernos de pluralização se distinguem dos outros tanto em abrangência quanto em
velocidade.
Para Pierre Sanchis (2012), a globalização traz grandes impactos para a formação
cultural desde a modernidade, pois ao mesmo tempo em que ela nos coloca diante do contato
com a diversidade, ela também impõe uma padronização:
62
Em primeiro lugar, as culturas viajam, transportadas pelas pessoas. Entrecruzam-se,
se multiplicam no mesmo espaço, se contaminam mutuamente. O multiculturalismo
coexiste com o hibridismo e a mestiçagem cultural. Tanto coexistem como se
misturam. E se observam misturando-se. Por isso, os grupos culturalmente
homogêneos se reduzem, as relações se problematizam. A estrutura social tende a
virar redes, que articulam dinamicamente indivíduos. Em segundo lugar, e em outro
nível, no mundo atual não só os homens viajam e se encontram, mas existe uma capa
globalizante, que tende a impor por todos os meios, no conjunto dos grupos
humanos, uma mesma cultura. Um movimento padronizador das culturas, na medida
em que uma delas acaba marcando sua dominação no conjunto do espaço social.
Sobretudo no espaço urbano, pelos meios de comunicação. Todos, na cidade,
embora representantes de várias e muitas culturas, se defrontam com a oferta
imperativa da mesma cultura geral, a cultura moderna da metrópole. Estão situados,
com a sua cultura respectiva, dentro do seu molde ativo e transformador; participam,
querendo ou não, das grandes linhas de seus ideais, de seus valores, mesmo que seja
por revolta ou distanciamento. (SANCHIS, 2012, p. 24).
Essa contraposição, de um contato cada vez maior com a diversidade, aliado à
imposição de padrões globais de comportamento, é uma realidade global, que atinge a todas
as comunidades, em menor ou maior grau. O que leva alguns autores a preferirem usar o
termo mundialização, ao invés de globalização, ao referirem-se à essa universalização da
civilização racional instrumental, que gerou uma humanidade uma, que nos permitiria falar de
uma história mundial (OLIVEIRA, 2013).
Essa universalização é possível quando pensamos que a capa globalizante, para usar o
termo de Sanchis, é oferecida pelo capitalismo moderno. O capitalismo é um sistema
econômico que, desde o seu nascimento, teve a vocação de mundializar-se, mas que oferece
riscos. Sung (2014, p. 303) alerta que um desses riscos é de que a produção técnica e seus
produtos virem modelo de interpretação da totalidade do ser. “O sistema de mercado
capitalista busca o ilimitado, se funda em si mesmo, e está em constante processo de
transformação e de destruição criativa”. Com o avanço da tecno-ciência e através da sua
mediação, o homem ganhou poder e liberdade, mas sua absolutização levou a uma
coisificação e objetificação de si mesmo e da natureza.
A ênfase da nossa sociedade contemporânea na satisfação dos aspectos psíquicos,
aliada ao avanço tecnológico adquirido desde a modernidade, contribuiu para que os meios de
comunicação de massa hoje ocupassem um lugar privilegiado na transmissão de sentido.
Assumindo funções de igreja no campo cultural, produzindo símbolos, sentido, crenças.
Somos a era da informação e do conhecimento e também somos a era do consumo e da
especulação. Nesse contexto, ocorreu uma revolução comunicativa provocada pela mídia de
massa, que modificou profundamente a comunicação humana, transformando-nos na
sociedade das mídias, da informação, das imagens e do espetáculo; sem referências e
orientada por uma liberdade ilusória. “A obediência aos padrões tende a ser alcançada hoje
63
em dia pela tentação e pela sedução e não mais pela coerção – e aparece sob o disfarce do
livre arbítrio, em vez de revelar-se como força externa.” (BAUMAN, 2001, p. 110). Cedemos
aos encantos da vida ilustrada pela TV, chegando a sobrepô-la à vida real e invertendo a
lógica do discurso de que a arte imita a vida, sacrificando ou ignorando as características
próprias da realidade, em prol de imitar uma vida de poucos privilegiados.
As consequências disso para a realidade individual e social é que as estruturas do
nosso cotidiano são ditadas pelo mercado: “a economia de mercado, submetida ao jogo de
interesse dos capitalistas, em quatro séculos, colonizou as estruturas da vida material e assim
submeteu à sua lógica toda a vida social.” (OLIVEIRA, 2014, p. 332). Esse contexto
aumentou cada vez mais a distância entre a maioria pobre e a minoria rica; afrouxando os
vínculos com o grupo de origem; perdendo as tradições e aumentando a frustação existencial.
Lipovetsky (2004b) distingue três fases essenciais da moral na história ocidental. A
fase teológica, quando a moral era inseparável dos mandamentos divinos; a fase laica
moralista, que vai do Iluminismo até o século XX, onde a ética é superior à religião e os
deveres para com os seres humanos prevalecem em relação aos deveres para com Deus; e a
fase atual, pós-moralista, onde a “cultura cotidiana, desde os anos 1950 e 1960, não é mais
dominada pelos grandes imperativos de dever sacrificial e difícil, mas pela felicidade, pelo
sucesso pessoal, pelos direitos do indivíduo, não mais pelos seus deveres.” (LIPOVETSKY,
2004b, p. 27). O mesmo autor afirma ainda que o consumo de massa e os valores propagados
pelo mercado foram os responsáveis pela passagem da modernidade para a pós-modernidade,
na segunda metade do século XX.
A pós-modernidade representa o momento histórico preciso em que todos os freios
institucionais que se opunham à emancipação individual se esboroam e desaparecem
dando lugar à manifestação dos desejos, da realização individual, do amor-próprio.
As grandes estruturas socializantes perdem a autoridade, as grandes ideologias já
não estão mais em expansão, os projetos históricos não mobilizam mais, o âmbito
social não é mais do que o prolongamento do privado – instala-se a era do vazio,
mas “sem tragédia e sem apocalipse”. (LIPOVETSKY, 2004a, p. 23)
O poder antes exercido pela religião foi delegado à intelectualidade e,
progressivamente, o ser humano passou a dominar as sociedades pela razão e pelo
aprimoramento da técnica, cujas palavras de ordem se alicerçavam no capitalismo e no
materialismo:
O sistema de mercado capitalista assumiu as funções que no passado pertenciam à
religião, tais como a de dar um universo de significado comum à toda comunidade, o
sentido último à vida e às mortes e sacrifícios demandados pela dinâmica própria da
64
ordem social, e legitimar a totalidade da ordem social através de mecanismos de
sacralização ou de absolutização dos seus fundamentos. (SUNG, 2014, p. 292).
O que significa, então, dizer que vivemos um momento que tem como pano de fundo
norteador o mercado econômico? Onde podemos identificar as interferências do mercado na
organização de toda a sociedade atual? Quais as consequências de quando o suprasentido é
oferecido pelo mercado14
? Qual o interesse do mercado e suas instituições em oferecer o
suprasentido?
3.1.3 Mercado como suprasentido da Modernidade
O capitalismo como impulso para aquisição existiu em outras épocas mas, de acordo
com Weber (2004), ele ganhou novos contornos com a modernidade e o maior deles foi o
aumento de posses como um de seus principais objetivos. Essa é a lógica de “funcionamento
do mundo liberal, que gera mais lucro, mais eficiência e mais racionalidade. [...] Em uma
dinâmica do poder que se alimenta de si mesmo, sem outra finalidade além do seu próprio
desenvolvimento”. (LIPOVETSKI, 2004a, p. 34). Mas se esse sistema serve apenas aos
poucos que detêm o poder, como ele se mantém?
Para Sung (2014, p. 306), “o que possibilita a estabilidade de sentido, de valores e do
funcionamento desse sistema instável e evolutivo por sua própria lógica e legitima todos os
‘custos sociais exigidos pelo mercado é a fé no mercado e na sua promessa.” Sob o discurso
de que esse é o único jeito possível e de que o progresso foi o que sempre desejamos, temos
toda a nossa vida social e individual reorganizada em função da lógica do consumo, da
técnica e da individualização.
“A transformação da moeda, passando de meio para fim, explica porque nossas
sociedades têm tantas dificuldades para construir um desenvolvimento sustentável.”
(VIVERET, 2006, p. 13). O nosso fascínio pelo dinheiro, proposto pelo capitalismo moderno,
sobrepôs-se ao cuidado com nossa totalidade, com o outro e com o mundo. Ele oferece
recompensas concretas, visíveis, que torna indiscutível o seu valor.
As categorias de pensamento e de comportamento do mercado penetram na
consciência individual não pela adesão de ordem subjetiva, mas como fatos tão
objetivos quanto os fatos naturais: as leis do mercado, o direito de propriedade, o
respeito devido aos contratos, enfim, os elementos constitutivos do mercado são
como a lei da gravidade, cuja vigência não depende do consentimento humano. São
como o ar que se respira. Ninguém precisa crer no poder de compra do dinheiro: a
14
Quando existe um sentido que organiza e sustenta toda a sociedade.
65
experiência cotidiana é sua prova mais cabal. Estamos no campo das certezas, não
no campo das crenças. (OLIVEIRA, 2014, p. 333)
Viver em uma sociedade orientada pelo mercado econômico significa dizer que
vivemos para fazer girar a economia. Vivemos para produzir e consumir, produzir e consumir.
Quanto mais rápido produzirmos e mais rápido consumirmos, mais precisamos produzir, para
continuar consumindo. Tudo pode, deve e será usado para que se produza algo e se consuma.
E para servir ao mercado, é preciso constantemente criar necessidades que levarão à criação
de novos produtos para satisfazê-las. “Na economia de mercado, necessidades humanas por si
não constituem demanda econômica. Para se tornar demanda, essa necessidade ou desejo da
pessoa precisa vir acompanhada de capacidade de consumo" (SUNG, 2014, p. 294).
A sociedade de mercado coisifica as pessoas e as necessidades humanas e se mantém
com a ajuda da mídia, que se transformou em instância social que veio substituir as
instituições religiosas, conforme alerta Moreira (2008, p. 72):
[As instituições midiáticas] Assumem funções das instituições religiosas no campo
cultural, principalmente o complexo midiático cultural, que envolve televisão,
internet, cinema, revistas e literatura, esporte, publicidade e moda. Essas
instituições, todas do e para o mercado, também produzem símbolos, sentidos,
crenças, explicações sobre o real, rituais e mitos, propõem valores, estilos de vida,
figuras para a imitação, a fidelidade e mesmo a devoção das pessoas.
Com o avanço da ciência e da tecnologia, além do mundo estar conectado, é possível,
por causa dessa conectividade, desse modo online de viver, difundir uma mesma informação
de forma universal. Isso confere, ou reforça, um lugar de poder àqueles que detêm acesso ao
controle do conteúdo midiático. Morin (2013, p. 39) traz à tona a perversidade do papel da
publicidade que, seguindo a mentalidade vigente, aponta para os sonhos humanos, mas
oferece um caminho que nos coloca cada vez mais distantes de sua realização:
Quanto mais estressados, competindo, confusos, mergulhados na destruição
ecológica, na rivalidade com o outro, na ausência da serenidade, mais a publicidade
nos faz sonhar com um desenvolvimento na ordem do ser, da felicidade, da amizade,
da serenidade, da beleza. Com um duplo efeito perverso; de acreditar que para
progredir na ordem do ser é preciso acelerar o crescimento na ordem do ter. Levando
a desejar sempre mais, gerando o hiperconsumo. (MORIN, 2013, p. 39).
O mercado como suprasentido criou também um mecanismo capaz de controlar e
manter esse sistema. Na medida em que o Estado não consegue ou não se preocupa em
garantir os direitos básicos de todo cidadão, ele acrescenta à logica do presente uma
66
preocupação exagerada com o futuro, que leva ao paradoxo de viver como se não houvesse
amanhã, mas ao mesmo tempo vivemos com medo do amanhã:
É o medo o que importa e o que domina em face de um futuro incerto; de uma lógica
de globalização que se exerce independentemente dos indivíduos; de uma
competição liberal exacerbada; de um desenvolvimento desenfreado das tecnologias
de informação; de uma precarização do emprego, e de uma estagnação inquietante
do desemprego num nível elevado. (LIPOVETSKI, 2004a, p. 28).
A sociedade de mercado desestabiliza a política, pois provoca nas pessoas, através do
processo de criação e gestão do medo social, o ímpeto de procurar soluções individuais para
problemas que são sociais. Incita também à violência, na medida em que escolhe mostrar
notícias em que esta predomina, reforçando no imaginário da população em geral a ideia de
que existe uma preponderância do mal, o que gera, consequentemente, o aumento do
sentimento de insegurança. Além disso, ao fazer uso de um discurso baseado no pensamento
dualista, que separa as coisas entre bom e mal, certo e errado, bonito e feio, a mídia assume
uma postura que contribui para que nos fechemos entre os nossos. E esse fechamento pode
impedir a reflexão sobre nossa postura e a percepção do outro em sua totalidade.
Essa atitude, aliada à rapidez da comunicação e da tecnologia com suas redes sociais,
torna-se um ambiente favorável para a formação de grupos, o que nos enfraquece enquanto
cidadãos, colocando-nos uns contra os outros15
. “Como a tarefa compartilhada por todos tem
que ser realizada por cada um sob condições inteiramente diferentes, divide as situações
humanas e induz à competição mais ríspida, em vez de unificar uma condição humana
inclinada a gerar cooperação e solidariedade.” (BAUMAN, 2001, p. 116).
Uma das formas clássicas de manutenção de poder é desencorajar que as pessoas se
manifestem, se expressem. Como se expressar é uma necessidade humana, essa expressão
acaba acontecendo em grupos em que já se espera uma aceitação anterior, o que leva à
formação de guetos. A formação de guetos, por sua vez, vai na contramão do diálogo. Embora
precisemos nos aproximar de pessoas que acreditam nas mesmas coisas que nós, pois isso
nos fortalece e essa identificação é necessária para a afirmação da nossa identidade; por outro
15
O desenvolvimento das tecnologias e o uso das redes sociais, com seus mecanismos de busca e aproximação
por interesses, tem contribuído para o crescimento das chamadas “bolhas”, que acabam reforçando a ideia de que
o meu pensamento é dominante, já que o que eu vejo e tenho acesso o tempo inteiro são assuntos e informações
que apenas confirmam meu pensamento. Ou seja, eu não tenho acesso a outras opiniões. As opiniões diferentes
são percebidas como minoria. Eu não sou questionado, eu não sou solicitado a refletir sobre meu pensamento,
sobre minhas atitudes, ao contrário. Meu pensamento é reforçado. Ampliam-se as diferenças e consolida-se uma
identidade fechada. Essa identidade fechada vai contra a nossa estrutura humana, que é de abertura. Num
momento que carrega ainda a influência do pensamento dualista cartesiano, as bolhas e guetos são uma imensa
armadilha e uma arma poderosíssima para o aumento da intolerância, pois essa identidade fechada nos coloca em
posição de fechamento tanto para o outro quanto para si mesmo.
67
lado, quando só convivemos com iguais não temos oportunidade de “refletir” sobre quem
somos, os nossos valores não são questionados. Nessa situação não existe crescimento pessoal
e sim uma exacerbação das diferenças entre os grupos.
Já que, de acordo com Morin (2013, p. 43), “as promessas de salvação pela economia
não foram cumpridas. A ideia de que progresso econômico acarretaria progresso social,
progresso moral, morreu. Como sair positivamente desse ciclo da modernidade ocidental,
preservando o melhor?” Quais seriam as possibilidades de crescimento e transformação
positivas existentes na crise de sentido pós-moderna?
3.1.4 Contribuições da pós-modernidade para a formação de um ser humano integrado:
esperanças e resistências
Leonardo Boff (2002a, p. 42), ao analisar situações de crise, percebeu que delas
emergem tipos de reações diferentes e as dividiu nas seguintes categorias de pessoas:
1) os escatologizadores, aqueles que veem a crise como uma catástrofe; 2) os
arcaizantes, os que se dão conta da crise e fogem para o passado; 3) os futuristas, os
que resolvem a situação da crise fugindo para o futuro; 4) os escapistas, aqueles que
resolvem a crise, fugindo para dentro, numa interiorização privatizante e 5) os
responsáveis, que seriam aqueles que veem na crise uma oportunidade de nova vida.
Que buscam tematizar as forças positivas contidas nela e formulam uma resposta
integradora das várias dimensões da vida.
Para nos posicionarmos de forma responsável diante desse momento e sendo, de fato,
contemporâneos, a seguir apresentaremos algumas possibilidades de crescimento sinalizadas
na sociedade pós-moderna16
.
A modernidade foi um período de muitas conquistas e uma delas foi a primazia da
racionalidade humana.
A sociedade moderna, então, não entra em crise por um excesso de racionalidade,
que tornaria árida a convivência social, devendo-se dar mais espaço ao sentimento
para equilibrar a situação. A sociedade moderna entra em crise por uma carência da
razão, usada segundo o paradigma iluminista, que não é mais capaz de dar conta de
todos os fatores da realidade, de orientar suas conquistas para responder às
exigências humanas. Com efeito, a razão não mais compara seus produtos com as
exigências elementares do ser humano, com as exigências de liberdade, justiça,
16
Agamben (2009) faz uma distinção entre período contemporâneo e ser contemporâneo em uma época. Onde
aquele capaz de ser contemporâneo é alguém que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as
luzes, mas o escuro. É aquele que sabe ver a obscuridade, o que significa não apenas manter fixo o olhar no
escuro da época, mas perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós.
68
verdade, felicidade, e sim com as exigências do mercado, isto é, do lucro e do poder
(PETRINI, 2005, p. 23).
Percebemos na pós-modernidade - através da própria razão - que a racionalidade, o
avanço técnico científico, o consumo e acumulação de bens e o trabalho pelo dinheiro, por si
só, não nos satisfazem. Viveret, aponta para a urgência de se repensar a relação entre ter e ser
e a “própria natureza de nossos projetos, tanto no plano pessoal quanto no coletivo” (2006, p.
13) e mostra que não existe economia possível, se os fundamentos ecológicos, humanos ou
antropológicos estiverem em perigo. Ele destaca, ainda, que já existem movimentos em todo o
mundo que buscam um novo tipo de economia, chamada de economia solidária, que se
orienta por ideais mais humanos, a partir das lógicas de troca e de desenvolvimento não
material17
.
Se na modernidade o desenvolvimento de uma sociedade era medido exclusivamente
por índices racionais e econômicos; na pós-modernidade, as pessoas começam a questionar
esses índices e a identificar a necessidade de se criar novos índices de avaliação de
desenvolvimento social, que remontam à nossa humanidade. Destacaremos duas vertentes
que, a nosso ver, apontam para possibilidades de integração do ser humano e de uma
sociedade de paz, a despeito de todas as dificuldades enfrentadas na era pós-moderna.
A primeira delas seria perceptível no âmbito individual, quando constatamos um ser
humano que busca cada vez mais uma visão holística de si mesmo e da vida. Para Rubio
(2007, p. 275) “o mais importante para quem está interessado na visão integrada do ser
humano é que na visão sistêmica da vida abre-se a possibilidade da superação das dicotomias
entre mente e corpo (matéria) e entre sujeito e objeto”. A preocupação com o
desenvolvimento pessoal e pela busca por autoconhecimento é perceptível pelo aumento da
produção e consumo de livros de autoajuda, pelo surgimento de novos movimentos religiosos,
experiências místicas, cursos de física quântica, entre outros.
A visão holística do ser humano e do cosmo, influenciada pela física quântica e pela
biologia que, na explicação da vida, desenvolve a teoria dos sistemas vivos, pode ser
assim resumida: o ser humano é considerado de maneira integrada, superando-se os
dualismos clássicos e modernos. É visto como um sistema vivo relacionado de
múltiplas maneiras com os outros seres humanos e com o ecossistema vital do qual
faz parte. A consciência ecológica é especialmente valorizada bem como os aspectos
mais intuitivos e femininos, a colaboração, a receptividade e a perspectiva sintética.
17
Esses movimentos de resistência e de compartilhamento aparecem em várias esferas, sendo alguns deles
chamados de minimalism, slowparenting, coworking, cohouse, grupos de troca, escambo, moeda alternativa,
comunidades autossustentáveis, êxodo urbano, consumo consciente. Muitos deles podem ser comprovados
fazendo uma busca simples no google e/ou documentários disponíveis no youtube.
69
Mas, procura, ao mesmo tempo, desenvolver um equilíbrio dinâmico entre o
racional e o intuitivo, entre a auto-afirmação e a cooperação, entre o masculino e o
feminino. (RUBIO, 2007, p. 280).
A segunda vertente pode ser percebida no âmbito coletivo, através da valorização dos
Direitos Humanos conquistados desde a modernidade e do acolhimento da pluralidade como
uma realidade. Percebemos que a cultura contemporânea procura valorizar “os aspectos
positivos do pluralismo cultural, ético e religioso, reconhecendo sua conveniência para a
realização da liberdade individual e para a consolidação da democracia social.” (PETRINI,
2005, p. 26).
O indivíduo pós-moderno não quer saber de deveres absolutos em relação à própria
vida. E rejeita, igualmente, o dever de se sacrificar em nome do social ou em nome
de grandes ideais (patrióticos, revolucionários, etc.). Mas em contrapartida, observa-
se uma acentuada valorização da ética: o hiperindividualismo coexiste com o
fenômeno crescente do voluntariado, com a solidariedade diante do sofrimento
humano, com a indignação moral diante das injustiças, do terrorismo e do desprezo
pelos direitos humanos. [...] Existe também hoje, um individualismo responsável
que exige uma ética igualmente responsável, que não fique reduzida ao âmbito
individual: Precisamos, sobretudo, de instituições políticas e econômicas mais
justas, mais inteligentes, mais eficazes. No interior do mundo hiperindividualista
reaparece, com nova força, a necessidade de instituições e estruturas a serviço da
justiça e da humanização. De maneira especial, chama a atenção o impulso que está
recebendo a valorização da ética no mundo da economia. Aqui também surge algo
paradoxal: a empresa, dedicada à procura do lucro, aparece, hoje, articulada com a
preocupação ecológico-social e com a solidariedade. (RUBIO, 2007, p. 268).
A construção da Constituição dos Direitos Humanos foi um primeiro passo para o
reconhecimento de todos enquanto seres humanos e da inclusão da maioria pobre e
marginalizada. Além de ganhar cada vez mais espaço para ser transformada em práxis, a
Constituição dos Direitos Humanos tem incluída sob o mesmo valor do ser humano, o
cuidado com o planeta, o que pode ser ilustrado através da Carta da Terra18
. Para Pedro
Oliveira (2009, p. 30), a Carta da Terra pode ser percebida como o despertar de uma
consciência planetária. “Em sua acepção sociológica, o conceito de consciência articula o
autoconhecimento (quem somos), o conhecimento experiencial da realidade (o que é o
mundo) e o critério ético para o agir transformador (em quê esse mundo deve ser mudado)”.
Essa consciência e o cultivo cada vez maior da espiritualidade, mesmo que vivida de
forma individualizada, aponta para uma possibilidade de superação do estado doentio em que
18
“A carta da Terra parte da consciência coletiva do drama que está ocorrendo na atual fase da planetização. Ele
pode se transformar numa tragédia ou significar uma grande crise de passagem de um paradigma a outro
diferente.” (BOFF, 2009, p. 24). “A carta da Terra, cuja importância pode vir a ser equivalente à da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU em 1948, desde então legitimou inúmeras ações
coletivas em defesa desses direitos.” (OLIVEIRA, p. 2009, p. 30).
70
se encontra o ser humano pós-moderno. Nesse contexto de crise do ethos da sociedade
contemporânea, o que podemos identificar como adoecimento da pessoa humana? Como ele
pode ser percebido nos seres humanos contemporâneos?
3.2 Crise do ser humano contemporâneo
O modelo de civilização ocidental pós-moderna que acabamos de apresentar tem
efeitos sobre toda a sociedade e também sobre a saúde humana. Estamos em crise, e não
podemos dizer que se trata de uma crise individual e local, mas de um adoecimento espiritual
da humanidade. Frankl descreve, no decorrer das suas obras (1991/1992), que entre as razões
deste adoecimento espiritual estariam a falta de sentido; o vazio existencial causado pelo fim
das tradições que antes davam suporte às condutas humanas; a ausência dos valores, da
consciência da capacidade de autotranscendência, que é própria do ser humano e que
considera a necessidade humana de ir para além de si mesma, em direção ao encontro com o
outro.
São essas características que nos levam a afirmar que se trata de uma crise da
dimensão espiritual do ser humano. O ser humano está doente, pois o ethos ocidental
contemporâneo, sustentado pelos axiomas da racionalidade instrumental, do individualismo
moderno e do consumismo, o levaram a sua própria desumanização. Uma sociedade que
reduz o ser humano a sua imagem, através da espetacularização das relações, cria um
ambiente favorável à fragmentação humana.
As mudanças vividas com o desenvolvimento do capitalismo e da globalização
atingiram todas as esferas da vida individual e social. O ser humano contemporâneo vive
profundamente diante de incertezas, pois a configuração sociocultural da pós-modernidade,
que se caracteriza por ser veloz e fluida, sem referenciais sólidos de identificação, provoca
uma sensação de desamparo contínua, mas que é vivida como uma aparente liberdade.
Nos países altamente industrializados, isto é, onde a modernidade progrediu mais e
onde a forma moderna de pluralismo está plenamente desenvolvida, as ordens de
valores e as reservas de sentido não são mais propriedades comuns de todos os
membros da sociedade. O indivíduo cresce num mundo em que não há mais valores
comuns, que determinam o agir nas diferentes áreas da vida, nem uma realidade
única, idêntica para todos. (BERGER; LUCKMAN, 2004, p. 39).
Quando esses valores comuns, oferecidos pela sociedade, são valores que consideram
a estrutura humana em sua totalidade, há o favorecimento da construção de uma identidade
71
saudável, pois permite que a pessoa se ocupe do aprofundamento da sua existência. Porém,
quando os valores oferecidos pelo social são desintegradores, eles favorecem o adoecimento
da sociedade. A seguir analisaremos as consequências da mentalidade pós-moderna na
construção subjetiva do ser humano contemporâneo, que se orienta em um contexto secular e
plural, através dos axiomas do individualismo e do mercado.
3.2.1 Adoecimento da dimensão espiritual humana
A decadência espiritual do nosso tempo pode ser identificada em quatro instâncias. Na
maneira como o ser humano interage consigo mesmo, com o outro, com o seu meio e com o
cosmos. Roese (2014, p. 489) percebe esse adoecimento nas três primeiras instâncias, da
seguinte forma:
A relação do ser humano com o meio onde vive está degradada, o poder de decisão e
ação sobre o mundo foi transferido às máquinas e o distanciamento da realidade já
impede que se veja implicado no mundo que o cerca. A relação do ser humano com
seu semelhante está igualmente deteriorada, e a violência é um dos sintomas de que
este mundo humano está em profunda crise. Da mesma forma, uma crise profunda se
abate sobre o ser humano e o seu mundo próprio, levando-o a uma situação de
sofrimento psíquico e espiritual de grandes proporções, que se manifesta também no
uso desmedido de drogas lícitas e ilícitas.
Essa decadência espiritual da sociedade revela uma crise da dimensão espiritual
humana. A dimensão espiritual é detentora dos nossos atos de controle e possui a capacidade
de articular e controlar nosso corpo e psique. O seu adoecimento, portanto, leva à
desarticulação das nossas dimensões, o que podemos chamar de uma crise ontológica
vivenciada pelos seres humanos. Através da nossa espiritualidade, somos capazes de refletir,
de usar a razão, de articular a vida percebida através das dimensões corpórea e psíquica e
oferecer um sentido a ela, através da elaboração das vivências e do aprofundamento das
nossas reflexões.
A nossa dimensão espiritual está adoecida, pois estamos enfatizando o seu aspecto
racional instrumental técnológico e negligenciado o seu aspecto autorreflexivo. O aspecto
filosófico e autorreflexivo da nossa dimensão espiritual é aquilo que nos permite criar valores,
emitir juízos, tomar decisões e agir em liberdade, considerando todos os fatores incluídos em
um processo. É o que nos permite aprofundar nas questões existenciais, que mantém a nossa
abertura ao mundo e às alteridades e que possibilita que encontremos um sentido a tudo que
nos acontece.
72
O que nos marca de fato é a experiência da perda do sentido da vida humana através
do reinado pleno da razão instrumental que domina a natureza e os seres humanos.
Dessa forma, a razão se identifica hoje com o controle técnico universal, gerando a
estupidez em diferentes dimensões da vida: o ser humano termina reduzido a um
acessório da máquina e dos aparelhos de dominação. (OLIVEIRA, 2013, p. 74).
O raciocínio lógico é uma das formas de atuação da nossa dimensão espiritual e não a
única, como nos fez acreditar o pensamento positivista. Existem outras formas de o ser
humano conhecer a si mesmo e o mundo, tanto através das outras dimensões quanto através
de outros aspectos da dimensão espiritual. Porém, sob influência do positivismo, passamos a
fragmentar o ser humano e viver uma espiritualidade em que predomina o racional técnico-
científico e isso trouxe graves consequências para a humanidade.
Somos seres reflexivos, que olhamos de perto cada movimento que fazemos, que
estamos raramente satisfeitos com seus resultados e sempre prontos a corrigi-los. De
alguma maneira, no entanto, essa reflexão não vai longe o suficiente para alcançar os
complexos mecanismos que conectam nossos movimentos com seus resultados e os
determinam, e menos ainda as condições que mantêm esses mecanismos em
operação. Somos talvez mais predispostos à crítica, mais assertivos e intransigentes
em nossas críticas, que nossos ancestrais em suas vidas cotidianas, mas nossa crítica
é, por assim dizer, desdentada, incapaz de afetar a agenda estabelecida para nossa
escolhas na política da vida. (BAUMAN, 2001, p. 34).
O pensamento técnico-científico, sozinho, não oferece critérios de análise suficientes
que abarquem a totalidade do nosso ser e contribuam para que tomemos decisões realmente
livres. Isso ficou ainda mais evidente após a globalização e o contato com a pluralidade
cultural do mundo: “o pluralismo coloca sempre alternativas diante dos olhos, as alternativas
obrigam a refletir, a reflexão solapa o fundamento de todas as versões de um mundo curado –
ou seja, de sua autoevidência.” (BERGER; LUCKMAN, 2004, p. 58). Diante de várias formas
e possibilidades de viver, e não tendo mais um referencial externo que nos ajudasse a
distinguir um caminho adequado a seguir, tínhamos como único recurso fazer escolhas
baseadas na sua comprovação científica e que nos levassem a progredir segundo os pilares da
época. Porém, ao ideal racional que foi a marca da modernidade, seguiu-se a articulação da
razão com a emoção. Emergindo o que hoje chamamos de sociedade do espetáculo. “O que
faz a diferença entre o nosso tempo e outros períodos é a espetacularização da imagem e seu
efeito sobre a massa dos cidadãos contemporâneos, transformados em plateia ou em uma
multidão de consumidores da subjetividade dos outros.” (TEPEDINO, 2011, p. 539).
Através do trabalho midiático, nos são oferecidas incessantemente, sempre sob a
forma de consumo, inúmeras possibilidades de realização profissional, amorosa, religiosa,
73
cultural, fazendo com que a incerteza seja um sentimento permanente, uma característica do
sujeito contemporâneo.
Diante das infinitas possibilidades e ofertas de todos os tipos que se apresentam, a
tarefa de escolher torna-se um fardo angustiante, em virtude do excesso fulminante
de alternativas e possibilidades que aparecem. [...] A dúvida passa a ser um
sentimento perpétuo, pois feita determinada escolha, não se sabe se a opção foi de
fato a mais acertada, dada a infinidade de possibilidades à disposição de todos.
(TAVARES, 2010, p. 30).
Ter muitas opções ou caminhos a seguir não significa necessariamente ter liberdade.
Liberdade mesmo, além de não ter um caminho imposto externamente, seria, diante de uma
infinidade de caminhos, ter critérios para escolher por um caminho que corresponda à
totalidade do nosso ser. Com a perda da importância da tradição e da memória na avaliação do
viver e agir cotidiano, categorias importantes para a formação da nossa identidade,
enfrentamos uma dificuldade na elaboração da nossa própria experiência.
Na velocidade da pós-modernidade, “tudo passa a ser sentido como algo que não tem
muita duração, que é visto como um modismo. Essa rapidez da mudança das ideias provoca
também o fenômeno da superficialidade, onde tudo passa a ser vivido sem profundidade.”
(GIOVANETTI, 1999, p. 170). Estamos diante de uma superficialidade generalizada,
percebida nas relações através da sua fragilidade; da superficialidade do acesso ao
conhecimento, que se satisfaz com manchetes e com um acúmulo de informações superficiais
que não se conectam e não se aprofundam; da superficialidade na relação com o corpo e com
a saúde, entre outros. “O tempo da contemporaneidade não favorece a subjetivação das
experiências, produzindo, assim, sujeitos vazios de significados e referenciais de
identificação.” (TAVARES, 2010, p. 36).
Hoje, as emoções são vividas intensamente, mas pouco refletidas. O que gera uma
falta de comprometimento e uma sensação de vazio logo após a satisfação dos prazeres.
3.2.2 Ênfase da dimensão psíquica na contemporaneidade
A partir da modernidade, o ser humano foi deslocado para o centro do mundo,
almejando liberdade para estabelecer suas próprias regras de felicidade. Com o seu
desenvolvimento, e agora ainda com o acréscimo do neoliberalismo e da midiatização e
norteado pela satisfação do consumo, o ser humano atual deseja realização instantânea, prazer
imediato e descompromissado. A vivência da dimensão psíquica como dominante na
74
sociedade pós-moderna vem carregada de ambiguidades e uma delas é que a mesma
sociedade que valoriza a busca do prazer, vê crescendo o diagnóstico de depressão e os
índices de suicídio19
. O que leva alguns autores a afirmarem que existem fatores sociais
importantes no aumento de doenças mentais, podendo ser compreendidos como uma forma
contemporânea de mal estar.
De acordo com Giovanetti (1999, p. 166), “a vida psíquica articula-se a partir de uma
certa integração das várias faculdades psíquicas, como a preocupação e a representação, os
sentimentos e o pensamento e a vontade”. Sendo assim,
A vida psíquica é, por natureza, um todo que se articula na variedade das faculdades
psíquicas. E a quebra dessa unidade pode provocar um desequilíbrio na nossa vida
cotidiana. Essa quebra de unidade pode ocorrer no momento em que privilegiamos
uma ocupação unilateral e exclusiva de uma dessas esferas da vida psíquica, ou,
ainda, em que, ao privilegiar uma, anulamos a presença da outra, não levando em
consideração que, por exemplo, a matéria sob a qual a vontade e o pensamento
funcionam e à qual se referem os sentimentos são os conteúdos sensoriais e
representativos estruturados nas sensações e representações. A não-compreensão
dialética dessas diferentes esferas da vida anímica provoca o que designamos por
desintegração da unidade psíquica. (LERSCH, apud GIOVANETTI, 1999, p. 166).
O ser humano busca por felicidade e significado, mas a forma como ele responde a
essa inquietação existencial varia conforme os pensamentos dominantes de cada época. No
início da modernidade e do desenvolvimento industrial, a construção subjetiva humana passou
do ser, para o ter. Ter posses era o que movia o ser humano no início do capitalismo. Hoje, ter
já não representa tanto, se ele não servir também para aparecer diante do cenário de
espetáculo que rege a nossa sociedade. Houve um “deslizamento do ter para o parecer ou (a)
parecer diante do espaço social e, neste sentido, toda realidade individual torna-se social.”
(TAVARES, 2010, p. 40).
O que percebemos na contemporaneidade, em contraponto ao racionalismo moderno, é
um culto ao sentimento. Numa época de aparências, parecer importa muito mais do que ser.
Isso acontece porque, de maneira geral, se damos ênfase em uma dimensão da nossa vida, isso
provoca uma quebra na nossa harmonia e para restabelecê-la, buscamos o seu oposto. Uma
explicação para isso é que:
se somos massacrados pela extrema organização da vida, vamos dar asas à
imaginação, destacando a irracionalidade como a maneira de fazer frente à
unilateralidade da razão. Essa postura, que à primeira vista parece libertadora,
consiste, no fundo, em permanecer no mesmo referencial, pois se substitui uma
uniteralidade, a da racionalidade, por outra: a do sentimento. A vida, que era
19
Nos últimos 45 anos, os índices de suicídio aumentaram em 60% em todo o mundo. (DUTRA, 2017).
75
governada pela sistematização da razão, passa a ser conduzida pela curtição dos
sentimentos e das sensações que estes oferecem. (GIOVANETTI, 1999, p. 168).
Além do supracitado, Giovanetti identifica também outros dois fenômenos
compensatórios em relação à ênfase da racionalidade moderna e que revelam a alienação do
ser humano contemporâneo: a grosseira substituição da religião pelas mais diversas formas de
espiritualidade e ocultismos; e a busca exagerada por distração e divertimento, que invade a
vida cotidiana com um interesse cada vez maior de nos anestesiarmos por programas que nos
impedem de pensar. Trata-se de um comportamento favorecido pela dinâmica de tempo pós-
moderna, já que “os espectadores tornam-se incapazes de julgar, avaliar e criticar qualquer
coisa que seja, pois isso requer um tempo de contemplação impossível de se concretizar nos
dias atuais” (TAVARES, 2010, p. 42).
O fechamento do ser humano ao seu dinamismo psicológico produz uma interioridade
egoísta que o leva a uma busca incessante por autoconhecimento e autorrealização. “O
homem pós-moderno não é religioso, é psicológico. Pensa mais na expansão da mente que na
salvação da alma.” (SANTOS, 1986, p. 94). Esse centramento da vida humana, com ênfase na
dimensão psicológica, deixa de lado as questões relativas ao sentido da vida e exclui o outro
do processo de personalização, ou o inclui de forma objetal, podendo levar a uma
desorientação e a um vazio existencial.
Os valores foram trocados pelos modismos, os ideais, pelo ritmo cotidiano. Saturado
de consumo e informação, ele encosta no conformismo, refletindo a famosa apatia
pós-moderna. Sem laços ou impressões fortes, sua apatia logo cai na depressão e na
ansiedade, ambas melancólicas. [...] Temendo a robotização, mas sem projetos, sua
vida interior é sem substância. (SANTOS, 1986, p. 103).
O ser humano contemporâneo se vê diante de uma imensa gama de opções de modos
de ser e possibilidades de prazer, mas sem critérios para escolher nem garantias sobre essas
escolhas, sejam elas garantias naturais, oferecidas pelo Estado; ou sobrenaturais, oferecidas
por uma Igreja. Resta a ele, portanto, curtir o momento presente ao máximo, ao mesmo tempo
em que precisa garantir o seu futuro. Esse paradoxo provoca várias consequências e algumas
delas são a necessidade e a ilusão de controle, bem como a insegurança. Para Bauman (2001,
p. 48), isso ocorre porque “riscos e contradições continuam a ser socialmente produzidos; são
apenas o dever e a necessidade de enfrentá-los que estão sendo individualizados”. Para esse
autor,
76
o fenômeno que todos esses conceitos tentam captar e articular é a experiência
combinada da falta de garantias (de posição, títulos e sobrevivência), da incerteza
(em relação à sua continuação e estabilidade futura) e de insegurança (do corpo, do
eu e de suas extensões: posses, vizinhança, comunidade). (BAUMAN, 2001, p. 201).
A despeito de todo progresso alcançado com a modernidade, que prometia uma
felicidade ao ser humano, de maneira geral, ele não se encontra satisfeito. O que existe é uma
ilusão de controle que permeia toda a nossa produção de subjetivação e que gera, inclusive, o
surgimento ou aumento de várias doenças mentais. O que nos leva a afirmar que o ser humano
contemporâneo está passando por uma crise existencial. Os sintomas dessa crise podem ser
percebidos através do adoecimento psíquico cada vez mais presente em nossa sociedade, o
que se relaciona com o “paradoxo de que a modernidade produz o bem estar e o mal estar, os
extremos.” (ROESE, 2014, p. 492).
Em 2017, a Organização Mundial de Saúde, teve como tema de sua campanha a luta
contra a depressão, cujos números de casos diagnosticados crescem cada vez mais, fazendo-a
ser considerada a doença do século e a que mais pode matar nos próximos anos. Além da
depressão, percebemos o aumento dos casos de suicídios; doenças psicossomáticas;
transtornos de ansiedade; transtornos de humor; sexualidade vivida de maneira extrema,
levando à falta de libido natural e à recorrência frequente a medicamentos; banalização da
sexualidade; o aumento da produção e da procura por materiais pornográficos.20
Não podemos
deixar de considerar o consumismo e uso de tecnologia descontrolado; o aumento do uso de
drogas lícitas e ilícitas e de mecidamentos; o medo e a angústia generalizada em relação ao
futuro, entre outros21
.
Esse prazer vivido de forma desconexa, como uma presença ausente, própria da
fragmentação do humano, nos leva para outra questão: O que sobra da nossa corporeidade
quando desvinculada da relação com as outras dimensões humanas?
20
De acordo com estudos na área de neurologia, o aumento da ansiedade em nossos tempos pode ser uma
resposta fisiológica a uma exigência cada vez maior de perfeição. Explicação que podemos estender ao aumento
do uso de drogas, perda do prazer sexual e um crescente uso de remédios para prolongamento do prazer. (Dr.
Bruno Rezende de Souza, do Núcleo de Neurociências da UFMG, em palestra ministrada sobre saúde mental, no
dia 14/03/2017, na UFMG, em ocasião da comemoração da “Semana do cérebro”).
21
O excesso do uso de drogas, entorpecentes, antidepressivos, pelo menos no caso brasileiro, maior mercado de
remédios para dormir do mundo, tanto indicam uma frustração, como uma decadência da força de reflexão e de
criação de uma nova realidade. (ROESE, 2014, p. 500).
77
3.2.3 Percepção do corpo na cultura contemporânea
Um corpo desvinculado das suas dimensões psíquicas e espiritual é um corpo adoecido
ou objetificado. O corpo é a porta de entrada do nosso contato com o mundo e com outras
pessoas. Através dele nos expressamos, definimos nosso lugar, nossa comunidade e também
modificamos o mundo.
Falar do corpo é falar, também, de nossa identidade dada a centralidade que este
adquiriu na cultura contemporânea cujos desdobramentos podem ser observados, por
exemplo, no crescente mercado de produtos e serviços relacionados ao corpo, a sua
construção, aos seus cuidados, a sua libertação e, também, ao seu controle.
(GOELLNER, 2007, p. 29).
No que diz respeito ao corpo enquanto estética, ele também é capaz de revelar um
pouco das nossas características pessoais, de grupo, crenças e cultura. A maneira como nos
apresentamos fisicamente pode ser uma forma de ser aceito pela sociedade e também de nos
diferenciarmos, de marcar nosso lugar no mundo, de identificar os nossos pares e até mesmo
de passar despercebido. A globalização econômica, ao mesmo tempo que impõe uma
massificação da aparência – processo que fica evidente quando viajamos pelos centros
urbanos de vários países do ocidente – exige também uma personalização, como um modo de
diferenciação e de destaque em meio a multidão. Tanto a massificação, quanto a
personalização são explorados pelo mercado e se retroalimentam.
Existem alguns aspectos específicos da cultura ocidental contemporânea que, de
acordo com Nico (2015, p. 68), podem contribuir para que o ser humano hoje, apesar de mais
rico que ontem, não se sinta realizado e eles estão diretamente relacionados aos cuidados com
o corpo. São eles o empobrecimento da qualidade da dieta alimentar, a inatividade física, as
disfunções endócrinas devido à exposição inadequada ao sol, a falta de sono, entre outros.
Além disso, os ideais de padrão do corpo moderno são inalcançáveis, porém, ao invés
de questionarmos os padrões estabelecidos - por quem e com qual interesse -, o que fazemos é
embarcar numa frustração individual. Impera uma estética, mas uma estética vazia, que forja
um conteúdo, ao invés de revelá-lo.
A vivência da dimensão corpórea na contemporaneidade, por sua própria
fragmentação, está repleta de movimentos contrários, ora em direção ao hedonismo, ora em
direção ao bem viver. “Nossa sociedade da magreza e da dieta é também a do sobrepeso e da
obesidade” (LIPOVETSKI, 2004a, p. 21). Um exemplo disso é que ao mesmo tempo em que
comemos para saciar um desejo, fazendo com que a comida sirva para preencher um vazio ou
78
pelo simples prazer proporcionado pelo alimento, também nos impomos restrições
alimentares exageradas, oriundas de uma preocupação com um futuro saudável ou com a
estética atual.
Existe um ideal de corpo perfeito, que a principio considerava apenas a estética e que
hoje traz consigo o valor da saúde, porém, um valor vazio de sentido, pois se mostra como um
cuidado que se confunde com a aparência desse corpo ou sua manutenção produtiva. “A
ciência do século XIX, que classifica e analisa o corpo no seu detalhe, é aquela que vai
legitimar uma educação do corpo visando torná-lo útil e produtivo” (GOELLNER, 2007, p.
34). O avanço da medicina e da tecnologia produziu o desenvolvimento da cura e a prevenção
para vários tipos de doenças, mas também produziu, juntamente com outras características do
estilo de vida moderno, doenças.
A promessa de uma vida mais longa e saudável é acompanhada, por exemplo, de
inúmeros discursos e representações que autorregulam o indivíduo tornando-o,
muitas vezes, vigia de si próprio. A ênfase na liberdade do corpo no que respeita a
sua exposição e desnudamento nos espaços públicos caminha passo a passo com a
valorização dos corpos enxutos e em forma onde o excesso, mais que rejeitado é
visto, por vezes, como resultado da displicência ou falta de cuidado. (GOELLNER,
2007, p. 38).
A ambiguidade do estilo de vida moderno pode ser percebida em vários aspectos do
nosso cotidiano e fica evidente quando analisamos o contexto de surgimento e manutenção
das doenças modernas. Existe um complexo industrial que se beneficia do surgimento de
novas doenças e que, portanto, tem interesse na manutenção desse estilo de vida adoecedor.
Mendonça e Marinho (2008), ao fazerem um estudo comparativo entre medicamentos e
agrotóxicos, concluíram que:
A produção e venda de fármacos e agrotóxicos possuem uma mesma lógica, a de um
mercado baseado na formação de capital que nem sempre está preocupado com a
promoção de saúde e com a valorização do meio ambiente, alicerçado por políticas
geradas após a Segunda Guerra Mundial. Estas substâncias, produzidas em sua
maioria por multinacionais, tem seu consumo favorecido por estratégias comerciais
apoiadas pelo Estado. Assim, existe o consumo tanto de fármacos como de
agrotóxicos, apoiados pela mesma lógica comercial, produzidos pelo mesmo
complexo industrial, apresentando usos complementares. Agrotóxicos e fármacos
produzem intoxicações e doenças. (MENDONÇA; MARINHO, 2008, p. 474).
Trazer essa informação torna-se importante para compreendermos que essa
fragmentação humana não acontece ao acaso. Em geral, vivemos uma relação desintegradora
com nosso corpo, através de experiências que objetivam disciplinar nossos corpos, seja
através de uma educação moral, de um discurso de moda ou de progresso. “O raciocínio
79
contemporâneo apresenta forte inclinação reducionista das investigações científicas para o
aspecto puramente biológico (corporal). E, infelizmente, esse modo perverso de reconhecer o
outro, estritamente pela composição biológica, causou a desconstrução da identidade do ser
humano.” (TEDESCO; STRIEDER, 2014, p. 109).
Essa fragmentação do corpo gerou uma insatisfação que já pode ser percebida através
do surgimento de movimentos de busca por experiências integradoras; pelo crescente
interesse em terapias holísticas ou em vivências religiosas com o predomínio da hilética; pelo
aumento do número de professores, terapeutas e médicos que apontam para a necessidade
desse cuidado e integração, entre outros. É “vivendo segundo o espírito, que o homem vive
humanamente sua vida corporal e psíquica” (VAZ, 1974, p. 218). Ao negligenciar a nossa
dimensão espiritual, nos desumanizamos e, consequentemente, desumanizamos o outro.
De acordo com Tedesco e Strieder (2014, p. 109), a contemporaneidade, ao objetificar
o corpo humano e não mais considerá-lo como lócus das relações entre humanos, mas como
responsabilidade individual de produção e intervenção no corpo, dissemina a morte da
subjetividade e da intersubjetividade humana. Isso nos leva para o próximo ponto: como se
estabelecem as relações em uma sociedade em crise espiritual?
3.2.4 Lugar do outro na contemporaneidade
A dimensão humana que chamamos de social refere-se à dimensão dialógica de cada
ser humano com o mundo. Dimensão responsável pelo intercâmbio entre o que acontece
dentro e o que acontece fora de nós e que se dá através das diversas formas de relacionamento
que podemos estabelecer. Uma formação humana não se completa sem a presença do social e
a forma como a sociedade se organiza influencia diretamente a maneira como esse indivíduo
se percebe e se posiciona no mundo.
A revolução antropológica do sujeito que passou do início da modernidade, do penso –
logo existo, para o sinto – logo existo de hoje, mudou o eixo principal de organização da
subjetividade contemporânea e trouxe como “característica fundamental do viver
contemporâneo um centramento no eu”. (GIOVANETTI, 2015, p. 93). Esse individualismo
nega a estrutura humana que se constitui desde o seu nascimento e durante todo o seu
desenvolvimento por uma dependência de outro, totalmente diferente de mim. Negar que nos
constituímos através de alteridades, afirmando o ser humano individual como única
possibilidade para se alcançar os ideais de progresso e liberdade modernos, trouxe grandes
consequências para a formação da subjetividade e de toda a sociedade.
80
O individualismo pós-moderno impossibilita que aconteçam os processos de
singularização e a construção de comunidades, já que ele nega o seu contexto e a importância
do outro. As relações afetivas seguem a mesma lógica de consumo, onde “laços e parcerias
tendem a ser vistos e tratados como coisas destinadas a serem consumidas, e não produzidas”.
(BAUMAN, 2001, p. 205). Não existe um empenho, um compromisso diante de um
relacionamento, pois o objetivo principal, não é a sua durabilidade, mas ao contrário.
Na maioria dos relacionamentos atuais o outro é rapidamente esquecido e
desconsiderado após o envolvimento oportuno. O próprio envolvimento em si não se
cristaliza, pois eliminaria todas as outras possibilidades de encontros futuros e
experiências de prazeres imediatos. (TAVARES, 2010, p. 52).
Somados a isso, o fato de vivermos uma época que, por sua própria multiplicidade de
opções, também é cheia de incertezas e inseguranças, quando vivida de forma individual,
tende a exacerbar a distancia que nos separa dos outros. Essa forma de nos relacionarmos
através da competição garante a perpetuação de um sistema que tem como objetivo a
produção e o consumo, mas destrói nossa humanidade. “Esses resquícios de modernidade
continuam inculcando no tecido social o medo do relacionar-se com o outro, concebendo-o
como um adversário, que espreita para tomar sua vaga no emprego ou seu status social.”
(TEDESCO; STRIEDER, 2014, p. 108). Nossas relações se transformaram em relações de
utilidade ou competição e não de cuidado. Além disso, a individualização, como uma
dificuldade de encontrar uma causa comum pelo que lutar nos enfraquece politicamente na
busca por direitos sociais.
A incerteza do presente é uma poderosa força individualizadora. Ela divide em vez
de unir, e como não há maneira de dizer quem acordará no próximo dia em qual
divisão, a ideia de interesse comum fica cada vez mais nebulosa e perde todo valor
prático. Os medos, ansiedades e angústias contemporâneos são feitos para serem
sofridos em solidão. [...] Isso priva as posições de solidariedade de seu status antigo
de táticas racionais e sugere uma estratégia de vida muito diferente da que levou ao
estabelecimento das organizações militantes em defesa da classe trabalhadora.
(BAUMAN, 2001, p. 186).
Os laços afetivos também tornam-se mais frágeis nesse cenário individualista. Além
do outro se tornar um impeditivo para o progresso individual, “os avanços tecnológicos,
apesar dos inúmeros benefícios, contribuem também para a estagnação e/ou exclusão das
relações humanas.” (TEDESCO; STRIEDER, 2014, p. 108). Na sociedade tecnológica, nós
perdemos o contato direto com a vida e uns com os outros e vivemos relações mediadas por
aparelhos eletrônicos que, de acordo com Giovanetti (1999, p. 171), levam a um vazio
81
existencial. “É a interposição de um mundo técnico, a ditadura da tecnologia sobre a
espontaneidade da vida, deixando, assim, o homem longe das suas relações imediatas com o
mundo e com os outros e provocando um distanciamento cada vez maior das riquezas do
contato espontâneo com a vida.”
Dessa forma, o outro e o próprio relacionamento adquirem um status de objeto,
perdendo o seu dinamismo próprio. Queremos tudo pronto e rápido e buscamos alguém que se
adeque a nós e não nos faça perder tempo. Tiramos o máximo proveito do outro, ao invés de
construir algo junto com o outro e esperar o que pode brotar desse encontro e diálogo. Não
nos fazemos sem o outro e a partir do momento que nos guiamos pelo individualismo,
fechamos a possibilidade de nos conhecermos em nossa totalidade.
Devido à sua própria estrutura transcendental, o ser humano precisa desse movimento
para fora para ser mais humano. Por esse motivo, Giovanetti (2015) afirma que a religião
pode ser uma força capaz de reverter a situação do sujeito voltado para si mesmo e apresentar
uma saída para a vivência da exterioridade.
A religião permanecerá, pois, no âmbito privado porque ela cumpre esse papel
essencial na vida, que é o de apontar o caminho para uma saída de si mesmo. É
nesse sentido que vemos a religião como uma força organizadora da subjetividade
no momento em que ela é um espaço de articulação do sentido da vida. Essa relação
com o sobrenatural recupera o outro como elemento importante na sua constituição
como pessoa. E mais, possibilita o descentramento egóico postulado pelo modo a ser
apresentado pela sociedade atual. Só a vida segundo o espírito proporcionará ao ser
humano uma vida mais plena. (GIOVANETTI, 2015, p. 107).
No início dissemos que a crise pode ser percebida através das quatro instâncias de
relacionamento do ser humano: consigo mesmo, com o outro, com o meio e com o cosmos.
Agora analisaremos mais detalhadamente as características da crise espiritual na relação do
ser humano com o cosmos. Antes da modernidade, os modelos de compreensão da sociedade
tinham a religião como um dos seus pilares; com a modernidade, a civilização ocidental
colocou o ser humano como senhor de si mesmo, norteado por um humanismo que visava a
democracia, igualdade e liberdade, rompendo assim com a importância da religião para a
felicidade e organização humana. Nesse sentido, como podemos explicar a insistência do
religioso na pós-modernidade? Qual seria o lugar da religião hoje na construção de sentido
humana e no reconhecimento de uma abertura ao outro? Qual a característica específica da
religião que a faz permanecer no indivíduo, mesmo tendo saído do lugar de organizar o
social?
82
3.3 Senso religioso e democracia no Brasil contemporâneo
Tradicionalmente a religião contribuiu para a integração das sociedades humanas, na
medida em que tinha como uma das suas principais funções articular o sentido do que era
vivido em seu complexo social. Porém, hoje, de acordo com Hervier-Léger (2008, p. 80) as
religiões ocidentais estão em movimento. No contexto do pluralismo religioso, as religiões
perderam sua plausibilidade em relação à articulação de um sentido social e esse declínio
começou com a secularização e ganhou contornos próprios à medida que a modernidade foi
avançando.
As ciências que se ocupam da compreensão de uma cultura percebem que cultura e
religião estão de tal forma imbricadas que é difícil analisar uma cultura sem levar em conta
aspectos da religião, ou vice versa. Um termo que surgiu de análises dessa relação entre
religião e sociedade foi o conceito de secularização, que é apresentado de formas distintas por
vários autores. Consideramos oportuno, mesmo sem pretensão de esgotar esse conceito tão
polissêmico, apresentar algumas considerações sobre ele.
Weber (2004), ao analisar o desenvolvimento histórico do racionalismo, percebe que
houve uma mudança, do início do século XX em relação ao século XVII, no que tange à
influência dos conteúdos religiosos na conduta da vida e da cultura e chama de processo de
secularização, o declínio da religião como potência e sua separação do Estado. Ele percebe
que houve também um desencantamento do mundo, fazendo referência à perda de sentido da
sociedade e à eliminação da magia como meio de salvação.
Berger (1985), por sua vez, entende por secularização “o processo pelo qual setores da
sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”. E
percebe que a secularização manifesta-se em vários aspectos diferentes.
Quando falamos sobre a história ocidental moderna, a secularização manifesta-se na
retirada das Igrejas Cristãs das áreas que antes estavam sob seu controle ou
influência: separação da Igreja e do Estado, expropriação das terras da Igreja, ou
emancipação da educação do poder eclesiástico, por exemplo. Quando falamos em
cultura e símbolos, todavia, afirmamos implicitamente que a secularização é mais
que um processo sócioestrutural. Ela afeta a totalidade da vida cultural e da ideação
e pode ser observada no declínio dos conteúdos religiosos nas artes, na filosofia, na
literatura e, sobretudo, na ascensão da ciência, como uma perspectiva autônoma e
inteiramente secular, do mundo. Mas ainda, subentende-se aqui que a secularização
também tem um lado subjetivo. Assim como há uma secularização da sociedade e da
cultura, também há uma secularização da consciência. Isso significa, simplificando,
que o Ocidente moderno tem produzido um número crescente de indivíduos que
encaram o mundo e suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas.
(BERGER, 1985, p. 119).
83
Para Berger, secularização seria, então, a saída da religião enquanto uma instituição
organizadora da sociedade e, portanto, fornecedora de estruturas objetivas para a formação
subjetiva dos indivíduos. Saída que abriu espaço para a queda do monopólio da Igreja
Católica no Ocidente, possibilitando a emergência de um pluralismo religioso. Tal emergência
levou o próprio autor a rever o termo, em sua obra Rumor dos Anjos (1996), quando
reconhece uma permanência ou um ressurgir do religioso e apresenta, em outro trabalho, o
conceito de dessecularização (2001), referindo-se ao retorno da influência da religião na
sociedade. Mas qual seria a função da religião na sociedade contemporânea?
Taylor (apud RODRIGUES, 2015), identifica duas grandes correntes de pensamento
em relação ao significado de secularização; uma que a descreve como o esvaziamento dos
espaços públicos de Deus ou de qualquer referência à Deus e outra que identifica um declínio
da crença e um abandono das convicções e práticas religiosas. O autor propõe ainda uma
terceira compreensão, onde o sentido da secularização corresponderia à “passagem de uma
sociedade em que a fé em Deus é inquestionável e, de fato, não problemática, para uma na
qual a fé é entendida como uma opção entre outras e, em geral, não a mais fácil de ser
abraçada”. Aqui o autor aponta o desafio de se crer em algo sobrenatural, em uma sociedade
marcada pela ciência positivista e que valoriza os prazeres efêmeros.
As religiões tradicionais e os movimentos religiosos, ao mesmo tempo que
acompanham as características predominantes de uma época, também surgem como resposta
ou resistência ao pensamento dominante. Esses movimentos, que acontecem
concomitantemente, podem gerar configurações religiosas diversas. Para compreender as
características da religião, no contexto do pluralismo religioso, e suas implicações na
construção de sentido social e individual, é imprescindível localizá-la dentro do amplo e
complexo quadro de globalização multifacetado que abarca as dimensões econômicas, sociais,
políticas, culturais e religiosas.
Compreenderemos a secularização como um processo de transformação do religioso,
conforme aponta Daniele Hervieu-Léger (2008, p. 37), que entende que a secularização não
pode ser resumida, nem confundida com a saída cultural e social da religião. Para Hervieu-
Léger, o que a secularização faz é combinar, de maneira bem complexa, “a perda da
influência dos grandes sistemas religiosos sobre uma sociedade que reivindica sua plena
capacidade de orientar ela mesma seu destino e a recomposição, sob uma nova forma, das
representações religiosas que permitiram a esta sociedade pensar a si mesma como
autônoma”.
84
Com a saída da religião (GAUCHET, 2015) da centralidade de sentido do mundo, o
mundo viveu, de forma ainda mais preponderante a partir do século XX, uma quebra das
metanarrativas e em seu lugar foram oferecidas referências de sentido mais imediatas, tanto
por parte de religiões substitutivas, como por parte de ideologias e utopias. Elas oferecem um
sentido, mas não estruturam o social e, além disso, possuem como pano de fundo o mercado e
o individualismo, características que aparecem destacadas em várias formas de se crer na
contemporaneidade.
A diversidade religiosa acompanha a história da humanidade, mas o pluralismo
religioso, enquanto uma consciência dessa diversidade, é uma novidade22
. De acordo com
Berger e Luckmann (2004, p. 49), “talvez o fator mais importante no surgimento de crises de
sentido na sociedade e na vida do indivíduo não seja o pretenso secularismo moderno, mas o
moderno pluralismo”, que significa um aumento qualitativo e quantitativo do pluralismo. Isso
porque antes as formas de se crer estavam restritas à ligação com uma religião, que ao
organizar objetivamente o social, organizava também a subjetividade humana. Com a
secularização e o pluralismo moderno, perderam-se, portanto, a obrigatoriedade de
pertencimento a uma instituição religiosa para se afirmar a crença em algo, bem como as
referências de sentido único para organizar a nossa subjetividade.
Ganhamos, no lugar, uma pluralidade de sentidos, tanto religiosos, quanto de mercado,
que devem ser escolhidos individualmente, sob os critérios de uma modernidade racional e
capitalista que não respondem ao nosso desejo de totalidade, gerando uma crise generalizada,
“cujos sintomas afetam um grande contingente de pessoas e, entre outros, podem ser
verificados na desesperada busca pelo restabelecimento, ou seja, busca por religião e
experiências de cunho espiritual” (ROESE, 2013, p. 1615). Para compreendermos as
características da busca de sentido humana contemporânea é imprescindível analisar as
características do fenômeno religioso.
De acordo com Goffi e Fiores (1993, p. 341), “apesar das sombrias previsões sobre o
fim da religião, nossa época está cheia de movimentos espirituais que demonstram a
vitalidade do sentido religioso no mundo atual e particularmente na Igreja”. Eles afirmam
ainda que
O renovado interesse espiritual de nossa época brota de profundas exigências de
autenticidade, de dimensão religiosa, de interioridade e de liberdade, que não
satisfaz a sociedade consumista. A civilização industrial não cumpriu suas
22
Pluralismo religioso diz respeito à consciência da diversidade e pluralidade religiosa diz da realidade da
diversidade religiosa.
85
promessas: em vez de oferecer um mundo segundo a medida do homem, em que este
pudesse morar e conviver procurando o bem comum, trouxe-nos, entre outras coisas,
o critério da produtividade como parâmetro de valor, a massificação e a manipulação
das pessoas, uma angustiante incomunicabilidade, um futuro ameaçador, a atrofia
dos sentimentos e a poluição ecológica. (GOFFI; FIORES, 1993, p. 341).
Talvez uma das marcas mais fortes da religiosidade pós-moderna seja uma invariante
permanência do sagrado, “ora recalcado, ora em evidência, ora em retração, ora de presença
extensiva no tempo, ora extremamente breve, ora como adesão profunda, ora de forma
superficial, tudo de acordo com as conjunturas e tendências societárias majoritárias”
(STARK, BAINDRIGE apud CAMURÇA, 2008, p. 98). A experiência religiosa pós-moderna
não acontece em um único local e não pertence a apenas um dos polos, seja de dominação da
religião institucional, ou de ausência da vida humana contemporânea. Nem sagrada, nem
profana. Tão sagrada, quanto profana.
3.3.1 Campo religioso do Brasil contemporâneo
No cenário brasileiro, a secularização e o pluralismo religioso possuem contornos
próprios. O Brasil, por seu próprio processo de colonização, é um país que possui em sua
cultura uma influência muito grande da Igreja Católica e “um clima espiritualista”
(SANCHIS, 2012), que leva os brasileiros, de maneira geral, a ter uma certa predisposição à
religiosidade. Uma tendência geral que se repete com certa constância em vários grupos,
como um processo. Características que até favorecem o sincretismo brasileiro, oferecendo ao
nosso cenário particularidades que interferem na religiosidade do povo.
As transformações históricas ocorridas na Europa ocidental moderna, incluindo a
percepção de que a secularização do cristianismo europeu é decorrente da modernização, não
é um processo que pode ser generalizado. No Brasil, de acordo com Camurça (2008, p. 94), os
teóricos dividem opiniões em relação à efervescência dos novos movimentos religiosos. As
“posições teóricas no país acompanham a polarização mais geral: de um lado, a posição que
analisa esta revivescência religiosa como reforço da secularização, e outra, na direção oposta,
como irrupção do sagrado e reencantamento do mundo.”
O fato é que a vivência religiosa no Brasil sofreu, nas últimas décadas, fortes
mudanças. Alguns aspectos do novo perfil devem-se à multiplicação e maior
visibilidade dos grupos orientais, em toda a sua diversidade étnica e cultural, à
afirmação religiosa indígena e afro-brasileira, em suas diversas matizes, a presença
pública das diferentes expressões do Judaísmo e do Islamismo, às expressões
espiritualistas e mágicas que se configuram em torno da chamada Nova Era, ao
fortalecimento institucional dos movimentos católicos de renovação carismática, e
86
ao crescimento evangélico, em especial, o das igrejas e movimentos pentecostais.
Todas essas expressões, além de outras, formam um quadro complexo e de matizes
as mais diferenciadas. (RIBEIRO, 2013, p. 60).
Segundo dados IBGE (2010), em relação à pertença religiosa, a população brasileira se
divide em 64,6% de católicos, 22,2% de evangélicos, 8,1% de sem religião e 5% de outras
religiões. Esses dados são bem diferentes dos dados coletados pelo mesmo instituto nos
últimos anos, o que deixa em evidência uma mudança no nosso cenário religioso. Para
Hervieu-Léger, “a religiosidade das sociedades modernas está em movimento” (2008, p. 80),
por isso, para compreendermos a realidade religiosa brasileira contemporânea, precisamos
analisar este movimento que ocorre aqui no Brasil.
De maneira geral, percebemos que “prosperou a diversificação da pertença religiosa e
da religiosidade no Brasil, mas se manteve praticamente intocado seu caráter
esmagadoramente cristão.” (MARIANO, 2013, p. 119). Conforme apresentado no quadro
abaixo, tivemos nos últimos 30 anos, um declínio do catolicismo acompanhado de um
crescimento dos evangélicos. O Cristianismo teve uma diminuição percentual de menos de
10% entre 1980 e 2010 (95,80 para 88,80), sendo ainda a crença majoritária do brasileiro,
tendo, portanto, uma grande influência em sua formação cultural23
.
TABELA 1 - Pertença religiosa da população brasileira
1980 1990 2000 2010
Católicos 89,2% 82,96% 73,60% 64,6%
Evangélicos 6,6% 9% 15,4% 22,2%
Sem religião 1,6% 4,7% 7,3% 8,1%
Outras religiões 2,5% 3% 3,5% 5%
Fonte: IBGE, 2010
Em relação à diminuição do número de pessoas que se declaram católicas, é
importante ressaltar que, inversamente à queda do catolicismo nas últimas décadas, a Igreja
Católica enquanto instituição vem crescendo tanto em número de sacerdotes, quanto em
quantidade de novas Igrejas sendo construídas, mostrando que a crise do catolicismo no Brasil
23
Característica que pode, inclusive, influenciar nas respostas ao questionário sobre religiosidades, já que temos
um imaginário popular que estigmatiza algumas práticas religiosas. Um exemplo disso é a quantidade de pessoas
que declaram pertença a religiões de matriz africana ser tão baixo. “Umbanda e candomblé, somados,
permaneceram com parcos 0,3% da população brasileira, não obstante sua forte presença no imaginário social e
sua elevada clientela de consulentes. A demonização pentecostal contra os cultos afro-brasileiros, por certo,
exerceu algum impacto negativo sobre a expansão dessas religiões e, talvez, até sobre a autoidentificação
religiosa de seus adeptos diante de tal discriminação, problema que resulta igualmente, mas por outras razões, de
seu velho sincretismo com o catolicismo”. (MARIANO, 2013, p. 122).
87
não é institucional. “A Igreja Católica vem crescendo significativamente por meio de novas
paróquias, criadas nas últimas décadas, e conta atualmente com um percentual de padres por
habitantes no país que jamais teve em toda a sua história.24
” (STEIL; TONIOL, 2013, p. 232).
Percebemos que a despeito do que se esperava com a secularização, “as formas
pentecostais e carismáticas ganharam apego popular, espaço social e base institucional, tanto
no mundo evangélico quanto no católico.” (RIBEIRO, 2013, p. 63). No que tange à expansão
dos evangélicos, que passaram de 6,6%, em 1980; para 22,2%, em 2010, um aspecto que
chama a nossa atenção é que o crescimento dos evangélicos ocorreu principalmente entre os
pentecostais e neopentecostais. Essas denominações religiosas possuem características
consoantes com as exigências do mercado e possuem um discurso de progresso que se adequa
bem ao cenário pós-moderno25
.
Percebemos uma crise na transmissão das tradições religiosas, que abre espaço tanto
para o surgimento de novas denominações dentro das religiões tradicionais, como para a
criação de novos movimentos religiosos. A terceira linha da tabela 1 apresenta-nos um dado
referente ao crescimento daqueles que se declaram sem religião. Apesar de representarem
apenas 8,8% na última pesquisa do IBGE, eles são o grupo que registrou maior crescimento
percentual nas últimas décadas, representando hoje o terceiro maior grupo religioso no país e
no mundo.
Outro aspecto que precisamos destacar em relação a esses dados é que a denominação
sem religião refere-se àqueles que não possuem ligação com uma instituição religiosa. Essa
ausência de vínculo institucional, de acordo com Mariano (2013, p. 123), “tende a resultar na
redução da influência de grupos religiosos na formação dos valores pessoais, sendo
efetivamente o mais secularizado de todos os grupos religiosos”. A despeito disso, muitos dos
que se declaram como sem religião relatam acreditar em algo transcendental, mas não
possuem uma prática espiritual. De acordo com os dados de uma pesquisa analisada por
RIBEIRO e CAMPOS (2014) sobre senso religioso e contemporaneidade, entre as pessoas
24
Desde 1990, observamos que o número de paróquias passou de 7.786 para 10.720. Isso é um aumento de
quase 40%, em 16 anos. Com relação ao número de sacerdotes, o aumento é ainda mais contínuo e expressivo. A
partir da década de 1980 até 2010, o número de sacerdotes passou de 12.688 para 22.119, um aumento de mais
de 60%. (STEIL; TONIOL, 2013, p. 233).
25
Em geral, pentecostais e neopentecostais caracterizam-se por serem “igrejas fundadas por brasileiros e com
investimento nacional, têm fortes lideranças, opõem-se aos cultos afro-brasileiros, seus cultos estimulam a
expressividade emocional, colocam ênfase em rituais de cura e exorcismo, na guerra espiritual e na prosperidade
(teologia da prosperidade), são bastante liberadas no que toca a estereótipos de usos e costumes, têm uma
estrutura empresarial significativa, adotam técnicas de marketing e gerenciamento modernos, incluindo uma
exploração agressiva dos meios de comunicação de massa e técnicas enérgicas de persuasão.” (SIQUEIRA,
2006, p. 14).
88
pesquisadas que se autocompreendem como sem religião, assim como no censo de IBGE,
apenas 10% declararam não acreditar em Deus26
.
A última linha da tabela 1 refere-se ao crescimento de outras religiões no Brasil, que
representam 5% da nossa população. Sendo que desses, 40% se denominam como espíritas.
Apesar de insignificante no conjunto, o crescimento do grupo de novas religiões e
espiritualidades é marcante na sociedade brasileira. O indivíduo pós-moderno possui uma
vida fragmentada e encontra dificuldades para reconstituir sua unidade. “O desenvolvimento
em proliferação das crenças a que assistimos hoje, responde, em larga medida, à necessidade
de recompor, a partir do indivíduo e de seus problemas, alguma coisa desses universos de
sentido perdidos”. (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 56). Elas mostram uma tendência de
orientalização e de busca por experiências integrativas do ser.
Discutir pertença religiosa em um contexto de secularização e pluralidade, em que a
obrigatoriedade de pertencimento a uma única religião não existe e onde o indivíduo pode se
relacionar de maneiras distintas com uma religião, leva ao aparecimento de novos fenômenos
religiosos, tais como a dupla ou múltipla pertença e o trânsito religioso. Fenômenos ainda
difíceis de mensurar devido aos próprios do questionário aplicado pelo IBGE.
De acordo com Steil, Toniol (2013, p. 229), “as condições e predisposições atuais
apontariam para práticas e experiências religiosas que se configuram a partir dos indivíduos
enquanto sujeitos livres, capazes de optar por um caminho entre os muitos que se apresentam
como possibilidades em seu horizonte existencial”. Tanto os movimentos de renovação que
acontecem dentro das igrejas históricas tradicionais, quanto o surgimento de novas religiões e
movimentos religiosos, de alguma maneira, respondem à característica do homem pós-
moderno.
3.3.2 Senso religioso contemporâneo
A permanência da experiência religiosa na história da humanidade, além de ser um
indício da busca humana pelo sentido da vida, apresenta formas variadas ao longo do tempo e
lugar, o que nos permite conhecer características de determinado período histórico,
conhecendo as características do senso religioso daquela época e vice versa.
26
Pesquisa realizada na PUC Minas, com o apoio da FAPEMIG, CNPq e do Fundo de Incentivo à Pesquisa –
FIP PUC Minas.
89
o sentimento, as disposições, os movimentos e manifestações daquilo que pessoas e
grupos expressam em relação à dimensão espiritual, ou seja, ao ultrapassamento
qualitativamente superior aos anseios ordinários e rotineiros. Contudo, diferente do
sentido que possa conter o sentido da religião, por senso religioso se entende algo
não necessariamente vinculado àquele processo de institucionalização do qual
depende o sentido estrito do termo religião. Senso religioso, neste sentido, ultrapassa
a noção de vínculo a uma instituição religiosa e abriga experiências e noções que são
correlatas, mas que são vivenciadas em anterioridade e para além das determinações
institucionalizantes das religiões. O senso religioso, embora constitutivo do ser
humano enquanto disposição para um ultrapassamento de seus limites está sempre
determinado pelo caráter de temporalidade, ou seja, de uma contextualidade epocal.
(RIBEIRO; CAMPOS, 2014, p. 313).
Quando cruzamos os dados referentes ao trânsito religioso brasileiro com os dados
referentes ao poder aquisitivo e à escolaridade da população, obtemos informações
importantes para compreendermos não só a religiosidade contemporânea, mas os vários
papéis que a religião pode ocupar em uma sociedade secularizada, plural e pós-moderna.
Fazendo uma análise do movimento religioso em relação ao nível de escolaridade e
renda mensal das pessoas que migraram para as religiões de maior crescimento, dois pontos
nos chamam atenção. A população brasileira de menor renda e escolaridade migrou para as
religiões pentecostais e neopentecostais e o crescimento do percentual de protestantes, sem
religião e daqueles que declaram pertencer a outras religiões, se deu por pessoas com maior
renda e nível de escolaridade.
O pentecostalismo cresce, sobretudo, entre aqueles que são, em princípio, excluídos
da sociedade, com problemas básicos, como é o desemprego em nossas sociedades.
E os grupos místico-esotéricos, ou buscadores de uma nova religiosidade, compõem
o outro ponto do contínuo que inclui, sobretudo adeptos que têm níveis altos de
escolaridade e, no geral, a materialidade resolvida. (SIQUEIRA, 2006, p. 23).
Quando analisamos essas informações pelo viés da busca de sentido, percebemos que
as religiões pentecostais e neopentecostais possuem um discurso e um método de persuasão
que responde a um desejo de pertencimento de uma população que está marginalizada em
uma sociedade capitalista e que não tem acesso nem mesmo ao básico, e a igreja funciona não
só como esperança de uma melhoria de vida, mas oferece uma rede de apoio com suporte
concreto para as necessidades cotidianas. “Os pobres percebem tanto um verdadeiro sentido
teologal quanto possíveis ilusões. Há um espaço de discernimento que precisa ser feito”.
(LIBANIO, 2002, p. 215).
O crescimento dos evangélicos pentecostais, de forma preponderante entre os pobres,
paralelo a um crescimento do pentecostalismo na esfera pública, usando a política e a mídia
como meios para alcançar objetivos neoliberais, mesmo em desacordo com valores
90
propriamente religiosos, transforma a religião em uma mercadoria que serve tanto aos líderes
religiosos, quanto aos seus fiéis.
Ao mesmo tempo, o crescimento dos sem religião e pertencentes a outras religiões e
novos movimentos religiosos, entre as pessoas com maior escolaridade e poder aquisitivo,
apontam para a necessidade de algo para além dos benefícios que os valores pós-modernos
podem oferecer. Existem estudos realizados pela Organização Mundial de Saúde para
compreender o aumento dos casos de depressão no mundo, hoje considerada uma epidemia
silenciosa. Os dados de tais estudos "parecem indicar que seus determinantes são
predominantemente de origem social, aspectos inerentes às sociedades pós-modernas.”
(NICO, 2016, p. 20).
De acordo com Frankl (1991), talvez a mais humana de todas as necessidades
humanas seja a necessidade de sentido. “A crise de sentido e de valor permite que facilmente
se provoquem nas pessoas necessidades e desejos religiosos” (LIBANIO, 2002, p. 39). Talvez
essa procura religiosa, insistente em um mundo moderno e globalizado e presente em todas as
esferas sociais, seja reveladora de uma resistência ao nosso atual modo de vida.
A impressionante mudança da espiritualidade, constitui uma forte crítica contra a
sociedade unidimensional, demasiado racionalizada e dominada pela ideia do
progresso, da funcionalidade e do desenvolvimento econômico. Evidencia a
necessidade religiosa do homem, que corre o risco de ver-se obnubilado pela
tecnologia, e lembra que ser homem não se reduz a produzir nem a servir de
demiurgo que funcionaliza, manipula, projeta e transforma. Ser homem significa
também saber escutar o mistério das coisas, contemplar a realidade, encontrar a
unidade com a natureza e com o homem, refletir sobre o sentido do homem através
de gestos e de ritos simbólicos. (GOFFI; FIORES, 1993, p. 343).
Paralelo ao crescimento do pluralismo religioso e das várias manifestações religiosas,
assistimos ao crescimento do fundamentalismo no Brasil. E o problema das visões
fundamentalistas “é que elas tendem a gerar formas dualistas e maniqueístas de ver o mundo,
tendem a separar fácil e artificialmente o sagrado e o profano, e a um não aprofundamento das
explicações racionais dos dilemas e vicissitudes da vida atribuindo, por vezes, explicações
religiosas descontextualizadas de seus princípios fundantes.” (RIBEIRO, 2013, p. 67). O
fundamentalismo oferece uma resposta segura e certa em um mundo de incertezas e isso, de
imediato, pode ser um alívio para a construção da subjetividade, mas se revela como violenta
tanto para a formação do eu, quanto para o convívio social pacífico, na medida em que anula
as alteridades.
O senso religioso contemporâneo, seja ele realizado através de uma bricolagem ou
mesmo vivido na profundidade de uma pertença religiosa, exclui o outro, sendo totalmente
91
centrada no eu. Essa postura de fechamento, além da falta de sentido, pode gerar um
adoecimento generalizado.
Tendo em vista os dados referentes à influência da desigualdade social na saúde
mental e no bem estar das pessoas e da sociedade, e considerando a busca por experiências
religiosas por todas as classes sociais, precisamos pensar o papel ético das religiões na
contemporaneidade. “A religião consegue falar às dimensões profundas do ser humano,
oferecendo-lhe um horizonte abrangente de interpretação da dor, do sofrimento humano, do
pecado, da existência do mal e da falta de sentido da vida humana.” (LIBANIO, 2002, p.
188).
A religião deve repensar o seu papel na atualidade, ela “não pode pretender nem
mudar o mundo, nem regular a sociedade, mas ela pode transformar os indivíduos”.
(HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 128). Isso porque a existência da religião e da experiência
religiosa na contemporaneidade é um fato, precisamos discutir a questão ética da religião e da
política hoje e repensar sua atuação na contemporaneidade.
O senso religioso, enquanto uma busca pelo sentido da vida, permanece e adquire
contornos próprios do seu tempo; e a religião persiste, mesmo em momentos seculares e
modernos e manifesta-se não só no âmbito privado, mas ganhando peso também na esfera
público social. Quais as possibilidades de atuação da religião na organização social e de
sentido em um mundo plural? É possível a participação da religião na política e na construção
da democracia em um estado laico?
3.3.3 A construção de uma sociedade democrática: religião, ética e política
A república Federativa do Brasil, desde o ano de 1890, declara-se como um Estado
Laico. Quando um país declara laicidade significa que sua organização não está diretamente
ligada a nenhuma religião. Porém, essa laicidade pode adquirir contornos diferenciados, de
acordo com cada cultura. No Brasil, dizer que somos um Estado Laico significa dizer que
reconhecemos a pluralidade de religiões e crenças existentes em nosso território e que todas
possuem, pelo menos legalmente, a possibilidade de praticar a sua fé, viver a sua experiência
religiosa. Alguns países, como a França, por exemplo, denominam-se como estado Laico e
não permitem que exista nenhuma referência religiosa nos espaços do governo. Uma realidade
que está bem longe de existir em nosso país, repleto de altares, santas e cruzes nos âmbitos
governamentais.
92
Manfredo Oliveira (2013, p. 93) afirma que os conceitos de liberdade religiosa e
neutralidade do Estado deveriam condicionar-se mutuamente. Mas para que isso aconteça é
necessário que os cidadãos estejam convictos da necessidade de viver em uma ordem
democrática. E que o Estado secular é uma condição necessária, mas não suficiente para
assegurar a liberdade de pertença e prática religiosas.
A democracia torna-se, então, uma questão decisiva, pois ela é o espaço em que é
possível trabalhar a própria divisão interior, aceitando não se voltar contra o
próximo. É um espaço privilegiado de trabalho sobre si mesmo em um indivíduo
que busca sabedoria. [...] Como é que um cidadão, que forma seu julgamento, é
levado a entrar em relação com o outro? É aí que a democracia se nutre
ontologicamente, em seu próprio ser, da pluralidade, da diferença e mesmo da
divergência. (MORIN, 2013, p. 58).
O que percebemos no Brasil, porém, é que, a despeito da declarada laicidade do
Estado, existe um crescente interesse na participação política por parte, principalmente, das
religiões cristãs conservadoras, que visam difundir e defender seus interesses por meio da
atuação política. De acordo com Perlatto (2013, p. 151), o processo de dessacralização e
secularização “tem conduzido a uma presença pública diversificada, e as variadas tradições
religiosas têm procurado participar da esfera pública de diferentes maneiras. Os segmentos
evangélicos têm tido maior sucesso nesta disputa religiosa na esfera pública, como evidencia
o Censo de 2010.” (PERLATTO, 2013, p. 151).
A despeito disso, Gauchet (2015, p. 20) afirma que hoje, até mesmo o crente mais
zeloso não acredita mais na existência de uma política de Deus, para ele existe uma
“separação entre o que é da ordem do além e o que é da ordem do governo comum aqui na
terra”. Em relação ao cenário brasileiro, Pedro Oliveira (2014, p. 319) ainda acrescenta que,
“as divindades que hoje conquistam adeptos e fazem sucesso não interferem nas estruturas
sociais e políticas nem impõem uma ordem moral de pretensão universalista, limitam-se a
ajudar a dar sentido e eventualmente melhorar qualidade de vida da pessoa individual”.
A observação da nossa realidade, em concordância com a afirmação de Perlatto
(2013), nos leva a questionar se as afirmações de Gauchet e Pedro Oliveira podem ser
generalizadas no contexto brasileiro. Ao mesmo tempo, precisamos também discutir se é
possível a participação religiosa na política, não no sentido de legislar ao lado do Estado, mas
no sentido de se organizar de forma a representar a pluralidade religiosa, assumindo o papel
de uma laicidade mediadora. Esse termo foi cunhado por Daniéle Hervieu-Léger (2008), em
sua obra O peregrino e o convertido, ao defender que a relação entre religião e Estado laico
93
pode passar de um regime de neutralidade pacífica para uma cooperação razoável em matéria
de produção de referências éticas.
A qualidade de uma democracia implica, necessariamente, numa capacidade de
acolher como pessoa todos os indivíduos. Daí a importância de discutir as questões éticas do
fazer democrático. O caminho não seria negar a participação da religião na política, já que a
nosso ver, ela já acontece, mas assumi-la, para que ela possa ser regulamentada e que, de fato,
contribua para o exercício da democracia e a garantia dos direitos de todos os cidadãos.
Para isso, as discussões e ações religiosas que visam ao exercício da democracia
precisam ir para além das questões da linguagem secular 27
e do discurso apenas politicamente
correto de inclusão do outro. Bauman (2001, p. 55) diz que o espaço público está cada vez
mais vazio de questões públicas. Para o autor, ele deixou de desempenhar sua antiga função
de lugar de encontro e diálogo sobre problemas privados e questões públicas. E se “o elo entre
os valores universais e a realidade da vida social historicamente constituída é a política”,
então talvez esse seja um lugar apropriado para a participação das religiões.
A participação religiosa na política que percebemos hoje não acontece de forma
democrática mas, muitas vezes, totalitária, levando a cabo soluções impostas e não escolhidas
pela maioria, o que aumenta o poder de quem já está no poder e tira a liberdade individual de
todos os cidadãos:
A liberdade individual não pode efetivamente ser atingida por esforços apenas
individuais: que, para alguns poderem assegurar e desfrutar disso, algo deve ser feito
para assegurar a todos a possibilidade de seu desfrute, e que fazer isso é a tarefa em
que os indivíduos livres só devem empenhar-se conjuntamente e mediante sua
realização comum: mediante a comunidade política. [...] Que a liberdade de todo
indivíduo, e o livre desfrute dessa liberdade, requer a liberdade de todos; e que a
liberdade de cada um precisa estar assegurada e garantida pelos esforços conjuntos
de todos. Para cada indivíduo livre estar livre do medo da privação e da falta de
emprego, é necessário que todos estejam livres da genuína privação e da falta de
emprego. (BAUMAN, 1998, p. 255).
A nossa proposta é que as religiões, enquanto instituições, dialoguem a partir da sua
dimensão ética e não dogmática e que sirvam a todos e não somente a seus fiéis. Um
compromisso social que, como defende Libanio (2002, p. 184), deve ser assumido através de
um diálogo e da união das religiões em torno das causas éticas. “À medida que as religiões
dialogarem entre si e criarem grandes frentes éticas conjuntas em torno dos direitos humanos,
27
Existe uma preocupação com a linguagem do discurso religioso em um Estado laico. Alguns autores
defendem que hoje para a religião fazer parte da política, ela precisa mudar a sua linguagem. E nós
concordamos, já que argumentos de fé não são (e nem sei se devem) mais impostos por eles mesmos. Apenas
queremos destacar que as discussões devem ir para além da tradução da linguagem religiosa para uma secular.
94
dos valores civilizacionais, das causas maiores para a humanidade, tanto mais força político-
cultural terão.” Como a crise que vivemos trata-se principalmente de uma crise de sentido, e
as religiões têm como uma de suas principais preocupações essa questão, talvez o diálogo
inter-religioso possa favorecer ou contribuir para que as pessoas vivam uma vida com mais
sentido.
Considerando que somente através da vivência da sua dimensão espiritual o ser
humano é capaz de se manter integrado, essa mesma vivência também possibilita recuperar a
importância da alteridade para a construção da nossa subjetividade de forma a responder
também à nossa necessidade de sentido. Se as religiões isoladamente podem contribuir para
essa organização subjetiva, nós acreditamos que, em um mundo e um momento marcado pela
pluralidade religiosa, o diálogo entre as religiões poderá contribuir ainda mais, pois ele
também traz em si premissas, nas suas disposições, que contribuem e reforçam o
conhecimento de si, a importância do outro, a busca por sentido, entre outros.
95
4 O PLURALISMO RELIGIOSO E A EMERGÊNCIA DE UMA PRÁXIS DIALOGAL
O diálogo é exigência de todo relacionamento humano e perpassa todas as épocas
históricas. Neste capítulo, mostraremos como o diálogo, e mais especificamente o diálogo
inter-religioso, pode contribuir para que as pessoas encontrem sentido e construam uma
sociedade em que a diversidade seja valorizada e que se instaurem novos padrões éticos que
contribuam para a boa convivência e emergência de mais paz. Nas palavras de Hans Kung
(1999a), não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões.
Ao analisar as características da sociedade ocidental contemporânea, percebemos que
se trata de uma sociedade que se organiza, de maneira geral, de forma individualizada e
seguindo as regras do mercado, tanto nos âmbitos social como pessoal, e que isso tem
implicações tanto para a organização da sociedade quanto da subjetividade. Percebemos
também que essas características estendem-se às religiões e espiritualidades contemporâneas.
A mundialização faz com que umas das marcas da pós-modernidade seja o convívio
com a diversidade cultural e, portanto, também a diversidade religiosa. Hoje, no contexto do
pluralismo religioso, “além da descrença moderna e da indiferença religiosa, somos
convidados a pensar o retorno do religioso e a vitalidade das grandes religiões não cristãs.”
(GEFFRÉ, 2004, p. 132).
O que nos chama a atenção na análise da busca espiritual do ser humano e suas várias
formas de manifestação ao longo da história, é que, a despeito da variação da forma da
espiritualidade em cada tempo e lugar, a busca humana por sentido permanece. E é
exatamente por permanecer e resistir, que ela se confirma como reveladora de uma
característica ontologicamente humana.
Além disso, de acordo com Panasiewicz (2007, p. 112), o pluralismo religioso
presente na atualidade pode explicar como a “religiosidade humana expressa a sua busca em
querer ser mais, em não ficar presa a rituais nem formas doutrinárias”. Por esse motivo, nossa
ênfase está na busca espiritual que permanece e não nas suas várias formas, que se expressam
historicamente através das religiões e espiritualidades.
Para sermos coerentes com essa estrutura humana que só se faz verdadeiramente
humana quando mantém sua abertura ao outro, propomos o diálogo inter-religioso como um
caminho que pode responder a essa busca, oferecendo um sentido mais totalizante, já que as
próprias premissas do diálogo respeitam essa busca e essa necessidade de aprofundamento e
incluem o outro, não como objeto, mas como parceiro de busca.
96
Primeiro, explicaremos melhor o conceito de diálogo e linguagem, a importância deles
na construção da subjetividade humana e do convívio em sociedade e apresentaremos as
especificidades do diálogo inter-religioso em suas formas e premissas. Em seguida,
abordaremos a construção de sentido via diálogo inter-religioso e o papel das lideranças para
uma formação humana que considere as alteridades. Por último, mostraremos algumas
especificidades da práxis dialogal no cenário brasileiro e apresentaremos a experiência
concreta de uma instituição que visa promover o diálogo inter-religioso na sua comunidade.
4.1 Diálogo: uma resposta à crise espiritual contemporânea
De acordo com a concepção de ser humano proposta pela psicologia fenomenológica,
o ser se constitui enquanto uma totalidade que emerge através da intencionalidade presente na
articulação das dimensões corpórea, psíquica e espiritual no contato com o mundo. A
subjetividade humana vai sendo construída na medida em que as pessoas estabelecem uma
relação com sua realidade externa.
A expressão dimensão transcendental enquanto estrutura do sujeito humano na sua
universalidade, está presente em todos os sujeitos humanos: ou seja, todos nós
somos sujeitos e existe uma estrutura comum entre todos nós, que é dita
transcendental. Indica que nós temos dentro da nossa estrutura potencialidades, ou
vivências, que ativamos no contato com a realidade externa. (ALES BELLO, 2004,
p. 95).
Dessa forma, a relação se torna o aspecto principal da formação humana. E é o que
mantém o dinamismo propriamente humano de abertura, de transformação constante, já que o
ser humano, em nenhum momento, pode ser definido como algo acabado. Um movimento que
não existe por si só, mas que emerge na relação com o mundo. “O Eu, enquanto eu, emerge
tardiamente na experiência da humanidade. Como sabem, as crianças falam primeiro na
terceira pessoa.” (MORIN, 2003, p. 125). Essa característica humana de não se fazer por si
mesmo, mas sempre através e a partir de um outro, evidencia o lugar que as alteridades
ocupam na construção da nossa identidade.
Não existe si mesmo, sem o outro humano. “O eu-tu é um evento que acontece entre
dois seres que guardam a singularidade de seu ser. A relação jamais poderá chegar a uma
unidade.” (ZUBEN, 2003, p. 43). Existe uma consciência de si que só pode emergir na
relação com outra pessoa que é diversa de nós e que, exatamente por sua diversidade, nos
provoca. O outro é sempre um questionamento que, por mais que possamos nos recusar ou
97
negar, nos solicita. Eu descubro a minha identidade outra, quando estou em contato com o
diferente e em um relacionamento, aí temos a possibilidade de ser e de mudar.
Dessa estrutura humana transcendental, onde o ser se constrói na relação, surge a
necessidade humana de se expressar e de, através da compreensão do outro, aprofundar o
conhecimento de si mesmo. Isto torna o diálogo e a linguagem criação e fundamento da
existência humana. A necessidade de comunicação surge justamente graças à diversidade
própria da interioridade humana, pois se fôssemos iguais, não precisaríamos nos expressar, o
mistério do nosso ser estaria revelado.
O ser humano é um nó de relações, não podendo ser compreendido de forma
destacada do outro com o qual se comunica. O diálogo constitui uma dimensão
integral de toda a vida humana. Trata-se de uma experiência humana fundamental e
passagem obrigatória no caminho da autorrealização do indivíduo e da comunidade
humana. (TEIXEIRA, 2010b, p. 2)
O diálogo é, portanto, um caminho que possibilita, ao mesmo tempo, o conhecimento
de si e do outro. O aprofundamento da consciência de si é favorecido pelo diálogo porque, ao
trazer a própria experiência de vida ao discurso, o sujeito coloca-se em relação de alteridade
consigo mesmo, construindo-se e reeditando-se. Dessa forma, o conhecimento de si torna-se
concomitantemente origem e destino daqueles que se dispõem a dialogar. Porém, para que o
diálogo aconteça, é preciso antes um posicionamento que acolha o contato com a alteridade
intra e inter, pois podemos nos abrir diante do outro e conhecer mais de nós mesmos através
desse encontro, mas também podemos nos fechar diante do outro, cristalizando nossa
identidade e impedindo o outro de ser.
4.1.1 Uma compreensão acerca da estrutura do diálogo e da linguagem
A dinâmica dialogal pode ser compreendida sob duas perspectivas: o momento da
linguagem e da troca e o momento do diálogo que antecede e que dá sentido à linguagem, que
chamaremos de abertura à alteridade.
Não conseguimos estabelecer um diálogo se primeiro não nos reconhecemos enquanto
pessoa singular. Por outro lado, também não dialogamos verdadeiramente se não
reconhecemos o outro em sua alteridade. É preciso que existam diferenças para haver o
diálogo e também um interesse, uma vontade de descobrir o outro, uma disposição interior. O
diálogo que realmente transforma e mantém a abertura não é uma simples conversa. De
acordo com Buber (1982, p. 54), existem três espécies de diálogo:
98
O autêntico – não importa se falado ou silencioso – onde cada um dos participantes
tem de fato em mente o outro ou os outros na sua presença e no seu modo de ser e a
eles se volta com a intenção de estabelecer entre eles e si próprio uma reciprocidade
viva; o diálogo técnico, que é movido unicamente pela necessidade de um
entendimento objetivo; e o monólogo disfarçado de diálogo, onde dois ou mais
homens, reunidos num local, falam, cada um consigo mesmo, por caminhos
tortuosos estranhamente entrelaçados e creem ter escapado, contudo, ao tormento de
ter que contar apenas com os próprios recursos. (BUBER, 1982, p. 54).
Essas três espécies de diálogo podem ser percebidas diariamente em nossas realidades.
Em vários momentos, nossos contextos necessitam de um diálogo puramente técnico e até
mesmo os monólogos disfarçados de diálogo podem ter sua contribuição para a construção
subjetiva dos sujeitos, mas gostaríamos de destacar o diálogo autêntico, pois ele nos convida a
um encontro com o outro no âmbito da profundidade28
. O exercício do diálogo autêntico exige
o cultivo da nossa dimensão espiritual, na medida em que é fruto da nossa decisão livre e
responsável diante do outro.
O que conta no diálogo é a reciprocidade existencial, a dinâmica relacional que
envolve a semelhança e a diferença em processo rico de abertura, escuta e
enriquecimento mútuos. É neste contexto dialogal que a identidade vai ganhando
fisionomia e sentido, enquanto expressão de uma busca que é incessante, árdua e
criativa. (TEIXEIRA, 2010b, p. 2)
Em relação aos sons do diálogo, Buber (1982, p. 35) nos diz que “uma conversação
não necessita de som algum, nem sequer um gesto. A linguagem pode renunciar a toda
mediação de sentidos e ainda assim é linguagem”. Dessa forma, o diálogo enquanto abertura à
alteridade é um posicionamento que, mesmo silencioso, pode ser dinamizador. Essa abertura à
alteridade é que permite a ocorrência do diálogo autêntico, a despeito até mesmo, de uma
compreensão comum da linguagem entre os interlocutores.
28
Não é possível viver uma vida permeada apenas de relação Eu-Tu. “O mundo do Isso, ordenado e coerente, é
indispensável para a existência humana; ele é um dos lugares onde nós podemos nos entender com os outros. [...]
A afirmação da primazia do diálogo no qual o sentido mais profundo da existência humana é revelado não nos
deve levar à conclusão de que a atitude Eu-Isso seja algo negativo, inferior ou um mal. Ao contrário, ela é uma
das atitudes do homem face ao mundo, graças à qual podemos compreender todas as aquisições da atividade
científica e tecnológica da humanidade. Em si, o Eu-Isso não é um mal; ele se torna fonte de mal na medida em
que o homem deixa subjugar-se por esta atitude, absorvido em seus propósitos, movido pelo interesse de pautar
todos os valores de sua existência unicamente pelos valores inerentes a esta atitude, deixando, enfim, fenecer o
poder de decisão e responsabilidade, de disponibilidade para o encontro com o outro, com o mundo e com Deus.
A diferença entre as atitudes não é ética mas ontológica. Não se deve distingui-las em termos de autenticidade ou
inautenticidade. Enquanto humanas as duas atitudes são autênticas. Quando, por esta razão, a relação perde o seu
sentido de construtora do engajamento responsável para com a verdade do inter-humano, aí então, o Eu-Isso é
destruição do si mesmo, e o homem se torna arbitrário e submetido à fatalidade.” (BUBER, 2001, p. 37).
99
A essa constatação, Levinás (1993) acrescenta outro ponto importante: o sentido é
dado pelo outro. O outro não se reduz no horizonte do aparecer, mas se mostra em uma
linguagem silenciosa, sem verbo, mas uma linguagem que comunica. É um modo de estar
disponível ao outro que, por ser uma presença, é capaz de comunicar o incomunicável. Ou
seja, o sentido surge a partir de uma relação .
De acordo com Berger, no processo dialético de construção cultural, o mundo
humanamente produzido atinge o caráter de uma realidade objetiva. A cultura objetivada
caracteriza-se por ser compartilhada, ou seja, ela não só é produzida coletivamente como
permanece real em virtude do reconhecimento coletivo. A linguagem é uma dessas produções
humanas que se tornam objetivadas e “toda linguagem é resultado de uma longa história de
inventividade, da imaginação e até do capricho do homem”. (BERGER, 1985, p. 25).
A relação entre o indivíduo e a linguagem pode, ainda uma vez, ser tomada como
paradigma da dialética da socialização. A linguagem se apresenta ao indivíduo como
facticidade objetiva. Ele se apropria subjetivamente dela travando interação
linguística com os outros. No decurso dessa interação, entretanto, modifica
inevitavelmente a linguagem, mesmo que negasse a validade dessas modificações.
(BERGER, 1985, p. 31).
O diálogo enquanto uma linguagem surge da necessidade do ser humano se expressar
e se comunicar. Segundo Nogueira (2016, p. 244), existem dois níveis de linguagem: “o
primeiro é o da língua natural, ou seja, os idiomas com os quais nos comunicamos no dia a dia
e por meio dos quais estruturamos o mundo e nossa experiência cotidiana nele”. E existe
também o segundo nível da linguagem, ou as linguagens de segundo grau, que seriam as
linguagens de uma cultura. Sendo que, para este mesmo autor, “nos dois níveis a língua não
tem um papel de reproduzir o real, antes ela o molda, tornando o possível.”. De acordo com
esse sistema de compreensão da linguagem, a religião atua como um sistema secundário de
linguagem, dotado, portanto, da capacidade de dar forma ao mundo.
A linguagem vai muito além de oferecer formas para expressão de conteúdos.
Linguagem é um poderoso sistema de modelagem do mundo e de constituição de
relações. Entendemos que as linguagens da religião (que configuram um campo com
linguagens híbridas e densas) são um tipo de linguagem de segundo grau, linguagem
da cultura. Como tal elas repousam sobre os três sistemas semióticos fundamentais:
o gesto, a imagem/metáfora e a narrativa. Nas linguagens da religião suas
contrapartidas são: o rito, o ícone/poesia e o mito. Elas se articulam entre si
reforçando o hibridismo e a múltipla codificação dos textos religiosos. Isso dota as
linguagens da religião de grande poder de geração de sentido. (NOGUEIRA, 2016,
p. 259).
100
Sendo assim, ao mesmo tempo em que a linguagem facilita a comunicação entre as
pessoas de uma mesma cultura, ela pode dificultar, senão impedir a comunicação entre
pessoas de culturas diferentes. Portanto, no diálogo inter-cultural e inter-religioso, temos dois
grandes desafios estruturais: a dificuldade da própria linguagem e a necessidade de uma
abertura, que antecede e que dinamiza o próprio encontro. Além disso, conceitos e linguagens
que surgem dentro de uma cultura, muitas vezes, guardam os mesmos conceitos, mas podem
possuir significados diferentes.
Quando se trata do diálogo entre pessoas de religiões diferentes, o desafio torna-se
ainda maior, pois sem clareza do que se fala, quando se fala de Deus ou da sua própria
experiência religiosa, todo falar de Deus corre o risco de se tornar uma aventura caótica.
Se, pois, dentro do espaço de nossa experiência não se pode identificar
absolutamente nada como algo ou como um quem a que ou a quem se reporte o
nosso uso da palavra Deus, torna-se urgente a pergunta sobre que sentido tem o uso
deste vocábulo, que realidade se pensa com ele, e, com efeito, de tal sorte que
também não crentes possam falar ao menos significativamente. O que se pensa com
a palavra Deus deve ser significativamente comunicável, também a homens que
rejeitam o que os crentes pensam com ela. (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 82).
Como expressar o que eu vivo, se muitas das coisas só podem ser compreensíveis a
quem pertence à mesma religião, se algumas normas só fazem sentido dentro de uma cultura e
crença e até mesmo dentro da mesma cultura existe uma incomunicabilidade da experiência
de Deus. Existe uma distância entre a própria experiência religiosa ou de Deus e a
possibilidade de comunicar o seu conteúdo em totalidade, que é intransponível. Isso torna a
revelação de Deus sempre única e particular, pois qualquer expressão dela não consegue
alcançar a experiência em si.
“As religiões são linguagens confessionais. A partir de diferentes lados a gente se
aproxima da verdade por meio de muitos idiomas. É melhor em geral falar a própria
linguagem materna, na qual a gente cresceu, como sistema de comunicação, como sistema de
símbolos.” (FRANKL; LAPIDE, 2014, p. 153). Em um contexto plural, entretanto, o convívio
com pessoas que pertencem a religiões diferentes e, portanto, falam uma linguagem religiosa
diferente da nossa torna-se inevitável. Como acontece o convívio e a comunicação na
realidade atual?
101
4.1.2 Ausência e urgência de diálogos na Pós-modernidade
O diálogo na contemporaneidade mostra-se repleto de contradições. Ao mesmo tempo
em que percebemos um excesso de comunicação, facilitado, sobretudo, pela tecnologia, que
ampliou as possibilidades de contato e a troca de informações, percebemos uma diminuição
dos diálogos autênticos, o que pode levar ao empobrecimento das relações interpessoais.
Concomitante a isso, existe uma influência do social e das mídias nos diálogos interpessoais.
Através da mídia, temos a possibilidade de ver, saber, instantaneamente, tudo que está
acontecendo no mundo. No entanto, essas informações, apesar de serem muitas e abrangentes,
podem se tornar superficiais. Essa superficialidade pode nos enganar e nos tornar alvo de
manipulação, na medida em que não temos controle sobre as informações que são
disponibilizadas e nem sempre um critério crítico para julgá-las.
Sofremos simultaneamente de subinformação e superinformação, de escassez e de
excesso. O excesso de informação abafa a própria informação. Além delas se
saturarem, elas nos saturam, banalizam-se. Acreditamos ser testemunhas e somos
joguetes de uma maquinação inaudita destinada aos mídia. (MORIN, 1986, p. 31)
Podemos ter, diariamente, conhecimento acerca da história que está se realizando, mas
sem discernimento, essa história pode ser construída às custas da nossa alienação. Toda
informação que recebemos passa pelo filtro das nossas ideias e crenças. “Quando não temos
estrutura mental capaz de assimilar, situar a informação, esta se torna ruído. Em
compensação, nos casos em que dispomos de ideias firmes e arraigadas, somos muito
receptivos quanto às informações que as confirmam, mas muito desconfiados para com
aquelas que as contrariam.” (MORIN, 1986, p. 43).
Um exemplo da consequência das relações mediadas pela tecnologia e pela mídia e
que pode ser representativo dessa realidade apresentada por Morin (1986), no que tange às
informações e à comunicação, é o discurso de ódio e a violência que existe no espaço virtual.
Um espaço que parece ser democrático e de convívio, mas que, na verdade, mostra-se como
um espaço que facilita a violência, por dois motivos: por seus mecanismos de buscas, onde o
sujeito, naturalmente, tem mais contato com pessoas ou lugares que compartilham das suas
convicções e também por existir uma proteção da máquina, um distanciamento real do outro,
que pode levar a sua desumanização.
Sendo assim, o ambiente virtual, ao mesmo tempo em que favorece a aproximação de
pessoas distantes geograficamente e pertencentes a culturas diferentes, que permite que
pessoas se encontrem e se reúnam por afinidades, também pode ser um espaço que favorece a
102
violência e a despessoalização do outro. Essa tecnologia, aliada à cultura do individualismo e
do consumo, pode tornar-se local propício para o crescimento dos discursos fundamentalistas.
Os fundamentalismos “constituem refúgios acolhedores quando a razão é impotente,
enlouquece ou se cala sobre o essencial.” (VALADIER, 2012, p. 10).
Todos os sistemas (culturais, científicos, políticos, econômicos e artísticos) que se
apresentam como portadores exclusivos da verdade e de solução única para os
problemas se inscrevem dentro daquilo que chamamos de fundamentalismo, e
atualmente vivemos sob o império feroz de vários deles. (BOFF, 2009, p. 37).
Essa realidade pode ser percebida, inclusive, nos discursos de ódio do cenário político
brasileiro dos últimos anos. Nesse mundo global e de pluralidades, com um estilo de vida
centrado no eu e em relações superficiais, mediadas por imagens, percebemos um ambiente
repleto de afirmações identitárias que podem ser altamente adoecedoras, pois enfraquecem a
estrutura humana de abertura29
.
Nas sociedades arcaicas e tradicionais havia ritos de passagem que davam sentido a
essas mudanças. Podia-se enfrentar mais serenamente a puberdade, a iniciação
sexual, a entrada na vida profissional, a velhice e a morte, porque havia modelos de
comportamento para lidar com esses cortes biográficos. O apoio social do sentido
impedia que as mudanças constituíssem choques profundos ou, até mesmo, ameaça
existencial para a pessoa. O enfraquecimento ou a ausência total desses ritos de
passagem nas sociedades modernas podem ser considerados sintoma – e também
concausa – de uma crise de sentido que vai aumentando aos poucos. (BERGER;
LUCKMANN, 2004, p. 66).
Na pós-modernidade, o fundamentalismo oferece um sentido, porém, ele impede que o
ser humano pense por si mesmo, pois anula o sujeito em sua totalidade, simplificando
realidades complexas. De acordo com Rouanet (2017, p. 3), o fundamentalismo constitui-se
como uma resposta para todas as frustrações da vida moderna, pois possui uma:
capacidade de recriar nexos de solidariedade grupal, de dotar a vida de sentido e
finalidade, de inventar um passado mítico em que não existiam as tensões e as
incertezas do mundo contemporâneo, de alimentar a esperança numa vida futura que
possa compensar todas as humilhações do presente e de fazer da religião uma
trincheira de resistência cultural, capaz de enfrentar as pressões niveladoras
provocadas pela globalização.
29
Ansiedades e depressões já existiam antes da cultura empresarial e neoliberal. O que explicaria a sua
intensificação seria o “declínio do poder organizador que o coletivo tinha sobre o individual.” (LIPOVETSKY,
2004a. p. 83).
103
O crescimento do fundamentalismo no âmbito religioso possui características próprias.
Nele, existe uma absolutização da religião e até mesmo do livro sagrado, em detrimento da
vida e do humano, o que pode abrir espaço para o surgimento do fanatismo e dos fanáticos.
Estes podem ser definidos como aqueles que, “ao sacralizar um aspecto da realidade o
absolutiza e o torna excludente de tudo aquilo que não o é” (FRECHEIRAS, 2011, p. 585),
revelando uma visão religiosa negadora da alteridade30
. O fundamentalismo, ao negar a
pluralidade cultural e religiosa, provoca uma violência generalizada, que vai contra a nossa
própria humanidade.
O momento histórico em que vivemos nos solicita uma abertura com relação às
culturas e religiões diferentes da nossa, não só para satisfazer um interesse cognitivo
e uma espontânea curiosidade, mas também para estabelecer comparações e estreitar
laços, a fim de realizar, quem sabe, uma união da humanidade além das diferenças.
(ALES BELLO, 1998, p. 169).
O convívio com a diversidade cultural, aliado a um momento histórico globalizado e
que valoriza o individualismo, pode favorecer o fechamento das pessoas à alteridade e levar a
uma crise, portanto, “revela-se cada vez mais atual a questão da redescoberta do outro e do
diálogo como desafios imprescindíveis.” (TEIXEIRA, 2010a, p. 1). Não é possível, em um
mundo plural, viver em harmonia sem diálogo entre as diversidades e, preponderantemente,
entre as religiões. Dentre as várias formas de diálogo existentes, o diálogo inter-religioso
torna-se fundamental para pensar a paz no mundo e a discussão sobre o sentido. “Com
frequência, as religiões do mundo são um fator de divisão e conflito na história da
humanidade, diferenças entre religiões foram e continuam a ser um triste fator de discórdia
dentro da família humana31
” (DALAI LAMA, 2014, p. 167).
Relativizar conceitos é uma condição para o diálogo inter-religioso e um empecilho
para as religiões proselitistas e fundamentalistas, já que isso demanda uma desconstrução
teológica. Como dialogar entre as religiões na atualidade?
30
No âmbito religioso, o “fundamentalista é aquele, portanto, que está muito mais interessado em guardar a letra
da doutrina do que em fazer vivificar o seu espírito.” (PANASIEWICZ, 2007, p. 52). Todo discurso não depende
apenas de quem o produz, mas também e, principalmente, de quem o recebe. Quando se trata de um texto, isso
fica ainda mais evidente, pois é o leitor que dá sentido ao texto, sendo ele o foco mobilizador da leitura. Os fiéis
fundamentalistas se referem constantemente ao livro sagrado e desconsideram que, nem mesmo os livros
sagrados, são a palavra de Deus, mas que os mesmos se tornam a palavra de Deus à partir de seu leitor.
31
Não há como negar que as Cruzadas nos tempos medievais ao jihad de hoje, da violência hindu-muculmana
em grande escala durante a divisão da Índia, em meados do século XX, ao atual conflito árabe-israelense, e das
guerras sérvio-bósnias ao combate cingalês-tâmil no Sri Lanka – sem esquecer o recente fenômeno do terrorismo
global de inspiração religiosa.
104
4.1.3 Condições para o diálogo inter-religioso
O diálogo inter-religioso exige contornos próprios nesse contexto de convívio com a
diversidade. Se antes tínhamos, na sociedade ocidental, uma dominação da Igreja Católica,
através do seu monopólio de poder junto ao Estado, hoje, além da religião católica não ocupar
mais esse lugar imposto, com a globalização e a tecnologia, nós temos acesso a uma variação
enorme de religiões e crenças. Essa pluralidade religiosa gerou impactos na construção da
subjetividade humana e na organização social.
A modernidade trouxe, como um valor da sua época, a defesa pela liberdade religiosa.
“A percepção de que o diálogo é uma dimensão integral da vida humana e também da missão
das igrejas é um acontecimento relativamente novo para a reflexão teológica.” (TEIXEIRA,
2010b, p. 1). Diante dessa irreversível mudança no campo religioso, as religiões,
principalmente as dominantes, em função da possibilidade de mudança religiosa de seus fiéis
e do enfraquecimento da tradição, precisaram se repensar. Repensar os seus dogmas, as suas
funções sociais, o seu lugar na vida de cada indivíduo.
“O Concílio insiste no diálogo inter-religioso e declara a sua importância dentro da
Igreja Católica” (PANASIEWICZ, 2003, p. 41). O pluralismo religioso foi reconhecido pela
Igreja Católica pela primeira vez no ano de 1964, mas foi efetivamente levado a sério no
Concílio Vaticano II32
.
O Concílio Vaticano II foi o responsável por iniciar uma nova era na Igreja católica,
na relação com as demais religiões. É a partir do evento conciliar que surge a
expressão diálogo inter-religioso, que será muito utilizada no interior da instituição
para referir-se, de um lado, a uma nova atitude diante das outras religiões, e de outro
lado, ao conjunto de atividades que visam se aproximar das outras religiões.
(SANCHEZ, 2015, p. 14).
Desde então, foram vários os encontros e as iniciativas de diálogo propostas pela
Igreja Católica e por representantes de várias outras religiões que, de maneira geral, tinham
como pano de fundo um diálogo pela paz , gerando boas repercussões entre os seus adeptos e
a população em geral.
32
Não podemos afirmar a intenção que mobilizou o Concílio vaticano II, para além das que podem ser
observadas nos documentos oficiais. É de conhecimento geral que existem grupos da Igreja Católica que
discordam dessa abertura às outras religiões, haja vista o crescimento de movimentos conservadores.
105
Com a instauração de uma necessidade de diálogo irrevogável entre as religiões, a
Igreja Católica emitiu alguns documentos que tinham como objetivo nortear esses diálogos,
garantindo que eles se realizassem de maneira equitativa33
.
Qualquer que seja o tipo de diálogo inter-religioso, podemos destacar alguns a
priori: - é possível uma abertura entre as religiões para conversarem (existe,
exatamente pela diversidade que existe dentro das próprias religiões, uma abertura
latente para o diálogo); existem religiões interessadas em dialogar (as religiões
precisam sair de si para dialogarem); o diálogo é importante e muitas vezes
fundamental para as próprias religiões (as religiões precisam perceber que tem algo
a ganhar com o diálogo inter-religioso). (SANCHES, 2015, p. 91).
A reflexão sobre o sentido do diálogo inter-religioso “revela que uma antropologia do
diálogo é importante para a compreensão do diálogo inter-religioso.” (SANCHEZ, 2015, p.
89). E que, portanto, o diálogo inter-religioso deve salvaguardar os mesmos critérios exigidos
em qualquer outro tipo de diálogo. Esses critérios visam garantir que as pessoas envolvidas no
diálogo sejam realmente possibilitadas a falar e a ouvir.
Tanto Teixeira (2003) quanto Panasiewicz (2003) definem alguns critérios para que o
diálogo inter-religioso se realize de maneira harmoniosa e efetiva: “humildade,
reconhecimento do valor da alteridade, fidelidade à tradição, abertura à verdade e capacidade
de compaixão” (TEIXEIRA, 2003, p. 27), além do “respeito ao outro em sua própria
identidade; a fidelidade no que diz respeito à sua própria identidade e a necessidade de uma
certa igualdade entre os parceiros para que haja diálogo” (PANASIEWICZ, 2007, p. 170).
Essas premissas podem ser compreendidas da seguinte maneira: o respeito ao outro em
sua identidade própria é uma condição que exige que nós estejamos realmente abertos a
escutar o outro e que o reconheçamos exatamente por sua diversidade. A fidelidade no que diz
respeito à sua própria identidade ou fidelidade à própria tradição refere-se à necessidade de
conhecer a si mesmo, suas crenças e sua própria tradição religiosa. Quanto maior a clareza da
nossa identidade, maior objetividade alcançamos na escuta ao outro. Esse ancouradouro
referencial possibilita saber de onde falamos.
Em relação à necessidade de uma certa igualdade entre os parceiros para que haja
diálogo, vale destacar que o diálogo autêntico não acontece entre pessoas que se relacionam
de maneira desigual, ocupando posições de superioridade ou inferioridade, mesmo que
33
PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO. Diálogo e anúncio. Petrópolis:
Vozes, 1991. (Documento Pontifício n. 242).
SECRETARIADO PARA OS NÃO CRENTES. Diálogo e missão. Sedoc, v. 176, n. 17, p. 387-399, 1984.
106
velados. É imprescindível, em pessoas que se dispõem a dialogar, uma disponibilidade
interior, um desejo de acolher, que pode ser representado pela humildade. “O diálogo precisa
começar dentro de nós, criando espaços livres para a hospitalidade.” (TEIXEIRA, 2003, p.
28). Quem se basta, não precisa dialogar. No diálogo inter-religioso, é imprescindível o
reconhecimento do valor da alteridade, ou seja, um reconhecimento da integridade da fé de
todos os envolvidos, o que demanda empatia para reconhecer a experiência do outro como
real. É necessário também, uma abertura à verdade. A compreensão de um pluralismo de
princípio que reconhece a verdade presente em todas as religiões e a verdade maior presente
na diversidade das religiões e que reconhece no diálogo a possibilidade de se aproximar mais
de Deus.
Por último, existe a necessidade de uma compaixão ativa, que pode ser compreendida
como o inverso do individualismo. Esse sentimento caracteriza-se por um “profundo desejo
de remediar todas as formas de sofrimento que corroem a humanidade e toda a criação”
(TEIXEIRA, 2003, p. 32), inspirando que as pessoas busquem, acima de tudo, o bem estar dos
outros, o cuidado. A compaixão ativa é uma das contribuições do budismo para a discussão do
diálogo inter-religioso e será a partir do Budismo e do Cristianismo e da solidariedade entre
elas, que agora iremos apresentar algumas formas de realizar o encontro entre religiões na
atualidade.
4.1.4 Compreensão das formas de diálogo inter-religioso pela perspectiva do sentido
O convívio entre as religiões é uma realidade e o encontro intencional entre elas, uma
possibilidade de crescimento tanto para as religiões quanto para a sociedade, de maneira geral.
Portanto, o encontro entre as religiões não pode se restringir a discussões teóricas, nem
tampouco ficar a cargo do acaso. Além da necessidade de mantermos uma abertura à
alteridade, para que consigamos acolher o outro, em cada encontro que nos acontece, em
todos os contextos da vida, precisamos agir de maneira ativa, e mais do que acolher cada
encontro, devemos promovê-los e problematizá-los.
Para convivermos humanamente, inventamos a economia, a política, a cultura, a
ética e a religião. Mas nos últimos séculos o fizemos sob a inspiração da competição
que gera o individualismo, a acumulação e o consumismo privado. Esse tempo deve
acabar. Agora temos que inaugurar a cooperação que gera a comunidade e a
participação de todos em tudo o que interessa a todos. (BOFF, 2002b, p. 15).
107
O Cristianismo, através da Igreja Católica, propõe quatro formas de realização do
encontro inter-religioso. O diálogo existencial seria o encontro cotidiano com pessoas de outra
pertença religiosa, aquele diálogo da vida, porém um encontro que nos leve a problematizar a
nossa existência. Seria, portanto, um diálogo que se realiza através da presença e do
testemunho da nossa experiência religiosa em nossa vivência diária. O diálogo místico trata-se
do encontro entre pessoas de religiões diferentes com o objetivo de compartilhar os seus
modos de oração e contemplação, visando uma compreensão do outro e um aperfeiçoamento
dos seus próprios métodos. Outra possibilidade de diálogo entre as religiões é o diálogo ético.
Ou seja, um encontro entre pessoas de religiões diversas com o objetivo de refletir alternativas
e possibilidades de libertação e promoção do ser humano. Existe também o diálogo entre os
estudiosos das religiões. O diálogo teológico tem como principal característica o
enriquecimento e a aplicação dos patrimônios religiosos.
Pautado em suas crenças de que a compaixão é uma característica humana e que
constitui a base para a nossa felicidade, Dalai Lama acredita que o reconhecimento saudável
das diferenças entre as tradições de fé permitiria transcender as diferenças e promover um
convívio a partir da convergência de metas comuns de aperfeiçoamento humano e de
ensinamentos éticos fundamentais: “É minha convicção fundamental que a compaixão – a
capacidade natural do coração humano de se importar e sentir conexão com outro ser humano
– constitui um aspecto básico de nossa natureza que é compartilhado por todos os seres
humanos.” (DALAI LAMA, 2014, p. 143). A partir dessa perspectiva, ele construiu um
programa para a promoção da harmonia e do encontro inter-religioso, que inclui quatro
elementos chave.
Diálogo entre conhecedores das religiões no plano acadêmico sobre as
convergências e divergências de suas respectivas tradições de fé e, mais importante,
o propósito dessas diferentes abordagens; compartilhamento de experiências
religiosas profundas entre praticantes genuínos; reuniões de alto nível dos líderes
religiosos para conversar e orar em uma única plataforma; e peregrinações conjuntas
para os lugares sagrados do mundo. (DALAI LAMA, 2014, p. 172).
Todas essas formas de diálogo inter-religioso, propostas tanto pelo catolicismo quanto
pelo budismo, não precisam, necessariamente, acontecer separadamente. Muitas vezes elas
podem acontecer em conjunto, dependendo do seu objetivo. Um aspecto em comum de todas
essas possibilidades apresentadas é que em todas elas o encontro inter-religioso acontece no
âmbito da profundidade. Elas demandam uma intencionalidade e o cultivo da dimensão
espiritual.
108
Uma contribuição importante do diálogo inter-religioso entre aqueles que viveram
uma experiência religiosa profunda é que eles podem nos ajudar a reconhecer no caminho
deles, uma possibilidade de percurso de aprofundamento espiritual e de elaboração da nossa
própria experiência. “A materialidade da existência do místico corresponde à materialidade
da existência de todo ser humano” (WOLFF, 2016, p. 170), pois toda a sua experiência é,
antes de tudo, uma experiência humana, de um ser que nasce e vive em um ambiente
sociocultural e religioso concreto.
A experiência mística é uma ativação do mundo interior, a experiência de retomar
qualidades humanas fundamentais que habitam o mundo interior.
O que há de comum entre os místicos é a profundidade da vivência espiritual, a
autenticidade nas convicções, o compromisso com a própria tradição e com os
outros, a atenção aos caminhos de Deus na história da humanidade, a consciência de
percorrerem com Deus esses caminhos, sentem-se companheiros de Deus e da
humanidade, orientam a sua vida a partir da experiência de Deus, transpiram aos
demais a própria experiência, inspiram a experiência espiritual dos outros,
expressam serenidade e firmeza no ser e no agir. (WOLFF, 2016, p. 172)
De acordo com Teixeira (2012), a mística não é construção cultural, mas uma
experiência profundamente humana que, embora vivenciada de formas diferentes, revela,
através dos buscadores de diálogo, elementos de tanta profundidade que alcançam valor
universal, tocando fundo nas raízes do ser humano. Os buscadores do diálogo não se apegam
ao próprio mundo ao ponto de não perceber a diferença e o outro na sua consistência e valor.
Eles fazem a paradoxal experiência da relativização no Absoluto. Eles não possuem as
certezas dos dogmatistas, mas ao contrário, possuem uma atitude básica de respeito e
abertura.
Para os místicos, o encontro com Deus mostra-se também no compromisso com as
pessoas e com a sociedade, o que nos leva a pensar na possibilidade de multiplicar para a
sociedade em geral essa postura mística de abertura ao outro.
Ambas as tradições – católica e budista -, cada uma a seu modo, apontam a
necessidade de elaborar continuamente a experiência pessoal associada à vivência
religiosa e mística, chegando a identificar etapas, caminhos evolutivos. Estamos
diante de dois percursos que, a partir do cuidado com a própria experiência religiosa,
tematizam o ser humano, suas modalidades de percepção e consciência. Temos aí
uma provocação e um convite a refletir sobre processos subjetivos em sua
elaboração sobre o eu e o mundo, desde os “processos básicos” (como são nomeados
em psicologia) até chegar a formulação de temas e âmbitos de experiência religiosa
que não são habitualmente considerados em nossa tradição científica e filosófica
contemporâneas.” (MAHFOUD, 2015, p. 81).
109
A contribuição da experiência mística na reflexão sobre os processos de subjetivação
humana e sua relação com o mundo leva-nos a pensar na experiência religiosa como uma
possibilidade não só de ser geradora de sentido individual, mas como um caminho que pode
favorecer a construção de sentido social, na medida em que essas diversas experiências
religiosas possam e se disponham a dialogar.
4.2 Construção de sentido via diálogo inter-religioso
Todo diálogo pode ser facilitador de um encontro gerador de sentido. Para Morin
(2013, p. 75), “o sentido pode ser um formidável espaço de abertura radical, alternativa a
todos os totalitarismos, diálogo entre todas as tradições.” Por isso acreditamos que as
religiões, por se preocuparem com o sentido último da vida, quando se propõem a dialogar,
seja esse diálogo realizado através das instituições ou de seus adeptos, podem se tornar ainda
mais potentes em gerar sentido.
O diálogo inter-religioso demonstra a possibilidade de uma nova perspectiva de
atuação das religiões ao reconhecer que essas podem exercer um papel significativo
na construção de uma ética da superação da violência; que podem igualmente
dedicar-se à tarefa comum de salvaguardar a integridade dos seres humanos e da
terra ameaçada. A verdadeira relação com o Absoluto é incompatível com toda e
qualquer desumanização ou violência. (TEIXEIRA, 2003, p. 21).
O diálogo inter-religioso, por sua própria natureza, pode ser uma oportunidade de
provocar não só o aprofundamento humano, mas também colocar o outro em um lugar de
destaque e despertar nos seus adeptos um interesse pela alteridade, de tocar em uma dimensão
de cuidado que não contemple apenas o seu grupo, mas que se estenda a todo o universo. Isso
mudaria a lógica individualista do pensamento vigente atual, que está presente inclusive nas
formas espirituais predominantes, pois ofereceria um sentido que não se esgota no sujeito,
mas que, ao contrário, emerge a partir da provocação de uma alteridade.
Sendo assim, a construção de sentido via diálogo inter-religioso pressupõe um
compromisso com a busca da verdade/Deus daqueles que pertencem a uma religião34
. Um
compromisso de assumir a busca pela verdade em sua totalidade, sem negar nenhum de seus
aspectos, abrindo-se a cada experiência de encontro para encontrar mais da verdade. Essa
34
Hans Kung, ao discutir sobre o tema da verdade no contexto da religião, afirma que “a pergunta pela verdade
(entendida num sentido mais teórico) ou pelo sentido da religião é, ao mesmo tempo, a pergunta pela sua
bondade (entendida num sentido mais prático) e pelo seu valor.” (KUNG, 1999b, p. 273).
110
busca pressupõe, diante do outro, ao perguntar: Quem és tu?, posicionar-se acolhendo a sua
resposta, o seu mistério, como possibilidade da própria revelação de um aspecto de
Deus/verdade.
De acordo com Hans Kung (1999b, p. 284), “ninguém consegue compreender
profundamente uma religião se não a afirma a partir de dentro, com radical seriedade
existencial”. Compreensão que deve estender-se às experiências religiosas diversas das
nossas, pois se falamos de pluralismo religioso querido por Deus (GEFFRE, 2004), cada
religião representa o estatuto de uma verdade diferente e é esta diferença que é preciso colocar
em prática.
Além da busca comum da verdade ser um dos importantes traços da aventura dialogal,
ela deve provocar em seus interlocutores a responsabilidade global de afirmação do humano e
do cuidado com toda a criação (TEIXEIRA, 2010a, p. 5). Quando propomos o diálogo inter-
religioso, ele deve, inevitavelmente, cumprir dois grandes objetivos: ampliar a percepção de
Deus presente em cada tradição religiosa e proporcionar mais vida para a humanidade
(PANASIEWICZ, 2003, p. 39). Dessa forma, o diálogo não pode acontecer unicamente em
função da religião, mas sempre em função de um bem social35
.
A questão do diálogo na civilização como diálogo de sentido, coloca-se não só em
escala planetária, mas também na escala de nossos próprios bairros. No interior das
grandes tradições, certos movimentos trazem a questão do sentido como questão
pública essencial e não simplesmente pessoal e privada. (MORIN, 2013, p. 72).
Nesse aspecto, a busca por sentido é real, faz parte do nosso cotidiano e, portanto,
deve ser tratada levando a sério a nossa realidade concreta. Sendo assim, quais seriam as
contribuições do diálogo inter-religioso para a construção de sentido?
4.2.1 Contribuições do diálogo das religiões para a construção de sentido
No que tange à crise de sentido, destacamos um aspecto importante para pensarmos os
principais sintomas/causas desse cenário: o aumento das doenças mentais e sua possível
relação com a desigualdade social36
. Não é possível falar de paz sem justiça social e também
35
Sob essa perspectiva, o diálogo inter-religioso, deve, antes de tudo, levar a uma transformação das próprias
religiões.
36
Para acessar mais dados sobre a relação entre o amento das doenças mentais e sua possível relação com a
desigualdade social, ler “A depressão como fenômeno cultural na sociedade pós-moderna” (NICO, 2015) e “A
depressão como mal-estar contemporâneo”. (TAVARES, 2010).
111
não podemos falar de um ser humano feliz e saudável (em suas dimensões psíquica, espiritual
e corpórea) se ele não possuiu um contexto que favoreça o conhecimento e o cuidado de si.
Sem garantia de direitos básicos, qual o sentido da vida? Com a instabilidade econômica
mundial e no Brasil, assistimos ao aumento do desemprego e à perda de direitos
constitucionalmente adquiridos, que podem gerar uma insegurança generalizada e até mesmo
o aumento da violência.
Ao longo da história, apesar de estarem envolvidas em vários episódios de guerra e
violência, as grandes religiões do mundo também contribuíram positivamente para a
sociedade. “Além de oferecer os arcabouços morais dentro dos quais as pessoas podem levar
uma vida ética, as religiões proporcionaram uma noção de sentido mais profunda para
milhões de indivíduos e também foram fonte de conforto e paz em momentos de tragédia.”
(DALAI LAMA, 2014, p. 168). Vivemos também uma crise ambiental planetária que, de
acordo com Aragão e Panasiewicz (2015, p. 1854), pode ser um estímulo para que as religiões
assumam o desafio da transdisciplinaridade, em uma busca autêntica de diálogo e
compromisso mútuo.
Nesse contexto, uma forma das religiões contribuírem com a construção de sentido na
contemporaneidade seria dialogar com várias esferas da sociedade.
Se queremos responder à pergunta do que é bom para o homem, não só de forma
pragmática ou positivista, mas de maneira fundamental; não só de maneira filosófica
ou abstrata, mas existencial e concreta; não só de forma psico-pedagógica, mas num
sentido incondicionalmente obrigatório e universal, então não podemos excluir do
discurso a religião ou, em seu lugar, uma quase-religião. Mas religião, por sua vez,
deve submeter-se ao critério ético geral do humano. Por isso, no contexto moderno,
não poderá prescindir dos resultados da psicologia, da pedagogia, da filosofia e da
ciência jurídica. Não existe aqui um círculo vicioso, mas, como muitas vezes
acontece, um relacionamento dialético. (KUNG, 1999b, p. 288).
Muita coisa mudou no âmbito científico no decorrer do século XX e as descobertas da
ciência desde a modernidade levaram à queda de um pretenso determinismo físico e
biológico. “O estudo do mundo das partículas subatômicas foi descortinando um mundo
perturbador, para o cientista acostumado à solidez e à ordem da realidade física regida por
leis deterministas.” (RUBIO, 2007, p. 272). Isso, juntamente com a crescente procura das
pessoas por experiências holísticas, desenvolvimento espiritual e autoconhecimento, cria um
ambiente favorável para o diálogo das religiões com a ciência, na busca de soluções para esse
contexto de adoecimento mental, desigualdade social e destruição do planeta.
Sendo assim, o diálogo das religiões com a ciência, por exemplo, desde que se
fundamente no compromisso de ambas em resgatar a totalidade do ser humano, pode oferecer
112
ganhos que ultrapassam o âmbito circunscrito da religião e contribuir para que as pessoas
construam um pensar crítico a respeito de si mesmo e da realidade a sua volta.
Lipovetsky (2004a) afirma que na sociedade pós-moderna predomina a ética do
individualismo responsável e Rubio (2007) identifica nesse individualismo responsável um
ponto importante de diálogo da cultura pós-moderna com a teologia:
A antropologia teológica encontra um ponto importante de diálogo com a cultura
individualista pós-moderna, na medida em que, no interior desta, está se
desenvolvendo um individualismo responsável. É no diálogo com esta modalidade
de individualismo que a antropologia teológica pode mostrar o quanto é prioritária,
na realidade brasileira, a tarefa ética de ajudar e se comprometer com a humanização
dos mais excluídos pelo sistema dominante. A opção pelos pobres, nas situações e
nos compromissos concretos, continua sendo um sinal fundamental da credibilidade
da Igreja. No entanto, pedagogicamente, o caminho para se chegar a assumir essa
perspectiva, na cultura pós-moderna, passa pela prioridade concedida ao subjetivo. É
a partir do subjetivo e do individual que o social, o político e o estrutural podem ser
percebidos como objetivos desejáveis e necessários. (RUBIO, 2007, p. 292).
Pensando a realidade atual e as possibilidades de construção de sentido e da paz
construída mediante a diminuição das desigualdades sociais, as religiões e as ciências podem,
juntas, dar um passo além do individualismo responsável e propor uma união que se sustenta
na compaixão pelo outro. "Tendo como base uma ética da compaixão, a ciência pode atingir
uma parcela muito maior da humanidade do que qualquer fé religiosa". (GOLEMAN, 2016, p.
65). O diálogo da ciência com a religião e da ciência como parceira da religião em um diálogo
com a sociedade é uma possibilidade que amplia as forças de transformação que embas
almejam.
O novo modelo de conhecimento, complexo e transdisciplinar, gerou a lógica do
terceiro incluído que, debruçada por si sobre o fenômeno das religiões e as
contradições que surgem do seu pluralismo, remete à busca de outro nível de
realidade, àquela ética do amor, que pode religar crentes doutrinamente antagônicos
em uma fé que se faz silêncio místico ou atitude de cuidado pelos outros e pelo
nosso meio e permite o acesso ao sagrado e abertura para o divino que está entre e
para além das religiões e cujo espírito permeia todas as coisas. (ARAGAO,
PANASIEWICZ, 2015, p. 1858).
Para Dalai Lama, a verdadeira expressão da não violência é a compaixão. Sendo a
compaixão não apenas uma postura de passividade, mas um estímulo à ação. “Experimentar
compaixão genuinamente é desenvolver um sentimento de proximidade em relação ao outro,
combinado com um senso de responsabilidade pelo bem estar do outro.” (DALAI LAMA,
apud GOLEMAN, 2016, p. 149). Porém, para que isso se torne possível, é preciso que o outro
em sua alteridade retome o seu lugar de destaque nas relações sociais, tendo em vista que, ao
113
longo da história do Ocidente, através da primazia do eu, foram anulando, sistematicamente,
as alteridades. Essa anulação do outro prejudica tanto as relações sociais, quanto a construção
subjetiva saudável.
4.2.2 A emergência de uma ética da alteridade por uma sociedade tolerante
Existem estudos em várias áreas da ciência que tratam da relação entre conhecimento
das emoções e do funcionamento da mente e o aumento da empatia e da compaixão.
Percebemos que o conhecimento de si, quando feito de maneira totalizante, ou seja, abarcando
o conhecimento de todas as dimensões humanas, favorece o acolhimento da diversidade e,
consequentemente, um convívio mais respeitoso. Sendo assim,
o autoconhecimento se torna um ponto de equilíbrio, um ato vital, com a finalidade
de atingir uma dimensão única que é a totalidade. Esse ato evoca a exigência, pois
está em jogo a própria existência do homem questionador, o conhecimento de si,
sem retenção ou posse de si, mas tomada de consciência de sua existência, de sua
relação consigo, com o mundo e com os outros. Não é suficiente considerar o
homem como objeto. É preciso entrar conscientemente na realidade do ato da
introspecção para se chegar à totalidade. (SILVA, 2014, p. 57).
O conhecimento de si, adquirido através da autorreflexão, não gira em torno de si
mesmo, ele necessita de um olhar de fora e um olhar para fora. A “ontologia da relação (de
Buber) é um fundamento que se encaminha para a ética do inter-humano”. (ZUBEN, 2003, p.
88). A maneira como nos relacionamos com a alteridade é que sustenta os campos da ética e
da política e pode transformar a realidade social, o que nos leva a refletir sobre a importância
da alteridade em nossas vidas e na nossa sociedade e a emergência de uma ética que acolha
essa alteridade.
Precisamos superar o movimento centrípeto do ser humano pós-moderno se quisermos
recuperar a nossa humanidade, pois é a partir do outro que nos tornamos humanos.
Na concepção levinasiana, o pensamento lógico-filosófico voltado para si mesmo,
em que ontologicamente o que prevalece é o ser enquanto ser, relega o outro ao
esquecimento, daí decorrendo toda a violência praticada contra o outro na história
ocidental. Assim, sua filosofia consiste na proposta de uma nova compreensão da
própria filosofia, a ser construída sobre o alicerce da alteridade como princípio ético.
(ESTEVAM, 2008, p. 175).
114
O contato com o outro é sempre um contato através da diferença. Essa diferença da
outra pessoa é sempre aquém e além de qualquer compreensão. E toda vez que impedimos
que o outro se manifeste, somos violentos. Apesar de nunca ser possível captar a totalidade de
uma pessoa, pois existe algo no outro que sempre nos escapa, impedir que ele mostre a sua
singularidade é o mesmo que impedir que ele se constitua enquanto ser. Da mesma forma,
negar a alteridade presente em nós é deixar de ser.
Por si só, as diferenças não são nem boas, nem ruins, nem devem necessariamente
gerar conflito. O que importa é como se lida com essas diferenças. Mesmo nos
pensamentos e nas emoções de uma única pessoa, ele ou ela experimenta todo tipo
de diferenças e contradições – entre estágios anteriores e posteriores da vida, e até
mesmo entre o que é sentido e pensado pela manhã e mais tarde, ao anoitecer. Com
efeito, são tais ideias e sentimentos contraditórios que, em parte, podem dar origem
a novos entendimentos e nos tornar mais maduros e esclarecidos em relação à vida e
ao mundo. (DALAI LAMA, 2014, p. 170).
Nesse contexto de desumanização da sociedade, Lipovetsky propõe uma ética da
responsabilidade, que leve em consideração as nossas ações, muito mais do que nossas
intenções. “Uma ética que leve em consideração as consequências objetivas das nossas
escolhas, que considere as condições sociais concretas e não o ideal absoluto” (2004a, p. 38).
A ética da responsabilidade proposta por Lipovetsky vai de encontro à ética proposta por
Levinás. Para este, a questão de como eu devo agir em relação ao outro é sempre posterior ao
encontro com o outro. A ética vem antes. A ética não é da ordem da demonstração racional,
ela vem antes.
A alteridade vivida como uma experiência ética é capaz de acionar a nossa dimensão
espiritual adoecida e provocar um posicionamento dos sujeitos diante de si mesmos e do
mundo. Valorizar o outro não é negar o valor da identidade, ao contrário, é compreender que
o seu eu só é possível a partir do outro. E para a construção de um mundo mais humano,
precisamos aprender a acolher a alteridade do outro e a alteridade que existe em nós.
A compaixão e a solidariedade só podem existir se tivermos capacidade psíquica de
nos colocar no lugar do outro, de percebê-lo em sua alteridade. Uma grande dificuldade em
relação a isso é que nossos próprios mecanismos de defesa podem ser usados,
inconscientemente, para depositar nos outros o que não conseguimos ver em nós. Por isso,
lidar com alteridades torna-se um exercício repleto de tensões, pois vem misturado, o tempo
inteiro, com nossas próprias questões.
Sendo assim, acolher a nossa humanidade coincide com acolher os nossos limites, pois
não existe nada que apareça no social, que não exista primeiro dentro de cada um de nós. De
115
acordo com Boff (2009, p. 76), “há violência no mundo porque eu carrego violência dentro
de mim na forma de raiva, inveja e ódio.” Precisamos acolher a nossa polaridade como
pertencente à condição humana, pois somos a unidade viva dos contrários, amor/ódio,
opressão/libertação, caos/cosmos. Perceber que trazemos em nós contradições e compreender
o seu funcionamento faz parte do processo de conhecimento de si e pode facilitar o
conhecimento e o convívio com o outro, na medida em que existe uma estrutura humana que é
universal, o que nos remete à importância do conhecimento de si.
Nesse sentido, o encontro inter-religioso pode ser ocasião de aprofundar o
conhecimento de si, na medida em que nos abrimos a conhecer o outro e nos permitirmos ser
tocados por ele.
4.2.3 O diálogo entre as religiões como potencializador do relacionamento com as
diversidades
Um compromisso com a busca pela verdade última, tanto quanto a busca de
conhecimento de si, deve chegar à consciência e ser capaz de gerar em seus adeptos um
compromisso de transformação pessoal e social. O principal desafio da vida espiritual e do
encontro inter-religioso na sociedade contemporânea é conferir um lugar de centralidade ao
outro, à alteridade. Na medida em que o outro ocupar um lugar central nos relacionamentos,
cada encontro poderá se tornar oportunidade de elaboração da própria experiência.
De acordo com Gaspar (2014, p. 17), “se o encontro entre culturas já é marcado pela
tensão, a tensão presente no encontro entre religiões é superlativa. O impacto tende a ser, por
excelência, mais desafiador, e a diferença mais provocadora, pois é o modo de apreensão da
totalidade que está em jogo”. E é exatamente por essa provocação que o diálogo entre pessoas
de religiões diferentes pode potencializar as nossas elaborações vivenciais.
Para que o diálogo inter-religioso propicie um aprofundamento e comprometimento
existencial com a realidade, ele não pode ser feito de qualquer jeito. Dalai Lama (apud
GOLEMAN, 2016, p. 145) vai dizer que, entre grupos pertencentes a qualquer tipo de
diversidade, inclusive religiosa, sempre existirá um amigo do outro lado. E quando há
envolvimento emocional, como amizade ou romance, entre pessoas de grupos diferentes, os
preconceitos herdados são superados37
.
37
Para descobrir o que pode reparar essas divisões nós-eles, o psicólogo social Thomas Pettigrew revisou mais
de quinhentas pesquisas realizadas em 38 países sobre essa questão – com respostas de 250 mil pessoas.
(GOLEMAN, 2016, p. 146).
116
O efeito do afeto não deriva apenas de contatos casuais, mas também da intensidade
do vínculo emocional. O carinho que sentimos por um membro do outro grupo
expande-se gradualmente para todo o grupo, mesmo em meio a tensões. Embora os
estereótipos possam permanecer guardados no armário mental, a forte negatividade
que os acompanhava desaparece. E, se os sentimentos mudam, o comportamento
também muda. (GOLEMAN, 2016, p. 146).
Todos nós conhecemos pessoas de outras religiões e até mesmo casais com crenças
diferentes. Em uma pesquisa realizada por Gaspar (2014, p. 240), com pessoas que vivem o
diálogo inter-religioso em seu cotidiano, as análises “revelaram que é na relação e por meio
dela que tanto as semelhanças quanto as diferenças religiosas emergentes puderam ser
efetivamente vividas e elaboradas”. Ou seja, o convívio com a diversidade religiosa, além de
não ser impeditivo, pode ser ocasião de elaborar as nossas vivências, desde que acolhamos a
provocação que emerge daquele relacionamento como uma oportunidade de elaboração e
aprofundamento da própria existência.
Reconhecer o valor da pluralidade como um princípio pode favorecer o movimento de
deixar-se tocar afetivamente pelas alteridades. Além disso, acreditamos também que, em se
tratando do diálogo entre pessoas de religiões diferentes, o ideal seria que ele se desse em
duas partes de igual importância, sendo que cada uma delas, necessariamente, deve vir
seguidas de um momento de afastamento para reflexões38
.
O outro, parece-nos perigoso, mas ao mesmo tempo, nos salva de nós mesmos e das
construções teóricas e axiológicas nas quais somos capazes de nos agarrar como
tábua salva-vidas. Porém, o outro também pode estar alienado e querer impor a sua
alienação a nós. Tudo isso requer muito cuidado e cultivo do pensar, não do
pensamento, mas do pensar. Pensar é uma atividade e não um conteúdo. Pensar é o
exercício mais puro da liberdade. (FRECHEIRAS, 2011, p. 580).
É necessário que a pessoa disposta a dialogar, primeiro, busque conhecer mais da sua
própria tradição religiosa e que reflita sobre essa vivência, mas que também, diante de uma
alteridade, disponha-se a ouvir a sua história, suas crenças, que consiga colocar em parênteses
seus julgamentos e que também reflita sobre o que foi ouvido. Esses dois momentos devem,
necessariamente, levar a um terceiro momento, de compromisso social, em um movimento
cíclico.
38
Este afastamento para reflexão possibilitaria um espaço adequado para elaboração dessas vivências, já que não
é possível estabelecer um diálogo sem a prática constante da autocrítica. Um processo trabalhoso, pois ao nos
colocarmos em questão, somos levados a um horizonte infinito e sentimos medo de nos perder na imensidão,
mas é necessário.
117
O diálogo no contexto das religiosidades ganha proporções maiores e contornos mais
sutis que todos os outros diálogos, pois ele tem como uma de suas premissas o
aprofundamento da sua própria fé. Porém, considerando que pessoas mais inseguras
psiquicamente e menos conscientes de si, por medo, são mais propensas a se fecharem ao
diálogo ou serem violentas diante da diversidade, ficamos diante de um impasse: o diálogo
acontece naturalmente em pessoas abertas e as violências ocorrem preponderantemente em
pessoas fechadas? Parece que existe algo que antecede e que prepara a pessoa de modo a
favorecer uma abertura ao outro e a si mesmo. Será que podemos falar de uma formação para
o reconhecimento da alteridade?
4.2.4 Uma educação dialogal que favoreça a consciência e o reconhecimento do outro
O diálogo não é algo que pode ser simplesmente imposto de fora, nem por alguém,
nem por uma instituição, pois ele precisa de uma adesão sincera e espontânea de todos os
envolvidos. Entretanto, pode ser proposto por todos que o desejarem, a partir de uma
iniciativa individual - o que respeitaria as características da própria pós-modernidade. Iniciado
por meio de uma iniciativa individual, o diálogo incluiria um elemento novo e altamente
transformador, o fato de nos convidarmos a nos encontrar com o outro, a ouvi-lo, a pensar
junto uma boa convivência e o cuidado com nossa casa comum. Acrescentaríamos a esse
elemento novo a imanência - marca da busca espiritual atual -, uma transcendência (mesmo
que apenas uma transcendência horizontal), devolvendo o ser ao humano, já que este se
constitui como ser de alteridade.
O contexto plural favorece o diálogo, na medida em que o contato com a diferença é
inevitável, mas ao mesmo tempo, pode favorecer o fechamento e atitudes de violência, na
medida em que as pessoas não são favorecidas no seu dinamismo natural, sendo necessário,
portanto, um discernimento que pode ser alcançado através de uma formação humana. Para
Dalai Lama (2014, p. 158), “quando a porta interior se abre, não é mais preciso esforço para
se aproximar e se conectar com os outros. É por isso que o maior antídoto contra a
insegurança e a sensação de medo é a compaixão: ela nos leva de volta à base de nossa força
interior.” Sendo assim, todas as religiões de todo o mundo podem ajudar a reconhecer essa
herança e oferecer um meio sistemático de nutri-la.
O caminho mais curto e seguro para tal propósito é a educação crítica, responsável,
cuidadora e acessível a todos. Por ela as pessoas se civilizam, socializam valores e
aprendem a não criar bodes expiatórios, mas a assumir elas mesmas a tarefa de
118
controlar a dimensão demente e se empenham positivamente na construção de uma
sociedade na qual todos possam caber. Desta forma então haverá mais paz que
violência. (BOFF, 2009, p. 79).
É necessário uma educação, uma companhia que oriente as pessoas a olhar para sua
interioridade, de maneira inteira, aceitando os aspectos sombrios e aprendendo a integrá-los
de maneira harmônica. Uma formação humana consciente e aberta à alteridade não deve ser
uma imposição de normas e valores, mas uma orientação no reconhecimento daquilo que nos
faz humanos e de critérios que nos ajudem a ter critérios para decidir como agir diante da
singularidade de cada situação que nos acontece, respeitando a nossa humanidade e a do
outro. Não é possível fazer um manual, pois “somente nas sombras de cada situação concreta
essa linha de demarcação ganha luz” (BUBER apud ZUBEN, 2003, p. 18). Se não existem
regras que podem ser definidas de uma vez por todas, torna-se necessária uma pedagogia da
educação que seja totalizadora, que leve o indivíduo a ser capaz de, “engajado no encontro
dialógico, manter duplo sentimento, vale dizer, ter consciência de si próprio e, ao mesmo
tempo, perceber o outro na sua alteridade singular.” (ZUBEN, 2003, p. 19).
Frankl e Lapide (2014, p. 86) afirmam que todo ensino deve fomentar o processo de
busca de sentido dos jovens e aguçar sua consciência, para que se tornem sensíveis para
discernir as possibilidades de sentido e desafio presentes em qualquer situação vivida
individualmente:
De fato o sentido não pode ser absolutamente dado, porque o sentido tem de ser
encontrado. Nós não podemos “receitar” nenhum sentido. Mas quando a gente
convence as pessoas de que o homem não seria nada mais do que um “macaco nu”,
ou uma bola de brinquedo dos impulsos, ou produto de relações de produção ou o
resultado de processos de aprendizagem – sim, então eu paraliso sim a original
orientação de sentido. Dessa forma, o entusiasmo e o altruísmo normal do jovem são
sepultados. E este é exatamente o grande perigo: se eu encaro o homem desde o
princípio como um pobre coitado, então eu o torno pior do que ele já é, eu o
corrompo. Se eu, pelo contrário, aceito o homem como ele é, como ele deve ser,
então o torno aquilo que ele pode se tornar. Então eu mobilizo seu potencial humano
individual.
Nós concordamos com a afirmação dos autores supracitados, porém acrescentamos
que essa educação deve começar desde a mais tenra idade. Para uma transformação de
consciência, que se pretende social, precisamos mudar um sistema educacional e focar nas
nossas crianças e consequentemente em seus cuidadores. A luta contra a intolerância e pela
acolhida da diversidade deve começar desde a nossa infância, pois essa “a atitude de abertura
do homem e a doação originária do ser formam a estrutura da relação Eu-Ser.” (BUBER,
2001, p. 33).
119
Essa educação incluiria noções básicas sobre funcionamento da mente e da dinâmica
das emoções; regulação saudável dos impulsos emocionais e cultivo da atenção, da empatia e
do afeto; gestão de conflitos de forma não violenta e sentimento de unidade na humanidade.
“Nosso sistema educacional moderno é orientado por valores materiais. Precisamos de
educação sobre valores internos para levar uma vida saudável.” (DALAI LAMA apud
GOLEMAN, 2016, p. 171). A médio e longo prazo, esse tipo de educação totalizante e
integradora poderia ajudar a resolver problemas importantes que vivemos em nível planetário,
desde aquecimento global e destruição ambiental, até desigualdades e conflitos econômicos.
Uma formação que favoreça a autonomia do sujeito, através do conhecimento de si e
do reconhecimento do outro enquanto uma pessoa, precisa de educadores e de lideranças
comprometidos com esse objetivo e que também tenham sido formados integralmente.
4.2.5 As lideranças no diálogo das espiritualidades em prol do cuidado com o planeta
No contexto das religiões, a ética da alteridade precisa tornar-se um pressuposto
inegociável. Sabemos que é mais comum ver a religião associada à violência do que à paz.
Sem desconhecer toda a trama geopolítica e relações de poder, que também envolvem as
instituições religiosas, ainda assim elas podem, através de suas lideranças, fomentar o diálogo
humano, pois a espiritualidade lhe confere um horizonte de sentido nesse momento de crise.
A pluralidade trouxe incertezas, tanto para a construção subjetiva, quanto para a
estrutura teleológica das religiões, principalmente para as que tinham hegemonia, levando as
instituições a repensarem as suas diretrizes diante das mudanças da humanidade. Tendo em
vista a importância dos líderes religiosos na formação de seus adeptos, "para além de
consolidar uma espiritualidade humanizante, há desafios no sentido de suscitar maior
tolerância, valorização da diferença e contribuição para a construção da cultura da paz.”
(OLIVEIRA, P.; PANASIEWICZ, 2014, p. 1187). Dessa forma, a mesma importância do
outro na construção subjetiva do eu pode ser estendida para o diálogo inter-religioso e
favorecer a compreensão do sentido último e do cuidado com a vida, de maneira geral.
Um fundamental serviço da espiritualidade do diálogo inter-religioso é promover o
sentido e o valor da vida comum entre os crentes, despertando neles a consciência de
uma origem e fim comuns, de modo que também as suas aspirações mais profundas
se encontrem e eles possam empreender juntos a busca do significado da vida, do
amor, da dor, da morte. (WOLFF, 2016, p. 161).
120
Essa intervenção das religiões para superar a crise atual, em favor da humanização das
nossas relações e do cuidado com o planeta, é possível, porém, não pode ser imposta39
. De
acordo com Leonardo Boff (2002a, p. 21), aqui aparece a dramaticidade da crise: “O ser
humano que deve decidir-se não pode fazê-lo de qualquer jeito. Porque não vê claro. Tudo se
anuviou. Mas percebe que deve decidir-se porque sem sentido ninguém pode viver por longo
tempo. A vida só é possível quando se constrói um arranjo existencial e uma articulação
integradora dos fatores principais.”
Uma liderança que vise um convívio harmônico, pautado no cuidado e no respeito
com as diferenças, deve viver existencialmente o que propõe. Portanto, muito mais do que
falar sobre a importância de ser tolerante em relação à diversidade religiosa, ela deve agir
sendo tolerante, dialogando, abrindo-se existencialmente ao outro. Um discurso vazio não
mobiliza mudança, não se torna uma companhia que ajude na elaboração da própria vida.
Paulo Freire, que foi um educador que acreditava na emancipação humana através da
consciência e de uma educação integral, e que tinha como metodologia principal o diálogo,
dizia que40
:
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode
nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens
transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo.
O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos
pronunciantes, a exigir deles um novo pronunciar. (FREIRE, 2011, p. 108).
Neste sentido, “a autossuficiência é incompatível com o diálogo” (FREIRE, 2011, p.
112) e, nesse contexto, a humildade e a abertura às alteridades deve ser percebida no cotidiano
das instituições religiosas. “A ética deve encarnar-se nas leis e nas instituições se queremos
combater o mal e a injustiça. Precisamos, talvez, de mais espírito de solidariedade, mas
também de mais inteligência organizacional e política se desejamos realizar, não o bem, mas
algo melhor”. (LIPOVETSKY, 2004a, p. 39).
39
A superação de uma crise só é possível mediante um processo de elaboração. "Se não houver uma decisão
pessoal, a crise não pode ser superada. Intervenções vindas de fora, sem partir de uma maturação interna e
valorizando forças positivas da crise, são inoperantes, embora haja sido até o presente o modo mais comum
como a Igreja oficial e também o poder político dominante tentaram resolver suas crises internas". (BOFF,
2002a, p. 21).
40
Paulo Freire (1921-1997), foi um importante educador, pedagogo e filósofo brasileiro, com atuação e
reconhecimento internacionais na área de educação e políticas sociais. Podemos perceber uma influencia da
fenomenologia no pensamento e em suas obras.
121
4.3 Diálogo inter-religioso como uma práxis
Apresentamos as necessidades do diálogo em seu aspecto humano antropológico e
também a sua urgência, considerando as características do tempo em que vivemos. E
mostramos quais seriam as premissas e a formas de se realizar o diálogo entre as religiões.
Porém, não podemos perder de vista que nada disso tem sentido se o objetivo do diálogo inter-
religioso não for, de fato, a paz, vivida através do cuidado com o cosmos, com o outro e
consigo mesmo. Sem essa clareza sobre o objetivo do diálogo, perdemos o critério para
distinguir como responder ao outro, como agir diante das circunstancias da vida, de forma
responsável.
Geffré (2003, p. 11), ao propor o ecumenismo inter-religioso, além de ampliar o
conceito de ecumenismo para além das religiões cristãs, diz que este deve realizar-se visando
a um encontro das religiões que coloque todas as suas riquezas espirituais e morais à serviço
da paz, da humanização das pessoas e da proteção do meio ambiente. Esse encontro deve
provocar uma melhora de vida para a humanidade, tanto no campo espiritual quanto no social.
De acordo com Frankl (1991), o sentido da vida só pode ser encontrado na vida
concreta. Portanto, a vida não pode ser confundida com uma abstração, nem tampouco o que
propomos como diálogo inter-religioso. Por esse motivo, essa discussão sobre a busca de
sentido através do diálogo não pode restringir-se ao plano teórico, ela precisa transformar-se
em uma práxis dialogal. De acordo com Baptista (2003), essa práxis pode ser definida como
a maneira como o ser humano expressa seu ser e se constrói, em uma ação que se faz
iluminada pela razão.
A convergência das elaborações teóricas em uma práxis deve, necessariamente, levar a
uma mudança tanto individual quanto social. Para Morin (2013, p. 76), “existe uma
articulação entre as questões da transformação pessoal e da transformação social e é preciso
deixar de colocá-las uma contra a outra”. Uma mudança na sociedade que objetive a paz e o
convívio com a diversidade não pode ser imposta, ela deve passar por uma transformação das
pessoas.
A verdadeira paz, portanto, requer mudanças profundas, tanto na vida individual de
cada um como nas estruturas sociais. Uma mudança no plano puramente
organizacional, isto é, político, de nada serviria. Pelo contrário, a mera criação de
instituições políticas internacionais, dotadas de poder suficiente para controlar a
exploração conjunta dos recursos do planeta, por exemplo, pode ser muito mais
perigosa do que útil, se não for acompanhada por modificações radicais no plano
individual e social. (BUBER, 1982, p. 19).
122
É possível uma práxis dialogal entre as religiões na realidade brasileira? Essa práxis é
capaz de provocar mudanças individuais e sociais?
4.3.1 Brasil: um espaço de encontros e de tensões
No cenário mundial, a urgência do diálogo entre as religiões fica evidente, pois elas
são marcadas, muitas vezes, por reconhecimento de território, quando não se confundem com
conflitos políticos e econômicos. No Brasil, existe a questão da preservação de áreas e
territórios quando falamos da tradição indígena, mas existe, na maioria dos casos, uma
coexistência de várias religiões nos mesmos espaços, tanto públicos quanto privados. A nossa
maior questão no âmbito religioso passa pela tentativa de conviver em harmonia e pelo direito
de construir a própria identidade, sem imposição, e poder exercê-la em paz.
Pesquisas realizadas pelo IBGE, através do Censo 2010, confirmam o que percebemos
no nosso cotidiano: que existe uma predominância do cristianismo41
. Sanchis (2012, p. 28) ao
analisar a cultura brasileira na perspectiva da religião identifica algumas tendências:
a presença de uma dimensão religiosa superlativa; a representação de um anel
místico em torno do povo brasileiro, do grupo social brasileiro; permanência de certa
polarização dessa diversidade para o catolicismo; e uma porosidade das identidades,
uma tendência relacional transformadora das identidades.
O fato da cultura brasileira ser majoritariamente cristã traz uma responsabilidade a
mais para aqueles que se identificam como cristãos. Existe uma pluralidade no interior do
próprio cristianismo, tanto católico quanto protestante ou ortodoxo. Essa diversidade ressalta
o cuidado que devemos ter em relação à alteridade, para que não exista um discurso cristão
que seja imposto, gerando violência. Entretanto, casos de violência são incontáveis por todo o
país. Recentemente, em uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, no Estado de
Minas Gerais, foi decretado judicialmente dias e horários para que as religiões de matriz
africana pudessem realizar os seus cultos42
. Nenhuma religião pode pretender ser superior a
41
O Brasil é um país majoritariamente cristão, com aumento significativo dos evangélicos protestantes.
Entretanto, o país apresenta um crescimento daqueles que se denominam como sem-religião e de pessoas que
declaram pertencer a mais de uma denominação religiosa.
42
Segundo dados da imprensa local, “representantes e praticantes das religiões de matriz africana realizaram um
protesto, na última terça-feira (18/07/2017), contra a intolerância religiosa. Vestidos de branco, eles se
posicionaram em frente ao Ministério Público e pediram por respeito às tradições da cultura afro-brasileira. O
caso que culminou na manifestação diz respeito a uma imposição da Justiça de Santa Luzia, na Região
Metropolitana de Belo Horizonte, que estipula dia, horário e como devem ser realizados os cultos em um terreiro
de Candomblé da cidade. De acordo com as novas regras, a casa poderia executar as atividades somente nas
quartas-feiras e em um único sábado do mês, utilizando apenas um atabaque. Caso as normas não sejam
123
outra, pois isso, além de ser contra a aceitação da diversidade como um dom, pode causar
violências e massacres. Especificamente em relação à religiões de matriz africana, “o
candomblé, a umbanda e diversas religiões afro-brasileiras, além de serem ricas em cultura e
em suas funções sociais, também são pilares que constituem a nossa sociedade há muito
tempo e precisam ser respeitadas.” (LUIZ; VELIQ, 2017, p. 3). Assim, ao propor o diálogo
inter-religioso, devemos compreender a necessidade da emergência de uma reforma íntima
dos cristãos, sobretudo dos evangélicos, em relação às religiões de matriz africana, já que por
parte destes, já percebemos uma abertura dialogal43
.
Em via de regra, para o evangélico comum, a relação é muito simples e pode ser
resumida a formulação de que tudo associado a religiões de matriz africana pode ser
demonizado e deve ser evitado a qualquer custo. Não nenhuma possibilidade de
diálogo entre os dois ramos religiosos. [...] No meio protestante, a postura de diálogo
se mostra um pouco melhor que no meio evangélico, no entanto, tal prática ainda
não se mostra a tônica nem mesmo entre os chamados protestantes. (LUIZ; VELIQ,
2017, p. 2).
Nesse sentido, a luta contra a intolerância religiosa exige, inclusive, uma revisão da
nossa linguagem, para que ela se afaste do discurso pautado em nós e eles. Um discurso que,
no âmbito das religiões, pode ter consequências desastrosas. Essa revisão da linguagem torna-
se urgente no contexto brasileiro e deve ser proposta pelas religiões cristãs em
reconhecimento da responsabilidade diante do seu histórico de poder e da força do seu
discurso como uma influência cultural.
Se não houver uma reconstrução das relações para que sejam mais justas, igualitárias
e includentes, seremos condenados a conviver com conflitos e guerras, Esta paz
exige reparações históricas e políticas compensatórias que os dominadores históricos
se recusam a introduzir. (BOFF, 2009, p. 82).
As palavras possuem uma força, são carregadas de sentido. Algumas expressões,
quando faladas ou direcionadas a outra pessoa de forma pejorativa, podem diminuir ou até
mesmo anular a riqueza ou a especificidade da experiência religiosa vivida por ela. De acordo
cumpridas, o terreiro está sujeito a multa diária de R$ 100. O documento proíbe, inclusive, a prática de cultos
silenciosos fora das datas”. (LOPES, 2017).
43 De acordo com Siqueira (2005, p. 14), atualmente, o grupo dos evangélicos pode ser dividido em três grandes
ramificações. O primeiro ramo diz respeito aos chamados evangélicos independentes, históricos ou tradicionais:
32% do total dos fiéis. Entre eles, destacam-se os presbiterianos, os metodistas, os batistas tradicionais e os
luteranos. Mas no conjunto dos evangélicos, destacam-se o segundo grupo, pentecostal, 68%, sendo o Brasil a
maior comunidade pentecostal do mundo, que engloba a Assembléia de Deus, Congregação Cristã no Brasil,
Igreja do Evangelho Quadrangular, O Brasil para Cristo e Deus é Amor. Dessa forma, podemos falar de uma
pentecostalização do protestantismo e de um desenraizamento da tradição religiosa. A terceira vertente é a dos
neopentecostais, onde destacam-se as igrejas: Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de
Deus, Renascer em Cristo e Sara Nossa Terra.
124
com Jacques Dupuis (2004, p. 71), “a terminologia teológica em uso, mesmo hoje entre
muitos pregadores e teólogos, conserva ainda traços de expressões a respeito dos outros que
são claramente pejorativas.” Essa linguagem e esse discurso deixam marcas na construção da
subjetividade do sujeito.
A linguagem religiosa possui uma força cultural. Questões relativas à crença pessoal e
também à divergência entre a crença individual e a crença dos familiares podem ser vividas
sob uma tensão, já que a força da tradição na construção do imaginário popular, quando
vivida de maneira imposta, repleta de regras morais rígidas, sem um relacionamento que
oriente a sua elaboração, pode favorecer uma subjetividade culpabilizante e insegura.
O mundo é construído na consciência do indivíduo pela conversação com os que
para ele são significativos (como os pais, os mestres, os amigos). O mundo é
mantido como realidade subjetiva pela mesma espécie de conversação, seja com os
mesmos interlocutores importantes ou com outros novos (tais como cônjuges,
amigos ou outras relações). Se essa conversação é rompida, o mundo começa a
vacilar, a perder sua plausibilidade subjetiva. (BERGER, 1985, p. 29).
Existe uma moral cristã que permeia toda a sociedade brasileira, que poderia ser
problematizada no âmbito subjetivo e no âmbito das políticas públicas, de modo a favorecer a
prevalência do humano, independente de sua religião, caso o diálogo inter-religioso
acontecesse em vários níveis e espaços. A presença das alteridades na constituição subjetiva
individual, em um contexto plural e global, caso não haja diálogo, pode fazer com que essas
tensões aumentem, gerando cada vez mais violência e adoecimento, inclusive dentro do
próprio cristianismo, que se revela tão plural e com tendências bem diversas.
Assim como a contemporaneidade suscita posições individualistas e, por incrível
que pareça, moralizantes no que diz respeito ao relacionamento com o diferente, ela
explicita a urgência de uma proposta existencialmente vivida que dê conta da
complexidade e pluralidade de perspectivas na qual está imersa. (GASPAR, 2014, p.
32).
Diante desse cenário, tão rico culturalmente, e que, por seu próprio processo de
formação, tem um ambiente que naturalmente propicia o encontro e o convívio inter-religioso
e uma tendência das pessoas transformarem a sua identidade no decorrer dessas co-presenças
sociais e cósmica, e movidos pelo desejo de compreender como promover um diálogo que
favoreça a construção de sentido, agora conheceremos uma instituição que se propõe a isso e
analisaremos como ela funciona.
125
4.3.2 Promovendo encontros inter-religiosos e discutindo a diversidade religiosa no Brasil
O Brasil tem sido palco de iniciativas que buscam promover o diálogo entre religiões e
discutir o respeito à diversidade religiosa em vários âmbitos. Tais iniciativas têm sido
realizadas por instituições religiosas, pela comunidade acadêmica, pelo governo, por
organizações não governamentais e em diversos estados brasileiros. Apenas para citar alguns
exemplos recentes, no mês de agosto de 2017, a revista Carta Capital, de circulação nacional,
lançou uma nova coluna chamada “Diálogos da fé”44
. Em sua primeira semana de
lançamento a coluna tratou, através de seus colaboradores45
, do tema da resistência negra e do
preconceito histórico sofrido pelos negros e pertencentes às religiões de matriz africana,
especialmente os candomblecistas; da importância de sermos protestantes na origem do termo
e de como isso pode ser encarnado por todas as religiões e do risco do esvaziamento da leitura
bíblica descontextualizada; do perigo da violência gerada quando uma moral religiosa serve
ao patriarcado e nega, por meios políticos, inclusive, o direito à igualdade de gêneros; da
importância do diálogo inter-religioso como um elemento fundamental na busca pela paz,
justiça e direitos humanos.
Em 2015, a Coordenadoria Ecumênica de Serviço, uma organização de Salvador/BA,
teve como tema da sua campanha anual “Eu respeito a diversidade religiosa e você?”46
. Além
de encontros para debater o tema do respeito à diversidade religiosa, sobretudo às religiões de
matriz africana, a CESE promoveu uma cartilha com textos sobre o tema escritos por um
padre, uma pastora, um religioso do candomblé, um rabino e de um sheik islâmico47
.
No ano de 2016, o Governo Federal do Brasil, através do Ministério da Cultura,
promoveu a campanha “Filhos do Brasil”, de combate à violência e à intolerância religiosa,
com divulgação nacional, ressaltando que a nossa constituição prevê o respeito às
44
https://www.cartacapital.com.br/diversidade/dialogos-da-fe-nova-coluna-do-site-de-cartacapital
45
Tratam-se de quatro colunistas. Sendo um candomblecista, uma pastora, uma cientista da religião e um teólogo
mulçulmano.
46
De acordo com site de divulgação da campanha, a escolha do tema desta edição está ligada à crescente onda de
intolerância religiosa que tem avançado no mundo e também no Brasil: a cada três dias, a central do Disque 100
recebe uma denúncia desta natureza – 75% delas são contra fiéis de religiões afro-brasileiras, mas o próprio
Governo acredita que, na prática, esses casos sejam ainda maiores. As estatísticas também mostram um aumento
nos casos de violência física sofrida por quem denuncia atos de intolerância religiosa. Em 2013, 20% dos
episódios relatados envolveram agressão e, até julho de 2014, esse número chegou a 12% das denúncias.
Disponível em: http://www.luteranos.com.br/noticias/campanha-primavera-para-a-vida-convida-para-dialogo-
inter-religioso
47
Cartilha disponível em: https://www.cese.org.br/wp-content/uploads/2015/09/CAMPANHA-PRIMAVERA-
PARA-A-VIDA_-LIVRETO-IMPRESSAOv2.pdf
126
diversidades e que a interação entre as religiões é fundamental para superar entraves
históricos. No mesmo ano, a Conferência dos religiosos do Brasil realizou uma missão
ecumênica em apoio aos Guarani-Kaiowá, em Campo Grande/MS.48
Uma missão que tinha
como objetivo apoiar, denunciar e fortalecer a luta dos povos indígenas e que teve repercussão
mundial.
Em 2016, foi realizado em Belo Horizonte/MG, através do Laboratório de Psicologia
da UFMG (LAPS), o encontro “Um retorno às fontes: diálogo inter-religioso e ecologia”49
.
Aberto ao público em geral, o encontro visava debater, entre representantes de diversas
religiões, o cuidado com o mundo, sobretudo, em relação à tragédia que provocou um desastre
ambiental na cidade de Mariana/MG, no ano de 2015.
O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC/MG realiza,
periodicamente, desde 2012, através do seu grupo de pesquisa “Religião Pluralismo e
Diálogo”, encontros mensais para discutir pesquisas na área inter-religiosa. Foi criado, em
2014, o Fórum da Religiosidade Contemporânea. Inicialmente, tinha o objetivo de trazer
diferentes expressões religiosas para encontro e debate com a realidade universitária e,
posteriormente, houve ampliação da proposta e o grupo, juntamente com outros interessados,
visitam in loco e fazem a experiência de encontro e debate no espaço das expressões
religiosas da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Existem também dois programas exibidos pela TV Brasil que tratam da temática
religiosa, sob o viés do pluralismo: “Retratos de fé” e “Entre o céu e a terra”. De acordo com
informações do próprio site, a série "Retratos de Fé" oferece uma oportunidade para que os
grupos religiosos possam transmitir a sua mensagem de fé e expressar o sagrado de sua
doutrina de forma direta, sem nenhum tipo de mediação, interferência ou proselitismo. A cada
episódio, o programa abre espaço para que um determinado credo possa se expressar
livremente, apresentando suas concepções, crenças, cerimônias, vivências e manifestações
48
Para obter mais dados sobre a missão, acesse: http://www.crbnacional.com.br/index.php/f-noticias/2685-
missao-ecumenica-em-apoio-aos-guarani-kaiowa-se-inicia-nesta-quarta-no-mato-grosso-do-sul
49
Esse encontro faz parte do projeto de extensão Diálogo inter-religioso, do Departamento de Psicologia da
UFMG, coordenado pelo professor Miguel Mahfould. De acordo com informações do site de divulgação do
evento, “o debate sobre como crescer na consciência de pertença à natureza e na consciência da necessidade de
cuidado para com o mundo em comum quer colher e oferecer à sociedade diferentes contribuições sobre o tema,
ao mesmo tempo em que favoreça o encontro com o diverso na vida acadêmica. Ao nos envolvermos
coletivamente com o espectro de fatores descortinados pela tragédia de Mariana (MG) e Rio Doce, temos a
oportunidade de colher provocações ricas e urgentes que apontam aspectos políticos, econômicos, éticos,
históricos, psicológicos, religiosos etc. e que se referem à nossa relação com a natureza, com a alteridade e cada
um consigo mesmo e com o Transcendente”. Para este evento foram convidados professores, pesquisadores e
mestres que representam diversos credos – espírita, judeu, islâmico, budista, católico, evangélico, candomblé e
guarani. Disponível em: https://www.ufmg.br/online/arquivos/043297.shtml
127
religiosas, num verdadeiro aprofundamento religioso50
. Já o programa "Entre o céu e a
terra" pretende abrir um espaço plural de debate e reflexão sobre ideias e conceitos que
permeiam a enorme gama de religiões e crenças presentes no Brasil. Levando-se em conta a
relevância do assunto para a construção de uma sociedade democrática, com respeito à
diversidade e às diferenças, o programa também pretende transmitir conhecimento sobre as
diferentes religiões, suas vivências e manifestações.51
Nos interessava analisar uma práxis dialogal, para verificar se ela cumpre as premissas
do diálogo apresentadas ao longo do trabalho. Considerando a relevância dos recursos
tecnológicos como meio de comunicação na pós-modernidade e o uso cada vez maior dessas
mídias pelas instituições religiosas, escolhemos como objeto de análise o site do Observatório
Transdisciplinar das Religiões no Recife, que tomamos conhecimento da existência, pois faz
parte do grupo de pesquisa interinstitucional “Espiritualidades, Pluralidade e Diálogo”. Essa
opção mostrou-se uma possibilidade de análise interessante, pois trata-se de um espaço
permanente e virtual.
4.3.3 Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife: breve panorama
O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Católica de
Pernambuco mantém um espaço virtual desde 2005, onde divulga os trabalhos e pesquisas
realizadas pela instituição no contexto da religião em diálogo com outras disciplinas e com a
sociedade52
.
O “Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife” é uma das atividades do
grupo de pesquisa Espiritualidades, Pluralidade e Diálogo53
. O Observatório localiza-se na
própria Universidade e se constitui como um espaço de extensão acadêmica, mantido pelo
grupo de pesquisa coordenado pelo professor Gilbraz Aragão. O Observatório
50
Disponível em: http://tvbrasil.ebc.com.br/retratosdefe
51
Disponível em: http://tvbrasil.ebc.com.br/entreoceueaterra
52
Todas as informações relatadas foram encontradas no site OBSERVATÓRIO, disponível em
www.unicap.br/observatório2.
53
Este espaço virtual é parte de outras iniciativas do projeto Observatório, quais sejam: o Grupo de Estudos
sobre Trandisciplinaridade e Diálogo entre Culturas e Religiões, com reuniões semanais desde 2005 para
compartilhamento de pesquisas e preparação de publicações; os Eventos que procuram fomentar o diálogo,
dentre os quais a Peripateia das Religiões, com edições semestrais, e as Sessões do GT “Espiritualidades
Contemporâneas, Pluralidade Religiosa e Diálogo”, que ocorrem nos Congressos anuais das sociedades de
estudos da religião; e, finalmente, o Fórum Inter-Religioso da UNICAP, que reúne a cada mês as lideranças
religiosas da região para uma escuta mística das nossas diversas tradições de fé.
128
atua “articulando atividades presenciais e na internet com o objetivo de analisar os fatos
relacionados com os encontros e desencontros entre as religiões na região, procurando
promover o diálogo intercultural e inter-religioso”.
De acordo com informações obtidas no site do Observatório, o grupo de pesquisa
sobre transdisciplinaridade e diálogo entre culturas e religiões se reúne desde 2004/2005.
Neste ano, eles tiveram a iniciativa de convocar diversos grupos de religiões da região do
Recife, com o objetivo de que cada um falasse sobre os conteúdos da fé professada. Esses
encontros, chamados por eles de fórum da religiosidade, acabou gerando um site, onde eram
disponibilizados vídeos e materiais acerca dos fóruns realizados.
O Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife configura-se como um
espaço virtual que se consolidou como um espaço de diálogo e encontro da comunidade
acadêmica e educadores do Recife, do nordeste e do Brasil, para o aprofundamento dos seus
estudos sobre a rica pluralidade religiosa do nosso país.
Gilbraz54
, coordenador do Observatório e do grupo de pesquisa, em uma entrevista
sobre “espiritualidade e religião no ciberespaço”, disse que entende a internet não só como um
instrumento, mas como um novo ambiente cultural, de convívio e de troca. Sendo, portanto,
um ambiente que favorece a comunicação e o diálogo, pois permite uma construção de
conhecimento em rede, em via de mão dupla e não imposta por uma das partes. Para ele, o
mundo digital é um transbordamento dessa experiência de encontro que eles já realizam
enquanto gente. Além disso, a internet possibilita um alargamento da visão, pois através dela
temos um acesso a uma biblioteca infinita, possibilita contato imediato com os interlocutores,
além de ter as informações dinamizadas em meios alternativos de audiovisual, construindo
uma nova linguagem.
Estruturalmente, o Observatório é um espaço virtual, que disponibiliza textos e vídeos
que tratam da temática do diálogo entre as tradições espirituais, incluindo aquelas pós-
religiosas, ateias e agnósticas. A plataforma do site se viabiliza, a partir de uma página
principal, localizada no endereço eletrônico www.unicap.ber/observatorio2, onde o
54
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2004) e mestre pela Pontifícia
Faculdade de Teologia de São Paulo (1994), graduado em Filosofia e Teologia. Professor e Pesquisador da
Universidade Católica de Pernambuco, onde atua no campo dos estudos de religião. Integra o Banco de
Avaliadores do Sistema Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida e titular (2014-18) do
Comitê de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, membro da Sociedade
de Teologia e Ciências da Religião do Brasil, vice-presidente (2010-16) e presidente (2016-18) da NAPTECRE
(Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião), coordenador do Grupo
de pesquisa interuniversitário sobre Espiritualidades, Pluralidade e Diálogo e do Observatório Transdisciplinar
das Religiões no Recife. Mantém pesquisa sobre teologia cristã e diálogo inter-religioso, metodologia teológica e
transdisciplinaridade.
129
leitor/interlocutor tem acesso aos conteúdos distribuídos em 12 espaços: acolhida, equipe,
pesquisas, publicações, fórum, estudos, espaço, tributo, links, programação, temas e
arquivos55
.
O espaço virtual tem como meta principal desenvolver e divulgar pesquisas sobre fatos
relacionados ao diálogo entre as religiões, analisando-os sob o prisma do instrumental
transdisciplinar, bem como:
Organizar atividades de rede entre pesquisadores afinados com esse campo de
pesquisa, bem como intercâmbio com outros Observatórios; Gerar uma série de
publicações eletrônicas e um centro virtual de documentação sobre as religiões do
Recife e os seus encontros e/ou desencontros; Promover e apoiar experiências e
eventos de diálogo intercultural e inter-religioso na UNICAP; Recolher e divulgar a
produção acadêmica e audiovisual da Universidade, acerca das religiões, da
religiosidade e do diálogo; Acolher e aconselhar estudantes e pesquisadores
desejosos de iniciação à transdisciplinaridade aplicada ao fato religioso.
O acesso ao conteúdo do espaço virtual pode ser realizado através de uma busca por
palavras chave (temas) ou por datas em que os arquivos foram disponibilizados (arquivos).
Os conteúdos também podem ser acessados, ao longo da navegação, no espaço de
apresentação do histórico, justificativa e metas do espaço virtual (acolhida); na apresentação
dos membros do grupo (equipe); na divulgação dos trabalhos de pesquisa realizados pelos
integrantes (pesquisas); ao acessar as publicações disponíveis para acesso (publicações); no
espaço de divulgação do fórum das religiosidades (fórum); na página que divulga os temas
atualmente estudados pelo grupo, bem como referências e datas dos encontros (estudos) e na
página que explica o espaço físico e existencial que originou o site e no espaço físico que
pretendem construir (espaço).
A plataforma possui ainda uma página que pretende fazer, periodicamente, uma
homenagem a alguém significativo na área (tributo); uma página com a descrição de vários
outros espaços virtuais que tratam da temática da religião e do diálogo (links) e uma página
atualizada semestralmente com a programação de encontros do grupo, simpósios e congressos
da área (programação).
55
O site parece estar em processo de mudança. Pois conhecíamos o site com outro layout e estrutura. As
informações apresentadas foram obtidas no período do dia 02 a 10 ago. de 2017.
130
4.3.4 Análise da práxis dialogal do Observatório das Religiões
Ao analisar o site e as metas estabelecidas pelo grupo de pesquisadores responsáveis,
percebemos que eles alcançam os objetivos estabelecidos. A própria constituição de um
grupo interinstitucional e a participação do coordenador do observatório e de integrantes do
grupo de pesquisa nos congressos da área, demonstram o empenho da equipe em dialogar com
outros grupos de pesquisa e aprofundar o conhecimento teórico acerca do tema das religiões.
O compromisso do Observatório em gerar publicações eletrônicas e tornar-se um
centro virtual de documentação sobre as religiões do Recife fica evidente a partir da análise
do conteúdo preparado e disponibilizado especialmente para auxiliar educadores que
trabalham com a temática religiosa. O observatório possui mais de 30 vídeos e textos
acompanhados de orientações metodológicas para auxiliar professores do ensino religioso em
suas aulas. Esse espaço digital possibilita trazer para dentro da sala de aula a atmosfera
mística e a contribuição das religiões para a formação integral do ser humano.
A organização mensal do Fórum das religiosidades, que deu origem ao espaço virtual,
é um evento promovido pela UNICAP em busca de diálogo intercultural e inter-religioso,
além de outros organizados ou divulgados pela instituição através do site. O Observatório
está se consolidando também como um espaço de divulgação da produção acadêmica e
audiovisual, não só da UNICAP, como de outras universidades, acerca das religiões,
religiosidade e do diálogo.
Isso pode ser comprovado durante a navegação pelo site, que possui uma quantidade
de conteúdo significativa e o disponibiliza de uma maneira que facilita a apreensão e o
aprofundamento do conteúdo. Todas as páginas do espaço virtual possuem textos e links que
levam a outros textos, sites, páginas do lattes, blogs, portais, textos e vídeos, tornando o
acesso à informação fluido e permitindo o aprofundamento do tema de forma orgânica.
Conforme tabela 4, a quantidade de conteúdos e o direcionamento a outros espaços de
conhecimento disponibilizados através de links, ao longo ou ao final dos textos, é
significativa. Além disso, de acordo com Gilbraz, até o ano de 2014, o site tinha sido acessado
por pelo menos 15 mil pessoas em todo o mundo, sendo que o primeiro registro de texto
disponibilizado data de outubro de 2010. Tais números sinalizam que o site é um espaço vivo,
com conteúdos que são acessados. Outro dado que confirma essa afirmação é que os vídeos
disponibilizados, tanto pelo site e pelo canal do youtube, já tiveram mais de 290 mil
visualizações.
131
TABELA 2 - Conteúdo disponibilizado pelo Observatório das Religiões
Vídeos Textos Links 56
Acolhida 1 - 2
Equipe - - 31
Pesquisas - 10 4
Publicações - 8 32
Fórum 31 33 10
Estudos - - 27
Espaço 1 - 3
Tributo 1 - 1
Links - - 78
Programação - - 21
Arquivos/Blog 48 128 761
TOTAL 82 179 970 Fonte: OBSERVATÓRIO, 2017.
No que diz respeito à análise do Observatório enquanto um espaço virtual capaz ainda
de ser um espaço de diálogo, como interlocutores que não tínhamos acesso anterior ao site e
considerando, além da experiência pessoal de contato com o conteúdo, as premissas do
diálogo inter-religioso, consideramos que o Observatório cumpre a função de favorecer o
diálogo e destacamos alguns aspectos. O site possui muitos vídeos, a maioria curtos, o que
facilita o acesso ao conteúdo, por meio de uma linguagem leve, além transmitir, juntamente
com outras imagens, uma proximidade com o interlocutor. Mesmo distante fisicamente e sem
conhecer os integrantes pessoalmente, depois de um tempo navegando, é possível sentir-se
familiarizado com a equipe.
O comprometimento do Observatório em favor do diálogo e da diversidade cultural e
religiosa é percebido pelos conteúdos disponíveis que abordam essa temática, mas
principalmente pela participação da equipe, sobretudo na figura do seu coordenador, no
engajamento em questões e transformações políticas e humanitárias, que ultrapassam a
produção e disponibilização de conhecimento teórico. Nas palavras de Gilbraz, em vídeo
sobre os fóruns da religiosidade, “não queremos reunir representantes de religiões pelo prazer
de estar juntos, mas para sentir e pensar o que podemos fazer juntos pelo mundo, sobretudo
pela educação humanista das novas gerações.” (OBSERVATÓRIO, 2017).
Em relação à diversidade, consideramos que os assuntos abordados no espaço virtual
são bem diversificados e não identificamos nenhum tom proselitista ou tendência a tratar mais
de determinadas religiões. Ao contrário, fica claro o objetivo de relatar as experiências
religiosas que existem no Recife e região e ser um espaço de problematização e de
56
Os links dão acesso a sites, currículos lattes, blogs, portais, textos, vídeos.
132
reconhecimento da legitimidade dessas experiências. Esse equilíbrio em relação à diversidade
também pode ser percebido na composição da equipe do Observatório, que se constitui por 21
pesquisadores, entre homens e mulheres: 8 mulheres (38,10%) e 13 homens (61,90%). A
equipe completa, apresenta o total de 35 pessoas, sendo 17 mulheres (48,58%) e 18 homens
(51,42%).
QUADRO 1 - Diversidade dos pesquisadores do Observatório
Graduação Mestrado Doutorado Gênero
1 Turismo/História Ciências da Religião - F
2 Filosofia Ciências da Religião - M
3 Ciências Sociais / Psicologia Ciências da Religião Ciências da Religião (A) M
4 Administração / Teologia Ciências da Religião - M
5 Teologia Teologia Teologia F
6 Teologia / Filosofia Teologia Teologia M
7 História Ciências da Religião Ciências da Religião (A) M
8 Teologia / Filosofia Antropologia - M
9 História Ciências da Religião Ciências da Religião (A) F
10 Programação Visual / Teologia Ciências da Religião Ciências da Religião (A) M
11 História Ciências da Religião - M
12 Teologia / Filosofia Ciências da Religião (A) - M
13 Turismo Ciências da Religião - M
14 Formação Professora - - F
15 Geografia Ciências da Religião - F
16 Comunicação Social Ciências da Religião - M
17 Filosofia / Teologia Ciências da Religião - F
18 Direito Ciências da Religião Ciências da Religião (A) M
18 Enfermagem / Medicina Saúde Criança Adolesc. - F
20 Direito Ciências da Religião (A) - F
21 Engenharia Elétrica / Ciência da
Computação
Ciências da Religião - M
Fonte: OBSERVATÓRIO, 2017.
No que tange à comunicação entre os responsáveis pelo site e os navegadores,
percebemos que existe alguns campos que possuem espaços para que as pessoas escrevam
comentários. Na página destinada à divulgação do Fórum das religiosidades, existe uma
solicitação expressa de colaboração de pessoas interessadas e pertencentes às mais de 31
religiosidades identificadas na região57
. Porém, não conseguimos identificar se, de fato, existe
uma interação. Não foi possível verificar se esse espaço é utilizado, se existe resposta e nem
avaliar a qualidade da interação existente, pois quase não havia comentários e/ou participação.
57
"Nos links seguintes estão disponíveis os vídeos que preparamos com entrevistas e celebrações das religiões
que participaram do Fórum na UNICAP. Estamos preparando também, para cada uma, um conjunto de
informações: principais crenças e ritos, história na região e personalidades de referência, endereços físicos (no
Recife) e endereços virtuais. Acesse a religião do seu interesse e colabore, acrescentando ou corrigindo dados em
“Comentários”".
133
O Observatório possui propostas em andamento que se mostraram bastante relevantes
na promoção do diálogo inter-religioso e que esperamos que se concretizem em breve. A
disponibilização de um calendário inter-religioso, com informações de datas importantes para
cada religião e a fundação de um Museu “Parque das Religiões”, um lugar físico para o
congraçamento das religiões do Recife, com o objetivo de promover o conhecimento das
tradições religiosas, o diálogo entre as religiões e a convivência entre os seguidores dos
diversos caminhos espirituais são algumas das propostas em curso.
134
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O interesse por esse tema surgiu de uma convergência entre busca de crescimento
pessoal e aprimoramento profissional e ganhou relevância cada vez maior, na medida em que
eu levava a sério as provocações que senti diante da vida, no encontro com o outro e na
elaboração da minha própria experiência.
Tendo a busca por sentido da vida como norte e considerando a espiritualidade como a
dimensão humana que nos possibilita refletir sobre o que nos acontece e decidir sobre como
agir diante de cada circunstância e observando a nossa realidade, surgiram alguns
questionamentos. Como o ser humano se estrutura e se realiza no contexto da globalização,
mundialização, secularização, avanço tecnológico e crescimento do fundamentalismo
religioso? O convívio com a diversidade, em um momento que é marcado pela globalização e
pluralidade religiosa é uma realidade e essa realidade pode ser vivida de maneira violenta ou
pacífica. Como as religiões se posicionam nesse momento plural? É possível pensar a busca
do ser humano pelo sentido da vida nessa realidade?
A partir dessas provocações, nossa pesquisa teve como objetivo compreender a relação
entre “diálogo e sentido: o desafio da vida espiritual e do encontro inter-religioso na
sociedade contemporânea”, sobretudo no que diz respeito à possibilidade de contribuição das
religiões na construção de sentido do ser humano. Para tal, apoiamo-nos na hipótese de que as
premissas do diálogo inter-religioso iam de encontro à estrutura de abertura dialogal do ser
humano e que, portanto, contribuiriam para o movimento humano de busca de sentido.
Esta pesquisa foi realizada na área de Ciências da Religião. Uma escolha que, se no
início era mais intuitiva, no final, se confirmou como uma opção acertada. “O rigor e o
ceticismo em torno de interesses, métodos e conceitos como religião e sagrado acabam
exigindo dos praticantes da Ciência da Religião um ideal que muitas vezes não se encontra em
disciplinas vizinhas.” (CRUZ, 2013, p. 47). No contato com os fundamentos da área de
Ciências da Religião, abriu-se um novo mundo epistemológico, repleto de possibilidades e
exigências, com novos conceitos e referenciais, que exigiu uma abertura e entrega enquanto
pesquisadora, mas que, em contrapartida, trouxe contribuições tanto para a construção do
texto, quanto para a minha prática profissional.
Apesar de todos os limites de uma área que tem pouco tempo de atuação e que aos
olhos externos, se confunde com uma área confessional, possui características que a colocam
em um lugar privilegiado para essa pesquisa:
135
Uma das maiores mudanças que um psicólogo pode alcançar ao estudar Ciências da
Religião é o enriquecimento de sua cultura, o qual se dá, especialmente, poder três
caminhos: o contato com profissionais e estudiosos de outros campos, os quais trazem
novos pontos de vista, novas abordagens para um mesmo fenômeno; o contato mais
profundo e denso com o mundo religiosos, o próprio e o mais amplo, com sua história
e seu futuro, com seus fascinantes mistérios; e o contato com a necessária humildade
que deve ter um pesquisador das áreas ligadas ao sagrado, mesma qualidade que,
embora imprescindível, é tão pouco levada em conta nas teorizações a respeito da
psicoterapia. (PINTO, 2013, p. 687).
Concluo essa pesquisa, segura que fiz uma opção que foi capaz de me transformar.
Estudar as religiões, como forma de manifestação cultural, como as formas que os grupos
sociais se organizam oferecendo um sentido para a vida, assim como estudar a estrutura
humana e seus processos de subjetivação e construção da identidade, se tornou imprescindível
para compreender melhor a busca de sentido de cada paciente que passa por mim. O preparo
foi árduo, exigindo leituras de diversas disciplinas, mas foi um caminho percorrido ao lado de
uma equipe determinada em fazer das Ciências da Religião um lugar em que se faz ciência de
qualidade.
No intuito de verificar a nossa hipótese e confirmando o nosso olhar à partir do
encontro entre Psicologia e Religião, optamos por realizar uma revisão bibliográfica,
amparados teoricamente, sobretudo pela psicologia fenomenológica e teoria do pluralismo
religioso. Primeiro apresentamos a estrutura do ser humano na perspectiva da psicologia
fenomenológica e mostramos como o ser humano constrói a sua identidade na articulação das
dimensões biopsicoespiritual no social. Nessa parte, evidenciamos a importância das relações
e da dimensão espiritual na nossa estruturação enquanto pessoas.
No segundo momento, abordamos as características da sociedade ocidental pós-
moderna no que concerne à crise de sentido. Neste capítulo, percebemos que a sociedade pós-
moderna, orientada pelos axiomas do mercado, percebe o ser humano de forma fragmentada.
Ao se orientar por valores como acúmulo de bens e supervalorização da imagem, entre outros,
a cultura vigente reforça comportamentos como individualismo e competição, e negligencia
aspectos fundamentais da estrutura humana, como afeto, cuidado e comprometimento com os
outros. O que pode provocar um enfraquecimento das relações, gerando tanto um vazio da
própria existência, quanto um convívio social baseado na violência.
No último capítulo, tratamos das características e relevância do diálogo e das religiões
no contexto atual brasileiro. Apresentamos o diálogo como uma necessidade humana e a
urgência e dificuldade de se dialogar no contexto de pluralidades religiosas. Mostramos como
as religiões se posicionam diante desse cenário e como elas podem contribuir para uma
136
formação humana que favoreça o diálogo, cultivando nossa abertura às alteridades. Por fim,
ainda relatamos algumas iniciativas concretas de diálogo inter- religioso, com destaque para
um espaço virtual que se propôs a ser um local de conhecimento transdisciplinar e diálogo
entre as religiões brasileiras, sobretudo as da região do Recife.
Apesar da ciência e de todo o sistema capitalista insistirem na fragmentação do ser
humano, parece que a necessidade de ser considerado e de se viver de maneira integral escapa
a toda tentativa de controle e massificação do sistema. A necessidade de sentido e de
realização se apresenta em todos os níveis, inclusive no meio acadêmico, através de
profissionais que propõem quebrar o pensamento vigente, e na vida cotidiana, pela busca
incessante por experiências, sejam elas religiosas ou não, mas que prometem uma resposta,
um preenchimento do vazio.
Se o sentido da vida só pode ser encontrado a partir de uma realidade concreta, não é
possível falar de diálogo, tampouco propor o diálogo, desconectado da nossa realidade social.
Sendo assim, o diálogo entre as diversidades religiosas deve ser um compromisso de todos
aqueles que têm consciência da sua importância. Principalmente, os líderes, sejam eles
religiosos, educadores, profissionais de psicologia, entre outros. Aqueles que realmente sejam
comprometidos com a formação das pessoas precisam repensar o seu lugar e contribuir de
maneira efetiva para que as pessoas que o procurem sejam verdadeiramente cuidadas em sua
totalidade e consigam construir suas singularidades, num processo constante.
Finda a nossa pesquisa, constatamos a confirmação da nossa hipótese de que as
religiões, sobretudo através do diálogo, de fato podem (no sentido de ter capacidade)
contribuir para o reconhecimento do valor da diversidade e para o aprofundamento da nossa
existência, aumentando as possibilidades de reconhecimento de sentido e diminuição da
intolerância. E apontamos ainda para a responsabilidade social das religiões. Tendo em vista
que as religiões, de maneira geral, tratam de questões existenciais e de valores éticos e morais,
elas devem (no sentido de responsabilidade) dialogar com toda a sociedade. Isso significa
assumir um compromisso que extrapole a orientação e o cuidado com o seu próprio grupo de
pertencimento, mas que vá de encontro ao outro. Um posicionamento que já é assumido por
muitas, mas que pode ser ampliado.
Em todas as etapas do trabalho, um aspecto sobressaltou: o lugar de destaque que as
alteridades devem ocupar na construção subjetiva, na percepção de sentido e promoção do
diálogo. A relevância do tema da alteridade se mostrou como a maior contribuição do nosso
trabalho para aqueles que se ocupam tanto pessoal quanto profissionalmente das temáticas do
137
sentido, diálogo, formação global do ser humano e paz, em um contexto de convívio com
diversidades.
Conduzir uma formação verdadeiramente humana implica considerar essa estrutura e
tocar na sua dimensão espiritual, na sua estrutura transcendental, dando primazia ao outro na
construção subjetiva do eu. Isso favoreceria, ao mesmo tempo, tanto a construção de sentido
pessoal quanto o convívio com a diversidade religiosa, na medida em que, considerá-lo em
sua totalidade, implica abordar a importância da alteridade inter e intra, nos colocando diante
da diversidade e solicitando um posicionamento livre e responsável dentro de seu contexto,
diante de si mesmo e do outro.
O diálogo inter-religioso não pode ser percebido como o fim, mas como um dos meios
de se levar à práxis dialogal. As iniciativas de diálogo inter-religioso originadas de espaços
diferentes, são importantes para que provoquemos uma maior conscientização de todos em
relação ao valor da diversidade. Propostas como as apresentadas nesse trabalho, sobretudo a
do Observatório transdisciplinar das religiões do Recife, devem ser seguidas e ampliadas.
São propostas viáveis que, quando realizadas através de uma linguagem contemporânea e
transdisciplinar, aumentam a possibilidade de acesso ao conhecimento das religiões e o
aprofundamento das reflexões a um número cada vez maior de pessoas. E podem ser uma
possibilidade real de transmissão e troca do conhecimento adquirido através de pesquisas
científicas com outras formas de conhecimento e de mobilização para a realização de
encontros e diálogos.
Ao longo do processo, percebemos também a relevância de que alguns temas fossem
abordados em oportunidades futuras de pesquisa. Um deles foi que, tanto quanto precisamos
lutar por espaços de diálogo, também precisamos lutar por espaços de silêncio. Nosso modo
de vida contemporâneo precisa aprender a cultivar o silêncio reflexivo. Precisamos também
aprofundar no entendimento sobre tudo que favorece ou impede os diálogos de maneira geral,
pois se dialogar faz parte de uma necessidade humana de se expressar e se relacionar,
precisamos ampliar a compreensão sobre o que poderia impedir que ele aconteça, tanto no
âmbito individual como no âmbito social.
Outro aspecto que se evidenciou ao longo da pesquisa, sobretudo pela ressonância
com a realidade atual vivida no cenário político pela sociedade brasileira, quiçá mundial, é a
importância de que nós, cientistas da religião, possamos contribuir de maneira mais ativa,
tanto em pesquisa, quanto em comunicação de resultados e diálogos com a sociedade sobre o
tema da experiência religiosa e sua relação com a política, democracia, direitos humanos,
educação e cultura.
138
Em sua obra escrita no início do século XX, ao fazer uma investigação histórica sobre
a relação entre progresso e religião, Dawson (2012) faz uma afirmação que nos lembra da
importância de não se negligenciar a religião e os valores espirituais norteadores de um povo,
quando pretendemos compreender os fenômenos e os interesses de uma sociedade:
Se os elementos racionais e espirituais de uma cultura são aqueles que determinam
sua atividade criativa e se a manifestação primária desses elementos for encontrada
na esfera da religião, é claro que o fator religioso teve uma parcela muito mais
importante no desenvolvimento das culturas humanas do que a que lhe tem sido
atribuída em geral pelos teóricos que tentaram explicar os fenômenos do progresso
social. (DAWSON, 2012, p. 141).
Para não perpetuarmos um erro histórico, a experiência religiosa não pode ser um tema
tratado como de menor importância, nem tampouco relegado ao âmbito do privado, mas ao
contrário, deve ser levado a serio, como um direito fundamental inalienável para a construção
da subjetividade e de uma comunidade e de suma importância para a compreensão de uma
cultura e de encontros entre culturas diversas. A experiência religiosa de um sujeito é algo
pessoal e ao mesmo tempo cultural.
A necessidade humana de dialogar traz em si uma exigência paradoxal, que é de se
aprender a ouvir e a perceber o outro em sua diversidade. Quando tratamos de experiência
religiosa, essa exigência se torna superlativa, pois diz de algo ao mesmo tempo tão íntimo e
tão totalizante da nossa pessoa, que negar ao outro o espaço adequado para exercer a sua
crença, de viver em comunidade religiosa e espiritual, é negar-lhe o próprio direito de ser e de
se reconhecer enquanto pertencente a um grupo. No âmbito social, negar a uma nação o
conhecimento sobre sua história e sua tradição, tem consequências para toda a forma de
relacionamento dessa sociedade. A experiência religiosa de cada pessoa e de cada povo
presente em nosso território deve ser tratada como pauta prioritária de uma sociedade que seja
de fato democrática e que se pretende humana.
Sejamos humanos, e sustentados pela fé individual de cada um, façamos o nosso
melhor na busca da construção de um lugar mais justo para todos viverem. Nossa pesquisa
apontou na direção de que a realização pessoal e a construção de um mundo que se norteie
pela paz e pelo cuidado com todos e com a nossa casa comum, precisa, necessariamente,
passar pelo reconhecimento das alteridades. Nosso desejo é que, ao percebermos o valor de
todos, através do valor de cada um, provoquemos uma mudança, nem que seja nossa própria
mudança.
139
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