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Dissertação de MEstrado do Sociólogo Brand Arenari
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7/21/2019 Dissertaçao Brand
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UMA ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DAS
RELIGIÕES NA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: CAMINHOS PARA
A COMPREENSÃO DE ASPECTOS DA MODERNIDADE
BRASILEIRA.
BRAND ARENARI
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCYRIBEIRO
CAMPOS DOS GOYTACAZES - RJ
MAIO - 2006
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II
UMA ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DAS
RELIGIÕES NA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: CAMINHOS PARA
A COMPREENSÃO DE ASPECTOS DA MODERNIDADE
BRASILEIRA.
BRAND ARENARI
“Dissertação apresentada ao Centro de
Ciências do Homem, da Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro,
como parte das exigências de obtenção do
título de Mestre em Cognição e Linguagem”.
Orientador: Prof. Dr. Frederico Schwerin Secco
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCYRIBEIRO
CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ
MAIO – 2006
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III
UMA ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DAS
RELIGIÕES NA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: CAMINHOS PARA
A COMPREENSÃO DE ASPECTOS DA MODERNIDADE
BRASILEIRA.
BRAND ARENARI
Dissertação apresentada ao Centro deCiências do Homem da Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro,
como parte das exigências para a obtenção
do titulo de Mestre em Cognição e
Linguagem.
Aprovada em __ de _________ de 2006.
Comissão Examinadora:
_______________________________________________________Prof. Dr. Eurico Antônio González Cursino dos Santos (Doutor em Sociologia) -
UnB
_______________________________________________________Prof. Drª. Adélia M. Miglievich Ribeiro (Doutora, em Sociologia) – UENF
_______________________________________________________Prof. Dr. Dario AlvesTeixeira Filho (Doutor em Filosofia) - UENF
_______________________________________________________Prof. Dr. Frederico Schwerin Secco (Doutor em Filosofia) - UENF
(Orientador)
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IV
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos os amigos do Núcleo de Estudos em Teoria Social(NETS), em especial a coordenadora do grupo, a professora Adélia Miglievich,
pelo grande aprendizado conjunto em nossas noites de estudo.
Aos amigos do grupo de pesquisa, Maria Tereza Carneiro, Lorena Freitas, Lara
Luna e Fabrício Maciel por todo apoio intelectual e afetivo que me ofereceram
durante o mestrado.
Ao amigo Roberto Torres, com quem tenho aprendido muito nestes últimos anos
e com quem divido os possíveis méritos desta dissertação em virtude de nossas
discussões e trabalho em conjunto.
Ao amigo Diogo Ramos pela leitura atenta e rigorosa de alguns capítulos desta
dissertação.
A Rosângela, minha professora de alemão.
Aos amigos Fabrício Neves (Bill), Renato Barreto, Vitor Peixoto e Patrick Azevedo
por todo apoio durante este percurso.
Àqueles que foram meus professores durante o mestrado.
Ao Professor e amigo Flávio Saliba por ensinar a mim e a outros amigos como
fazer sociologia para além do politicamente correto.
Ao professor Jessé Souza, a quem sou muito grato pelos vários incentivos e pela
grande atenção, e também por este ter alargado as fronteiras do mundo e da
sociologia para mim.
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V
Ao professor Eurico C. dos Santos pelo auxílio em outros momentos desta
dissertação.
À professora Patrícia Mattos por todo apoio durante o mestrado.
Ao meu orientador, Professor Frederico S. Secco a quem sou grato por todos os
ensinamentos ao longo de minha vida acadêmica.
Aos meus pais e a minha irmã pelo afeto que me ofereceram ao longo de minha
vida que sustenta todas as minhas ações.
A minha namorada Betina Terra Azevedo por ter suportado as conseqüências
mais difíceis de uma dissertação.
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VI
“A filosofia muda o mundo ao manter-se como
teoria.”
T. W. ADORNO.
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VII
SUMÁRIO
Resumo ..............................................................................................................VIII
Abstract ...............................................................................................................IX
Introdução ............................................................................................................01
1. Proposições iniciais para a elaboração de um conceito de cognição sob o
prisma da sociologia.......................................................................................... 05
2. O monismo mágico: apontamentos sobre a cognição mágica
.............................................................................................................................. 18
3. Uma análise do conceito de “racionalização” em Max Weber .................. 36
4.
A era dos dualismos: apontamentos sobre as concepções dualistatranscendente e imanente .......................................................................................... 53
5. A cognição mágica e os caminhos da modernidade brasileira.................. 73
Anexo .................................................................................................................. 91
Referências Bibliográficas .............................................................................. 115
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VIII
RESUMO
A minha proposta de análise parte da tese do sociólogo Eurico dos Santos,
que por seu lado foi longamente inspirada na sistematização que Wolfgang
Schluchter faz da obra de Max Weber, ou seja, a elaboração de etapas cognitivas
do desenvolvimento ocidental. Santos afirma a ausência marcante de uma
religiosidade ética na história brasileira. Segundo ele, a nossa história colonial
reflete um ambiente de vasta afirmação de crenças mágicas. Desse modo
conclui-se que a nossa modernização guarda singularidades em comparação às
nações que tiveram uma forte influência das religiosidades éticas que serviram de
substrato moral-cognitivo para a constituição de suas instituições. Em vista disso
busco traçar no último capítulo e também no anexo as conseqüências de um
processo de modernização, diferente do analisado por Weber, em que
religiosidade mágica se mistura com instituições modernas, tal como ocorreu na
modernização japonesa.
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IX
Abstract
My proposal of analysis has bases on the thesis of the sociologist Eurico
Dos Santos, which for its side was inspired in the systematization Wolfgang
Schluchter makes of the Max Weber's work, or either, the elaboration of the
cognitives stages of the occidental development. Santos affirms the absence of an
ethical religiosity in Brazilian history. According to him, our colonial history reflects
an environment of vast affirmation of magical beliefs. In this way one concludes
that our modernization keeps singularities by comparing to the nations which have
had a strong influence of the ethicals religiosities that have served as a substratum
moral-cognitive for the constitution of its institutions. In sight of this I search to
trace in the last chapter and also in the annex the consequences of a process of
modernization, different from the one analyzed by Weber, where the magical
religiosity is mixed with the modern institutions, such as it occurred in the
Japanese modernization.
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1
Introdução
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2
Introdução
O trabalho apresentado nesta dissertação consiste em um esforço inicial
para a compreensão de determinados aspectos relativos ao desenvolvimento da
sociedade brasileira. O que se busca aqui não é uma resposta definitiva sobre
algum fenômeno social, e muito menos uma comprovação científica de alguma
hipótese elaborada. Almejamos tão somente a perseguição de caminhos teóricos
alternativos que nos permitam elaborar outras linhas investigativas a respeito de
velhos problemas e antigas discussões, a saber, o problema da modernização
brasileira. A partir de uma perspectiva weberiana, buscamos acrescentar alguns
elementos de reflexão para as análises que tem procurado observar o processo
de modernização brasileiro a partir da influência da gênese e desenvolvimento
dos valores concebidos na história da sociedade brasileira.
Reconstruímos parcialmente o caminho que Weber percorreu para
entender o desenvolvimento dos valores e instituições do Ocidente, lançando mão
da idéia de etapas cognitivas de desenvolvimento para entendermos
determinados aspectos da modernidade brasileira, tendo em vista que o que
ocorreu no Brasil foi resultado da expansão de fenômenos sociais relativos à toda
modernidade ocidental.
Para isso, organizamos os capítulos da seguinte maneira:
O primeiro capítulo deste trabalho faz uma introdução ao tema central
desta dissertação. Nele procuramos apresentar brevemente qual noção de
cognição nos orienta ao longo da discussão na presente dissertação. Na verdade,
ele se apresenta mais como uma justificação de caminhos escolhidos do que uma
profunda discussão a respeito do conceito de cognição. Se a questão a respeitoda importância dos aspectos cognitivos e da gênese dos valores no
desenvolvimento societário perpassa toda a dissertação, é neste capítulo, mesmo
que de maneira muito breve, que nos aproximamos mais das temáticas discutidas
em nosso programa de pós-graduação.
O capítulo dois, intitulado “O monismo mágico: apontamentos sobre a
cognição mágica” não se atém puramente a uma discussão isolada a respeito da
religiosidade mágica e da estrutura do pensamento “mágico”. Ele se apresenta
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3
também como uma introdução geral da sociologia da religião na obra de Max
Weber. A partir de alguns temas específicos relativos à magia procuramos cotejar
com outros aspectos importantes da sociologia da religião de Max Weber. Em
vista disso, temos neste capítulo os itens denominados de “introdução” e “as
bases materiais da religiogênese” como aqueles que se aproximam mais a
apresentação da sociologia da religião de Weber. Já os itens denominados “a
cognição mágica” e “classificação dos estágios cognitivos do monismo mágico” se
configuram como explicações do tema central da magia. A última parte, “magia e
modernidade” aponta para o objetivo das discussões apresentadas que serão
levadas a cabo no último capítulo da dissertação.
A partir do ponto de vista do lógica dos capítulos, poderíamos afirmar que o
capítulo três representa o início do abandono das concepções mágico-monistas
de mundo e assim o direcionamento para concepções dualistas transcedentes e
imanentes de mundo. A apresentação do conceito de racionalização em Weber
nos permite compreender a ruptura com as concepções mágicas de mundo e
suas consequências no universo dos conceitos weberianos. Este capítulo surge
como o elo entre os capítulos II e IV, relacionando-os e antecipando algumas
discussões feitas no capítulo IV.
No capítulo IV apresento a etapa cognitiva posterior à magia dentro da
lógica do desenvolvimento contida na sociologia weberiana. Esta etapa trata dos
grandes sistemas duais metafísicos que ainda são fundamentais para nossa
percepção de mundo e para a compreensão da construção dos valores da
modernidade. Na primeira parte estudo a evolução cognitiva que aos poucos
abandonou uma concepção monista-imanente (cognição mágica) para adotar
uma concepção dualista-transcendente. Em um segundo momento deste capítulo
analiso a concepção dualista imanente. O exemplo histórico deste modeloencontra-se no protestantismo ascético, pois neste sistema de crenças, mesmo
que se tenha uma perspectiva de salvação em um “outro mundo”, as ações
dirigidas a este mundo ganham positividade. Esta nova configuração cognitiva do
mundo permite vislumbrar a possibilidade da inauguração de uma nova ética que
em muito se diferencia dos tabus assentados em proibições mágicas. Os
sistemas derivados desta estrutura cognitiva elevam as idéias a tal ponto que
algumas delas transformaram-se em valores veneráveis, formando assim uma
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4
ética baseada em princípios invioláveis, a qual Weber chamou de ética da
convicção.
Nosso objetivo neste capítulo é, além de demonstrar uma etapa
fundamental do desenvolvimento cognitivo da história do ocidente, pontuar
algumas questões que servirão de pano de fundo para o capítulo seguinte, onde
analiso a modernização brasileira.
No capítulo V, procuro analisar determinados aspectos da modernidade
brasileira, em especial os pressupostos básicos exigidos para o funcionamento
das instituições modernas aqui instaladas a partir dos fundamentos teóricos
apresentados nos capítulos anteriores, ou seja, a reconstrução da idéia de um
desenvolvimento cognitivo das religiões e seus impactos na agência humana,
tendo por suporte principal a sociologia Max Weber e a interpretação da mesma
feita por Wolfgang. Schluchter. Com este objetivo, apresento primeiro um breve
histórico da formação da religiosidade brasileira, ressaltando a ausência de tipos
de religiosidade ética o que poderia explicar a dimensão do universo mágico aqui
construído. Em seguida, a guisa de conclusão, procuro analizar e me posicionar
quanto aos aspectos sócio-religiosos preponderantes da modernidade brasileira.
O anexo é a versão em português do capítulo Religion und Anerkennung:
Affinitäten zwischen neupfingstlicher Bewegung und politischem Verhalten in
Brasilien publicado em co-autoria com Roberto Dutra Torres Júnior no livro Das
Brasilien Modernen, Alemanha, 2006. Nele apresento algumas evidências
empíricas relativas à tese desenvolvida nesta dissertação, busco traçar paralelos
entre o movimento neopentecostal (este que é hoje um dos principais
representantes das concepções religiosas mágicas no Brasil), e o aprendizado
político que este modelo de socialização religiosa oferece.
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5
Capítulo I:
Proposições iniciais para a elaboração de um conceito de cognição
sob o prisma da sociologia
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6
Proposições iniciais para a elaboração de um conceito de cognição sob o
prisma da sociologia
Introdução
A proposta de percorrer o caminho da construção teórica do pensamento
weberiano — em especial aquele que julgo ser o mais rico e criativo espaço
teórico dentro do pensamento de Weber: a sua sociologia da religião —, nos
conduz a análises que se encontram para além das temáticas centrais da obra
weberiana. Isso ganha maiores proporções quando almejamos aplicar esses
pressupostos teóricos em realidades as quais Weber não presenciou, como é o
caso da modernidade periférica. Em vista disto, a idéia de reconstruir o
desenvolvimento cognitivo das religiões para melhor entender determinados
aspectos da formação daquilo que chamaríamos de sentido da ação social e dos
processos de modernização em contextos periféricos ao da “modernidade
clássica”1, decifrando elementos de fontes oriundas da religião que orientam parte
da ação, leva-nos ao debate relativo ao conceito que propõe explicar as relações
do homem com o mundo, de estabelecer como o sujeito apreende este mundo
que o rodeia e como ele conduz a sua ação a partir desta apreensão. Em outras
palavras, a tarefa que se apresenta é a de expor brevemente como se opera a
interconexão entre sujeito e objeto, isto é, entre homem e mundo e explicar quais
são as estruturas que exercem a mediação entre estes, para somente depois nos
deter nos assuntos principais desta dissertação.
O conceito que possibilita explicar as relações entre sujeito e objeto é o
conceito de cognição. A análise da agência humana, ou numa linguagemweberiana, a busca da compreensão do sentido da ação social, remete a uma
discussão em que dois pontos são basilares para a compreensão deste tema: a
elaboração de uma representação ideal de sujeito e uma definição relativamente
1 O que chamo aqui de “modernidade clássica” são os processos de modernização ocorridos sobretudo nassociedades do atlântico norte (E.U.A. e Europa central e nórdica), cujo traço que colocaríamos em destaquecomo elemento diferenciador frente aos demais processos de modernização e de igualdade interna é o grau deigualdade valorativa entre os indivíduos. Traço este nunca antes alcançado por nenhuma sociedade anteriores
a modernidade, e que também não foi alcançado por outras sociedades modernas como o Japão e o Brasil.
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clara do conceito de cognição. Acredito que nestes dois pontos estão as bases
para a compreensão do agir humano.
A partir da proposta de delimitação do conceito de cognição pretendo
deixar minimamente claro os mecanismos psicossociais que subjazem a principal
hipótese desta dissertação, que consiste em afirmar que as ações e as escolhas
morais são efetuadas em virtude da oferta de um determinado horizonte moral e
valorativo (ambos fundamentados cognitivamente), que os agrupamentos sociais
tem acesso. No caso em questão, privilegiamos a esfera religiosa por entender,
de acordo com a perspectiva weberiana, que em muitos casos é a religião a
principal fonte de oferta desse horizonte moral-cognitivo2.
Em vista disto, o que nos lançamos a demonstrar neste capítulo diz
respeito à discussão do conceito de cognição, perseguindo o caminho de uma
possível mudança paradigmática em que contextos intersubjetivos ganham
destaque em detrimento de perspectivas subjetivistas.
A crít ica ao modelo dominante
Para entender os limites que configuram a noção de cognição nos seus
aspectos mais básicos do cotidiano ou mesmo nas grandes questões que lhe são
decorrentes, — como aquelas que implicam escolhas morais e valorativas — uma
tarefa se faz indispensável: a efetivação de uma severa crítica ou até mesmo um
rompimento com as principais concepções que têm predominantemente orientado
a discussão relativa a estas temáticas, para somente depois redirecioná-la para
análises que até então têm sido muito pouco exploradas, como pretendemos
fazer ao longo deste capítulo.
Quanto às concepções dominantes, nos referimos certamente àstradicionais concepções racionalistas e ao biologicismo moderno, sendo que este
último, desde de Darwin, busca resolver os debates nas questões
epistemológicas mais distintas. Vale lembrar que esta última concepção busca
argumentos e evidências para além de explicações ancoradas na sua principal
matriz filosófica, a saber, o utilitarismo inglês; mas se vale também do avanço
2 Esta idéia ficará mais clara no decorrer desta dissertação, onde a trataremos com mais detalhes.
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científico-tecnológico, especialmente das técnicas de mapeamento cerebral em
que se pretende classificar regiões cerebrais juntamente com a análise do fluxo
de mediadores químicos. Com isso pretende-se definir áreas específicas da
cognição, almejando assim uma teoria ou tão somente uma explicação físico-
química que permitiria o diagnóstico de tendências no hábito e no gosto de um
sujeito, tais como propensão à violência, escolhas relativas ao gosto, preferência
por determinadas comidas ou por tonalidades de cores específicas etc.
Quanto aos fundamentos racionais destas tendências, podemos afirmar
que até o presente momento o construto do pensamento kantiano, mais
especificamente sua estética transcendental, tem servido diretamente e
indiretamente como o pilar principal e, conseqüentemente dominante nas
interpretações relativas à cognição humana. Esta tradição serve tanto aos
modelos interpretativos assentados sob o racionalismo subjetivista, quanto
aqueles que recorrem à noção de uma estrutura universal e estática do sujeito, no
caso em questão a estrutura cerebral.
Quanto ao primeiro (racionalismo subjetivista), o modelo kantiano fornece a
ilusão de que nossas escolhas (cognitivas) estéticas e éticas são mediadas
conscientemente pela pura e simples atividade classificatória da razão. Neste
sentido, os esquemas avaliativos são elaborados pela capacidade quase infinita
da razão e conduzem-nos a sistemas apodíticos (universais e necessários)3.
Nesta idéia, independentemente da influência de um aprendizado social e de
panos de fundos sócio-cognitivos, os seres humanos fariam suas escolhas a partir
de um exame minucioso e evidentemente consciente, que a faculdade inata da
razão lhes proporciona. Desse modo, tornando apenas o sujeito (consciente)
como elemento exclusivo que nos permitiria empreender uma análise a respeito
da apreensão do mundo, pois este (sujeito consciente) por si só já conteria asestruturas que lhe permitem avaliar as impressões do mundo que o rodeia. Esta
lógica de análise negligencia a percepção de que estruturas sociais que são
incorporadas inconscientemente pelo sujeito podem servir como fonte de
investigação para se compreender a relação do sujeito com o mundo.
3 Cf. BOURDIEU, Pierre. La distinción: criterios e bases sociales del gusto. México: Ed. Taurus, 2002.
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A influência do kantismo no segundo modelo citado não é tão direta quanto
aquela referente ao racionalismo subjetivista, mas por outro lado, é ele (o
kantismo) que fornece as bases para a idéia de uma estrutura estática humana
que medeia a relação com os objetos, sendo que estes últimos se nos
apresentam (Erscheinung) moldados por estas estruturas intermediárias,
permitindo e sendo de muita valia para a explicação que busca o desvelamento
completo das estruturas cerebrais como caminho para o entendimento da
cognição humana. A noção de uma estrutura cognitiva universal na espécie se
consolida quando Kant apresenta as bases de sua teoria do conhecer, que
consiste na afirmativa que o conhecimento não se encontra nos objetos ou tão
simplesmente na razão, mas sim no que nossa razão coloca nos objetos. A razão
percebe o objeto a partir de sua estrutura cognitiva, não podendo desta maneira
apreender o objeto em si, na sua essência, por que esta jamais poderia ser
alcançada por nosso aparato cognitivo. Kant também não cede à concepção
empirista de um homem como uma tabula rasa, em que tão somente as
experiências imprimiriam suas marcas em um sujeito passivo, Kant afirma que:
Conquanto todo nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso
deriva, todo ele, da experiência. (B 1;TP 31) A partir da crítica kantiana o objeto
deixa de ser uma realidade absoluta dada, em que o sujeito tem uma atitude
passiva na sua percepção. Na revolução copernicana de Kant o sujeito também
constrói o objeto. No idealismo kantiano o conhecimento é fruto de uma interação
ativa entre sujeito e objeto:
A razão não percebe senão aquilo que ela mesma produz segundo seu
próprio projeto. . . Não conhecemos a priori nas coisas senão aquilo que nós
mesmo nelas colocamos. (B XIII TP 17- B XVIII TP 19)
Vale notar que a participação do sujeito na construção do conhecimento
não é para Kant o caminho para um relativismo a maneira de Protágoras; não são
experiências individuais ou culturais que tem relevância neste processo. Kant se
refere ao nosso aparato cognitivo, que seria universal na espécie humana. Uma
vez que o objeto nos é dado, nosso entendimento e sensibilidade o percebem de
acordo com suas faculdades. O que marca esta tese é a noção de um sujeito
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cognoscente universal e estático dotado de estruturas rígidas de percepção do
mundo (entendimento e sensibilidade), idéia esta facilmente transportada para
uma compreensão fisicalista, em que estruturas cerebrais mediadas pelos
sentidos que são afetados pelos objetos nos conferem uma determinada
apreensão do mundo e das coisas.
É claro que o que propomos aqui não é uma defesa de uma suposta
influência direta do pensamento de Kant nestas teorias, especialmente naquelas
referentes à neurobiologia. O que realmente nos importa é ressaltar como o
construto do pensamento kantiano4 — e não especificamente algumas de suas
teses que não iremos aprofundar aqui — foi fundamental para um determinado
tipo de elaboração de sujeito no mundo moderno, que por seu lado, influenciou de
forma marcante, e isso não poderia ser diferente, na noção de relação deste
sujeito com o mundo, enfim, na construção de uma determinada noção de
cognição.
No entanto, as características fundamentais da idéia de sujeito, as quais
pretendemos criticar para a formulação de um outro conceito de cognição, se
concentram na perspectiva de um sujeito capaz de ter o controle voluntário de
seus exames, e que exerce escolhas dominantemente conscientes através de
uma faculdade ou de uma estrutura de percepção do mundo que está isolada das
estruturas sociais que o cercam, permitindo alcançar valores morais e estéticos
absolutos e universais. Pretendemos também nos distanciar da idéia de que
aspectos da cognição e da agência humana são preponderantemente
influenciados por heranças biológicas (genéticas), ou seja, das explicações que
superestimam respostas assentadas em aspectos físico-químicos. Enfim, iremos
nos contrapor a todas as explicações que tomam simplesmente o sujeito como
fonte exclusiva ou mesmo dominante para a explicação do conceito de cognição.
A mudança paradigmática
4 É importante esclarecer que aquilo que chamo de construto do pensamento kantiano não se refere tãosomente às proposições de Kant, mas, sobretudo a força que suas idéias ganharam para muito além do círculo puramente filosófico. Em um sentido tayloriano ( As fontes do Self, 1997 ), o que mais me importa não é umaanálise “ fria” das idéias, mas o valor e os desdobramentos dessas idéias quando ganham os “corações e
mentes” das pessoas, transformando-se em ideologias, projetos políticos, discursos pseudocientíficos e etc.
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11
O que se busca aqui é uma mudança paradigmática nas discussões a
respeito do conceito de cognição, e quanto a isso a proposta filosófica que nos
aponta saídas iniciais para a construção de um modelo alternativo encontra-se na
filosofia de Hegel. É importante ressaltar que esta filosofia oferece apenas os
contrapontos iniciais, que serão complementados a partir da contribuição de
outros pensadores contemporâneos, os quais utilizaremos para a consolidação do
que aqui chamo de mudança paradigmática. A filosofia hegeliana oferece a
possibilidade de um distanciamento frente a idéia de que o sujeito seria o
elemento primário e exclusivo responsável pelo processo de cognição. Ao adotar
uma visão que valoriza a importância de contextos intersubjetivos para explicar a
condução de nossa ação e de nossa percepção do mundo, esta possibilidade é
efetivada. Todavia, para dar seguimento a essa discussão, lançaremos mão do
pensamento de um filósofo contemporâneo assumidamente neo-hegeliano, a
saber, Charles Taylor, que procura levar a cabo a investigação sobre a noção de
contexto intersubjetivo. O que Hegel chamou de pano de fundo moral, Taylor
chamará de hierarquia moral.
No seu livro As fontes do self , Charles Taylor procurou investigar quais
seriam os principais contextos intersubjetivos que configuraram o quadro da
hierarquia moral ao longo da história do ocidente, e que ocasionou na atual
identidade moderna. Em posição oposta a de Nietzsche, Taylor acredita que uma
exegese das fontes morais não nos levariam a um vazio moral, mas ao contrário,
nos conduziriam à uma maior compreensão de nossa ação e das motivações que
direcionam nosso agir. No entanto, seu tom otimista referente a compreensão da
ação não é conduzido nos mesmos caminhos que levaram Habermas5 a elaborar
sua também otimista teoria da ação comunicativa. O ponto principal de
divergência entre o pensamento destes autores (Habermas e Taylor), e queacredito ser o elemento diferenciador e de destaque no pensamento de Taylor, é
também a chave para nossa análise, a saber, a sua postura não racionalista.
Para Taylor a hierarquia moral que influencia todos nós é, na maioria das
vezes, inacessível à consciência, a maneira de uma força opaca, em que tal
opacidade é o elemento que produz sua eficácia na condução da ação e da
5 O motivo de citarmos Jürgen Habermas se deve ao fato deste ser um dos principais representantes do
racionalismo na contemporaneidade apresentando-se assim como contraponto ao que gostaríamos de discutir.
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percepção do mundo. Essa hierarquia de valores morais é a escala que indica
qual é a forma digna de se viver. Neste sentido, o modelo de vida que devemos
perseguir é inarticulado e pré-reflexivo, segundo Taylor.
Este caminho aberto por Taylor, em que se enfatiza que o que define apercepção de mundo e a ação do sujeito está além do próprio sujeito e atua sobre
ele de forma inarticulada é o que mais nos interessa, tendo em vista que esta
perspectiva ataca duramente as teorias que colocam o sujeito como a matriz das
escolhas da agência humana. Vale lembrar que por mais que determinados
modelos de “vida digna” possam ser parcialmente acessíveis à consciência, os
fundamentos filosóficos e valorativos que sustentam esses modelos não são
normalmente acessíveis, impedindo assim a possibilidade de se fazer umaescolha racional e, portanto, consciente sobre este ou aquele modelo de vida que
um indivíduo possa eleger sozinho como digno de ser vivido e perseguido.
A conformação e a internalização desses panoramas morais se dão a partir
de acordos intersubjetivos em que a lógica individual é de pouca relevância. Uma
constatação empírica disto é a existência de uma hierarquia de valores divididos
entre o que é certo ou errado, ou melhor, relativo às noções de bem e mal, que
atua inconscientemente em nós em inúmeras situações cotidianas, fazendo comque nosso corpo responda de maneira involuntária a determinadas situações.
Desse modo, sentimos repulsa, desprezo ou indignação quando observamos
ações que não “classificamos” como “boas”, quando realizadas por outras
pessoas, ou quando sentimo-nos humilhados ou ressentidos quando estas ações
se dirigem a nós, ou mesmo quando sentimos vergonha ou culpa quando estas
ações são por nós praticadas, ou ainda em casos mais tácitos em que ficamos
com a face enrubescida em situações constrangedoras.
A formação de determinadas “noções de boa vida”, como chama Taylor,
merecem ser analisadas também a partir de perspectivas weberianas; isto se
deve à grande proximidade de idéias que enxergo entre estes autores. A “eleição”
de um determinado modelo de vida como categoria de “boa vida” ou “vida plena”
é antecedido pelo surgimento de novos valores que influenciam a sua formação.
A parte III do livro “ As fontes do Self” de Charles Taylor, intitulada A afirmação da
vida cotidiana, é emblemática a respeito desta temática. Esta parte do livro tanto
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13
demonstra a gênese de novos valores como ilustra bem a proximidade com as
idéias de Weber. Neste caso, a conformação de um novo modelo de vida oposto
ao modelo medieval é formado a partir de novos valores relacionados à reforma
protestante. Em oposição à vida nobre surge a vida metódica cotidiana como a
maneira digna de se viver 6. Mais uma vez percebe-se, como pretendemos
desenvolver ao longo desta dissertação, que a oferta da “noção de boa vida”
assentada em um conjunto de valores não tácitos (hierarquia moral) foi por muitas
vezes formado a partir do discurso religioso. No caso em questão, grande parte
desses novos valores foram gerados em torno de uma nova promessa religiosa,
em especial, o protestantismo calvinista7.
Para compreender bem, temos que voltar a um ponto de origem teológico.
A afirmação da vida cotidiana origina-se na espiritualidade judeu-cristã, e o
impulso particular que recebe na era moderna vem sobretudo da Reforma. Um
dos principais pontos comuns a todos os reformadores foi sua recusa da
mediação. . . Não podiam existir cristãos mais ou menos devotos: envolvimento
pessoal deve ser total, ou não tem valor nenhum. (TAYLOR, 1997: 279)
A noção de que as escolhas morais se dão em virtude de um conjunto de
idéias-valores que configuram uma noção do que é bom, belo e desejável, sendo
que em muitas situações estas idéias-valores se materializam em promessas de
salvação religiosa que regulam a conduta humana como analisou Weber, é mais
um ponto de proximidade com Taylor que podemos ressaltar. Para ambos o
homem não é regido simplesmente por impulsos instintivos ou movido por
interesses rasos, mas há uma esfera moral que os influencia diretamente.
Esta dinâmica em que a ação não é controlada simplesmente por umarelação rasa de interesses impostos pela necessidade da satisfação imediata de
prazeres e afastamento do sofrimento material, só é possível de ser efetivada
quando se tem uma compreensão de natureza humana mais complexa do que
aquela que enxerga o sujeito com um ser maximizador de prazer e minimizador
de sofrimento. Para Taylor o homem não está restrito a sua natureza puramente
6 Para mais detalhes ver “As Fontes do Self”, páginas 273 – 394.7 Discussões mais detalhadas a esse respeito ocorrerão ao longo da dissertação.
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animal, mas sim é um animal diferenciado por um elemento, é um animal moral.
Este ponto o aproxima radicalmente de Weber 8, poderíamos até supor que sua
concepção de natureza humana é um desdobramento das idéias de Weber a
esse respeito. Weber também interpreta o sujeito como um sujeito moral que, a
despeito das ambições de “sucesso”, esse sujeito tem obrigações valorativas que
tem seu fim em si mesmo. Como exemplo, Weber narra que em muitas
sociedades os ricos e afortunados não se contentam em apenas ser ricos e
afortunados: eles precisam de um discurso que legitime e justifique sua melhor
sorte, inclusive para eles mesmos. Para garantir este conforto existencial relativo
a riqueza elaborou-se uma série de artifícios simbólicos ao longo da história, seja
através de uma suposta descendência divina, ou de uma pureza do sangue nobre
ou mesmo do recurso de gosto refinado, este último efetivando-se nas sociedades
modernas. Como afirma Schluchter sobre a esta temática weberiana: A utilidade é
uma dimensão importante da vida. Porém, não menos importante é a dimensão
do dever. (Schluchter, 1999:127) Ou como afirma Reckling no seu artigo
Interpreted Modernity: Weber and Taylor on values and modernity: “Weber foi
altamente cético quanto ao reducionismo do naturalismo e biologismo na ciência
social como também quanto ao reducionismo do conceito de racionalidade” 9.
(Reckling, 2001:158)
Nestes breves comentários a respeito do pensamento de Taylor, buscamos
em um tom introdutório da dissertação, analisar sucintamente como a dinâmica
das idéias e da produção de valores atuam determinantemente na percepção do
mundo e no direcionamento da ação do sujeito, sendo esse aspecto basilar para o
desenvolvimento das idéias referentes ao pensamento da sociologia da religião
em Weber, em especial sua análise das etapas cognitivas. Cremos que as idéias
de Taylor aparecem como uma ferramenta importante pra compreender que aoferta de determinado conjunto de idéias-valores que penetram pré-
reflexivamente nos indivíduos atua na formação de uma sociedade.
8 Há uma sutil, porém, importante diferença nas concepções de Taylor e Weber a esse respeito. Para Weber aesfera moral entra em competição com outras esferas da vida, já para Taylor todas as esferas da vida estãoimersas em regras morais.9 Weber was highly sceptical about a reductionist of naturalism and biologism in social science as well as
about reductionist concept of rationality.
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No entanto, se o livro “ As Fontes do Self ” nos permite ver como estruturas
extra-individuais atuam na percepção do sujeito em relação ao mundo, ou seja,
como estruturas “penetram” na mente dos indivíduos, é apenas no pensamento
de Pierre Bourdieu que podemos vislumbrar como as estruturas sociais
“penetram” nos corpos dos indivíduos. O estudo feito no livro “La Distinción”, de
Pierre Bourdieu, é a primeira grande obra das ciências sociais que, através de
uma longa pesquisa empírica (e certamente uma riqueza teórica), se aventura a
investigar aspectos da cognição humana que durante muito tempo foram campo
exclusivo da biologia.
Admitimos que os estudos de Bourdieu tenham menor importância que os
de Taylor no que se refere as idéias que desenvolvemos nos próximos capítulos,
porém, achamos importante apresentar sumariamente a obra deste sociólogo
francês em virtude deste ser útil para uma inserção das ciências humanas na
discussão a respeito da cognição empreendida neste primeiro capítulo.
No livro “La Distinción: criterios e bases sociales del gusto” Bourdieu
procura, a partir de uma elaboração de uma estética anti-kantiana, como o próprio
assim o denomina, deslocar as discussões sobre a estética dos referenciais de
uma noção de belo universal para conduzi-las para referenciais políticos e sócio-
cognitivos referente à determindos tipos de aprendizados sociais. Para Bourdieu a
percepção do belo é muito mais uma questão política referente a um conflito de
classes do que puramente uma questão puramente estética. Segundo Bourdieu, o
gosto é uma determinação de um aprendizado pré-reflexivo ocorrido em função
de uma determinada estrutura social que o indivíduo está inserido, principalmente
na infância. Desde a expressão corporal até aos hábitos alimentares ou mesmo
uma diposição para a apreciação da arte se dá em virtude desta incorporação de
estruturas sociais.Para Bourdieu, a noção do belo ou “da vida digna” desejável é constituida a
partir de uma luta de classes que envolvem sutis instrumentos simbólicos para
garantir a dominação de uma determinada classe sobre a outra. Diferentemente
de Taylor, que crê que a base da hierarquia moral encontra-se na separação e
conseguinte divisão valorativa entre a mente e corpo (sendo que as atividades
referentes à mente são de maior valor que as atividades referentes ao corpo),
Bourdieu acredita que ela se forma em virtude de um conflito de classes.
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Porém, o que mais nos interessa a respeito do debate sobre o conceito de
cognição na análise de Bourdieu não é a constituição do belo na luta entre as
classes, mas sim a “aquisição” das armas para esa luta, ou seja, a incorporação
de comportamentos sociais que são avaliados e utilizados como meios de
dominação que, segundo Bourdieu, consiste na incorporação de estruturas
sociais.
Bourdieu utiliza o termo Habitus para denominar esta dinâmica de
incorporação de estruturas sociais de forma inconsciente que configuram a
cognição humana, como ele descreve na citação abaixo:
As estruturas cognitivas que elaboram os agentes para conhecer
praticamente o mundo social são umas estruturas sociais incorporadas. O
conhecimento prático do mundo social que supõe a conduta “razoável” nesse
mundo elabora uns esquemas classificadores(ou, se prefere, “umas formas de
classificação”, umas “estruturas mentais”, umas “formas simbólicas”, expressões
todas elas que, se ignoram suas conotações, são mais ou menos intercambiáveis)
esquemas históricos de percepção e apreciação que são produto de divisão
objetiva em classes ( classes de idade, classes sociais, classes de gênero) e que
funcionam a margem da consciência e do discurso10. (BOURDIEU, 2002: 479)
Nesta lógica, a noção de um sujeito autônomo que faz escolhas racionais
(conscientes) ou de estruturas inatas no sujeito que determinam sua percepção
do mundo tem sua legitimidade contestada. Bourdieu busca comprovar em sua
pesquisa que até mesmo o paladar, a preferência por um determinado tipo de
comida segundo ele é algo socialmente construído. Assim, a incorporação de
determinados Habitus de classe atuam como a maneira de passar por váriasgerações uma dominação consolidada.
10 Las estructuras cognitivas que elaboran los agentes sociales para conocer prácticamente el mundo socialson unas estructuras sociales incorporadas. El lo conocimento práctico del mundo social que supone laconducta “razonable” en ese mundo elabora unos esquemas clasificadores ( o, si prefiere, “unas formas declasificación”, unas “estructuras mentales”, unas “formas simbólicas”, expresiones todas ellas que, si seignoram sua connotaciones, son más o menos intercambiables) esquemas históricos de percepción yapreciación que son producto de la division objetiva em clases (clases de edad, clases sociales, clases
genero) y que funcionan al margem de la conciencia y del discurso.
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Tanto as idéias de Bourdieu quanto as de Taylor nos levam a pensar que
contextos intersubjetivos atuam de maneira significativa na constituição da
cognição do sujeito em relação ao mundo. Alguns dos debates empreendidos
neste capítulo fogem um pouco às discussões posteriores, no entanto, outras
discussões aqui empreendidas serão de crucial importância para as idéias que
serão debatidas a seguir.
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Capítulo II:
O monismo mágico: apontamentos sobre a cognição mágica
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O monismo mágico: apontamentos sobre a cognição mágica
Introdução
Por mais estranho que esta afirmação pareça, não é a religião
propriamente dita o objetivo central de Weber na investigação minuciosa sobre as
grandes religiões mundiais, que por seu lado ocasionou na construção de um
engenhoso trabalho de sociologia da religião. Como o próprio autor afirma no
início da parte dedicada à religião em Economia e Sociedade: “Não é da
“essência” da religião que nos ocuparemos, e sim das condições e efeitos de
determinado tipo de ação comunitária” . . . (2000: 379), Weber se debruça sobre a
investigação do tema que direciona toda sua obra, a saber, a interpretação do
sentido da ação social, ou seja, em que medida determinados tipos de ação são
tributários da combinação de elementos que organizam a vida social. Neste
sentido, a religião ganha destaque em suas investigações, já que esta ocupa um
lugar fundamental - porém não o único – na doação de sentido à vida e, por
conseguinte, na doação de sentido à ação. É necessário ressaltar que em
nenhum momento defendemos a tese de qualquer determinismo histórico
centrado na religião, pois o próprio conceito weberiano de afinidades eletivas, que
trataremos mais tarde, denota esta proposta de distanciamento destas
concepções para adotar interpretações que valorizem a relação de afinidades
entre esferas distintas, como a econômica, a política e a religiosa, sem que
nenhuma delas seja tomada como a causa de qualquer outra. A esfera religiosa,
muitas vezes, foi interpretada como simples desdobramento de “esferas deprimeira grandeza” como a política e a econômica. No entanto, a religião oferece
uma estrutura sócio-cognitiva elaboradora de um discurso sobre o mundo e sobre
as coisas, tal como afirma Pierre Bourdieu:
Em outras palavras, a religião contribui para a imposição (dissimulada) dos
princípios de estruturação da percepção e do pensamento do mundo e, em
particular, do mundo social, na medida em que impõe um sistema de práticas e de
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representações cuja estrutura objetivamente fundada em um princípio de divisão
política apresenta-se como a estrutura natural-sobrenatural do cosmos.
(BOURDIEU, 2004: 33-34)
Esse panorama cognitivo a respeito do mundo oferecido pela religião não é
um produto isolado das outras esferas, ou seja, a religião não opera
independentemente, pois ela também se constrói de acordo com as demandas
econômicas e políticas, como muito bem assinala Weber:
É claro que o modo de vida determinado religiosamente é, em si,
profundamente influenciado pelos fatores econômicos e políticos que operam
dentro de determinados limites geográficos, políticos, sociais e nacionais. . . Por
mais incisivas que as influências sociais, determinadas econômica e
politicamente, possam ter sido sobre uma ética religiosa num determinado caso,
ela recebe sua marca principalmente das fontes religiosas e, em primeiro lugar,
do conteúdo de sua anunciação e promessa. (WEBER, 1983: 310-312)
Mesmo na contemporaneidade a religião imprime sua linguagem na
elaboração do sentido do mundo onde o discurso técnico-científico não penetrou
fortemente, fazendo com que os homens vejam o mundo através de “óculos
cognitivos” da esfera religiosa, ou em termos weberianos, as “imagens de mundo”
(Weltanschauung) criadas pelas “idéias”.
Nesta lógica, a ação estaria não determinantemente direcionada, mas sim
orientada por uma determinada estrutura cognitiva que agiria como horizonte de
possibilidades do aprendizado moral de um determinado tipo de comunidade ou
sociedade. Como já afirmamos, esse panorama cognitivo foi oferecido em grandeparte, sobretudo no que se refere à sociedades pré-modernas, pelo discurso
religioso vigente. Em vista disso, Weber elabora um longo desenvolvimento
cognitivo a partir de um exame histórico-religioso, partindo das primeiras
organizações sociais para entender a formação do tipo de ação do mundo
moderno ocidental que contribuiu acintosamente para a formação do sistema
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capitalista moderno. Wolfgang Schluchter 11 classificou e sistematizou este
sistema de etapas cognitivas mais detalhadamente, partindo daquilo que Weber
chamara de formas primevas e universais de religiosidade, que abordaremos
inicialmente a partir do que denominamos cognição mágica.
A cognição mágica
A ação ou cognição mágica, entendida não simplesmente como um tipo de
ação particular, mas sim como toda uma maneira de interpretar o mundo,
caracteriza-se em traços gerais, pela ausência de uma sistematização clara de
um conjunto de idéias que orientam a interpretação do mundo e, por conseguinte,
a própria ação. Nota-se aí a carência de uma sistematização racional a respeito
do mundo12. Não no sentido estritamente histórico, mas sim no seu aspecto
cognitivo relacionado a uma lógica do desenvolvimento (Entwicklungslogik),
poderíamos falar de uma etapa anterior ao processo de racionalização13 em que
não se iniciou ainda a formação de um discurso racional de dominação do mundo.
Neste caso (magia) a ação é direcionada tão simplesmente pelas demandas
imediatas da praticidade, não encontrando um conjunto sistematizado de idéias
que entrem em conflito pelo direcionamento da ação.
No caso da religiosidade mágica14, não há uma preocupação aliada a
grandes idéias religiosas, e devido a isso, talvez não possamos referir-nos a ela
dessa maneira, já que uma de suas principais características é a inexistência de
um campo estritamente religioso15, com demandas exclusivamente religiosas,
uma vez que suas ações se misturam com os anseios de outras esferas da ação.
11 Sociólogo alemão que é hoje um dos principais intérpretes do pensamento weberiano, responsável pelocrescente interesse por Weber devido às suas interpretações originais.12 Isto não quer dizer que não exista uma racionalidade prática, assentada na experiência, mas sim a ausênciade uma racionalidade reflexiva, que confere um sentido integrado à realidade.13 Conceito o qual trataremos no capítulo seguinte.14 Tipo de religiosidade que se orienta predominantemente por referenciais mágicos, marcadamente presenteem sociedades ou outros agrupamentos sociais que interpretam o mundo tal como um “reino encantado”.Esse tipo de religiosidade se opõe à religiosidade ética, sendo esta última um sistema religioso que tende ainterpretar o mundo como um universo pleno de sentido. Esses termos ficarão mais claros no decorrer dadissertação.15 Mesmo quando um campo religioso é formado através da cognição mágica, devido ao desenvolvimento dosimbolismo e de uma relativa abstração, este aparece, apesar de possuir tabus religiosos, ainda não tem força para conduzir a ação, o que acontece em etapas onde a religião já construiu seu campo de maneira mais
autônoma e definida. Sobre este tema falaremos mais detalhadamente no decorrer deste capítulo.
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Podemos classificá-la antes como uma etapa pré-religiosa comparativamente à
religião no seu sentido estrito16. Elaborados discursos cosmogônicos ou discursos
a respeito da salvação da alma com um destino de penas e gozos futuros num
mundo transcendente a este em que vivemos, ou mesmo um código moral
baseado em certos princípios, enfim, todas estas características que atribuímos
tradicionalmente à religião, são desconhecidos por este sistema. Suas ações em
geral tendem a se dirigir para “que vás muito bem e vivas muitos e muitos anos
sobre a Terra” (WEBER, 2000: 279)
O pensamento mágico, como chama Weber, está relacionado à
cotidianidade, comprometido com metas de curto prazo, em geral preocupações
relacionadas com a economia17, tais como prosperidade na colheita. A busca de
êxito nestas atividades implicou na elaboração de meios coatores sobre deuses,
demônios ou espíritos, ou mesmo forças mágicas da natureza, variando de
acordo com o tipo cognição mágica vigente no determinado grupo social. A
eficácia desta ação, regulada em geral por sua cotidianidade, almejava sobretudo
efeitos de natureza meteorológica.
As demandas típicas da concepção mágica do mundo direcionam-se, em
geral, para a saúde, riqueza e vida longa. Em muitos povos antigos a vitória nas
guerras ocupou a atenção dos rituais mágicos; no entanto, a cura do corpo e a
prosperidade material mantêm-se presentes na contemporaneidade sob formas
renovadas, sobretudo na religiosidade das massas pertencentes aos setores não
europeizados da periferia18, como por exemplo, a teologia da prosperidade e a
cura do corpo, típicas do neopentecostalismo19. Ainda que hoje as vitórias nas
guerras sejam tratadas como assuntos dependentes de estratégias racionais e da
aplicabilidade científica, sendo que esta última inova cada vez mais a tecnologia
16 A palavra religião indica a partir de sua origem etimológica a religação entre algo que foi separado, nocaso em questão, o homem e a divindade que foram separados por um abismo intransponível. Este sentidonão se aplicaria à magia, na medida em que neste sistema de interpretação do mundo o homem e a divindadedesfrutam da mais estreita intimidade; assim não há o que ser re-ligado, porque nunca houve separação.17 O sentido do termo economia na sociologia da religião de Weber não está apenas relacionado às formas desistema econômicos adotados por esta ou aquela sociedade, mas se refere a toda produção e reprodução dosmeios de vida. Neste sentido, ações direcionadas à economia são aquelas voltadas para a produção no seusentido mais geral. Sobre o termo “ética econômica”, Weber assim o define na sua obra A psicologia socialdas religiões mundiais: “O que entendemos por ‘ética econômica’ refere-se aos impulsos práticos de açãoque se encontram nos contextos psicológicos e pragmáticos da religião”. (1983: 309)18 Cf. Souza, Jessé (2003): A Construção Social da Subcidadania: para uma Sociologia Política daModernidade Periférica. Belo Horizonte: UFMG19 Cf. Anexo
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relacionada ao aparato bélico, em algumas sociedades a magia serve como meio
para disputas pessoais, e lançar maldições e desgraças prescritos em rituais
mágicos contra inimigos faz parte do dia-a-dia de determinadas comunidades:
A maioria dos autores está de acordo em reconhecer nas práticas mágicas
os seguintes traços: visam objetivos concretos e específicos, parciais e imediatos
(em oposição aos objetivos mais abstratos, mais genéricos e mais distantes que
seriam os da religião); estão inspiradas pela intenção de coerção ou de
manipulação dos poderes sobrenaturais (em oposição às disposições
propiciatórias e contemplativas da “oração” por exemplo); e por último,
encontram-se fechadas no formalismo e no ritualismo do “toma lá da cá”.
(BOURDIEU, 2004: 44-45)
Enfim, na cognição mágica não há uma nítida separação entre as esferas
da ação e, neste caso, a ação magicamente motivada se mistura com outras
esferas que nos setores mais europeizados do mundo moderno ocidental
detêm plena autonomia. Em sociedades antigas, o direito, por exemplo, se
constituiu mesclado a concepções mágicas, carecendo de uma lógica interna
própria. O controle social ocorria a partir de tabus de fundamentação mágica e
não em sistemas fortemente racionalizados como ocorreu no ocidente, em
especial a partir do surgimento do direito romano. Weber cita inúmeros
exemplos de como tabus mágicos são utilizados para fins de controle social, e
em alguns casos visando interesses econômicos. Tabus relacionados ao sexo
entre camadas sociais diferentes, especialmente em sociedades com rígidos
sistemas de casta foram cruciais para a manutenção da pureza do sangue que
legitimava o controle social; tabus em relação à exploração de florestas edeterminadas caças foram maneiras de garantir exclusividade de terras e
recursos a membros da nobreza. (WEBER, 2000: 299). O medo da sentença
de desgraça (morte, doenças, azar) dirigida àqueles que violavam o tabu típico
de sociedades hegemonicamente mágicas, serviam como normatização do
sistema social. Todavia, muitos tabus instituídos em nada correspondiam a
interesses instrumentais objetivos, sejam eles econômicos ou de controle
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social; por vezes esses tabus se dirigiam contra esses interesses e também
contra os estratos sociais dominantes.
O sucesso na obtenção de alimentos, seja na caça ou na agricultura,
também estava submetido a cultos e determinados rituais que visavam coagir adivindade com sacrifícios ou palavras mágicas a conceder-lhe o bem visado ou,
como em alguns casos, dependia do humor deste ou daquele deus responsável
por esta atividade. Um ponto de destaque nesta lógica é a relação com a
divindade ocorrida em sociedades onde a visão de mundo é orientada pela
cognição mágica. Não existe aí um abismo que separa os homens dos deuses,
como ocorre nas religiões puramente éticas; homens e deuses dividem o mesmo
espaço e estão sujeitos às mesmas investidas. Daí a percepção geral desta etapacognitiva como monismo mágico imanente, ou seja, existiria apenas este mundo e
todas as ações seriam conseqüentemente dirigidas unicamente para ele. A
oposição desta grande etapa cognitiva é o seu momento seguinte dentro da lógica
do desenvolvimento, a saber, o dualismo transcendente, cuja racionalização
metafísica dividiu o mundo em dois, uma vez que as ações passaram a ser
dirigidas ao outro mundo que transcende ao mundo material em que vivemos. A
unidade da imagem primitiva do mundo, em que tudo era mágica concreta, tendeu
a dividir-se em conhecimento racional e domínio da natureza, de um lado, e em
experiências místicas, do outro. (WEBER, 1982: 325)
Como exemplo do não distanciamento entre os homens e a divindade
presente na cognição mágica, Weber apresenta a religiosidade mágica do sul da
Europa, em que fiéis reclamam e cospem em imagens de santos que não
atendem aos seus pedidos. O catolicismo popular brasileiro também seria
permeado por estes exemplos, na medida em que imagens de santos são
colocadas de cabeça para baixo como castigo por não atenderem os pedidos de
seus suplicantes. No prefácio de Casa-Grande e Senzala Gilberto Freyre narra
exemplos a esse respeito: “Nunca deixou de haver no patriarcalismo brasileiro,
ainda mais que no português, perfeita intimidade com os santos. O menino Jesus
só faltava engatinhar com os meninos da casa”. . . Também nos cultos afro-
brasileiros são feitas oferendas relacionadas à vaidade feminina (espelhos,
cosméticos, perfumes e etc.), a determinadas divindades possuidoras de
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preocupações puramente humanas. Neste caso, a relação dos homens com os
deuses não difere em substância da relação dos homens entre si.
Em vista disso, as decisões tomadas se pautam por relações de barganha
com a divindade e não em compromissos éticos, como é o caso das grandes
religiões éticas ocidentais, tributárias da novidade surgida na religiosidade judaica
que inaugura a idéia de um pacto ético firmado com um deus distante e
inatingível.(WEBER, 2001, Vol. III) Ao invés de coações mágicas ou da
expectativa irracional relativa ao humor da divindade, devia-se cumprir um pacto
ético e averiguar racionalmente os castigos e as benesses enviadas pelo deus
israelita: “Havia ditado seus mandamentos positivos e era preciso atentar-se a
eles. Cabia averiguar, como em um grande rei, seus propósitos salvadores, as
razões de sua cólera e as condições de sua graça.” (WEBER, 2001: 254 Vol.
III)20 Nesta lógica, a culpa ou o mérito pelo fracasso não mais era atribuído à
fraqueza ou força da divindade, mas sim ao não cumprimento do pacto por parte
do fiel.
A mentalidade moderna ocidental tende a interpretar a forma de percepção
de mundo da cognição mágica como um estado puramente caótico de
organização da vida, cujos atributos lógicos encontram-se distantes. No entanto,
Weber faz questão de comentar que sociedades nas quais este sistema de
percepção de mundo impera, não são (des)governadas pelo irracionalismo. As
regras da experiência orientam de certo modo a ação. Na cognição mágica
também existe um tipo de racionalidade, uma espécie de racionalidade da
experiência21. Ações que alcançam um bom resultado na obtenção de um
determinado fim são repetidas mimeticamente em virtude de seu potencial
mágico, e não em virtude de uma técnica racionalmente desenvolvida. Se o
cultivo de um determinado espaço de terra rendeu bons frutos, os meios utilizadossão ritualizados desde métodos até adereços e pinturas corporais, ou sacrifícios
de determinados animais ou mesmo humanos são repetidos no afã da obtenção
de resultados iguais.
20 “ Había dictado sus mandamientos positivos y era preciso atenerse a ellos. Cabía averiguar, como en ungran rey, sus propósitos salvadores, las razones de su cólera e las condiciones de su gracia.”
21 O tema da racionalidade será tratado no capítulo seguinte.
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Somente nós, do ponto de vista de nossa concepção atual de natureza,
poderíamos distinguir imputações causais objetivamente “corretas” e “erradas” e
reconhecer estas últimas como irracionais e a ação correspondente como
“magia”. (WEBER, 2000:279)
As bases materiais da rel ig iogênese
As formas de religiosidade na sociologia da religião de Weber sempre se
relacionam a determinados tipos de organização social que englobam aspectos
históricos, políticos, econômicos e geográficos. Muitas vezes interesses materiais
de grupos específicos orientaram a forma de religiosidade ali desenvolvida. As
principais demandas (políticas ou econômicas) e os anseios deste ou daquele
grupo social tendem a ser dominantes no conteúdo das suas promessas
religiosas, formando assim uma dinâmica destas promessas.
As promessas religiosas tendem a se formar a partir do quadro de
carências vivido “neste mundo”; elas tendem a ser uma resposta reativa a tudo
que é desejado neste mundo e não pode ser alcançado, pelo menos, de maneira
mais imediata ou próxima. Assim vemos deuses fortes surgirem quando
prometem boas colheitas em tempos e\ou lugares onde a fome é uma constante.
No caso dos hebreus, uma revolução teológica se instaura quando um deus que
se tornou o maior da história ocidental, promete supremacia bélico-política a um
povo oprimido por duas potências imperiais (Egito e Pérsia). A noção de paraíso
enquanto lugar do ócio descompromissado vem bem a calhar em nações ou
grupos escravizados ou submetidos a trabalhos muito árduos. Na modernidade,
nos grupos miseráveis e pobres destituídos de riqueza e acesso a sistemas de
saúde, deuses que prometem prosperidade material e curas ganham muitos fiéis.Uma questão crucial nesta dinâmica é a forma como as promessas religiosas se
dirigem para os afortunados da modernidade tardia, em um mundo onde a técnica
e a ciência resolveram grande parte dos seus problemas e suplantaram com
muita eficácia quase todas as promessas religiosas; as vitórias nas guerras
tornaram-se um produto da ciência e da técnica; o sucesso na colheita é obra da
química e da agroindústria; a medicina trata com eficácia da cura do corpo; leis
trabalhistas garantem cargas de trabalho diminuídas e etc. Neste caso as
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promessas religiosas se dirigem para a solução de um novo problema, o
desconforto psicológico causado pela agitação da vida urbana, ou seja, a
ansiedade gerada pela vida moderna. E isto é um prato cheio para o orientalismo
que invade o ocidente, que promete uma vida sábia que paire sobre as
tribulações deste mundo. Tanto a vida do “aqui e agora” quanto na do “mais além”
se valem da promessa da paz psicológica, seja prescrevendo soluções antigas
relativas à negação dos valores mundanos — como a adoção de um estilo “zen”,
por exemplo — como também investidas de campos não-religiosos para a
solução ou mesmo terapia destas demandas humanas. Os novos medicamentos
para o cérebro que prometem controle da ansiedade, e os pacotes de empresas
de turismos para viagens cada vez mais exóticas sem perder nenhum conforto,
mas ao mesmo tempo estando longe das tribulações da vida cotidiana do mundo
moderno são também exemplos indiretos destas tendências religiosas de
libertação do sofrimento. O desconforto, ou melhor, o sofrimento, é o mote para
os projetos de salvação, sejam da religião ou dos setores mais laicizados da
sociedade.
Porém, nas comunidades onde predomina a ação magicamente motivada,
essas promessas não têm o caráter de uma salvação no sentido tradicional a ela
atribuído -- seja ela coletiva como ocorre no judaísmo antigo ou individual a
exemplo do puritanismo --, as preocupações majoritariamente econômicas
relacionadas à vida cotidiana estão influenciadas por uma carência de
previsibilidade e garantia da obtenção dos meios de vida. Em vista disso Weber
colocou os estratos camponeses como o locus mais propício e até mesmo
originário da religiosidade mágica.
Os “camponeses” se inclinaram para a mágica. Toda sua existênciaeconômica esteve especificamente ligada à natureza e os tornou dependentes de
forças elementares. Acreditam facilmente numa feitiçaria coatora, dirigida contra
espíritos que governam forças naturais, ou que governam através delas, ou
acreditam comprar, simplesmente, a benevolência divina. Somente
transformações tremendas na orientação da vida conseguiram afastá-los dessa
forma universal e primeva de religiosidade. (WEBER 1983:327)
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28
As afinidades eletivas existentes entre os camponeses e a magia se
evidenciam nas formas de classificação que as camadas urbanas utilizavam para
designar os camponeses em virtude de seu estilo de vida, especialmente de suas
práticas religiosas. As camadas camponesas foram classificadas em geral pelos
citadinos com termos pejorativos em virtude de sua religiosidade
predominantemente mágica. Em várias sociedades, ser camponês era
considerado um índice de inferioridade moral. Como narra Weber, entre os
judeus, principalmente no período dominado pelos fariseus (estrato social
puramente urbano e intelectualizado), apenas o fato de não viver na cidade
colocava o indivíduo na categoria de um judeu de segunda categoria, tanto
política como religiosamente (2000: 322). No cristianismo antigo, o termo “pagão”,
utilizado para desclassificar o não-cristão, tinha sua origem no termo “pagnus”
que originalmente significava homem do campo. No cristianismo medieval tomista
o camponês era tido com um cristão de categoria inferior (2000: 322). A
estatística dos condenados pela inquisição na Idade Média (90 por cento eram
camponeses) revela a luta da doutrina oficial da igreja contra a tradição mágica
dos camponeses, normalmente acusados de serem bruxos e feiticeiros. Esta
lógica também ocorre no Brasil, cujas camadas médias urbanas sempre
devotaram um certo desprezo pelas formas de religiosidade popular camponesas
ou da periferia dos centros urbanos, em especial a religiosidade afro-brasileira,
condenada principalmente por suas práticas mágicas. Isto revela a atribuição por
parte das camadas urbanas da existência de um Habitus22 precário típico das
camadas camponesas.
Os estratos sociais do campo mantêm uma relação de total dependência
frente à natureza se os compararmos com os estratos urbanos, sobretudo os
estratos urbanos modernos, que detêm uma relativa independência em relação ànatureza. Se por um lado os comerciantes citadinos vivem num universo artificial
e controlado que é a urbe, exercendo uma atividade econômica contínua que lhes
exigem cálculos que oferecem previsibilidade e garante-lhes uma relativa
segurança frente às intempéries da natureza, os camponeses estão sujeitos a
todo tipo de acontecimento que ordinariamente estão aquém do seu controle.
22 Cf. Bourdieu, Pierre. La distinción: criterios y bases sociales del gusto. Editora Taurus: México, 2002.
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29
Além de estarem submetidos a uma atividade sazonal imposta pela natureza,
dependem da ação de forças que não controlam nem conhecem, como a chuva
ou a tempestade, a geada ou a seca, as pragas, enchentes etc. Enquanto o
artesão prevê o tempo final de confecção do seu produto, que depende
basicamente apenas do seu trabalho, o agricultor se depara e depende do
mistério insondável do nascimento e do crescimento dos organismos (BENDIX,
1986).
Em virtude disso, dois aspectos se destacam na configuração da ação
típica dos estratos camponeses. Primeiro no que se refere à impossibilidade da
elaboração ou compreensão de grandes sistemas que envolvem metas de longo
prazo, como a salvação da alma num mundo transcendente a este em que
vivemos. As preocupações dos estratos camponeses estão voltadas
principalmente para a produção do sustento imediato do qual as garantias de
obtenção detêm pouca previsibilidade, enclausurando-lhes num círculo fechado
de metas de curtíssimo prazo, cujo “aqui e agora” é o único horizonte possível.
Por conseqüência, as forças que segundo suas interpretações controlam a
natureza (espíritos, deuses, demônios), são alvo de ações coatoras ou barganhas
que visam a obtenção de metas imediatas relativas à saúde e riqueza. O outro
aspecto que se destaca é a ausência de uma técnica desencantada no trato com
a natureza. Não há uma diferenciação entre técnica e magia, uma vez que a ação
mágica é a única “técnica” para coagir as forças da natureza. A dependência
absoluta da natureza e a não compreensão racional de seus processos a
transforma num universo misterioso e encantado, em que a magia torna-se a
forma cognitivamente acessível de intervenção.
Todos estes exemplos revelam um traço estrutural da tese weberiana a
respeito do desenvolvimento religioso, a oposição campo versus cidade. A rupturaocorrida com o surgimento e desenvolvimento das cidades marca o aparecimento
de novos estratos sociais, de uma nova geografia e por conseguinte uma nova
forma de religiosidade. São os estratos sociais urbanos que permitiram o
surgimento de elites especializadas (sacerdotais) que inauguraram uma nova
forma de bens de salvação e, conseguintemente, do controle desses bens.
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Classificação dos estágios cognitivos do monismo mágico
Depois de apresentar os traços gerais desta forma de apreensão do mundo
que chamamos de cognição mágica, apresentando-a dentro da metodologia
weberiana baseada em tipos ideais23, ou seja, uma construção do pensamento
(Gedankenbild) realizada a partir de generalizações que buscam compreender
realidades particulares24, cabe agora apresentar os estágios existentes dentro da
etapa cognitiva do monismo mágico a partir de sua lógica própria de
desenvolvimento. Isto quer dizer que não se trata de uma análise da dinâmica
histórica, mas sim de uma lógica do desenvolvimento interno25, neste caso,
presente na cognição mágica.
Em relação ao desenvolvimento histórico, mesmo demonstrando que a
magia constituiu o substrato da percepção de mundo de sociedades antigas e
mesmo pré-históricas que evoluíram para outros modelos cognitivos que se
tornaram dominantes, como é o caso da modernidade ocidental, não podemos
associar a explicação da evolução destes modelos de etapas cognitivas
ancorados simplesmente no processo histórico, à maneira de um determinismo
histórico. O tipo ideal da “magia” enquanto um modelo criado é a-histórico,
embora suas “manifestações” apenas ocorram na história como elemento
orientador preponderante das religiosidades mágicas. A “magia”, por ser uma
forma universal de religiosidade, sempre esteve presente em todas as sociedades
com maior ou menor destaque, porém jamais sendo absolutamente superada do
ponto de vista histórico.
23 Cf. Wolfgang Schluchter. Die Überwindung des naturalistischen Monismus durch idealtypische Begriffesbildung. In:_____ SCHLUCHTER, Wolfgang. Religion und Lebensführung: Studien zu MaxWebers Religions- und Herrschaftssoziologie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988.
24 A interpretação baseada em tipos ideais se ocupa em isolar e exagerar elementos da vida social, elaborandotipos puros, para visualizar com mais clareza as fontes valorativas e cognitivas que orientam predominantemente certos tipos de ação, sem jamais almejar encontrar esses tipos puros na história. Quantoao caso particular das religiões, sempre encontraremos nas religiosidades éticas elementos tipicamenteoriundos de religiosidade mágica e vice-e-versa. Podemos encontrar em religiosidades mágicas traços dereligiosidade ética. Em se tratando do neopentecostalismo brasileiro, religiosidade que classificamos comomágica, há traços marcantes de religiosidade ética.25 Cf. Wolfgang Schluchter.The rise of western rationalism: Max Weber’s developmental history. Berkley
and Los Angeles: University California Press, 1985.
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No sistema do desenvolvimento lógico, dentro da grande etapa cognitiva do
monismo mágico existem três estágios cognitivos evolutivos, a saber: o
naturalismo pré-animista, o naturalismo animista e o simbolismo.
O naturalismo pré-animista é o estágio onde coisa e significado ainda
não foram cindidos, a coisa tem seu valor e sentido somente nela mesma; não
existe a percepção de um valor ou sentido agregado à coisa, que teria a função
de representar algo. A exemplo da adoração de imagens que encontram seu valor
nelas mesmas e não na representação simbólica de algo, certos fiéis adoram a
imagem como “fetiche” e não como a representação simbólica de uma entidade
transcendente26. Tanto uma pedra quanto uma pessoa podem ser venerados em
virtude de serem habitados pelo “carisma”, sendo que este último representa a
“força” responsável por eventos incomuns, de ordem extra-cotidiana. Depois de
objetos ou pessoas encantadas carismáticamente um outro momento de relativa
abstração aparece. É quando se tem a idéia de que por traz das coisas há algo
indefinido, mas ainda material, invisível e impessoal, porém detentor de vontade,
denominado espírito. Este entrtanto, não pode ser confundido nem com alma ou
demônio ou deuses (WEBER, 2000: 280).
O naturalismo animista, a etapa seguinte dentro da lógica do
desenvolvimento examinada, se caracteriza pela concepção da noção de alma,
deuses e demônios, que implica na concepção de poderes sobrenaturais. Os
objetos e os seres são habitados ou possuídos por uma entidade sobrenatural,
porém não metafísica. Os seres são animados por uma alma.
A noção de alma aqui não atingiu nenhuma conotação metafísica; de fato,
sempre conceberam a alma como algo material, como um duplo. O entendimento
e o desenvolvimento das crenças em duplos se formou basicamente de maneira
empírica, fruto das experiências dos sonhos, dos delírios que podem serentendidos como transe, e sobretudo, da experiência da morte. A experiência dos
sonhos sugeria uma atividade da vida extra-corpo. Não só os sonhos, os delírios
e a morte proporcionavam a noção de um duplo, mas também a imagem refletida
permitia a idéia de uma entidade extra-corpo, seja ela a sombra “negra” (sombra
26 Exemplificaremos esses casos no decorrer deste capítulo.
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como a entendemos normalmente) ou a sombra “clara” (entendida como reflexo
em espelhos).
Os deuses e demônios concebidos neste estágio eram de natureza
momentânea, existiam enquanto o fenômeno a eles atribuídos ainda mantinha
algum impacto sobre a comunidade. No entanto, o aspecto de maior destaque do
ponto de vista cognitivo se refere à separação entre objetos concretos e à idéia de
uma entidade sobrenatural que atua sobre eles.
O estágio seguinte é o simbolismo, que representa uma transformação
significativa de complexificação da relação dos homens com a divindade. Os
objetos concretos passam a agregar valores para além de seus atributos naturais;
coisa e conceito são separados neste estágio.
O aspecto específico de todo esse desenvolvimento não é, em primeiro
lugar, a pessoalidade ou a impessoalidade ou suprapessoalidade dos poderes
“supra-sensíveis”, mas o fato de não serem apenas coisas e fenômenos que
existem e acontecem que desempenham um papel importante na vida, como
também aqueles que significam algo, - e precisamente por isso (WEBER,
2000: 282. grifo meu).
Os objetos são usados nos cultos exclusivamente pelo símbolo atribuído a
eles, e passam a ser uma maneira de agir “diretamente” sobre forças
sobrenaturais. Se antes a coação dos espíritos dependia de sua manifestação
nos homens e nas coisas, agora já se pode agir “diretamente” sobre eles através
de símbolos.
O simbolismo além de representar um salto cognitivo que “ampliou” a
capacidade do homem de controlar o universo a sua volta, também atendeu ainteresses econômicos específicos. O impasse econômico causado pelo tabu do
luto, que proibia o uso dos utensílios, mulheres e criados do morto, (que em
alguns casos eram enterrados junto ao morto), no afã de não causar nenhuma
maldição lançada pelo morto, foi sanado em parte pelo simbolismo. Agora,
bonecos e outros aparatos simbólicos representavam os bens do morto e eram
enterrados no lugar dos objetos reais. O dinheiro inventado na China, que
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primeiro pertenceu ao “mundo dos mortos” para depois adentrar o “mundo dos
vivos”, simbolizava a riqueza do morto a ser enterrada junto dele.(WEBER, 2000)
A passagem de um estágio cognitivo a outro, quando analisado
concretamente na história, é dificilmente detectado devido às sutilezas que os
separam.(WEBER, 2000) Distinguir nitidamente o que é simbólico do que é
natural seria quase o mesmo que conseguir traçar os limites entre a cultura e a
natureza. No entanto, a divisão exposta apenas reforça a metodologia de uso de
tipos ideais e de uma análise da lógica do desenvolvimento.
Magia e modernidade
Mesmo afirmando que a magia possui um caráter religioso universal e por
conta disso estará sempre presente nas sociedades – a despeito das camadas
intelectuais e elites sacerdotais que sempre mantiveram contínuo combate a
estas manifestações –, a sociologia de Weber, mesmo reconhecendo sua
perenidade, não atribui lugar de destaque à magia na modernidade. Sendo a
magia entendida como uma religiosidade típica das camadas camponesas, logo
perderia espaço frente à vertiginosa urbanização do mundo e do longo processo
de desmagificação do mundo iniciado no judaísmo antigo27. Em vista disso uma
nova questão se nos apresenta: como analisar a religiosidade mágica que
continua presente na contemporaneidade em uma nova configuração social que
abrange transformações de vários aspectos, tais como, geográficos, históricos,
econômicos etc? Um novo estrato social surgido na sociedade de massa da
modernidade, a saber, os grupos que habitam a periferia das grandes cidades das
cercanias da modernidade, possibilita-nos uma apreciação deste quadro inédito.
Na sociologia da religião de Weber a reconstrução histórica que leva aoentendimento das diversas formas de religiosidade teve como objetivo central a
compreensão da ação típica do mundo moderno ocidental, como afirmamos no
27 Algumas interpretações apressadas atribuem erroneamente à Weber a marca positivista da afirmação dodesaparecimento das religiões na modernidade. No entanto, a sociologia de Weber além de não pretenderfazer previsões a respeito do desenvolvimento histórico, nunca tomou a racionalidade como a expressãoúnica do homem moderno permitindo espaço para transformações na dinâmica pessoal. O que Weberdiagnosticou como uma marca tendencial das sociedades modernas foi o afastamento da religião da vida pública pra ser algo pertencente somente
à vida privada.
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início deste capítulo. Em vista disso a reconstrução e compreensão da cognição
mágica se fizeram em virtude da análise evolutiva e do seu caráter comparativo
ao agir moderno ocidental. Todavia, ao contrário de Weber, nossos interesses na
reconstrução da cognição mágica têm em vista a compreensão de certos tipos de
ação presentes no mundo moderno ocidental que são de certa forma orientados
pela magia, diferentemente de como pensou Weber. Em nosso ponto de vista
este tipo de ação que em parte é orientada pela magia continua presente na
contemporaneidade, como resultado de todo um processo de religiogênese
alternativo ao analisado por Weber 28, em especial na religiosidade de massa das
sociedades modernas periféricas.
Almejamos utilizar a formulação ideal típica de referenciais cognitivos
contidos na magia para compreender processos de modernização seletiva como é
o caso brasileiro, onde a modernidade penetrou de forma diversa nos variados
segmentos da sociedade.29A questão que se nos apresenta — e que não
pretendemos responder neste trabalho, mas apenas apontar para as primeiras
hipóteses — é a de explicar a relação entre a agência humana dentro de
sociedades onde as instituições e os valores centrais são genuinamente
modernos, — tais como o estado democrático, o mercado capitalista
desenvolvido, o sistema jurídico complexo entre outros exemplos —, mas que, no
entanto, parte dessa população opera a partir de referenciais contidos na
cognição mágica do mundo, e investigar como estas instituições modernas foram
geradas num contexto de cognição mágica do mundo. Desse modo, analisaremos
as contradições lógicas tematizadas a partir do neo-evolucionismo de Weber-
Schluchter entre uma sociedade moderna possuidora de um capitalismo de
sucesso, mas que a cognição mágica é um traço fundamental de seu
desenvolvimento.
28 Cf. BELLAH, Robert. Tokugawa Religion: the cultural roots of modern Japan. New York: The FreePress, 1985. e SANTOS, Eurico G. C. dos. Política e Magia (na cultura brasileira e) no DistritoFederal. In:_______ARAÚJO, Caetano E. P. de . . .[et. al.] Org. Política e Valores. Brasília: Ed. UnB,2000.
29 Cf. SOUZA, Jessé. Modernização Seletiva: Uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 2000.
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Inúmeros são os impactos resultantes das relações da cognição mágica
com o funcionamento das instituições modernas, tema que iremos desenvolver de
maneira mais acurada no capítulo V e também no anexo.
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Capítulo III:Uma análise do conceito de “racionalização” em Max Weber
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Uma análise do conceito de “racionalização” em Max Weber
Introdução
O rompimento com a percepção mágica do mundo inicia e acelera-se a
partir do avanço do processo de racionalização. Desmagificação30
(Entzauberung) e racionalização caminham lado a lado, embora não possam ser
confundidos, pois eles são processos distintos. O processo de racionalização é
determinante na formação das etapas cognitivas que sucedem o monismo mágico
na lógica do desenvolvimento aqui apresentada, daí a importância de
desenvolvermos este conceito antes de adentrarmos nas explicações de outros
sistemas no interior desta lógica do desenvolvimento.
O conceito de racionalização é sem dúvida alguma, um dos pontos mais
fundamentais do pensamento weberiano, pois através dele perpassam os
grandes temas de sua sociologia, desde o “sentido da ação social” até a
“singularidade do desenvolvimento ocidental”, como também é basilar para as
explicações na sua sociologia da religião. Mas nem por isso a definição deste
conceito aparece descrita de forma detalhada e definitiva em algum momento
específico de seu trabalho; ao contrário, o conceito de racionalização se constrói
ao longo de sua obra, deixando-se entrever em meio a outros temas e também se
confundindo com outros conceitos. Isto acontece com os conceitos de
racionalidade e racionalismo. Devido a não sistematização clara do conceito de
racionalização, sua interpretação seguiu caminhos diferentes dentre os diversos
pensadores que se lançaram na difícil tarefa de defini-lo.
Neste capítulo não é nossa pretensão estabelecer uma última palavra a
respeito do tema, mas apenas apresentar algumas interpretações importantes,analisá-las brevemente e em seguida explicitar o caminho que percorremos e
valorizamos, em detrimento de outros, dentro da obra de Max Weber para a
30 Adotamos o neologismo desmagificação ao contrário do costumeiro desencantamento como tradução dotermo alemão “Entzauberung”, por achar que este expressa melhor o sentido buscado por Weber ao cunhareste conceito. Desmagificação deixa claro que Weber se refere a um processo iniciado no mundo antigo, mais precisamente no judaísmo antigo, e não um conceito que se referiria apenas a modernidade como costuma ser
utilizado erroneamente por muitos autores que adotam o termo desencantamento.
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interpretação deste conceito e, a partir disto, deixar claro o que queremos dizer
quando utilizamos o termo racionalização.
Ressaltamos também que, apesar de mencionar conceitos que estão
imbricados ao conceito de racionalização, tais como os de racionalismo e
racionalidade não será nossa tarefa, ao menos neste momento, deter-nos mais
atentamente nestes. Utilizaremos os conceitos de racionalismo e racionalidade
apenas como instrumentos que nos auxiliem entender o conceito de
racionalização, sem que estes ocupem a centralidade de nossa empreitada.
Para esta análise elegemos importantes intérpretes do pensamento
weberiano, tanto em escala nacional como internacional. Primeiramente
analisaremos como J. Habermas define o conceito de racionalização em Weber,
no livro “Ciência e técnica como Ideologia”; em seguida, nos deteremos a
examinar como H. Marcuse realiza esta tarefa, a partir da exposição de Habermas
no mesmo texto citado acima. Posteriormente, concentrar-nos-emos num dos
mais importantes intérpretes de Weber no Brasil, Gabriel Cohn, em especial o
prefácio da tradução de “Os fundamentos racionais e sociológicos da música” em
que este pensador se propõe definir o conceito de racionalização. Ainda
utilizaremos a socióloga americana Ann Swidler, em um artigo (The Concept of
Rationality in the Work of Max Weber ) em que esta pretende definir os conceitos
de racionalidade, racionalismo e racionalização na obra de Weber. E por último,
analisaremos este conceito através do pensamento de um importante
weberianista contemporâneo, Wolfgang Schluchter, e de seu interlocutor no
Brasil, Jessé Souza.
Racionalização em Habermas31
e Marcuse
Na conferência proferida por Habermas em virtude dos 70 anos de Hebert
Marcuse, intitulada “Técnica e Ciência como Ideologia”, Habermas expõe tanto a
31 Neste capítulo utilizamos apenas a exposição de Habermas sobre o conceito de racionalização no texto“Técnica e Ciência como Ideologia” publicado no ano de 1968, sem levar em conta a revisão do conceito deracionalização feita por Habermas no seu principal livro: “Teoria da ação comunicativa” publicado nadécada de 1980 em que este autor se apropria de maneira diferente das idéias weberianas, supostamente
influenciado por Wolfgang Schluchter que foi seu interlocutor muito próximo neste período.
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sua interpretação a respeito do conceito de racionalização em Weber, como
também a interpretação que Marcuse faz do mesmo conceito.
Habermas começa destacando o papel exercido pelo processo de
racionalização. Segundo ele, este conceito representa a penetração cada vez
maior da ciência e da técnica nos diversos setores da vida, tais como a ampliação
de determinadas instituições, como a industrialização do trabalho social, do direito
privado, da economia capitalista, entre outras. Em vista disso fica claro que
Habermas define a racionalização no tempo e no espaço, atribuindo a este
processo como um papel singular no mundo moderno ocidental.
Max Weber introduziu o conceito de “racionalidade” a fim de determinar a
forma de atividade econômica capitalista, das relações do direito privado
burguesas e da dominação burocrática. Racionalização significa, em primeiro
lugar, a ampliação das esferas sociais que ficam submetidas aos critérios da
decisão racional. . .A “racionalização” progressiva da sociedade está ligada à
institucionalização do progresso científico e técnico. (HABERMAS, 1983: 313)
Na sua definição do conceito de racionalização, Habermas também aponta
para uma outra característica que segundo sua interpretação seria fundamental
para o entendimento deste conceito, que corresponde à esfera da agência
humana. Para este pensador, racionalização se define pela orientação da agência
humana mediante um sistema racional-com-respeito-a-fins. Há nesta sentença
uma valorização da dimensão utilitária da vida, cuja compreensão de
racionalidade é somente dirigida para uma racionalidade instrumental, ou seja, um
meio eficiente e pragmático para o alcance de metas mais imediatas. Embora não
nos dedicaremos às críticas neste momento, vale ressaltar que esta compreensãodesconsidera a utilização da ação metódica e orientada por um sistema de idéias
voltado para fins não instrumentais, tais como a busca pela salvação, onde as
metas não seriam, por exemplo, simplesmente a obtenção eficiente do lucro ou do
controle da ação por meios jurídicos, mas sim, metas direcionadas à valores:
. . . a industrialização do trabalho social, com a conseqüência de que os
padrões da ação instrumental penetram também em outros domínios da vida (
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urbanização dos modos de viver, tecnização dos transportes e da comunicação).
Trata-se, em ambos os casos, da propagação do tipo de agir racional-com-
respeito-a-fins. . . (HABERMAS, 1983: 313)
Muito próximo de Habermas, já que este último herda parte de sua
interpretação weberiana da Escola de Frankfurt, Marcuse também concebe a
racionalização como um processo típico da modernidade, relacionado à técnica e
à ciência, e também como o agente propulsor da radicalização da ação
instrumental. Porém, em sua interpretação, Marcuse confere um outro vigor a esta
instrumentalidade, ressaltando seu impacto na dimensão política da vida.
A “racionalização” de Max Weber não é apenas um processo a longo prazo
de modificação das estruturas sociais, mas é ao mesmo tempo “racionalização”
no sentido de Freud: o verdadeiro motivo, a manutenção de uma dominação
objetivamente caduca, é encoberto pela invocação dos imperativos técnicos. Essa
invocação só é possível porque a racionalidade da ciência e da técnica já é, de
modo imanente, uma racionalidade de manipulação, uma racionalidade de
dominação. (HABERMAS citando Marcuse, 316)
Propondo-se a chegar a pontos que, segundo ele, Weber não percebeu
neste processo, Marcuse envereda por outros caminhos para dar sua
interpretação do conceito de racionalização. Segundo Marcuse há um lado oculto
e perverso inerente a este processo que se manifesta na conseqüente dominação
do próprio homem, sendo assim um efeito inevitável. Para esse frankfurtiano da
primeira geração, por trás da ideologia do progresso da técnica e da ciência se
esconde um meio eficaz de controle e engessamento de libertação política, quede certo modo deve sua eficácia justamente ao caráter oculto em que se
encontra. Dominação não seria uma contingência, um desvio acidental do projeto
da “razão”, mas sim um resultado inevitável de seu engendramento. Neste
sentido, racionalidade é necessariamente técnica, método de controle, que
acelera vertiginosamente a produção, aumenta o controle operado pelo Estado,
estabiliza o sistema vigente e, por outro lado, massacra os indivíduos sufocando
seus meios de libertação política.
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Marcuse está convencido de que, no processo que Max Weber chamou de
“racionalização”, dissemina-se não a racionalidade como tal, mas, em seu nome,
uma determinada forma inconfessada de dominação política. (HABERMAS, 1983:
313)
Enfim, poderíamos afirmar que para Marcuse racionalização se refere à
otimização da dominação mediante a eficácia da racionalidade; racionalização é
antes de mais nada o marco do controle racional e metódico exercido sobre os
indivíduos. Na era da racionalização (leia-se modernidade na interpretação
frankfurtiana) o sistema conta com a calculabilidade da racionalidade para
perpetrar sua dominação sobre os indivíduos.
O conceito de “ racionalização” segundo Gabriel Cohn
No prefácio feito para a tradução brasileira de “Os fundamentos racionais
da sociologia da música”, livro de Max Weber, Gabriel Cohn ressalta a
importância explicativa de assuntos supostamente periféricos na obra de Weber
para a compreensão de conceitos que formam o pilar do construto weberiano. No
caso em questão, a sociologia da música, obra a qual prefaciava. Cohn ressalta a
validade desta análise para a compreensão do conceito de racionalização,
demonstrando como o que poderia ser percebido como um hobby ou mesmo um
diletantismo elucida pontos fundamentais de toda obra.
Na aproximação que Cohn faz entre racionalização e a sociologia da
música de Weber, destacando o desenvolvimento singular da música ocidental e
o processo na qual esta está inserida, chega a afirmar que a racionalização seriavista por Weber como o traço específico da modernidade. Esta afirmação o
aproxima da interpretação frankfurtiana que também atrela a racionalização à
modernidade; no entanto Cohn visa esclarecer um pouco mais este conceito.
Enquanto os primeiros autores circunscrevem este conceito à ação puramente
instrumental centrada no sistema racional-com-respeito-a-fins, transpondo a
lógica do mercado capitalista para todas esferas da ação, Cohn alarga a
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dimensão deste conceito alocando-o também na esfera que Weber chamara de
estética.
Em seqüência, o intérprete brasileiro faz questão de ressaltar que
racionalização e, por conseguinte, ações racionalmente orientadas, não estão
estritamente atreladas às ações que melhor alcançam o fim desejado, já que esta
afirmação torna-se pouco explicativa devido a sua generalidade32. O que será
eleito por ele como ponto nodal deste conceito é a noção de diferenciação de
linhas de ação regidas pela racionalidade que, por seu lado são as principais
conseqüências do processo de racionalização.
Cohn destaca que para o entendimento deste conceito é fundamental
tomá-lo como algo que está diretamente relacionado à ação, e ao mesmo tempo
percebendo que não se trata da ação em si, mas sim o que permite a execução
da ação racionalizada. Para comprovar esta afirmação, o autor apresenta
exemplos onde se demonstra que a ação está submetida a regras prévias, e
estas regras específicas são resultado da sistematização das diferentes linhas da
ação. Em outros momentos do texto, Gabriel Cohn utiliza o termo processo para
designar a racionalização, atestando desse modo que não se trata de um fato
concreto e isolado.
Racionalização é o processo que confere significado à diferenciação de
linhas de ação. É ela que abre o caminho para o exercício da ação racional e
enseja a sua crescente e, logo, irreverssível expansão (COHN, 1995:17).
Este processo de autonomização das esferas, ou seja, de clara distinção
entre esferas da ação como: o direito, a ciência, a religião, a economia etc.
decorre justamente da especialização da ação em áreas nitidamente separadas,que passariam a responder por uma lógica interna e diferenciada das outras.
Gabriel Cohn sustenta que é a partir do desenvolvimento da racionalização que
surgem os conceitos weberianos de afinidades eletivas e tensões; as linhas de
ações desenvolvidas no interior de determinadas esferas estão em oposição
direta (tensões) ou desfrutam de tendências combinatórias (afinidades). Estes
32 A respeito da generalidade desta afirmação voltaremos a falar mais detalhadamente.
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conceitos surgem em decorrência do fato da impossibilidade da existência de
tensões ou afinidades anteriores a este desenvolvimento, já que não havia
distinções significativas entres as esferas da ação. A exemplo disto, num mundo
dominado pela ação mágica, as ações religiosas e econômicas não são
reconhecidas como diferentes ou mesmo praticadas separadamente33:
. . .a ação orientada pela magia se mistura à orientada pelo saber técnico,
a arte se mescla à religião e esta à ciência, e assim por diante, numa situação em
que as mais diversas orientações se apresentam simultaneamente para a ação,
sem que haja como nem por que se distinguir claramente entre elas. (COHN,13
1995)
Gabriel Cohn ainda explica que a racionalização ocorre em dois níveis
diferentes, um de caráter interno e outro de caráter externo. Sendo o externo
(histórico-estrutural) a formação das diversas linhas da ação e, o segundo, a
diferenciação interna dentro das linhas de ações. A título de exemplo poderíamos
citar a diferenciação das linhas de ação religiosa e econômica, e ainda outras
diferenciações no interior destas linhas, como por exemplo as religiões de caráter
dualista intramundano, como é o caso do protestantismo34; e as religiões
dualistas transcendentes, como é o caso do catolicismo, e, dentro da esfera
econômica, os diversos sistemas de produção.
Nesta interpretação destacamos a definição da racionalização nas palavras
do próprio Cohn, ou seja, o processo que enseja a prevalência da condução
racional da ação, com destaque para a valorização do conteúdo das
diferenciações das linhas de ação como o que caracteriza a modernidade.
Ann Swid ler , a def in ição dos conceitos weberianos
Ann Swidler se debruça sobre os vários sentidos tomados por Weber
quando este se refere à conceitos relacionados à racionalidade. Em seu artigo ela
procura simplificar o emaranhado destes conceitos para nos oferecer uma relativa
33 A definição de ação mágica se encontra no capítulo anterior.34 Trataremos destas diferenciações de maneira mais acurada em outro capítulo.
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segurança e homogeneidade quando nos lançamos na árdua tarefa de penetrar o
universo teórico weberiano. O primeiro desafio se apresenta quando tentamos
nos esquivar da generalidade que as palavras que circundam o conceito de razão
pode nos conduzir, ou seja, o sentido destes conceitos se restringiria à palavra
eficácia. A interpretação habermasiana por vezes beira a esta concepção, pois
segundo ele o processo de racionalização teria como característica principal a
eficácia como valor absoluto, tendo como seus arautos a ciência e a técnica.
Gabriel Cohn em seu trabalho faz questão de ressaltar que racionalização
e, por conseguinte, as ações racionalmente orientadas, não estão estritamente
atreladas a ações que melhor alcançam o fim desejado, já que esta concepção
beira a ingenuidade, esbarrando tanto na generalidade quanto na relatividade que
esta afirmação implica. O próprio Weber apresenta exemplos de como é relativa,
tanto histórica quanto culturalmente, a noção de ações mais eficazes para o
alcance de determinados fins. Segundo Weber até mesmo o pensamento mágico
tem um comportamento relativamente racional.
A ação religiosa ou magicamente motivada é, ademais, precisamente em
sua forma primordial, uma ação racional, pelo menos relativamente: ainda que
não seja necessariamente uma ação orientada por meios e fins, orienta-se, pelo
menos, pelas regras da experiência. . .A ação ou o pensamento religioso ou
“mágico” não pode ser apartado, portanto, do círculo das ações cotidianas ligadas
a um fim, uma vez que também seus próprios fins são, em sua grande maioria de
natureza econômica (WEBER, 2000; 279, grifo meu).
A simples afirmação baseada na dinâmica de que ações que almejam um
determinado fim e procuram os melhores meios para o alcance da metapretendida não é suficiente para a compreensão do conceito de racionalização (já
que a maioria das ações humanas em qualquer época histórica tendem a
proceder assim). Esta afirmação serviria apenas para entendermos aquilo Ann
Swidler chama de racionalismo35, ou seja, atitude de orientação pragmática para
35 Não é nossa proposta discutir com profundidade os conceitos de racionalidade e racionalismo, mas vale
ressaltar que aquilo que Ann Swidler chama de racionalismo talvez seria melhor definido por um termo como
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a obtenção de metas 36 (SWIDLER). No entanto, é importante diferenciar estas
ações daquelas que estão submetidas a um sistema de ação racional-com-
respeito-a-fins, pois estas ações, que para além de simples regras da experiência,
estão submetidas a um sistema de idéias que as controla. Vale ressaltar que o
controle destas ações, ou mesmo aquilo que as motiva, não é uma tendência
natural, mas sim o resultado de um sistema elaborado de idéias que determina
sua ação. É a partir da explicação e da percepção deste sistema que Ann Swidler
desenvolve sua interpretação.
A partir da análise de Ann Swidler penetramos um outro momento de nosso
trabalho, cuja interpretação do conceito de racionalização toma caminhos que
guardam marcantes diferenças em relação aos pensadores já expostos. Podemos
afirmar que há uma clara distinção entre aqueles que tomam os Ensaios reunidos
de sociologia da religião (Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie) de
Weber para analisar este conceito, como é o caso de Ann Swidler e Wolfgang
Schluchter, levando em conta principalmente o texto conhecido como A psicologia
social das religiões37, enquanto os primeiros valorizam os aspectos da
modernidade, tendo por base, ao que nos parece, a introdução da Ética
protestante e o espírito do capitalismo. Esta variedade de escolhas implicou nas
distintas concepções do conceito de racionalização, principalmente no que se
refere ao seu lugar na história. Ainda poderíamos dizer que os diferentes
caminhos interpretativos se dividem entre aqueles que partem da análise do
surgimento do processo de racionalização (a psicologia social das religiões) e
aqueles outros que analisam o ponto de seu suposto cume, ou seja, o mundo
moderno ocidental (introdução da Ética protestante e o espírito do capitalismo).
Também poderíamos elencar um outro texto dos Ensaios reunidos de sociologia
da religião como fonte de suma importância para o entendimento do conceito deracionalização que parece ter servido de importante fonte para Gabriel Cohn, a
saber, Rejeições religiosas do mundo e suas direções (Zwischenbetrachtung),
texto colocado em apêndice ao volume I dos ensaios, que trata da direção da
racionalidade natural ou prática, baseada na experiência, já que racionalismo representa aquilo quechamaremos de racionalismo ocidental.36 Rationalism is an attitude of pragmatic orientation to the attainment of goals. SWIDLER, Ann. Theconcept of Rationality in the Work of Max Weber . In_______: Sociological Inquiry journal.
37 Também conhecido como a introdução de A ética econômica das religiões mundiais.
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racionalização em esferas específicas (texto este também citado por Leopoldo
Waizbort38) e considerado como o mais importante para a compreensão deste
conceito.
Quanto à análise dos intérpretes que partem da introdução da Ética
protestante e o espírito do capitalismo, ou como também poderíamos identificar
como a introdução do volume I dos Ensaios reunidos de sociologia da Religião
(Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie), tomando a modernidade como
ponto de partida para a interpretação deste conceito, o que merece destaque para
nossa análise é a determinação de Weber em demonstrar a singularidade do
ocidente, ressaltando como determinados aspectos culturais desenvolveram-se
somente nele. Esses aspectos, como o próprio Weber afirma, são em grande
parte fruto da técnica pois, com efeito, sua racionalidade é hoje essencialmente
dependente da calculabilidade dos fatores técnicos mais importantes (WEBER,
2002). Em vários trechos é destacado não a singularidade da racionalização
como um todo, mas sim a singularidade da racionalização que se desenvolveu no
ocidente, eis aí portanto, a nosso ver, o ponto nevrálgico desta escolha
interpretativa.
Para continuar este debate o trecho citado abaixo, presente na introdução
d’ A ética, aparece como um ponto nodal para esta discussão:
Por que nestes lugares não ocorreu nem desenvolvimento científico, nem
arte, nem do Estado nem da economia por esses caminhos de racionalização que
é peculiar ao ocidente? Porque é evidente que, em todos os casos mencionados,
se trata de um racionalismo de tipo específico da cultura ocidental. (WEBER, Vol.
I, 20: 2001)39
38 WEBER, Max. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. Tradução, introdução e notas deLeopoldo Waizbort e prefácio de Gabriel Cohn. São Paulo, Edusp, 1995.
39 Por qué en estos lugares no encaminaron ni la evolución científica ni el desarrollo de la ciencia, ni el delarte, ni el del estado ni el del la economía por esas sendas de la ‘racionalización’ que son características deOccidente?Pues es evidente que, en todos los casos mencionados, se trata de un ‘racionalismo’ de tipo especial de la
cultura occidental. (WEBER, Vol.I, 20: 2001)
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Quando Weber narra as especificidades do mundo moderno ocidental, da
música à arquitetura, da política à economia e principalmente a organização do
trabalho, somos levados a pensar que o conceito que explica isto mais
amplamente, e também o nomeia é o de racionalização. Logo, racionalização
torna-se quase sinônimo de modernidade ocidental e não apenas uma das
variantes de um longo processo que tem início na religião e marcam aquelas
grandes religiões que Weber chamara de as religiões mundiais (WEBER, Vol I,
2001).
Nesta questão o trabalho da socióloga americana Ann Swidler esclarece
com sucesso dois pontos distintos. Primeiro quando ela distancia o processo de
racionalização da idéia de um único caminho percorrido e que levou também
unicamente ao alcance de uma suposta “racionalidade”, que poderia ser
entendida como a racionalidade da eficácia técnica do mundo moderno ocidental.
Segundo ela, os primeiros e principais impactos do processo de racionalização se
dão na configuração de valores religiosos e visões de mundo, ou seja, na criação
de “imagens mundiais” (Weltanschauungen) como falara Weber. Enfatizamos pois
o que propusemos no início desta análise, a saber, a diferenciação histórica do
conceito de racionalização, uma vez que para esta autora não é a modernidade o
único momento que merece destaque na análise deste conceito. Várias são as
vezes em que Weber destaca a presença de uma ação racional livre de atributos
mágicos em períodos pré-modernos; temos um exemplo quando fala da ética do
judaísmo antigo:
Junto a ambas, se dava ‘uma ética religiosa do agir intramundano’, que era
altamente racional, a saber, livre da magia e de qualquer forma da busca
irracional de salvação, uma ética intrinsecamente muito isolada de todas as viasde salvação das religiões asiáticas de redenção (WEBER, Vol. III, 20 : 2001)40.
40 Junto a ambas, se daba ‘una ética religiosa del obrar intramundano’, que era altamente racional, esdicer, libre de magia y de cualquer forma de búsqueda irracional de la salvácion, una ética intrínsicamentemuy alejada de todas las vias de salvácion de las religiones asiáticas de redención (WEBER, Vol. III, 20 :2001).
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O outro aspecto também de grande importância se refere à especificidade
do mundo moderno ocidental. Na introdução da Ética protestante e o espírito do
capitalismo, notamos que Weber chama de racionalismo a vertente do processo
de racionalização que diferencia o ocidente. A percepção de um conceito claro
que especifique este desenvolvimento separando-o em parte do conceito de
racionalização é fundamental. Esta sutileza conceitual entre racionalização e
racionalismo nos permite ter uma visão mais ampla do conceito de racionalização.
Swidler também destaca esta diferença, no entanto, isto que nós atribuímos ao
conceito de racionalismo, ela atribui ao termo racionalidade. Segundo ela,
racionalidade – que nós chamaríamos de racionalismo baseados na citação
mencionada neste parágrafo – se refere à ação típica do capitalismo moderno, ou
seja, a ação racional metódica e eficiente que está submetida a um controle feito
por um sistema de idéias41.
O conceito de racionalização é definido genericamente por Ann Swidler
como uma sistematização de idéias. Assim como Gabriel Cohn, ela afirma ser o
conceito de racionalização um processo, que por seu lado, não pode ser
confundido com dados empíricos como instituições ou culturas, e muito menos
com tipos de ação social. Segundo Swidler:
Racionalização é o processo pelo qual idéias desenvolvem sua própria
lógica interna. Esta dinâmica natural ajuda a dar às idéias autonomia e
estabilidade obtendo influência independente de outros fatores da vida . . . para
Weber racionalização foi um processo geral que ocorreu em diferentes esferas da
vida em diferentes períodos históricos sem produzir um único fator da
“racionalidade”..42 ( SWIDLER, )
41 Todavia, como explicitamos no início deste capítulo, não nos deteremos profundamente nos conceitos deracionalismo e racionalidade, devido a isto não nos aprofundaremos na discussão sobre qual melhor termo para destacar a singularidade do ocidente, apenas destacamos a importância desta percepção como umartifício interpretativo para o conceito de racionalização.
42 Rationalization is the process by which ideas developed their own internal logic. This natural dynamichelps to give ideas the autonomy and stability to have independent influence on other aspects of social life. . . for Weber rationalization was a general process which occurred in many different spheres of life in differenthistorical periods without producing the unique features of “rationality”. (SWIDLER, )
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A definição de Ann Swidler nos permite uma compreensão deste conceito
que figura entre os mais importantes, ou talvez o mais importante dentro da lógica
interna de evolução cognitiva, cujas idéias passam a ter um valor em si mesmas,
e assim tornam-se parcialmente independentes das necessidades da vida
econômica. A doação de sentido ao mundo extravasa o círculo das necessidades,
nisto configurando-se uma revolução cognitiva da coletividade, pois a partir da
instauração do processo de racionalização o mundo “toma” outras formas e
“novas dimensões”. Para entender esta dinâmica de maneira mais acurada faz-se
necessário lançar mão da interpretação neo-evolucionista da sociologia da
religião weberiana desenvolvida por Wolfgang Schluchter, em que a exposição de
um desenvolvimento dentro de etapas cognitivas, delineando assim uma lógica do
desenvolvimento (Entwicklungslogik), surge como importante instrumento de
análise.
O conceito de racionalização à luz da lógica do desenvolvimento de
Schluchter
A reconstrução da sociologia weberiana feita por W. Schluchter se destaca
como uma alternativa às interpretações clássicas de Reinhard Bendix, Guenther
Roth e Johannes Wickelmann marcadas por seu anti-evolucionismo, como
também, ao evolucionismo de Friedrich Tenbruck. Schluchter sistematiza o
desenvolvimento da agência humana a partir de etapas cognitivas, sem com isso
apresentar uma dinâmica determinada para os acontecimentos vindouros
(evolucionismo), mas tão somente uma lógica do desenvolvimento ocorrido até o
mundo moderno ocidental (neo-evolucionismo), enriquecendo assim a explicação
da grande questão de Weber que se refere à singularidade do mundo modernoocidental (SCHLUCHTER, 1985).
Para tratar do conceito de racionalização à luz desta tese, lançaremos mão
do livro de Jessé Souza, fruto de sua tese de doutorado43: Patologias da
Modernidade: um diálogo entre Habermas e Weber , mais precisamente da
primeira parte do capítulo II onde este trata do desenvolvimento ocidental
43 Jessé Souza foi orientado no seu doutoramento por Wolfgang Schluchter.
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segundo Max Weber, apresentando as principais etapas cognitivas do
desenvolvimento do ocidente e, por conseguinte a lógica deste desenvolvimento.
A especificação e o detalhamento destas etapas cognitivas não serão
desenvolvidos aqui, visto que o que nos interessa presentemente é a análise de
qual momento nesta lógica em que o processo de racionalização inicia seu
desenvolvimento de maneira mais acelerada, ou seja, estudar qual salto cognitivo
permitiu uma maior eficácia social a este processo.
O surgimento do simbolismo44 -- em que se distingue coisa de conceito,
possuindo o conceito uma autonomia em relação à coisa, sendo, ao mesmo
tempo, dotado de valor próprio --, é um passo muito importante para o processo
de racionalização. No entanto, o salto mais fundamental (decorrente do
simbolismo) refere-se à reelaboração permitida pela interpretação do papel do
sofrimento na vida do Homem, e que ocorre de maneira mais destacada nas
etapas cognitivas seguintes. É a partir daquilo que Weber chamará de “teodicéia
do sofrimento” que poderíamos denotar o início da “era de ouro” do processo de
racionalização.
Um passo seguinte consuma-se com a construção de mitos de salvação
continuado, os quais permitem, pelo menos tendencialmente, uma interpretação
racional do sofrimento. . . De uma maneira geral, foi formada a partir dessas
esperanças de redenção uma “teodicéia do sofrimento”. . . (SOUZA, 60: 1997).
O sofrimento, anteriormente interpretado a partir de sua concretude, de
suas impressões mais imediatas como a dor e seu desconforto, era tido — e não
poderia ser diferente num mundo pré-simbólico – como um sinal de desgraça; em
vista disto a participação de doentes no culto era proibida no intento de nãocausar uma ofensa aos deuses. Agora, com o sofrimento ganhando positividade,
os valores são invertidos. O sofrimento passa a ser o sinal de uma missão a ser
recompensada num “outro mundo”. Esta característica principal das religiões de
salvação está sustentada pelo pano de fundo cognitivo de um mundo dual e
44 Sobre estes pontos ver discussão feita no capítulo sobre a cognição mágica.
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transcendente, em que as ações estão dirigidas por um sistema de idéias voltado
para o mundo do “mais além”.
O mundo “real” passa a ser desvalorizado em relação ao mundo do “mais
além”, e essa desvalorização deste mundo abre as portas para as rejeições
religiosas do mundo (WEBER, 2001); a esfera religiosa ganha um universo
simbólico próprio que entra em tensão com outras esferas que até então
pertenciam ao mesmo universo. Neste momento começa a se configurar o
processo de autonomização das esferas da ação, um dos pilares básicos do
processo de racionalização, que já tratamos mais detalhadamente quando
apresentamos a interpretação de Gabriel Cohn.
Na exposição que fizemos da interpretação de Wolfgang Schluchter
atentamos não para o detalhamento do conceito de racionalização em si, mas
para o ponto principal da gênese deste processo, em que pode ficar claro a
dimensão do mesmo e sua origem predominante na esfera religiosa, como um
fundamento para doar sentido ao mundo e aos seus desequilíbrios na
“distribuição” do sofrimento. A visão de mundo dualista transcendente, marcada
por uma metafísica racional, interpreta o mundo como um cosmos pleno de
sentido e eticamente regulado por punições e recompensas no “mais além”,
exigindo assim sistemas racionais complexos que dirijam todas as ações neste
mundo, independentemente da esfera que esta ação se aplique.
Mediante este quadro, os sistemas avaliativos da ação se direcionam para
sistemas cada vez mais abstratos (SCHLUCHTER, 1985), mediados por
conjuntos organizados de idéias (processo de racionalização), se distanciando de
avaliações baseadas nas relações imediatas com o mundo e com as
necessidades impostas pela natureza.
Conclusão
O conceito de racionalização criticamente apresentado aqui ilumina toda a
trajetória do pensamento de Max Weber e, principalmente o ponto de nosso maior
interesse, a sua sociologia da religião. Sem intentar oferecer uma explicação geral
do desenvolvimento das sociedades (ou apenas do Ocidente), o conceito de
racionalização explica em grande parte a dinâmica das idéias na formação do
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desenvolvimento societário e mais especificamente — como foi a intenção de
Weber — do mundo moderno ocidental. Ao lado deste conceito figura o conceito
de desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), que também poderia
ser entendido como uma conseqüência do processo de racionalização, mas
também muito eficaz como instrumento interpretativo do desenvolvimento
ocidental.
Em relação aos nossos interesses principais nesta dissertação, ou seja, o
entendimento da dinâmica das idéias no interior da sociologia da religião de Max
Weber como base para interpretar a agência humana em sociedades periféricas
do sistema capitalista, o conceito de racionalização nos oferece a base para o
início da discussão, apontando os fundamentos da lógica desenvolvimental das
idéias e sua relação com o direcionamento da ação. Elucida, ao menos
preliminarmente, como transformações ou revoluções cognitivas, no caso em
questão a interpretação do sofrimento, influenciam determinantemente na
configuração do mundo e, por conseguinte, na relação com esse mundo,
sobretudo naquilo que almejamos entender: qual sentido que conferimos ao
mundo e às nossas demandas.
Essa reinterpretação do sofrimento representou a abertura de novas
possibilidades de organização cognitiva do mundo, baseada em grandes
teodicéias do sofrimento cuja recompensa por este pesar estaria sempre no “mais
além”. Neste sentido, as ações voltaram-se cada vez para este “outro mundo”,
que aos poucos foi ganhando plena independência em relação ao mundo
concreto. Com a decadência do monismo mágico o mundo cindia-se em dois,
sendo o mundo transcendente a fonte valorativa em detrimento do mundo
concreto; a cognição do mundo iria delinear-se nos moldes de um dualismo
transcendente, tema central do próximo capítulo.
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Capítulo IV:
A era dos dualismos: apontamentos sobre as concepções dualistatranscendente e imanente
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A era dos dual ismos: apontamentos sobre as concepções dualistatranscendente e imanente
“De que serve a mim a
multidão das vossasvítimas? Diz o Senhor. Jáestou farto de holocaustosde cordeiros e da gordurade novilhos cevados. Eunão quero sangue detouros e de bodes... Denada serve trazeroferendas; tenho horror a
fumaça dos sacrifícios...Cessai de fazer o mal,
aprendei a fazer o bem. Respeitai o direito, protegei o oprimido...”(ISAIAS, Cap. I: 11-20)
Introdução
As possibilidades cognitivas iniciadas a partir do advento do Simbolismo 45
transformaram radicalmente a relação do homem tanto com o mundo quantoconsigo próprio. Esse recurso cognitivo dotou o homem de uma relativa
dominação do mundo a sua volta, dominação esta que também se estendeu
sobre um elemento central da vida: o sofrimento. Tanto animais quanto homens
pré-simbólicos estão fadados à experiência concreta do sofrimento, ou seja, a
vivência de extremo desconforto por ele causado sem que artifícios cognitivos lhe
permitam transcender aquela experiência. Neste caso, o sofrimento só pode ser
experenciado de forma passiva. A capacidade de simbolização conferiu aohomem a possibilidade de atribuir um outro sentido ao sofrimento que estivesse
para além do simples sentido negativo causado pelo desconforto da dor; este é o
ponto principal que permitiu ao homem uma relativa dominação em relação ao
mundo e sobre o sofrimento nele vivenciado46(SOUZA, 1997).
45 O que chamamos aqui de “simbolismo” refere-se tão somente à capacidade humana de simbolizar.46 O surgimento do simbolismo, embora fundamental, é apenas uma passagem para uma concepção
diferenciada a respeito do sofrimento. Os caminhos que o simbolismo tomou e os graus de abstração que ele
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Todavia, um longo processo ocorreu entre a concepção pré-simbólica ou
naturalista do sofrimento e o seu direcionamento para uma concepção simbólico-
valorativa. O sofrimento que era concebido negativamente como um sinal de
desgraça passa aos poucos a representar um caminho que conduz à salvação.
As primeiras formas de atribuição de positividade ao sofrimento ocorreram ainda
dentro de determinadas concepções mágicas, em que certas abstinências
relativas ao sono, ao sexo e à alimentação serviriam como meios para aquisição
de poderes mágicos, o que Weber denomina de ascetismo mágico (WEBER:
1982). Porém, se naquele momento, a valorização do sofrimento ainda estava
circunscrita ao universo mágico e a seus tabus, o que nos interessa neste capítulo
é perceber de que forma a valorização do sofrimento permitiu a formulação de
uma ética religiosa baseada em princípios abstratos que eram resultado da
dinâmica interna a um conjunto organizado de idéias, a despeito de tabus
mágicos que estariam limitados a produzir somente relações imediatas com o
mundo baseadas nas necessidades impostas pela natureza.
Quanto a isso, um aspecto apresenta-se como decisivo na dinâmica que
conduz para a formação de um outro sentido para o sofrimento e,
conseguintemente para uma outra cognição do mundo: este aspecto é o
aparecimento de um espaço voltado para a cura individual no culto. Se antes as
preocupações se voltavam para causas de natureza coletiva, como a
prosperidade da colheita ou a vitória nas guerras, agora, a cura de enfermidades,
o afastamento do perigo e outras formas de sofrimento individuais ganhavam
espaço na prática religiosa. Neste sentido, essa crescente atenção para
demandas individuais contribuirá de forma decisiva para a constituição de
fenômenos fundamentais que permitirão o aparecimento das grandes “teodicéias
do sofrimento”.
Os interesses materiais e ideais dos mágicos e sacerdotes podiam com
isso, na prática e de forma cada vez maior, colocar-se a serviço dos motivos
especificamente ‘plebeus’. (WEBER, 1983: 315)
alcançou variaram radicalmente de sociedade para sociedade. Neste capítulo privilegiamos o caminho
trilhado pelo ocidente.
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Uma importante mudança observada é aquela relativa ao fortalecimento de
uma determinada camada social, a saber, os magos e feiticeiros. Estes aos
poucos vão ganhando o status de “conselheiros espirituais”, de especialistas nos
problemas de ordem individual. Isto ocorreu justamente quando houve o
direcionamento do discurso religioso para atender as demandas de uma massa
de sofredores; o que não acontecia anteriormente, visto que a ação religiosa se
dirigia tão somente para causas “nobres” (coletivas). Adotava-se assim, no plano
individual, o discurso da teodicécia da felicidade em que se via legitimada a vida
das classes dominantes e dos saudáveis, sendo que estas últimas eram
percebidas como as abençoadas pela divindade, enquanto os doentes e
dominados eram percebidos como abandonados e amaldiçoados pelos deuses ou
mesmo dominados por demônios.
Em vista disso, o discurso religioso passa a receber novos contornos e, ao
mesmo tempo forma-se uma outra dinâmica de controle social em que a camada
de especialistas religiosos que foi se formando aumentava aos poucos o seu
poder. Desta forma, dois pontos de análise que estão atrelados do ponto de vista
empírico — em especial quando adotamos uma perspectiva baseada em
afinidades eletivas e não em causalidades lineares — aparecem e necessitam de
explicações separadas. O primeiro ponto se refere às transformações cognitivas
no interior do discurso religioso, ou seja, de que maneira o mundo passa a ser
interpretado a partir das novas demandas religiosas; quanto ao segundo ponto,
nos referimos ao problema da estratificação social, que aqui se apresenta com o
aparecimento de um novo estrato social (os especialistas religiosos) e de suas
respectivas técnicas de legitimação de status dentro do grupo social. Esta nova
conjuntura determina uma influência recíproca entre as duas questões
levantadas, pois que a formação de um novo estrato social resulta em demandasespecíficas que elaboram um novo sentido para o mundo que, no caso em
questão, refere-se à produção e ao controle de bens de salvação.
As transformações cogni tivas no interior do discurso rel igioso
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Quanto ao primeiro ponto citado, poderíamos afirmar que o discurso
religioso vai se transformando na medida que uma questão que perpassa toda
discussão sobre o sentido do mundo exige novas respostas. O surgimento deste
problema ocorre justamente quando se busca atender as demandas da massa
dos sofredores. A questão de que falamos está diretamente relacionada com as
exigências de explicações relativa aos critérios de distribuição de benesses e
infortúnios entre os homens, isto é, sobre as razões que justificariam o
desequilíbrio na “distribuição” do sofrimento. Em outras palavras, trata-se de uma
pergunta tecnicamente simples, mas que guarda a questão sobre o sentido da
vida: por que uns sofrem mais que outros?
Quando essa questão é dirigida a uma sociedade cujo discurso da
teodicéia da felicidade é dominante, sua resposta é relativamente simples, não é
exigida uma resposta simbolicamente sofisticada do ponto de vista cognitivo para
respondê-la. O discurso que legitima a condição privilegiada dos afortunados se
constrói a partir da confirmação da experiência concreta que lhes é dada. Neste
caso, o discurso religioso é apenas uma confirmação de que eles (os afortunados)
merecem estar naquela condição em comparação com os outros sofredores. Não
é exigido um discurso que permita a superação da realidade concreta, que por
seu lado exigira um maior sofisticação simbólica, como também outras perguntas
não são suscitadas em decorrência desta concepção, pois esta almeja apenas a
legitimação do que está dado. A condição que eles ocupam seria o resultado de
um “bom relacionamento” com os deuses, baseado principalmente no
cumprimento da pureza do ritual; um vez afirmado isso, nada mais necessitaria
ser questionado. No entanto, ocorre o contrário quando o discurso religioso se
volta para responder essa questão aos estratos desafortunados da sociedade.
A abertura do espaço no culto para a cura individual seguiu um curso dedesenvolvimento compatível com as demandas exigidas pelos sofredores que
buscavam conforto nos conselheiros tribais, e certamente das promessas feitas
pelos especialistas religiosos. O que primeiramente apenas se voltava para curas
de males momentâneos em que certas prescrições mágicas — como algumas
proibições ou sacrifícios menores etc. se apresentavam como soluções —,
evoluiu para sistemas explicativos cada vez mais sofisticados.
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A primeira ruptura aparece quando mitos da natureza evoluem para
concepção da idéia de um “redentor”, aquele que amenizaria o sofrimento das
massas e que, em um segundo momento, permitiria uma percepção relativamente
racional do sofrimento (WEBER,1982) (SOUZA,1997). Elaborou-se a idéia de um
herói que em seu retorno — que poderia ser tanto de uma aventura num lugar
ermo ou mesmo da morte — redimiria o sofrimento das massas, criando uma
saga em que as bem-aventuranças sucederiam o sofrimento. Nesta lógica, a
abertura para a cura individual no culto permitiu a formação de um projeto de
salvação messiânica coletivo, contrário a sua fase inicial individualizada.
O fator decisivo decorrente do aparecimento da figura do “redentor” se
refere ao relacionamento que a massa passa a manter com as novas divindades
concebidas. Aos poucos despontam divindades cujas exigências não mais estão
simplesmente atreladas à barganhas de demandas de curto prazo — em que os
deuses seriam coagidos magicamente —, mas sim vão surgindo relações
pautadas em exigências constituídas por pactos éticos. Desse modo, o mago e o
feiticeiro começam a perder espaço para o profeta, que é aquele que anuncia
para a massa que necessita de salvação as promessas do messias redentor, e ao
mesmo tempo instaura regras de comportamento através de mandamentos. Logo,
o não cumprimento desses mandamentos passa a ser interpretado como o
rompimento do pacto com a divindade, e isso passa a ser entendido como um
pecado, diferentemente do não seguimento da pureza do ritual que era concebida
apenas como uma ofensa mágica (WEBER, 1982)(WEBER, 2000).
Onde a crença nos espíritos é racionalizada até tornar-se uma crença nos
deuses — e portanto não há mais os espíritos que querem ser forçados pela
magia, mas sim os deuses que querem ser venerados no culto e ser objetos desúplicas — a ética mágica da crença nos espíritos transforma-se na idéia de que
aquele que infringe as normas divinas provoca o desgosto ético do deus que pôs
aquelas ordens sob sua proteção especial. (WEBER, 2000: 302)
Weber afirma que neste contexto de surgimento da religiosidade ética são
abertas as possibilidades de uma compreensão racional do sofrimento; isto ocorre
na medida em que se investiga e conseguintemente elabora-se um discurso a
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respeito dos castigos ou bem-aventuranças enviadas pela divindade. Em vista
disso uma nova lógica é formada a respeito do alcance das benesses. É neste
momento que aparece a noção de uma teodicéia do sofrimento, em que aqueles
que sofrem mas que se mantêm firmes nos preceitos morais — através dos
mandamentos, que também envolvem privações — receberão a boa fortuna no
retorno do messias, porque demonstraram a confiança nele através de um rigor
comportamental.
Com efeito, somos novamente conduzidos para a resposta à pergunta que
conduz ao eixo central do nosso argumento: como solucionar o problema do
desequilíbrio na “distribuição” do sofrimento. Weber afirma que o aumento da
explicação racional que buscava dar um sentido ético para o mundo baseado em
uma teodicéia do sofrimento gerava problemas, como demonstra na citação
abaixo:
À medida que os reflexos religiosos e éticos sobre o mundo se foram
tornando cada vez mais racionalizados, e as noções mágicas foram eliminadas, a
teodicéia do sofrimento encontrou dificuldades crescentes. Era demasiado
freqüente o sofrimento individualmente “imerecido”; não eram os “bons”, mas os
“maus” que venciam. . .(WEBER, 1982: 318).
Para resolver o problema criado por uma percepção de um mundo pleno de
sentido ético, as promessas religiosas se dirigiram para o alcance da ventura num
futuro mais distante. É por este motivo que em algumas religiões47 surge a
possibilidade das recompensas serem alcançadas em um “outro mundo” que
transcendesse a realidade do mundo material.
É neste contexto da teodicéia do sofrimento que notamos o salto cognitivoem relação a anterior teodicéia da felicidade: o mundo do “monismo mágico” é
cindido em dois, e a partir daí o que temos é a concepção de mundo “dualista
transcendente”. Essa transformação revolucionou todos os aspectos da vida do
homem. Uma vez que o mundo do mais além passa a ser o detentor do valor
47 Weber apresenta as linhas gerais dos três sistemas teológicos que orientaram as religiões sustentadas poruma teodicéia do sofrimento: Como promessas de recompensa, temos a esperança de uma vida melhor no futuro, neste mundo (transmigração das almas) ou esperanças para os sucessores (reino messiânico), ou de
uma vida melhor no outro mundo (paraíso) (WEBER, 1982:318).
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positivo, logo as intenções das ações passam a ser dirigidas para ele. Isso
permitiu que a moral se desenvolvesse como um campo autônomo, na medida
que as ações morais pertenciam agora a um sistema abstrato de valores
parcialmente independentes das necessidades imediatas do mundo. Podemos
perceber neste exato ponto a configuração de uma oposição entre um mundo
profano do “ser” e um mundo sagrado do “dever ser”.
A teodicéia do sofrimento, como resultado da crescente racionalização das
concepções de mundo religiosas, substitui, como uma metafísica tendencialmente
racional, as concepções de mundo míticas, abrindo espaço, dessa forma, para o
desenvolvimento de uma ética no sentido estrito (SOUZA, 1997: 61).
Por outro lado, podemos notar o aparecimento do que chamaríamos de o
período das ”rejeições religiosas do mundo”. Neste caso, o mundo valorativo do
“mais além” entrava em competição com as demandas deste mundo. E na medida
em que o sofrimento passa ter um valor positivo, o gozo descompromissado dos
prazeres desse mundo começa a ser rejeitado; a esfera moral entra em conflito
com a economia, o sexo entre outras48. O crescente processo de racionalização
religiosa também abriu espaço para autonomização e a conseqüente
especialização de outras esferas da ação49.
A duplicação do mundo criada a partir do dualismo transcendente gerou um
número muito maior de impactos na configuração dos valores e instituições do
mundo moderno, a respeito disso voltaremos a debater mais adiante neste
capítulo.
A nova estrat if icação soc ial
48 A questão das “rejeições religiosas do mundo” é um tema de significativa importância na sociologia dareligião de Weber. Ele trata deste tema nas “considerações intermediárias à ética econômica das religiõesmundiais” ( Zwischen betrachtung), texto colocado em apêndice ao volume I dos Ensaios Reunidos deSociologia da Religião. Weber afirma que todas as religiões de salvação, tanto do ocidente como do oriente,desenvolveram rejeições religiosas em relação ao mundo.49 Sobre essa discussão ver o capítulo anterior.
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A explicação que se concentra tão somente na lógica interna das idéias,
por mais que se apresente de maneira sofisticada, não encerra por completo a
discussão dentro da sociologia weberiana sobre as transformações cognitivas
dentro da religião, e conseguintemente, em toda sociedade. O fato de o
pensamento weberiano ter sido interpretado erroneamente como simples
oposição ao pensamento marxista, fez com que pouco se atentasse para as
explicações weberianas que se sustentam também em premissas materialistas,
em que a dinâmica dos interesses também aparece como ponto importante50. Na
interpretação que faz da sociologia da religião de Weber, Bourdieu confere grande
destaque para a perspectiva materialista presente na obra weberiana, e é a partir
de parte das análises deste último que construiremos os argumentos do segundo
ponto por nós destacado.
A formação e o crescimento de estratos de especialistas religiosos e o
aparecimento de fatores materiais que geram esta estratificação, ao lado das
transformações no interior do discurso religioso, complementam-se através da
explicação da transformação cognitiva que resultou numa concepção dual de
mundo. A questão principal relativa a essa transformação é a constituição de uma
esfera especificamente religiosa, ou seja, uma conformação de demandas
puramente voltadas para interesses religiosos, sendo o exemplo mais marcante a
aparecimento da necessidade de salvação religiosa51.
O surgimento de novos estratos sociais em virtude de uma multiplicação da
divisão do trabalho encerra camadas sociais em realidades parcialmente distintas,
formando-se assim novas expectativas relativas à vida, como nos ensina a velha
fórmula sociológica. Desse modo as demandas sociais passam a ser outras, e no
caso que analisamos, a expectativa de salvação ganha enorme destaque. Neste
ponto, o aparecimento da cidade em oposição à vida camponesa merece umaatenção privilegiada para o entendimento desta questão. Grande parte desses
50 Weber faz questão de ressaltar que em nenhum momento escolheu entre o idealismo e o materialismo,afirmando que ambas quando escolhidas absolutamente empobrecem a compreensão da realidade.51 A noção de uma esfera propriamente religiosa é um produto do rompimento com as concepções puramente
mágicas do mundo; é este o efeito dos inúmeros fatores que se interconectam a este processo, como:racionalização, rejeições religiosas do mundo, desmagificação e autonomização das esferas da ação que temseu início com a esfera religiosa. Vale lembrar, como afirmamos em outros capítulos, que a ação mágicadesconhece a delimitação da ação em esferas separadas, pois toda ação religiosa, política ou econômicaocorre conjuntamente, sem traços nítidos que as separem.
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novos estratos surge em conseqüência da vida urbana, e os modos de produção
e organização da vida material forjado na cidade contribuem vertiginosamente
para uma outra percepção (cognitiva-valorativa) do mundo52. Como narramos no
capítulo dois, o grau de previsibilidade alcançado por algumas atividades urbanas,
tornando-as parcialmente menos dependentes da natureza, possibilitou a
elaboração de demandas não restritas a necessidades de curto prazo, o que
permitiu o desenvolvimento de expectativas mais abstratas e demandas com
prazos cada vez maiores. Um outro elemento social estreitamente relacionado à
vida urbana refere-se aos segmentos religiosos decisivos na formação das
religiões de salvação.
Ao eleger as cinco grandes religiões mundiais que mais influenciaram na
condução da vida (Lebensführung), Weber coloca em destaque as camadas de
especialistas destas religiões, entendendo que o modelo de vida por estes
propagado exerceu grande influência na maneira como as pessoas comuns
conduziam a sua vida. No caso do judaísmo, religião de enorme destaque na
formação do ocidente, formou-se uma religiosidade conduzida por classes
urbanas intelectualizadas. Weber também afirma que o cristianismo foi uma
religião especificamente urbana (1983: 312). A cidade é o berço onde nascem e
se desenvolvem as grandes transformações no ocidente, e dentre elas uma
concepção metafísica do mundo. A cidade é a base material que permite uma
série de mudanças na interpretação do homem sobre o mundo, sem o surgimento
da forma de vida urbana provavelmente os contornos cognitivos do mundo seriam
outros.53
Retornando ao problema da estratificação religiosa propriamente dita e
conseqüentemente aos novos interesses por ela criados, (ao lado do decorrente
aparecimento de um espaço genuinamente religioso), somos levados a analisar oinício deste processo, a saber, o longo caminho que se inicia no aumento do
destaque social dos magos e feiticeiros. Como narramos anteriormente as
primeiras transformações significativas na estrutura dos estratos de especialistas
religiosos ocorre quando os magos e os feiticeiros passam a exercer suas
52 Para mais detalhes sobre esta questão ver capítulo dois.53 A cidade representa um desdobramento material de um racionalismo de “dominação do mundo”. O seuespaço é um universo relativamente controlado em que a previsibilidade dos eventos se encontra em um
estágio avançado se o compararmos com a vida rural.
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funções para um número maior de pessoas, ou melhor, voltam-se para
segmentos sociais que não estavam no topo da pirâmide social. Essa
transformação fez com que paulatinamente esses especialistas fossem ganhando
amplas possibilidades de controle sobre a sociedade. Isso implicou na formação
de dinastias e de pequenas sociedades de especialistas religiosos, que em um
outro momento futuro vieram a constituir-se em um corpo sacerdotal. Esse
processo se caracteriza pela transmissão do carisma e ordenação da atividade
religiosa, assim abrindo espaço para uma esfera propriamente religiosa.
Na medida em que a idéia de salvação passa a existir nas sociedades, o
controle e a produção destes bens (chamados bens de salvação) passam a ser
alvo de disputas entre os novos atores sociais que vão surgindo; magos,
feiticeiros, sacerdotes e profetas se apresentaram como tipos sociais que entrarão
em conflito pelo controle desses bens de salvação. As novas demandas surgidas
em virtude da abertura do espaço individual no culto gera um disputa de status
social entre os grupos que controlam os meios de salvação. Em um segundo
momento, observamos a disputa pelas promessas de salvação. O que
primeiramente se mostrava apenas como curas imediatas para males corriqueiros
na atividade dos magos evolui para a idéia de salvação plena: a supressão de
todos os sofrimentos na efetivação da promessa do redentor, tendo como ator
social principal não mais a figura do mago, mas do profeta.
A definição clara dos papéis atribuídos ao mago, ao sacerdote e ao profeta
não é uma tarefa fácil, pois elementos atribuídos a um determinado tipo também
aparecem nos outros. No entanto, em traços bem gerais — e seguindo a
metodologia de tipos ideais —, poderíamos dizer que o mago se caracteriza pela
ação individual sustentada por seu carisma pessoal que, através de receitas e
prescrições mágicas, visa normalmente a solução de problemas cotidianos epessoais dos indivíduos que recorrem a seu serviço.54 Já o sacerdote tem sua
atividade relacionada a um corpo sacerdotal e não simplesmente na figura
individual; sua ação é regida por uma tradição, pelo carisma institucionalizado no
cargo que ocupa e não na sua pessoa. Desse modo ele se torna o “guardião” da
tradição estabelecida. O profeta, assim como o mago, tem seu poder centrado no
54 Bourdieu define o mago e o feiticeiro como um livre empresário autônomo e itinerante.
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seu carisma pessoal, porém sua ação se volta para a anunciação de uma
promessa que está, na maioria das vezes, sustentada em pressupostos éticos,
em que exigências de um determinado rigor comportamental se diferenciam do
simples cumprimento da pureza ritual. Na interpretação de Weber é este último, o
profeta, que ao anunciar uma salvação num “outro mundo” inaugura as
possibilidades de uma interpretação dual do mundo que, certamente é
desenvolvida e sofisticada por uma classe sacerdotal de especialistas letrados
que surge num momento histórico seguinte reinterpretando e transformando a
promessa inicial numa tradição.
O dualismo transcendente e suas implicações
Segundo a análise de Weber, a concepção dualista transcendente do
mundo seguiu caminhos diferentes no oriente e no ocidente. Enquanto no
ocidente o mundo material passou a ser rejeitado como o mundo do pecado, no
oriente o mundo material foi interpretado como um reino passageiro. Outras
diferenças se referem à interpretação do mundo dual: no oriente tendeu a se
curvar para um vertente intelectual cuja contemplação mística obteve destaque; jáno ocidente tendeu para uma interpretação prática cuja ação pensada como
dominação do mundo alcançou maior eficácia social através do ascetismo.
A despeito destas diferenças entre ocidente e oriente nos concentraremos
na concepção dualista transcendente no mundo ocidental, que é o que mais nos
interessa analisar no momento. Esta concepção teve como seus principais
exemplos históricos a filosofia platônica e o pensamento cristão medieval que, em
traços bem amplos se apresentou como uma adaptação do platonismo, servindocomo um eficaz divulgador dos principais desdobramentos valorativos contidos
neste corpo filosófico. A noção de que o mundo em que vivemos é tão somente
uma cópia imperfeita de um mundo verdadeiro, onde idéias perfeitas são a
verdade em oposição da falsa cópia material, foi um pilar fundamental da
constituição valorativa e institucional do ocidente. A descoberta do outro mundo
imaterial e verdadeiro, fez com que as ações neste mundo se dirigissem para este
outro mundo que passou a deter o valor positivo da vida.
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Nesta lógica, as necessidades imediatas da vida perderam valor frente às
idéias, ou melhor, frente a algumas idéias que ganharam o status de sagradas. A
duplicação do mundo fez com que certos conjuntos de sistemas de idéias fossem
alçados a categoria de valores veneráveis que deveriam ser perseguidos até a
exaustão. Logo, inaugura-se na história das sociedades um período em que a
ação social não é tão somente condicionada pelas necessidades práticas da vida,
mas também por conjuntos de idéias sistematizados. Os tabus e as prescrições
mágicas eram apenas artifícios simbólicos que estavam ”a serviço” das
necessidades imediatas, jamais entrando em conflito com os interesses imediatos
impostos pela natureza. No entanto, as religiosidades éticas estavam sustentadas
por “idéias-valores” fundamentadas cada vez mais em sistemas filosóficos
produzidos por seu corpo sacerdotal de especialistas intelectuais, detentores
daquilo que Charles Taylor chamaria de “noção de boa vida”. Agora a
determinação da vida digna de se viver não se sustentava somente na saúde e
prosperidade como na teodicéia da felicidade; o sentido da ação social passava a
obedecer também a idéias que muitas vezes contrariavam a satisfação
descompromissada de necessidades e prazeres.
Neste processo, em que identificamos também a noção de racionalização
em Weber, a ação passa ser controlada e/ou direcionada tanto internamente
quanto externamente. Do ponto de vista externo temos a formação das
instituições modernas, e do ponto de vista interno vislumbramos a internalização
de uma moral que controla o sujeito dentro de normas do “bem viver”, normas
estas que nem sempre estariam acessíveis conscientemente.
As instituições modernas enquanto tributárias destas transformações se
diferenciam justamente porque também estão assentadas em um conjunto
abstrato de idéias que as legitima e as organiza. A exemplo disto destaca-se odireito, que tem sua racionalização iniciada no direito romano, e se configura
como um sistema de controle social gerenciado por uma noção de justiça
universal, e por uma moral relativamente autônoma de particularismos, elaborado
por princípios reflexivos e não por normas rígidas provindas de tabus mágicos.
Isso só se tornou possível porque quando um sistema é controlado por um
conjunto de idéias que ganham o status de sagradas, está aberta a possibilidade
de instauração de relações impessoais, ou seja, intervenções pessoais e
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interesses particularistas perdem poder de efetivação nesta lógica. A ciência
moderna se apresenta como um outro exemplo de grande valia; esta última está
assentada sobre um dos principais pilares que sustentam as possibilidades de
relações impessoais. Aqui me refiro à construção de uma noção de natureza
desmagificada: a idéia de que a natureza é governada por leis universais
invioláveis que se aplicariam tanto aqui quanto em Marte55. Em vista disto, os
fenômenos da natureza não seriam fruto da vontade pessoal desta ou daquela
divindade, mas seriam apreendidos e “dominados” por um sistema de idéias, no
qual uma lógica impessoal se sobreporia à vontades pessoais. O Estado moderno
também é controlado por uma constituição, neste caso a figura do governante não
pode agir simplesmente guiado por seus desejos pessoais, mas é controlado por
um conjunto de idéias. Os sujeitos nesta lógica não são mais reféns da
impresivibilidade ou joguetes de forças mágicas, mas são obrigados a operar
segundo princípios que em parte estão aquém da lógica da vontade pessoal deste
ou daquele indivíduo. Mesmo que estes sistemas ou instituições sejam operados
por pessoas, há um conjunto de idéias que as controla, diferentemente de quando
um sistema resume-se à vontade de uma pessoa.
A noção de indivíduo também é duplicada conjuntamente com a duplicação
substancial do mundo. Diferentemente das promessas de salvação que
anunciavam a ressurreição do corpo, justamente porque este (o corpo) era o
centro da individualidade e talvez a única forma de existência de “eu” concebida
— pois a alma neste caso estava presa a concepções materiais como sombras e
duplos —, no dualismo transcendente a noção de alma ganha o status de algo
imaterial, centro da individualidade e da consciência, responsável pelas escolhas
que serão punidas ou recompensadas no outro mundo verdadeiro e imaterial (o
paraíso, na concepção cristã-católica). É neste momento que a moral como esferaautônoma ganha força, pois o sujeito é o responsável por suas ações e a alma é o
lugar da reflexão sobre as escolhas. A idéia de reflexividade sobre as escolhas e
as ações, bem como sobre os valores, aparece como novidade e marco da
identidade da própria modernidade, como é defendido por Anthony Giddens,
Ulrich Beck entre outros.
55 Um bom exemplo é a concepção de mundo mecanicista-cristã em que o próprio Deus estaria sujeito às leis
universais da natureza depois que as criara, não lhe sendo permitido qualquer intervenção posterior.
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A parte imaterial do sujeito apresenta-se simbolicamente como o
repositório dos valores abstratos; o mundo do “dever ser” apartado da unicidade
do anterior mundo do “ser” tem na alma ou na mente o “depósito” da parte
abstrata nos sujeitos. Os indivíduos passam a “existir” com uma dimensão intra e
extra-corporal. A noção de uma parte imaterial no sujeito permite conceber tanto
uma vida interior, quanto a aquisição de direitos individuas que valem para além
do corpo do indivíduo (uma vida exterior).
Um exemplo das resultantes destas transformações cognitivas é que num
mundo onde os sujeitos também foram cindidos em duas partes e uma destas
partes detém mais valor do que a outra, se cria uma nova forma de eliminação
social do indivíduo. Em uma sociedade que não presenciou ou mesmo não
internalizou uma concepção dual de sujeito cuja a dimensão abstrata desse
sujeito — a alma ou mente — não é tomada como o centro da consciência e valor
ou mesmo nem é concebida, só se pode eliminar um sujeito do convívio social
destruindo o seu corpo, ou seja, matando-o literalmente. No entanto, em
sociedades que internalizaram esta transformação, passa-se a ter um novo tipo
de “morte”, ou melhor, um tipo diferente de eliminação do convívio social em que
o sujeito é destruído moralmente; sua parte abstrata é condenada à morte sem
que seu corpo precise ser tocado. Este passa a não existir mais para a sociedade
embora continue a perambular por ela como um fantasma ou um morto-vivo.
Certamente este segundo tipo de morte, considerada uma morte moderna,
civilizada, ascética, não é aplicável a todas às infrações, mas tende a acontecer
em crimes que ferem um conjunto de valores abstratos. Um exemplo disso são os
crimes políticos em que normalmente os julgados já são culpados antes mesmo
do julgamento, ou em disputas em outros ambientes onde idéias detêm grande
valor, como na academia56. O sujeito ou aquela identidade é eliminado porquesua parte de valor, aquela que o representa como centro de sua personalidade ou
pessoa foi condenada pela sociedade.
Muito embora todas essas possibilidades cognitivas tenham sido
inauguradas a partir da concepção dualista transcendente do mundo, sua
efetivação acontece na virada do dualismo transcendente para o dualismo
56 Com isso não quero afirmar que só na modernidade o assassinato tem um sentido simbólico; quero apenas
dizer que a modernidade é o único espaço onde a eliminação social às vezes prescinde de violação do corpo.
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imanente. A ética católica ainda privilegiava uma religiosidade de virtuosos
separados do mundo, o ascetismo católico permanecia restrito aos mosteiros,
diferentemente do que aconteceria no protestantismo calvinista.
Dualismo imanente
No protestantismo calvinista, aquilo que apenas era a conduta da vida
ascética de poucos virtuosos que buscavam viver apartados do mundo no ethos
católico (monges), passa a ser a regra geral de conduta para todos os homens,
porém com uma diferença, a ação dos fiéis passa a ser dirigida para este mundo.
A ação do fiel passa a ser entendida como uma contribuição para a construção da
glória de Deus na terra. Esta distinção encontra-se nos dois modelos de
ascetismo do ocidente: um primeiro monástico (Mönchsaskese) concebido
através de uma ascese racional extramundana, e o segundo vocacional,
(Berufsaskese) compreendido como uma ascese racional intramundana; ambos
se opõem à mística predominante na conduta da ação no oriente57. Isto fica claro
no quadro abaixo, inspirado no quadro elaborado por Leopoldo Waizbort
(2000:291).
Ascese ativa Ascese passiva Mística passiva
Protestante
Berufsaskese (ascese
vocacional/profissional)
Monge
aktive Mönchsaskese
(ascese monacal ativa)
Contemplação
Age por desejo de deus
como inst rumento de deus
Age sem se preocupar com
os fins “ neste mundo”
Evita a ação
Busca a salvação mediante
tal agir no mundo
Busca a salvação na vida
metódica racional
direcionada “para fora do
mundo”
Posse contemplativa da
salvação
Innerweltliche rationale
Askese (ascese racional
intramundana)
Ausserwelt liche rationale
Askese (ascese racional
extramundana)
Recipiente de Deus; a
criatura deve ceder, para
deus falar
57 Vale lembrar que esta tipificação não quer dizer que não tenha havido comportamento ascético no oriente
como também comportamento de orientação mística no ocidente.
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Weltablehnung (rejeição do
mundo)
Weltflucht (fuga do mundo) Weltflucht (fuga do mundo)
Na concepção dualista imanente do mundo é mantida uma percepção dual
do mundo; a perspectiva de salvação aguarda o júbilo num outro mundo, no
paraíso reservado aos eleitos de Deus. No entanto, a maneira que indica a
salvação não se constrói com uma ação dirigida para “fora deste mundo”, mas
sim para “dentro deste mundo”, o que evidencia o seu caráter imanente. Desse
modo, mesmo que se tenha uma perspectiva de salvação em um “outro mundo”,
as ações dirigidas a este mundo ganham positividade.
O trabalho como um valor genuinamente moderno surge em virtude deste
contexto. No mundo medieval o trabalho era considerado um desvalor; o modo devida legítimo, ou seja, o da nobreza, negava o trabalho como fonte de dignidade;
é o modelo de promessa de salvação do puritanismo ascético que alça a vida
metódica controlada racionalmente em que o trabalho é o centro da vida como o
modo de vida legítima. Assim, como o fruto deste trabalho metódico é a gloria de
Deus e não o gozo dos frutos do trabalho, que por seu lado se oporiam ao
ascetismo reinante, está pronta a revolução de consciência e também revolução
valorativa necessária ao capitalismo nascente.Um outro aspecto de grande relevância relacionado ao puritanismo refere-
se à relação estabelecida entre o homem e a divindade. A certeza da salvação
encontrava à sua frente uma barreira: a vontade impenetrável de um Deus
distante, tão distante que súplicas, romarias, boas ações isoladas e outros
artifícios para agradar a divindade poderiam não chegar aos olhos e ouvidos
desse Deus. Logo, o fiel estava abandonado, restando-lhe apenas a sua fé e a
sua solidão. Para salvar-se o fiel deveria crer piamente naquelas promessas, eviver metodicamente, como um guerreiro disciplinado de Deus disposto a dominar
o mundo para a glória divina, mesmo sabendo que isso não garantiria a sua
salvação, mas era apenas um indício de que poderia ser salvo. A noção de
vocação (Beruf ) tem aí a sua gênese. A salvação está condicionada a uma total
entrega da vida à obediência aos preceitos desse Deus. Diferentemente da
promessa católica, não é a soma das boas ações que garante a salvação, mas
sim o atendimento a um chamado (Ruf ) que requer um modelo de ação metódica
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e racionalmente controlada para a vida inteira; a sua vida e o modelo de vida que
abraçou é que importam para sua salvação, e não ações isoladas (SOUZA,
1997).
Este modelo de salvação e relação com a divindade foi capaz de gerar um
aprendizado social para a massa de fiéis que resultou na contribuição para a
formação da agência humana no mundo moderno. A crença em um Deus
distante, Deus este que não se fazia presente mediante à benesses corriqueiras
ligadas à vida mundana concedida aos seus fiéis, gerou o aprendizado na crença
de valores abstratos, aprendizado este necessário para se operar nas instituições
modernas. Todavia, este modelo de relação com a divindade contribui
marcantemente para a radicalização de um processo que atravessa a historia do
ocidente e se consolida na modernidade: o processo de desmagificação do
mundo. A distância desse Deus inviabilizava qualquer tentativa de relação mágica
com Ele, impedindo barganhas e coações mágicas, reforçando pois as relações
estabelecidas mediante pactos assentados em valores abstratos e impessoais. O
aprendizado para agir através de relações impessoais ainda ganhava um outro
elemento que o reforçava: a reificação das relações entre os homens, em que um
modelo de salvação individual e a suspeita de idolatria da carne nas relações de
amizade exerceram um papel importante, como narra Jessé Souza:
Causas da reificação Weber identifica, antes de tudo, na não-fraternidade
essencial do caminho de salvação do protestantismo ascético e na suspeita de
divinização das criaturas em toda doação de valor para as relações humanas, as
quais levam ao que se poderia chamar de “domínio da impessoalidade”. As
relações intersubjetivas perdem, gradativamente, sua característica emocional e,
com isso, a própria peculiaridade das relações entre homens.
Como último ponto referente à contribuição do protestantismo ascético para
a formação de relações no mundo moderno, ressaltamos a importância de uma
outra peculiaridade relativa ao seu modelo de salvação: a ausência de uma
hierarquia religiosa que intermediasse a salvação dos fiéis leigos. Diferentemente
do catolicismo, em que existe uma nítida diferença entre os virtuosos religiosos e
os leigos, permitindo que a classe sacerdotal interfira na salvação dos fiéis ao
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conceder-lhes perdão de pecados, entre outros “favores”, no protestantismo a
relação do fiel é direta com Deus, tendo-lhe somente sua fé para salvar-se. Desse
modo, todos são iguais entre si como nunca havia ocorrido na humanidade uma
igualdade plena entre os homens. Como afirma Charles Taylor (1997), é na
modernidade a primeira vez que se elabora a noção de igualdade plena; em
outros tempos as relações entre iguais estava restrita ao interior de alguns
grupos. No mundo medieval, por exemplo, a honra hierarquizava os homens entre
aqueles que a possuíam e os que não a possuíam. No protestantismo os homens
seriam considerados iguais perante Deus, similarmente à forma como os homens
são considerados iguais pelo sistema impessoal de justiça moderno.
Conclusão
A centralidade do argumento weberiano exposto neste capítulo se
concentra na eleição de dois tipos de organização religiosa como preponderantes
no desenvolvimento das idéias aqui expostas, a saber, o judaísmo antigo e o
protestantismo ascético. Weber encara o protestantismo ascético como uma
retomada e consumação de um processo que se inicia no judaísmo antigo. . . .noprotestantismo ascético observa-se a continuidade e o aprofundamento da ética
judaica antiga, a qual enfatiza precisamente a tensão entre ética e mundo.
(SOUZA,1999: 25) Vemos aqui reunidas a aliança de determinados fatores mais
importantes como a presença de uma profecia ética, a concepção de um Deus
único e separado do homem por um abismo intransponível e também a
implementação de uma desmagificação do mundo. Weber também elege a ética
do judaísmo antigo como o principal propulsor de uma concepção metafísica dualdo mundo58.
58 Quanto à explicação referente à duplicação metafísica do mundo, Weber também concede um papeldeterminante à ética do judaísmo antigo, não privilegiando desse modo outras interpretações que atribuiriamesse papel aos círculos pitagóricos e aos cultos eleusianos na Grécia antiga, cuja lógica da duplicação seriainvertida. Se na explicação weberiana o mundo se duplica em virtude de um ajuste de promessas religiosas desalvação que encontrava problemas num discurso que se sustentava na concepção de um mundo pleno desentido, (assim, do ponto de vista lógico, e somente do ponto de vista lógico, primeiro o mundo seriaduplicado e depois o sujeito se duplicaria para viver neste outro mundo) na explicação que privilegia a Gréciaa percepção de uma realidade metafísica surgiu de maneira empírica nos rituais religiosos (assim do ponto de
vista lógico, primeiro encontramos a duplicação do sujeito e depois a duplicação do mundo). Este é um
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A construção desse mundo e a exposição desta construção neste capítulo
nos servirá como contraponto comparativo para os estudos de outros processos
de modernização que não seguiram os padrões clássicos, como é o caso da
modernização brasileira que analisaremos no próximo capítulo.
exemplo que anotamos aqui como demonstração da complexidade da explicação e para a definição docaminho escolhido por Weber.
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Capítulo V:
A cognição mágica e os caminhos da modernidade brasi lei ra
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A cognição mágica e os caminhos da modernidade brasi lei ra
Introdução
Empreenderemos neste capítulo um exame que permitirá a elaboração de
hipóteses, ou melhor, de caminhos que permitam o ensejo de uma interpretação
weberiana da sociedade brasileira, conforme a proposta desta dissertação.
Todavia, temos a clareza de que este trabalho não inaugura este tipo de
empreitada no Brasil. Principalmente na sociologia que poderíamos chamar de
paulista, houve vários esforços, e muitos deles com considerável sucesso, de
elaborar uma interpretação weberiana para o Brasil. Dentre estes trabalhos se
destacam Raymundo Faoro, Sergio Buarque de Holanda, Vianna Moog, entre
outros. No entanto, o que nos diferencia daquela geração e conseqüentemente
justifica a confecção de novas investigações a esse respeito, se refere ao tipo de
recepção das idéias weberianas. Podemos afirmar que nesta dissertação a
compreensão weberiana se deve em grande parte às originais e contemporâneas
interpretações que o sociólogo alemão Wolfgang Schluchter fez da obra de
Weber, conferindo um enorme destaque ao conjunto inteiro da sociologia da
religião Weber, elaborando assim uma perspectiva neo-evolucionista baseada em
uma lógica do desenvolvimento que nos permite fazer estudos comparativos entre
os diversos processos de modernização seja no ocidente ou no oriente, logo
conferindo destaque para o desenvolvimento cognitivo-valorativo destas
sociedades, diferentemente da apropriação de conceitos ou temáticas isoladas da
obra weberiana59.
Esta escolha, ou seja, a de percorrer o caminho weberiano a partir de sua
sociologia da religião (que consideramos o núcleo de sua obra), nos aproxima de
trabalhos como o já citado Tokugawa religion: the cultural roots of modern Japan
de R. Bellah, que também se orienta pelo projeto weberiano por inteiro e não
59 A parte da sociologia weberiana que obteve maior penetração nos círculos intelectuais brasileiros foiaquela em que Weber trata das formas e tipos de dominação (sociologia da dominação). Isso ocorreu emdetrimento da sociologia da religião de Weber que, creio eu, como já afirmei em outros momentos destetrabalho, ser o núcleo conceitual mais criativo e fundamental em sua obra, daí justificar-se a nossa escolha da
sociologia da religião como pilar principal de nossa análise.
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através de conceitos isolados. Da mesma maneira como Weber fez em relação à
compreensão do mundo moderno ocidental investigando as bases valorativas e
cognitivas que permitiram a sua configuração, Bellah se pergunta como foi
possível o êxito de uma sociedade capitalista no Japão, sendo este país
dominado por uma religiosidade mágica (período Tokugawa) e eivado de
tradicionalismo. Desse modo, nós também podemos perguntar — sem a
pretensão de responder essa questão neste trabalho, mas apenas objetivando a
abertura de caminhos interpretativos — como foi possível um capitalismo de
sucesso no Brasil, em que também a magia se sobrepôs à religiosidade ética
gerando inúmeras contradições neste processo.
Com este objetivo seguiremos as seguintes etapas neste capítulo: primeiro
analisaremos, a partir da tese do sociólogo Eurico dos Santos, o processo de
religiogênese brasileiro, atentando para a primazia da magia, cotejando com os
apontamentos de Gilberto Freyre e apresentando elementos que reforcem esta
tese; num segundo momento analisaremos, sob o ponto de vista da lógica interna
das idéias60, as contradições existentes entre os tipos ideais da magia e os
padrões exigidos para se operar no mundo moderno, como também o
funcionamento das instituições modernas em uma sociedade permeada pela
cognição mágica, para somente nas considerações finais apresentar os possíveis
caminhos oriundos deste trabalho que poderiam orientar (e serem testados) em
pesquisas futuras.
A formação mágica da religios idade bras ileira
A percepção de que a religiosidade brasileira é permeada por componentes
mágicos não se destaca como uma novidade nas interpretações a respeito doBrasil, muito pelo contrário, a notificação deste componente social de nossa vida
aparece na obra de alguns intérpretes brasileiros, com destaque para Gilberto
Freyre, que em seu famoso livro Casa-grande e Senzala narra inúmeros
episódios que atestam este fato. Porém, esse traço de nossa religiosidade é
60 Com isso queremos dizer que não empreenderemos neste trabalho uma análise completa a respeito do processo de modernização no Brasil, a maneira como Bellah fez com o Japão, mas sim buscaremos
desenvolver algumas idéias para que tal tarefa seja realizada no futuro.
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percebido como algo periférico para entender a história brasileira; quando citado,
normalmente aparece apenas como uma confirmação de um argumento maior,
como é o caso de Casa-grande e Senzala em que as notificações a respeito da
magia surgem apenas como comprovações ou ilustrações de sua tese principal
sobre o patriarcalismo. Por outro lado, essa característica de nossa religiosidade
é tratada elogiosamente como mais um dos traços exóticos de nossa cultura, de
nossa diversidade, traços estes que viriam a se opor à dureza e ao rigor nórdico,
e que se associava a outros aspectos que compõem o mito nacional sobre o qual
nós corriqueiramente nos auto-interpretamos. Neste último caso Eurico dos
Santos afirma que este fenômeno (magia) é quase sempre descrito com a
candura que se usa destinar às crianças, denotando a pouca importância ou a
análise pouco rigorosa de um aspecto que consideramos ser fundamental em
nossa história, ponto a partir do qual começa a nossa análise.
Em acordo com Eurico do Santos, acreditamos que a minuciosa análise do
processo de formação de nossa religiosidade é capaz de explicar elementos de
nossa cultura que estão para além do universo propriamente religioso; cremos
ainda que tal empreitada é capaz de lançar luz para a compreensão não somente
de elementos isolados, mas também de fornecer bases importantes para o
entendimento de nossa modernização. E esta perspectiva tem seu início na
assertiva que coloca a magia como algo não residual ou periférico em nossa
religiogênese, discordando assim da noção de que nossas raízes mágicas
proviriam tão somente da cultura indígena ou dos escravos, ou do “catolicismo
doce” do sul da Europa, especialmente Portugal. Sustentamos, pelo contrário, que
a magia está no centro de nossa religiogênese, ou seja, no processo de
instalação da igreja católica no Brasil colônia.
O ponto que destacamos na perspectiva de Eurico dos Santos se refere àafirmação de que o centro da formação de nosso quadro valorativo se encontra
nas relações entre a política colonial portuguesa e a ação da Igreja católica no
Brasil, mais especificamente na consumação desse acordo que se encontra no
“padroado de Cristo”. Segundo Eurico dos Santos, no “padroado de Cristo” estaria
esboçado o “projeto” de colonização brasileiro, mas não uma conquista armada e
política no seu sentido estreito, mas um projeto de colonização valorativa-
cognitiva em que os elementos éticos do cristianismo católico que já haviam
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penetrado na sociedade portuguesa (diferentemente de como pensa a maioria de
nossos sociólogos), foram “adocicados” na sua implementação no Brasil. Isto
visaria a construção de um quadro valorativo que permitisse a efetivação dos
interesses econômicos portugueses nas terras brasileiras. Quanto a isso, o
aspecto de maior relevância seria a construção social do escravo: um modelo de
economia assentado na mão de obra escrava apenas funcionaria em uma
sociedade que naturalizasse uma brutal diferenciação entre categorias de
pessoas, ao ponto que um desses tipos fosse considerado como um animal
domesticado para fins de trabalho, sem que isso gerasse um conflito ou uma
sensibilização de uma parte significativa da sociedade61.
Os valores universalistas éticos conjuntamente com seu potencial
cognitivo-revolucionário foram neutralizados no Brasil colônia por uma série de
medidas implementadas pela união política entre a coroa portuguesa e a igreja
católica (Padroado). Uma delas foi a não instalação de uma elite sacerdotal de
formação rígida na doutrina oficial da Igreja, o que fez com que fossem enviados
para o Brasil padres de pouca formação, aliado à ordenação de padres em terras
brasileiras de tão baixa formação intelectual que muitos deles mal sabiam
escrever. Desse modo, foi se formando aqui uma religiosidade de leigos, em que
as irmandades religiosas e o culto familiar dominavam os valores e a instituição
da Igreja católica oficial. Gilberto Freyre afirma que no Brasil a família venceu a
Igreja: A casa-grande venceu no Brasil a Igreja, nos impulsos que esta a princípio
manifestou para ser a dona da terra. Vencido o jesuíta, o senhor de engenho ficou
dominando a colônia quase sozinho (2005: 84). O culto familiar e a proliferação
das irmandades religiosas tendeu a interpretar de tal modo os símbolos católicos
que transformou o catolicismo em uma religiosidade mágica no Brasil 62. O culto
61 A discussão sobre a existência de alma nos negros reflete com clareza este quadro. A negação da alma étambém a negação da condição humana e a proximidade com a condição puramente animal.62 Em todas as sociedades em que se instaurou uma religiosidade ética observou-se que tal processo nãoocorreu sem que classes sacerdotais ou profetas (especialistas religiosos) implementassem um severocombate à magia típica das massas. O judaísmo antigo é um caso exemplar onde os profetas combateramarduamente a tendência mágica da massa. Já no final do século XIX, o combate à magia na França ocorreu a partir de uma política de Estado que reuniu o Estado e sacerdotes católicos. No Brasil colônia isso não foi possível justamente por não existir uma classe sacerdotal forte e autônoma (é corriqueiro o caso em que os padres obedeciam piamente o senhor de terras), que permitisse que valores e idéias religiosas entrassem em
“tensão” com o mundo.
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dos santos e dos ancestrais transformou o monoteísmo cristão em um politeísmo
na prática, e o mundo, num “jardim mágico”.
O costume de se enterrarem os mortos dentro de casa — na capela, que
era uma puxada de casa — é bem característico do espírito patriarcal de coesão
de família. Os mortos continuam sob o mesmo teto que os vivos. Entre os santos
e as flores devotas. Santos e mortos eram afinal parte da família (FREYRE, 2005:
38).
Em vista do que expusemos nos capítulos anteriores, entendemos que a
ausência de um corpo sacerdotal bem consolidado, formado num contexto de
isolamento do mundo em que idéias valeriam mais que o “mundo”, o que permite
a formação de uma “tensão” com o mundo, fez com que a religião perdesse
bastante a sua força sobre a condução da ação social no Brasil. Neste quadro de
ausência de tensão com outras esferas da ação, a religião tem seu papel
restringido a adaptar-se sua linguagem e discurso às demandas de outras esferas
da ação: por exemplo as esferas política e econômica. Com efeito, cria-se uma
religião de adaptação ao mundo incapaz de transcender as imposições imediatas
do “reino das necessidades”63. Na religiosidade mágica que aqui se instaurou os
santos e os ancestrais mortos (espíritos) cuidavam apenas de problemas
cotidianos e das demandas imediatas voltadas para “este mundo”64.
Ainda sobre a neutralização do universalismo ético no Brasil, um outro fato
de nossa história é emblemático, a saber, a expulsão dos Jesuítas. A empresa
jesuítica nas terras brasileiras representava a única possibilidade da instauração
63 Como exemplo poderíamos mencionar a avidez por riquezas do colonizador, em especial o senhor de terrasnão encontrou um conjunto de idéias-valores que pudessem lhe impor qualquer empecilho.64 Varias passagens do livro “Casa-grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, demonstram esse cenário: Abaixodos santos e acima dos vivos, ficavam os mortos, na hierarquia patriarcal, os mortos, governando e vigiandoo mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos. Em muita casa-grande conservam-se seus retratos nosantuário, entre as imagens dos santos, com o direito à mesma luz votiva de lamparina de azeite e às mesmas flores devotas. . .(2005: 40) . . . os santos e os anjos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos diasde festa para se divertirem com o povo; as mães ninando os filhinhos com as mesmas cantigas de louvar o Menino-Deus; as mulheres estéreis indo esfregar-se, de saia levantada, nas pernas de São Gonçalo do Amarante; os maridos cismados de infidelidade conjugal indo interrogar os “ rochedos dos cornudos” e asmoças casadouras os “rochedos do casamento”; Nossa Senhora do Ó adorada na imagem de uma mulher prenhe (2005: 84).
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de um tipo de religiosidade que ameaçasse a tendência mágica reinante, e isso
se dava por dois aspectos principais: o primeiro deles se refere à alta formação
intelectual de grande parte dos jesuítas que vieram para o Brasil, configurando
uma classe sacerdotal autêntica com todo um treinamento prévio de isolamento
do mundo e conseguintemente perseguição de valores para além das
necessidades imediatas; o outro aspecto, que figura com demasiada importância,
se refere ao tipo de formação específica da ordem jesuítica. Em traços largos,
poderíamos dizer que os jesuítas são os “calvinistas do catolicismo”. Essa
afirmação se sustenta na formação de estilo militar da ordem jesuíta, o que a
difere das outras ordens católicas; enquanto as ordens monásticas católicas
dirigiam sua ação para “fora do mundo”, os jesuítas tinham um projeto de
conquista do mundo para Deus, muito semelhante o modelo de vida dos
protestantes calvinistas. A empresa jesuítica no Brasil tinha um projeto de criação
de uma sociedade cristã-católica nos trópicos, nos moldes de uma construção de
um “paraíso na Terra”. Isso implicava em um projeto pedagógico a ser aplicado
aos gentios e habitantes do “novo mundo” em que os valores cristãos pudessem
ganhar eficácia no corpo da nova sociedade.
Todo esse projeto ia de encontro aos principais interesses tanto da coroa
portuguesa, quanto da parte da classe dirigente econômica da colônia (senhores
de terras); em vista disso a expulsão dos jesuítas do Brasil tornou-se inevitável,
não somente porque estes criaram um “Estado” dentro do Estado português, e do
ponto de vista material em que rivalizavam economicamente com a coroa
portuguesa, mas também porque os jesuítas tinham um projeto civilizacional de
fortes conteúdos éticos que desafiavam os interesses vigentes.
Quanto a esse aspecto histórico-sociológico, o exame da realidade
japonesa mais uma vez aparece como ferramenta importante de análise no quetange a comparação com o processo de modernização brasileiro. Da mesma
forma que, como narra Eurico dos Santos a respeito da expulsão dos Jesuítas no
Brasil decretada pelo Marques de Pombal, estaria relacionada a um projeto de
magicização da religiosidade brasileira para fins político-econômicos, uma das
medidas de Yeasu Tokugawa65 que visou solidificar seu poder e inibir ameaças
65 Fundador da dinastia Tokugawa que unificou o Japão em um Império.
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externas e internas foi também a expulsão dos jesuítas do território japonês. O
seu sucessor, Yemetsu Tokugawa, também teve problemas com o que restara do
cristianismo no Japão. Mesmo perseguindo e condenando os cristãos à morte,
Yemetsu se deparou com uma revolta camponesa em que o substrato moral-
ideológico era o cristianismo (a maior parte dos camponeses envolvidos e líderes
da revolta eram cristãos). Esta revolta foi o único movimento político significativo
em todo período Tokugawa, o que atesta em parte o potencial reflexivo existente
nas religiosidades éticas.66
No entanto, a análise da dinâmica dos interesses não esgota a
compreensão da supremacia da magia na religiogênese brasileira; outros fatores
se apresentam com sua devida importância. Além da tradição mágica enraizada
nos indígenas e africanos, elemento que poderia ser vencido a partir de uma
cruzada contra a magia como ocorreu em outras sociedades, um outro aspecto
merece destaque: as condições histórico-geográficas. As sociedades que
experimentaram um distanciamento das concepções mágicas do mundo tiveram
em comum o desenvolvimento de uma classe urbana, que na maioria das vezes
foi a base social de uma concepção desmagificada do mundo. O ponto que
queremos destacar neste momento não é simplesmente o da estratificação social,
mas os impactos cognitivos que um universo controlado racionalmente, a urbe
(cidade), tem sobre as pessoas que vivem nela. A não urbanização é um aspecto
central para se entender uma concepção mágica de mundo, pois a partir da
urbanização transformou-se radicalmente a relação do homem com a natureza. A
cidade representa um relativo controle sobre a natureza, o que por seu lado
confere uma maior segurança do homem frente à a esta. Se na floresta ou no
campo o homem tem apenas uma atitude passiva frente à natureza, conferindo
sentido aos seus movimentos através de um pensamento mágico, é na cidadeque as possibilidades de se dar um sentido racional ao mundo são amplamente
potencializadas67. A respeito disto argumenta Freyre: Medo que nos comunica o
fato de estarmos ainda tão próximos da mata viva e virgem e de sobreviver em
nós, diminuído mas não destruído, o animismo indígena (2005: 201).
66 Cf. The Secret Empire of Japan.67 Cf. capítulos II e IV.
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Em virtude de todo este quadro desenvolveu-se aqui tal intimidade e
proximidade com os santos e as divindades que nos privou do aprendizado
gerado em uma relação em que o Deus está apartado do mundo cotidiano através
de uma barreira intransponível como ocorreu em sociedades que se constituíram
assentadas em religiosidades éticas, como é o caso de grande parte da história
do ocidente moderno. Esse aprendizado foi fundamental para a formação e o
funcionamento das instituições modernas, como já afirmamos anteriormente e
discutiremos a seguir.
A magia e a modernidade
A presença de referenciais mágicos em uma sociedade orientada por
valores e instituições modernas gera contradições que desafiam a investigação
sociológica. A proximidade e a pessoalidade presente na relação entre deuses e
homens na religiosidade mágica vão de encontro à distância e a impessoalidade
exigidas para o funcionamento das instituições modernas; as demandas
concretas e as metas de curto prazo contrapõem-se às necessidades de valores
abstratos e, por conseguinte, as metas a longo prazo. Analisaremos abaixo
algumas dessas contradições, mas antes apresentaremos um caso que é
exemplar em nossa discussão.
Uma missa campal ocorrida nas escadarias do Fórum da cidade de
Campos dos Goytacazes no estado do Rio de Janeiro em 2004, em virtude da
visita da imagem de Nossa Senhora de Fátima, aparece como emblemática em
relação a convivência entre componentes mágicos e instituições modernas no
Brasil. A missa reuniu centenas de pessoas que entre outras coisas estavam ali
para agradecer e pedir favores de natureza mágica. Muitas destas pessoasestavam emocionadas diante da presença da imagem68; uma senhora não
continha as lágrimas ao pedir à imagem da santa que lhe curasse as inúmeras
dores no corpo, outra pedia saúde e riqueza. Entre as pessoas entrevistadas,
nenhuma demonstrou qualquer interesse mais voltado para promessas de
68 Mesmo que o discurso oficial da igreja católica afirme que as imagens de santos são apenas para umexercício espiritual da fé, o catolicismo popular atribui à própria imagem e, não ao que ela representa,
poderes de natureza mágica.
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salvação, no sentido das religiosidades éticas, mas estavam interessadas na
solução de problemas imediatos e práticos da vida cotidiana. Por outro lado,
destacava-se a arquitetura imponente do Fórum, uma cópia do Parthenon
ateniense, que nos lembrava dos valores racionais e éticos do ocidente, e
sobretudo, o Fórum como símbolo de um sistema racional de justiça que se
orienta por valores impessoais tipicamente modernos.
Com efeito, nos distanciaremos das descrições de exemplos para analisar
as contradições basilares entre os tipos ideais puros da cognição mágica e os
padrões ideais de funcionamento do mundo moderno ocidental, procurando fazer
breves apontamentos a respeito do processo de modernização brasileiro.
O ideal de sujeito capaz de interagir nos sistemas modernos (democracia
representativa, estado de direito e etc) exige componentes cognitivos avessos ao
monismo mágico. O dualismo substantivo existente entre corpo e mente
(elemento transcedente) que nos permite conceber que para além do corpo existe
um sujeito portador de idéias e valores abstratos e, por conseguinte também
portador de direitos, se choca com o monismo típico da cognição mágica, onde o
corpo tende a ser a única entidade concebida. A base de grande parte dos
valores modernos como: igualdade de direitos, tolerância à diferença, debate de
idéias como atividade independente da pessoalidade, relações impessoais, em
geral sendo essas o fundamento do direito e da política, entre outros, estão
diretamente relacionados à idéia que para além do corpo existe uma entidade que
é portadora de todos esses valores abstratos. A união entre um conjunto de
valores abstratos e um sujeito dual que é em parte depositário desses valores
constitui a essência da idéia moderna da categoria abstrata de “indivíduo”69 70.
69 A aquisição dos direitos civis, tão propagada como um marco da modernidade que tem seu ponto dedestaque na Revolução Francesa é fruto de uma revolução anterior, sem a qual a segunda não seria possível.A revolução de que falamos é a valorativa-cognitiva ocorrida na socialização religiosa do ocidente queencontra seu ponto de maior destaque e também influência no protestantismo ascético, conforme narramos nocapítulo IV.70 Poderíamos afirmar que a modernidade constitui dois tipos de dualismo, um deles em que a parte abstrataexiste para além do corpo (para fora) e outro em que esta parte abstrata existe para dentro. Podemos afirmartambém que o primeiro é o dualismo do ascetismo, sendo que o existir para fora representa os direitos civisdo indivíduo; já o segundo é o dualismo místico em que o existir para dentro representa a sensibilidade e areflexividade. A noção de um monismo corporal se aplica àqueles sujeitos impossibilitados de conceber umdualismo nos outros e sobretudo em si mesmos, que se aplica tanto na dinâmica política (em um nãoreconhecimento de idéias abstratas na esfera pública) quanto na divisão do trabalho em que certos indivíduos
só tem o corpo como força de trabalho.
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Na cognição de mundo concebida pelo monismo mágico a tendência a
reconhecer apenas o corpo enquanto unidade substancial, e isto devido a sua
natureza concreta, torna-se um empecilho à concepção de “outros” entes
desprovidos de corpo, ou seja, não há a concepção de um “outro generalizado”.
Logo, o “outro” são apenas aqueles “corpos” que dividem os espaços comigo e as
únicas formas de relação existentes e possíveis são as pessoais. Minha família,
meus vizinhos e outros mais próximos formam a categoria de “outro”, que só pode
ser entendido como “outro concreto”. A idéia de um “outro” como categoria
abstrata - inexistente enquanto experiência concreta - que eu devo respeitar a
partir de valores abstratos, não é cognitivamente acessível71 72.
Nesta lógica, a idéia de violar direitos de alguém só é entendida como tal
quando existe agressão física visível, ou seja, quando o corpo é lesado, como
também a ausência de uma esfera abstrata impessoal compromete a tolerância à
diferença. Alguns estudos importantes como o realizado por Eurico dos Santos no
livro “Política e Valores” demonstraram através de pesquisa empírica como as
camadas sociais mais sujeitas à orientação mágica tendem a ter padrões morais
pouco tolerantes com a diferença.
O monismo enquanto categoria pura também não permite a percepção que
uma determinada pessoa (leia-se “corpo” dentro desta lógica) possa ser apenas a
representante de um conjunto abstrato de princípios e idéias que existem para
além dela, simplesmente porque carece desta abstração. O corpo é sempre visto
como uma unidade absoluta, restringindo as relações à pessoalidade. Logo o
candidato na esfera política é uma pessoa que pode resolver meus problemas de
ordem sempre imediata. Mais uma vez valores impessoais para solucionar
problemas de ordem coletiva que exigem medidas de longo prazo não são
concebidos. De acordo com as discussões que empreendemos no capítulo IV,constatamos que a não concepção de um sistema abstrato circunscreve a ação à
71 A discussão sobre a aquisição de categorias avaliativas abstratas, em especial a noção de um “outrogeneralizado”, possui outras importantes fontes explicativas (como tratei no anexo); no entanto, nestemomento a analisamos apenas do ponto de vista que nos interessa agora, a saber, as etapas cognitivas. Nestecapítulo analisamos apenas como a idéia de um “outro generalizado” torna-se parte do horizonte cognitivo dogrupo social e não como o sujeito incorpora essa noção, como é feito no anexo. Para mais detalhes ver Mead,George Herbert.72 Este hipótese foi parcialmente comprovada nas entrevistas da pesquisa “ A construção social da sub-cidadania” realizada em Campos dos Goytacazes no ano de 2005, em que determinados setores sociais
apresentavam dificuldade da concepção da categoria abstrata de “outro”.
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apenas a necessidades práticas imediatas, dificultando assim a concepção de
metas em longo prazo que, por seu lado, exigiriam uma confiança em valores
abstratos. O abismo intransponível entre o homem e a divindade, típico das
religiosidades éticas, é o gerador do aprendizado de confiança em valores
abstratos e impessoais de que carece a cognição mágica do mundo.
Ainda sobre a concepção de sujeito na magia, toda a noção de
individualismo moderno percebendo o sujeito como uma unidade autônoma capaz
de tecer juízos e ser responsável por seus atos não é completamente articulada.
. . . por seu turno, a percepção das condições subjetivas desenhará um
sujeito heterônomo, com dificuldade para orientar-se em um mundo objetivo ao
mesmo tempo mecânico (a magia sempre pressupõe causalidade mecânica em
um Cosmos em que tudo está ligado a tudo) e caótico (porque os mecanismos
mágicos são, paradoxalmente, acionados por manipulações individuais
diferenciadas, segundo a diferente concentração de força) (SANTOS, 2000: 91).
Sejam os acontecimentos de qualquer natureza, sempre são atribuídos a
motivações pessoais e não a sistemas impessoais. Todos os problemas e
questões se resolvem a partir de arranjos pessoais devido a ausência de
concepção de sistemas impessoais. As concepções de sistemas impessoais,
como a representação de natureza elaborada pela ciência moderna e a noção de
Estado moderno, encontram na idéia de um Deus distante e inatingível (Deus
indiferente a problemas cotidianos e as coações mágicas ou barganhas
“espirituais”), parte de seu fundamento73. Este fundamento está ausente na
cognição mágica, cujos deuses nos concedem favores de natureza pessoal, onde
todos os problemas, seja a falta de chuva ou a disputa com um inimigo ou aatenção de uma mulher, se resolvem com arranjos pessoais entre o homem e a
divindade.
O sistema político moderno, que está baseado na noção de uma esfera
que envolve sobretudo disputa de idéias, fica comprometido quando as relações
humanas se estabelecem apenas de modo pessoal. Na interpretação típica ideal
73 Para mais detalhes ver capítuloIV.
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da magia, o Estado é uma fonte inesgotável de benesses, o político é o
interventor que distribui essas benesses mediante barganhas em que o voto e a
bajulação são moedas de troca de destaque. Se não há a noção de uma esfera
abstrata de valores em que se escolhe racionalmente um conjunto de idéias e
princípios, a política tende a tomar outros contornos que diferem do modelo ideal
moderno. O clientelismo e o populismo, modelos de prática política típicos da
América Latina, ilustram com clareza esse esfera política das sociedades
modernas periféricas em que a magia é um componente cognitivo de significativa
presença.
Nessas relações híbridas entre instituições modernas e cognição mágica
encontramos exemplos de indivíduos que acionam advogados para defender seus
direitos, mas sem confiar que seu pedido será avaliado por um sistema impessoal
que opera a partir de códigos também impessoais de justiça, cuja figura do
advogado é apenas um operador deste sistema. Na lógica da magia, confia-se
apenas na pessoa do advogado que conseguirá ou não a deferência do pedido
dependendo unicamente de suas “forças” ou do seu “mana”, de forma semelhante
concebe-se que um deus mais forte que outro garantiria a vitória de meu grupo
em uma batalha. A noção de uma autonomia moral individual é mais uma vez
comprometida, pois mesmo que as relações se operem pessoalmente, a
incapacidade de apreensão intelectual de um sistema abstrato coloca o indivíduo
em uma situação em que ele se sente apenas como um joguete de forças
mágicas as quais ele não controla.
Independentemente da noção de indivíduo concebida e das formas de
relação pessoal dela decorrentes, a maneira pela qual a ação se estrutura
concomitantemente com a formação das instituições de uma sociedade é de
fundamental importância para entender as comparações que ensejamos nestetrabalho. A importância da elevação de certos conjuntos de idéias ao posto de
sagradas, sendo que estas valeriam mais que o mundo concreto, como ocorreu
na história ocidental, permitiu o surgimento de determinadas instituições que
foram fundamentadas e legitimadas por certos conjuntos de idéias-sagradas. A
respeito deste ponto, uma decorrência da religiosidade ética se apresenta como
nodal para entender o desenvolvimento da ação e conseguintemente da formação
e funcionamento das instituições modernas: nos referimos às “rejeições religiosa
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do mundo”. Como tratamos nos capítulos III e IV, as ”rejeições religiosas do
mundo” consistiram num processo (que ocorreu tanto no ocidente como no
oriente) em que o aumento da autonomização da esfera religiosa (detentora
privilegiada da configuração do quadro geral de idéias sagradas) gerou uma
crescente tensão em relação às outras esferas da ação, muito especialmente a
esfera econômica. A partir deste evento a ação passou a ser direcionada por um
conjunto de idéias-valores que também envolviam normas para a ação. Desse
modo entravam em conflito direto com a simples adaptação as demandas
impostas pela natureza e com os interesses imediatos da vida prática 74, algo
impossível de ocorrer anteriormente a transformação de certas idéias em
sagradas. Essa dinâmica foi de suma importância na geração de um aprendizado
social que em nome da confiança em valores abstratos se abria mão da
satisfação imediata e descompromissada das necessidades75. Um importante
exemplo a respeito disso foi a condenação do lucro na religiosidade asiática
impedindo o desenvolvimento do capitalismo em uma sociedade como a chinesa,
que entre outras vantagens possuía um sistema burocrático organizado que, a
princípio, facilitaria o desenvolvimento capitalista, no entanto valores religiosos
agiram como empecilho para tal empresa (WEBER, 2001).
No caso que mais nos interessa, ou seja, o ocidental, vimos anteriormente
que determinadas transformações no seio da religião foram importantes para o
surgimento do sistema capitalista. Entretanto estas transformações também foram
decisivas para a formulação de valores que futuramente entrariam em conflito
com a lógica do mercado76.
A noção de universalismo ético desenvolvida no cristianismo é o pilar sobre
o qual estão assentados a idéia de igualdade elaborada na modernidade e
conseqüentemente a formulação dos direitos civis, sendo estes universais einalienáveis. A conquista e a permanência dos direitos civis típicos da
74 Cf. Capítulo IV.75 Isto não quer dizer que a satisfação das necessidades não importavam mais, mas sim que estas nãoinfluenciariam a ação livremente, agora teriam idéias-valores em competição pela o direcionamento da açãosocial.76 A famosa frase de Weber que diz: “o protestante escolheu ter uma vocação, nós somos obrigados a tê-la”ilustra com clareza que o mercado capitalista no século XIX não necessitava mais dos suportes cognitivosoriundos do protestantismo ascético para legitimar e embasar valorativamente a sua existência. O mercadocapitalista já encontrava suas forças em si mesmo e passou a ser determinante da orientação da ação e os
valores do mundo.
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modernidade ocidental são também resultado desta dinâmica que narramos. O
que atesta isto é que a internalização de valores universais por grande parte de
uma sociedade é um impedimento para que a lógica particularista se instale, e
que interesses de um pequeno grupo se sobreponham sobre toda uma sociedade
sem encontrar resistências.
Foi em virtude destas conquistas que a exploração do trabalho no sistema
capitalista encontrou barreiras. A concepção de uma ética universalista, até então
inédita na história, agiu como o substrato moral-valorativo das lutas trabalhistas
como também serviu de impedimento para a construção de uma categoria de
pessoa inferior a tal ponto que esta última só teria a contribuir para sociedade
com sua força de trabalho, ou seja, com o corpo. A concepção de uma esfera
moral autônoma, baseada naquilo que tratamos anteriormente como a separação
entre o mundo profano do “ser” e o mundo sagrado do “dever ser”, permitiu que
idéias-valores entrassem em tensão com interesses econômicos, aspecto este
que não notamos na história brasileira.
O exemplo da trajetória brasileira segue um caminho oposto ao que foi
narrado nos parágrafos anteriores. A supremacia da magia em nossas terras nos
aprisionou em um quadro de carência de “tensões com o mundo”, e logo, de não
aprendizado social e valorativo que esta dinâmica social oferece. Desse modo
nos restou uma dinâmica contrária àquela da “tensão com o mundo” oferecido
pelas religiosidades éticas, a saber, um racionalismo de “adaptação ao mundo”,
típico das concepções representativas da cognição mágica. Este modelo
primeiramente serviu ao proto-capitalismo característico de nossa economia
colonial. A respeito disso o exemplo mais significativo e central é a construção
social do escravo como um artifício para atender os interesses econômicos da
metrópole e da elite colonial. É neste sentido que o universalismo ético docatolicismo teve que ser adaptado no Brasil, como afirmamos anteriormente.
Nossa história colonial é marcada pela adaptação aos interesses comerciais e
políticos da metrópole e da elite colonial sem que nenhuma esfera da ação
apartada de interesses econômicos e políticos oferecesse obstáculos de maneira
mais significativa, e que pudesse entrar em tensão com os interesses e valores
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vigentes77. As esferas do poder e do dinheiro não encontraram a sua frente uma
esfera religiosa autônoma e bem consolidada pra servir de obstáculos aos seus
interesses, formando assim um dinâmica pedagógica para a ação como ocorreu
em outras sociedades. A religião oficial operou tendencialmente ora a serviço do
Estado português ora dos interesses da elite econômica no Brasil colônia78.
No entanto é no Brasil moderno e capitalista que esses impactos se
apresentarão com maior evidência. Se no Brasil colonial o contexto mágico
avesso à noção de universalismo ético permitiu a construção de um tipo humano
inferiorizado, desprovido de alma, restando-lhe apenas o corpo e assim
justificando a escravidão, é na modernidade brasileira que o não aprendizado
social fruto da carência de esferas de “tensão com o mundo” permitirá ao
capitalismo uma penetração livre de ameaças. Os interesses econômicos do
capitalismo nascente no Brasil não enfrentaram conflitos morais significativos que
abalassem a sua empresa; a elaboração de uma sub-gente para atender as suas
necessidades não significou grandes conflitos. Uma vez que não havia tensões
entre as esferas da ação instaladas, o caminho para a naturalização de uma
desigualdade entre categorias de pessoas estava aberto79 80.
Os pontos analisados nos parágrafos anteriores não pretendem esgotar ou
mesmo apresentar definitivamente as contradições que acreditamos ser geradas
por concepções de mundo diferentes, como acontece entre a concepção
representativa da cognição mágica e a concepção ideal típica do mundo moderno
ocidental, mas apenas trazer ao debate uma apreensão da modernidade
brasileira, assentada em seus aspectos valorativos-cognitivos.
Considerações finais
77 A Inconfidência Mineira é um caso exemplar a respeito desta discussão. Neste episódio da história brasileira a presença valores universalistas assentados no humanismo iluminista não foi o principal substratomoral da revolta, como corriqueiramente é interpretado. Mas por outro lado, a principal motivação destemovimento foram os interesses econômicos particularistas de uma elite colonial falida.78 Quanto a este ponto destacamos a valiosa contribuição da socióloga Ângela Paiva no seu livro Católico, protestante, cidadão: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos. A autora demonstra que,diferentemente do caso brasileiro, nos E.U.A a separação entre Estado e Igreja aliada a variabilidade dasdenominações religiosas, foi fundamental para o aprendizado político daquela nação.79 Cf. SOUZA, Jessé. A construção social da sub-cidadania.80 O recente capitalismo chinês possui semelhanças com o processo brasileiro. A brutal exploração dotrabalho na China é reflexo da penetração do sistema capitalista sem que os valores que nasceram com o
capitalismo no ocidente fossem compartilhados.
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A questão weberiana relativa ao surgimento do capitalismo no ocidente
(“por que o capitalismo surgiu no ocidente?”) bem como a questão desenvolvida
por N. Bellah a partir de Weber, referente à implantação do capitalismo de
sucesso num país eivado de magia e tradicionalismo como o Japão, a nosso ver,
também pode ser colocada relativamente à realidade brasileira, enquanto um
meio de investigação de nossa modernização. No caso brasileiro, podemos
perguntar como foi possível o desenvolvimento de instituições modernas num
país perpassado por orientações mágicas, isto é, podemos nos direcionar para a
pergunta mais fundamental: como foi possível a implantação de um capitalismo
de sucesso no Brasil, em que as concepções mágicas do mundo foram um
componente decisivo relativamente aos aspectos valorativo-cognitivos.
De acordo com o nosso empreitada nesta dissertação, o caminho
weberiano que almejamos trilhar e, ao mesmo tempo construir, se faz a partir de
um olhar que busca enxergar e analisar não somente os aspectos concretos de
nossa história, mas sim uma postura que nos permita analisar a gênese e o
desenvolvimento da oferta dos conjuntos de valores, e conseqüentemente de
visões de mundo, oferecido no “mercado de valores” da sociedade brasileira.
Acreditamos que, o sucesso econômico e a construção diferenciada de categorias
de pessoas, estão fundamentas e sustentadas em um determinado conjunto de
valores, sendo que estes muitas vezes se apresentam de forma contraditória,
porém não impedindo o funcionamento da sociedade brasileira. O nosso desafio
na análise de nosso quadro valorativo visa compreender a mecânica do
funcionamento e do convívio dos valores contraditórios de nossa sociedade (que
na maioria das vezes estão encobertos). Acreditamos que o estudo e
entendimento das fontes “mágicas” enraizadas em nossa cultura pode ser umeficaz caminho par alcançar este objetivo.
Em vista do que apresentamos neste ensaio, em que tomamos a religião
como a principal fonte que oferece novos horizontes morais e cognitivos,
tendemos a pensar que a ausência significativa de determinados conjuntos de
valores (no caso em questão aqueles provindos das religiosidades éticas) nos
privaram de certos aprendizados sociais e políticos. A socialização religiosa
orientada por concepções mágicas que influenciou uma parte considerável da
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nação brasileira, foi uma das as principais fontes de nosso processo singular de
modernização. Em vista disso acreditamos que esta dissertação se configura
apenas como uma contribuição preliminar para trabalhos de maior fôlego que
devam se concretizar no futuro, aos moldes de uma profunda exegese do
desenvolvimento de cognitivo e valorativo que sustentou o desenvolvimento de
nossa sociedade, comparáveis aos trabalhos de Weber em relação ao Ocidente e
de Bellah em relação ao Japão.
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Anexo
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Religião e Reconhecimento: afinidades entre o movimento neopentecostal e
comportamento político no Brasil81
Introdução
Nos últimos vinte anos o Brasil tem passado por transformações sem
precedentes no que diz respeito ao delineamento do panorama religioso, tanto no
que se refere à filiação religiosa quanto à forma de atuação das principais
religiões no Brasil. O surgimento de novos quadros transformou radicalmente o
cenário religioso no país. Essas transformações tratam-se do terceiro movimento
de expansão das religiões pentecostais no Brasil (como denomina a literaturaespecializada), tendo surgido inicialmente na década de “70” e que tem se
mostrado cada vez mais vigoroso, arrebanhando um número impressionante de
fiéis, alterando substancialmente o modus operandi das religiões no Brasil, e
fazendo com que outras religiões assumam parte de seu discurso e de sua
ideologia, sendo identificado pelo signo de neopentecostalismo.
Essa mudança, como já mencionamos, se estende quantitativa e
qualitativamente. No Brasil, não seria necessário recorrer apenas aos índices do
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para notar o aumento
expressivo dos evangélicos, como também o aumento de novas denominações
religiosas que estão diretamente relacionadas ao movimento neopentecostal. É
também o vertiginoso aumento da exposição na mídia de um determinado e novo
“gueto cultural”: a cultura gospel, presente na música, em camisas, adesivos, e no
comportamento em geral. Vale notar que embora nem de longe sendo
hegemônica ou um modismo generalizado, a cultura gospel representa uma
significativa fatia de mercado da industria cultural, possuindo gravadoras,
editoras, canais de rádio, e televisão próprios. Finalmente, enfatizamos que o
aspecto determinante dessas transformações é a nova linguagem religiosa
difundida por este movimento, que vem influenciando outras religiões até mesmo
81 Este anexo é a versão em português do capítulo Religion und Anerkennung: Affinitäten zwischenneupfingstlicher Bewegung und politischem Verhalten in Brasilien publicado por mim em co-autoria comRoberto Dutra Torres Júnior no livro Das Moderne Brasilien: Gesellschaft, Politik und Kultur in der
Peripherie des Westens .
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fora do conjunto denominado protestante, sendo que o exemplo mais notório é o
movimento carismático na Igreja Católica, que absorve grande parte do discurso e
da prática do neopentecostalismo.
O pentecostalismo
O chamado pentecostalismo surge nos Estados Unidos no início do século
XX e é em grande parte herdeiro da Reforma Protestante do século XVI. É o
último dos três grandes movimentos da Reforma, a saber, o Puritanismo, o
Metodismo e o Pentecostalismo. Seu surgimento delineia-se nos moldes de uma
reforma dentro do projeto de Reforma Protestante Puritana, sendo em alguns
aspectos centrais de sua mensagem religiosa diferem claramente daquelas
posições defendidas pelas igrejas e seitas que surgiram com a Reforma. Talvez o
ponto mais significativo a esse respeito seja a forte ênfase que o pentecostalismo
concede desde seu nascimento até na contemporaneidade aos chamados dons
do Espírito Santo. Como herança direta do metodismo Wesleyano e do
movimento dos holiness os pentecostais pregam, baseados em Atos 2, que
Deus,, através dos atributos carismáticos do Espírito Santo como o de falar em
línguas estranhas82, o da cura e o de discernir espíritos, age entre os fiéis
curando enfermos, realizando milagres e distribuindo bênçãos espirituais e
materiais. No entanto, a expansão do pentecostalismo constitui um fenômeno de
alcance mundial, e apesar de ter nascido na sociedade mais rica e desenvolvida
do mundo, espalha-se com muito mais força nos países em desenvolvimento do
sul do pacífico e África83, do leste e sudeste da Ásia e especialmente na América
Latina84. Neste último continente o crescimento do neopentecostalismo vem
sendo alvo das preocupações da cúria romana, pois aí se encontra seu maiorrebanho. Nesses países periféricos as igrejas pentecostais recrutam a maior parte
82 O dom de falar em línguas estranhas remte ao episódio bíblico de Pentecostes, relatado em Atos 2, em queo Espírito Santo, no qüinquagésimo dia da ressurreição de Cristo, teria se manifestado aos apóstolos por meiode línguas de fogo.83 Cf. Por exemplo LAURENT, Pierre-Joseph. “The Faith-Healers of the Assemblies of God in BurkinaFaso: Taking Responsibility for Diseases Related to ‘Living Together’”. Social Compass. 48(3), 2001. p.333-351.84 Cf. MARTIN,David. Tongues of fire: the explosion of protestantism in Latin America. Oxford: Blackwell,
1990.
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de seus fiéis entre os setores rurais mais pobres e especialmente entre as
camadas urbanas de baixa renda e escolaridade.
Segundo o sociólogo Peter Berger, a explosão do protestantismo
evangélico, ao lado do amplo “ressurgimento” do Islamismo em escala mundial,
constituem os dois maiores fenômenos a serem explicados pela sociologia da
religião nos dias atuais85. Para ele, Tal fenômeno religioso já se configura como
algo intrinsecamente ligado às peculiaridades das modernas formas periféricas de
capitalismo, inclusive podendo se postular que “esse tipo de protestantismo
robusto tem conseqüências comportamentais que, em sua maior parte
inintencionais, têm uma afinidade com exigências do nascente capitalismo”.
O Brasil se destaca nesse contexto como o maior país evangélico da
América Latina, possuindo quase que a metade dos mais de 50 milhões de fiéis
de todo continente86. Nesse, que também é o maior país católico do mundo, é
evidente o crescimento das igrejas e do número de evangélicos nos últimos anos.
Há mais de uma década, o Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística) de 1991 já constava que 13% da população brasileira era
evangélica. No censo de 2000 esse percentual chega a 15,4%. Desse total, 50%
recebe no máximo 2 salários mínimos mensais (equivalente a cerca de 230
dólares). A pesquisa Novo Nascimento coordenada por Rubens César
Fernandes87 na região metropolitana do Rio de Janeiro em 1990 constatou que
61% recebiam também até 2 salários mínimos e que 42% possuía menos de 4
anos de escolaridade. Em uma outra pesquisa realizada em 1994, o ISER
(Instituto Superior de Estudos de Religião) constatou que o Estado do Rio de
Janeiro é o que possuí o menor número de católicos do País. Os dados
demográficos de 2000 confirmam essa tendência: 57% da população do Estado
do Rio de Janeiro se declara católica, contra 70,8% da população do Estado deSão Paulo, o estado mais católico do País.
O pentecostalismo no Brasil
85 BERGER, Peter, “Reflections on the sociology of Religion Today”. Sociology of Religion. Winter, 2001,v. 62, i. 4 p. 443-455.86 Ibidem. p. 8.87 FERNANDES, Rubens César (org). Novo Nascimento. Os evangélicos na casa, na igreja e na política. Rio
de Janeiro:MUAD, 1998.
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A chegada do pentecostalismo no Brasil é quase concomitante com o seu
surgimento nos Estados Unidos, respectivamente 1906 e 1910, quando
missionários fundaram a Congregação Cristã no Brasil. No ano seguinte foi
fundada a Assembléia de Deus. Essas duas denominações representam a
primeira das três ondas expansionistas do pentecostalismo no Brasil, que
classificamos de acordo com os estudos de Ricardo Mariano expostos no livro
Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo brasileiro.
Esta primeira onda expansionista é classificada como clássica, sendo
absoluta entre os anos de 1910 e 1950. Suas características principais se
concentram na sua rejeição radical ao mundo em seu sectarismo, construído
reativamente ao comportamento nas classes centrais da sociedade: rechaçavam
o uso do rádio, de atributos de vaidade que ressaltavam a beleza feminina,
participação em festas e outras atividades que fossem tidas como do “mundo”.
Tendo destaque para suas convicções apolíticas, interpretando todas estas
esferas como seara do próprio diabo. Ainda relacionado com seu modo de vida
reativo ao das classes centrais destacam-se o anticatolicismo. Estas teses eram
sustentadas na crença do iminente retorno do “Senhor Jesus Cristo” e suas
recompensas no “paraíso”. Outro suporte teológico característico da primeira
onda expansionista em comparação com as demais “ondas” é o falar em línguas
estranhas, o “dom das línguas” que já citamos anteriormente.
A segunda onda expansionista, o deuteropentecostalismo, tem como
núcleo difusor o estado de São Paulo, no início da década de “50”. O seu
surgimento não é resultado de uma evolução das igrejas pentecostais clássicas,
mas sim da ação de missionários estrangeiros. Teologicamente, sua novidade se
concentra na ênfase da cura divina, o que lhe conferiu um significativo aumentode fiéis, transformando o pentecostalismo numa religião de visibilidade nacional,
diferentemente da primeira “onda” cujos pentecostais viviam como parias,
reclusos em suas agremiações e duramente discriminados pelos católicos e pelos
protestantes históricos. O crescimento do número de seguidores, assim como sua
visibilidade é também fruto de sua ação proselitista mais agressiva voltada para
grande massa, utilizando o rádio e grandes cultos a céu aberto como meios
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principais de propaganda de sua fé. Nesta fase, também há uma fragmentação
denominacional na presente na primeira.
A terceira onda expansionista, denominada aqui neopentecostalismo,
apesar de manter muitas características das “ondas” anteriores, sobretudo da
segunda, em que muitos aspectos são radicalizados traz consigo elementos
totalmente novos notadamente aqueles que se referem à ação da religião no
mundo. O neopentecostalismo tem como núcleo central no Brasil o estado do Rio
de Janeiro. Na década de “70” surgiram as primeiras igrejas desta vertente,
oriundas da ação de missionários norte-americanos que “inovaram” o pano de
fundo moral do cenário religiosa brasileiro a partir da divulgação da Teologia da
Prosperidade. É esta teologia a base do “novo” discurso moral, onde a divindade
manifesta sua força mediante benesses materiais concedidas aos seus fiéis
adoradores. O Deus é colocado como salvador das mazelas “deste mundo”, pois
cura doenças, concede prosperidade econômica e conforto afetivo-sexual aos
seus seguidores. Não se tem mais que aguardar uma existência inteira de
sofrimentos e privações de todas as ordens para somente depois alcançar o gozo
num mundo que transcende a este em que vivemos. Agora os fiéis seguidores
alcançam certos gozos de ordem material que são em parte a comprovação de
que Deus está do seu lado. Pensa esta possibilidade há duas décadas atrás seria
desafiar a divindade aprovar sua força com evidências empíricas diretamente na
vida dos fiéis; ou seja, seria uma atitude inaceitável para o discurso religioso de
então.
Os neopentecostais reinterpretaram o sentido do sofrimento, conferindo-lhe
um valor inédito na história do cristianismo. Ao invés da positividade encontrada
nas grandes teodicéias do sofrimento, tendo no cristianismo a cruz como seu
maior símbolo, o sofrimento agora “volta” a ser o sinal da desgraça, da ira ou doabandono da divindade em relação a uma determinada pessoa. Em vista disso, a
luta por reconhecimento também toma outra direção. As recompensas projetadas
no “mais além”, no paraíso post-mortem, não são totalmente abandonadas, mas
passam a um segundo plano em virtude do crescimento valorativo das benesses
“deste mundo”. A prosperidade material e, por conseguinte, o acesso ao consumo
das “maravilhas” do mundo moderno, permitindo um gozo “aqui e agora”, são
perseguidos como recompensa por aqueles que servem ao “Senhor”. Não
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aceitam mais viver como párias nem rejeitar, de forma ressentida o
comportamento das classes dominantes. Buscam o reconhecimento social e
político num mundo que há poucas décadas era rejeitado como “campo do
inimigo”, seara do Diabo. Está última característica revela a oposição que o
neopentecostalismo tem em relação ao momento de surgimento do
pentecostalismo, ou seja, o abandono do ascetismo de rejeição de mundo
característico do período denominado clássico88.
Nesta lógica de entendimento, a figura do diabo também ganha outra
interpretação, assumindo um papel de destaque. É implementada um luta contra
o diabo entendido como o causador de todos os males, tanto de ordem material
quanto de ordem psíquica (espiritual). A figura de Deus, ou como é chamado na
Igreja Universal do reino de Deus, o “Pai das Luzes”, (linguagem nitidamente
oriunda das religiões afro-brasileiras, o que é muito corriqueiro) é agora a força
mágica que liberta os fiéis da ação maligna do diabo e de seus servidores,
concedendo aos seus fiéis, entre outras coisas, benesses materiais.
Se a primeira expansionista pautou-se por uma ferrenha oposição ao
catolicismo, o neopentecostalismo, mesmo condenado os católicos por seus
hábitos como o de beber e fumar, concentra suas forças na oposição radical aos
cultos e ritos religiosos das religiões afro-brasileiras mesmo que muitas vezes
incorpore de forma especular práticas desse tipo de religiosidade.
Por outro lado, algumas inovações se desenvolvem em outros campos de
ação que transcendem o universo tido como o estritamente religioso. Como
exemplo, assistimos à compra de grandes redes de comunicação (emissoras de
rádio e de TV), adotando-se uma estratégia massiva de evangelização como
nunca foi vista antes. Ao mesmo tempo percebemos estas denominações
entrando de forma organizada na vida política, elegendo vereadores, prefeitos,deputados e senadores, formando um bloco político de pressão relativamente
organizado no poder legislativo, conhecido como “bancada evangélica”. È
implementada a idéia de uma nova cruzada que visaria recristianizar o mundo
pelo “alto”.
88 Este abandono é apenas parcial nas igrejas relacionadas ao neopentecostalismo, mesmo nas mais liberais,como é o caso da Igreja Universal, o consumo do álcool, do fumo, as relações sexuais fora do casamento ou
homossexuais são duramente reprimidas.
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Uma lógica de gerência empresarial nas variadas áreas de ação da igreja
também se destaca como uma das características singulares da terceira “onda”. A
cobrança de dízimos é altamente valorizada como um meio de demonstração de
fé, tornando-se assim um importante pilar dessas igrejas, sendo que algumas
igrejas assumem inclusive fins lucrativos.89
Mesmo ainda existindo até hoje denominações das três fases que
apresentamos, o neopentecostalismo segue como largamente dominante, tanto
numericamente quanto pela influência no modelo de práticas de outras igrejas.
Percebemos que muitas igrejas acrescentam ao seu nome o termo renovadas, o
que representa sobretudo a adesão de práticas relacionadas ao pentecostalismo.
O sectarismo das igrejas do período clássico vai desaparecendo aos poucos; a
competição por fiéis acelera essas mudanças, tornando o neopentecostalismo o
modelo a ser seguido devido ao seu vertiginoso sucesso.
Quadro referente às três ondas expansionistas do pentecostalismo no
Brasil
Fases do
Pentecostalismo
Surgimento Principais
denominações
Principais
características
Estrato social
dominante
Pentecostalismo
clássico
1910 Assembléia de
Deus e
Congregação
Cristã no Brasil
Anticatolicismo; dom
das línguas; crença na
volta iminente de Cristo;
salvação paradisíaca;
sectarismo radical e
ascetismo de rejeição
do mundo.
Pobres, Baixa
escolaridade, que
por sua opção
religiosa foram
discriminados e
perseguidos tanto
por católicos
como por
protestantes
históricos.
89 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do nove pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições
Loyola, 1999.
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Deuteropentecostalismo 1950 (São
Paulo)
Evangelho
Quadrangular,
O Brasil para
Cristo, Deus é
Amor, Casa daBenção.
Evangelismo de massa
com auxílio do rádio e
cultos a céu aberto;
ênfase teológica na cura
divina; fragmentaçãodenominacional e
visibilidade nacional.
Pobres, baixa
escolaridade, em
sua maioria
migrantes
nordestinos.
Neopentecostalismo 1970 (Rio de
Janeiro)
Igreja Nova
Vida, Igreja
Universal do
Reino de Deus
e Cristo Vive.
Oposição radical a
cultos afro-brasileiros;
exorcismo (luta contra o
diabo); lógica
empresarial; maior
flexibilidade quanto aos
hábitos (não ascetismo).
Pobres, baixa
escolaridade;
Líderes brancos.
Relevância sociológ ica do neopentecostalismo
No que se refere a sua relevância sociológica, poderíamos dizer em traços
gerais que o neopentencostalismo se caracteriza como uma genuína religiosidade
das massas, e isso se mostra no seu vertiginoso sucesso nas sociedades do
mundo periférico moderno, em especial a América Latina. O neopetencostalismo
surge como um projeto de cristianismo popular do final do século XX e início do
século XXI, que se adapta a realidade da nova geografia da periferia, ou seja, aos
grandes conglomerados urbanos do mundo periférico. No período da expansão
marítima européia o catolicismo representou este projeto de cristianismo popular
que tolerava as tendências mágicas da massa, sincretizando o catolicismo oficial
com a religiosidade popular de um mundo demasiadamente rural. A novidade do
neopentecostalismo não se refere a sua vertente substancialmente mágica, massim à sua capacidade de elaborar um discurso que atenda ás demandas e
estejam sintonizadas com as visões de mundo da “ralé estrutural”90 das
sociedades periféricas. As afinidades e continuidades entre esses projetos de
cristianismo popular ficam claras quando se analisa o grande sucesso do
neopentecostalismo justamente nas regiões outrora colonizadas pelo cristianismo
90 Cf. SOUZA, Jessé. A construção Social da Subcidadania: para uma Sociologia Política da Modernidade
Periférica. Belo Horizonte:UFMG,2003.
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popular católico, permitindo-nos ver o neopentecostalismo como uma forma
renovada, sobretudo urbana e mais eficaz de cristianismo popular.
Neste trabalho nossa atenção se voltará antes para as continuidades do
que para as rupturas relativas aos traços fundamentais do processo da
modernização brasileira está alicerçado no desenvolvimento cognitivo das
religiões deste país. O conteúdo mágico das igrejas neopentecostais não se
apresenta como novidade no cenário religioso brasileiro, mas sim, apenas o
revigoramento sob uma nova linguagem daquilo que marca a nossa experiência
religiosa, ou seja, o “pensamento mágico”. Procuraremos portanto delinear as
afinidades eletivas existentes entre este traço de nosso desenvolvimento cognitivo
religioso com nossa modernização e, num segundo momento a relação deste
desenvolvimento com o comportamento político e a nova linguagem religiosa
neopentecostal.
A nossa proposta de análise parte da tese do Sociólogo Eurico dos Santos,
que por seu lado foi longamente inspirada na sistematização que Wolfgang
Schluchter faz da obra de Max Weber, ou seja, a elaboração de etapas cognitivas
do desenvolvimento ocidental. Santos afirma a ausência marcante de uma
religiosidade ética na história brasileira. Segundo ele, a nossa história colonial
reflete um ambiente de vasta afirmação de crenças mágicas provindas dos índios,
negros e do medievalismo português.
Minha tese aqui é a de que a história da origem da cultura brasileira não
permite que se observe, em escala sociologicamente relevante, a existência dos
processos socioculturais que configuram a instalação de uma base cultural
dualista. Muito pelo contrário, a observação de nossa história religiosa, em
especial ao longo dos seus primeiros trezentos anos, demonstra reiteradas evariadas vias pelas quais aqueles elementos mais abstratos da cultura, que
fundam a possibilidade da elaboração de regras mais concretas, vão formando a
imagem de um mundo monista-mágica. 91
91 SANTOS, Eurico G. C. dos. Política e Magia (na cultura brasileira e) no Distrito Federal. In:_______ARAÚJO, Caetano E. P. de . . .[et. al.] Org. Política e Valores. Brasília, Ed. UnB, 2000. p.
96.
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101
Por conseguinte, o pentecostalismo só vem reiterar a ausência na
sociedade brasileira de uma ética religiosa que contribuísse para o aprendizado
moral, político e social de nossa “ralé estrutural”, a qual, desde a abolição do
regime escravista no final do século XIX, foi lançada à própria sorte num contexto
onde a obtenção de recursos cognitivos para interagir com valores e instituições
impessoais tornou-se cada vez mais uma questão de sobrevivência material e
simbólica em toda a sociedade. O excelente estudo de Ângela Randolpho92
comparando o papel que a religião desempenhou no Brasil e nos Estados Unidos
com relação à criação de condições para que os seguimentos marginalizados
pudessem, de fato, se tornar cidadãos, confirma a importância da dimensão
religiosa no aprendizado de valores e na obtenção de recursos cognitivos e
avaliativos necessários ao exercício jurídico e político da própria cidadania.
Nos Estados Unidos, a pluralidade de denominações e seitas protestantes
quiseram e conseguiram patrocinar, através dos Great Awekenings e das ações
missionárias ocorridos a partir de meados do século XVIII, um aprendizado
coletivo à margem do poder Estatal, que forneceu aos negros libertos da
escravidão apoio não assistencialista para se inserirem autonomamente nas
relações impessoais e na luta política. Um exemplo concreto disso viria a se
manifestar somente mais tarde no Movimento Pelos Direito Civis que, a partir da
década de 1950, representou uma inédita vitalidade política que gerações
descendentes de ex-escravos alcançaram comparativamente às gerações
anteriores. Fundamental em todo esse processo foi o duro – mas indispensável –
aprendizado de uma linguagem moral que permitisse ultrapassar a simples
violência como forma de protesto. Foi preciso que as diversas igrejas
protestantes assumissem o compromisso de fornecer uma linguagem moral à luta
dos negros para que eles conseguissem dispensar o recurso à violência comoforma de obter visibilidade pública.93 As igrejas protestantes norte-americanas
cumpriram não só o papel de fornecer um contexto de “encorajamento” e de
minimização das ansiedades e dos medos que freiam o aprendizado e o
engajamento político, mas também viabilizaram algo que inexiste no movimento
92 PAIVA, Ângela Randolpho. Católico, Protestante, Cidadão: Uma Comparação entre Brasil e EstadosUnidos. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.93HONNET, Axel. Invisibility: on the epistemology of ‘recognition’.
http://www.ifcs.ufrj.br/cefm/textos/HONNETH.DOC , acessado em 09 de junho de 2004, 00: 12h
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pentecostal e neopentecostal brasileiro: disponibilizar nesse mesmo contexto uma
linguagem religiosa que permita aos crentes incorporar e internalizar esquemas
cognitivos e avaliativos suficientes para que eles possam tomar posições políticas
autônomas e não personalistas. Segundo a própria autora, “a esfera religiosa é
capaz de promover não apenas liberação individual, mas também uma orientação
para a solidariedade social através do amor impessoal.”94 Estamos convictos que
é precisamente este segundo componente – essencialmente ético – que falta no
novo protestantismo de massas urbanas que nas últimas décadas vem se
mostrando como um fenômeno sociológico típico de sociedades modernas
periféricas como o Brasil.
No caso brasileiro, a política tem sido influenciada pela religião de uma
forma bastante diferente. Aqui, ao invés do aprendizado coletivo extra – estatal,
tivemos – e ainda temos – uma religiosidade que buscou predominantemente
estabelecer sua influência dentro do próprio Estado, inclusive ocupando as mais
altas posições. Essa estratégia jamais levou em consideração a questão do
aprendizado coletivo e, por conseguinte, da construção ou da ampliação da esfera
política apartada do poder formal, compatibilizando-se com práticas clientelistas e
assistencialistas, quando necessárias para chegar ao poder, e não com o
enriquecimento e a emancipação cognitiva da massa.
Aprendizado pol ítico e reconhecimento
Na periferia em geral, e no caso brasileiro em particular, teria ocorrido um
processo seletivo de modernização, responsável pela difusão e pela incorporação
diferencial dos valores e da “conduta de vida” ocidental pelos diversos grupos e
classes que constituem a sociedade. Os grupos dominantes, além de serembeneficiados pela distribuição da renda e dos recursos econômicos, seriam
“suportes” das concepções de mundo ocidentais e individualistas, enquanto os
setores e as classes populares apegam-se ou são atraídos por formas “pré-
modernas” e não individualistas de perceber o mundo e as relações sociais:
Nesse novo contexto, a estratificação social vai ser determinada a partir da
94 RANDOLPHO, Op. Cit, 2003, p. 147.
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perspectiva de quem contribui para o progresso social segundo uma hierarquia
valorativa cujo suporte social são as classes dominantes.95
No pólo oposto, temos uma enorme “subclasse” que se constitui
historicamente sob a base perversa da inexistência de ambientes de socialização
e de aprendizado moral indispensáveis ao desenvolvimento de uma
personalidade do tipo moderna. Pretendemos aqui chamar a atenção para a
especificidade desse abismo moral e cognitivo característico de uma sociedade
como a brasileira, a partir da forma como isso se reflete e se atualiza no
crescimento das igrejas e seitas pentecostais e neopentecostais descrito acima.
A grande maioria dos fiéis atraídos por essas igrejas e seitas pertence,
como vimos anteriormente, às classes mais pobres e com menor escolaridade de
toda a sociedade. Em um de seus primeiros trabalhos sobre a realidade brasileira,
Jessé Souza tenta demonstrar que estes setores mais despossuídos e menos
escolarizados são os que sustentam e legitimam “atitudes antidemocráticas e
expectativas clientelistas . . .preconceitos contra grupos étnicos e minorias
sociais.”96 Essa “base” de nossa pirâmide social seria, dessa forma, o principal
suporte e fonte de legitimidade de posições políticas conservadoras e autoritárias,
responsáveis tanto pela violação dos direitos e da igualdade formal, como
também por condenar e denegrir reivindicações de auto-determinação individual
no que tange a escolhas próprias nas esferas familiar, do trabalho, religiosa e
sexual.
São também os membros dessas classes que, em sua maioria, se mostram
simpáticos a lideranças políticas “fortes” e capazes de impor a ordem e de fazer
valer os interesses de quem os apóia. O estudo que estamos realizando sobre o
crescimento do pentecostalismo e do neopentecostalismo – do qual esse texto é
um resultado parcial – pretende apreender precisamente a forma como esse “nãoaprendizado” dos valores individualistas e democráticos possui fortes afinidades
eletivas (como diria Weber) com uma “linguagem religiosa” característica das
massas que vivem na periferia de nossas grandes e médias cidades. Não se
trata, como muitos autores fizeram, de imaginar essas denominações
95 SOUZA, Jessé. “Modernização Diferencial e Democracia no Brasil: Uma Tentativa Teórico/ Empírica deInterpretação”In: ______. Et all. Política e Valores. Brasília: UNB, 2000b. p. 216.96 Ibidem, p. 201
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protestantes como desempenhando uma tarefa similar àquela realizada pelo
protestantismo ascético nos Estados Unidos e na Europa.
O nosso ponto de partida já é o de uma sociedade capitalista, na qual os
valores ocidentais individualistas estão disponíveis e constituem uma
possibilidade para os sujeitos em suas escolhas existenciais e políticas.
Queremos, na verdade, compreender o fenômeno religioso neopentecostal a
partir do modo como ele se articula com a especificidade de nossa estratificação
social, marcada, entre outras coisas, por um aprendizado seletivo e diferencial de
visões de mundo e de orientações normativas que se reflete, por exemplo, no
comportamento político dos fiéis. Esse comportamento pode ser percebido no
contexto mais restrito de instituições (no voto) ou na formação da vontade política
propriamente dita, a qual geralmente extrapola esses contextos mais
institucionalizados. No entanto, a dimensão política é apenas um caminho que
nos permite mapear as razões fundamentais que conferem ao comportamento da
“ralé” um caráter estrutural e generalizante, constituindo uma forma sistemática e
coerente que se reitera nas relações com todas as instâncias do poder impessoal
que é dominante em uma sociedade moderna como a nossa.
O crescimento das igrejas protestantes pentecostais e neopentecostais
parece refletir e ao mesmo tempo constituir o processo seletivo e diferencial de
aprendizado moral e político que singulariza a modernidade brasileira. O caráter
essencialmente “mágico” dessa nova religiosidade de massas urbanas não
favorece a formação de uma leitura e de uma apreensão do mundo baseadas em
um conjunto de orientações éticas e normativas. Dessa forma, os estratos sociais
que, por razões que logo serão frisadas, já possuem uma visão de mundo incapaz
de permitir que a conduta social e política seja orientada por critérios abstratos e
impessoais, não encontram na linguagem religiosa fornecida pelo movimentoneopentecostal uma oportunidade de aprender e de incorporar os novos valores
que vão comandar o referencial normativo que se estabelece com a chegada das
instituições fundamentais do mundo moderno.
O estudo realizado por Eurico dos Santos97 na cidade de Brasília chega a
conclusões que reforçam essa tese. Seu principal argumento é o de que a
97 SANTOS, Eurico Gonzáles Cursino. “Política e Magia(na cultura brasileira) e no Distrito Federal” In:
SOUZA, Jessé. et alii(org). Política e Valores. Brasília: UNB, 2000. p. 78-116
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constituição de uma autonomia individual capaz de assegurar e de legitimar
atitudes políticas tolerantes, flexíveis e anti-personalistas depende da existência
de uma esfera ética que permita aos sujeitos a possibilidade de pautar suas
escolhas políticas e existenciais em princípios abstratos e não somente em
interesses e necessidades imediatas. Segundo ele, não teria se constituído no
Brasil uma esfera religiosa suficientemente autônoma em relação às
necessidades mundanas mais imediatas, de onde pudesse emergir um conjunto
coeso de valores e regras que permitisse o desenvolvimento de um “ego forte e
bem definido”98 capaz de dar suporte a processos reflexivos de formação da
vontade política. Os setores e classes sociais que adotam as posturas políticas
mais individualistas e tolerantes, não só possuem mais escolaridade, como
também não estão inseridos no universo de religiosidade mágica que, atualmente,
encontra no movimento neopentecostal seu principal representante, sobretudo
entre a fração urbana de nossa “ralé estrutural”.
Por outro lado, atitudes mais intolerantes com relação ao ateísmo, ao
homossexualismo, à prostituição e à opção pelo suicídio caracterizam
precisamente as camadas menos instruídas e mais apegadas a uma visão
mágica do mundo. Eurico, assim como nós, está preocupado com as pré-
condições cognitivas e morais necessárias a que ações e escolhas políticas, no
sentido mais amplo possível do termo, sejam pautadas por referencias éticos e
normativos que, por um lado, ultrapassem o padrão personalista e clientelista, e,
por outro, permitam a consideração tolerante e até positiva de particularidades
individuais que não estejam enquadradas nos padrões convencionais de gênero,
sexualidade e religiosidade. São as estruturas éticas objetivas, como enfatiza
Schluchter 99, que determinam quais tipos de consciência os atores podem ou não
ter do seu meio físico e social. O desenvolvimento da personalidade (ontogênese)dá-se por meio da internalização de normas que já devem estar disponíveis nas
estruturas éticas (filogênese)100. Isso pode ser compreendido como um processo
de aprendizado pessoal e coletivo que pode representar a incorporação de
98 Ibidem, p. 100.99 Cf, por exemplo, SCHLUCHTER, Wolfgang. The Rise of Western Rationalism: Weber's Developmental History. Berkeley: University of California of Press, 1981100 Ibidem, p. 40.
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normas e princípios cada vez mais abstratos e generalizáveis, caso estes
correspondam ao desenvolvimento ético de uma sociedade ou civilização.
A singularidade ocidental teria sido marcada por um tal processo de
desenvolvimento ético, até o ponto onde tipos flexíveis e autônomos de
consciência fossem nutridos por um horizonte normativo que permite avaliar
ações e escolhas – inclusive ações e escolhas políticas – de acordo com
princípios reflexivos. No entanto, como também destaca Schluchter, as
possibilidades éticas objetivas pressupõem competências cognitivas por parte dos
sujeitos que deveram estar orientados por elas, porém não assegura que eles
terão essas competências. Isso pode, em parte, explicar por que valores e visões
de mundo existentes em uma sociedade podem ser compreendidos e
apreendidos apenas por determinados estratos sociais, como foi e tem sido o
caso do processo de modernização ocorrido no Brasil.
Há, no caso brasileiro, uma massa considerável de pessoas que
historicamente não pode contar com ambientes de socialização e de aprendizado
coletivo suficientes para que se formassem as pré –condições cognitivas
indispensáveis para perceber e agir segundo valores e orientações normativas
desvinculadas de relações pessoais de favor e proteção. Assim, embora haja um
horizonte normativo que sirva de referência para aqueles que reúnem as
condições e competências cognitivas para se orientar por critérios e regras
impessoais, a estratificação social como um todo é constituída por uma camada
imensa de pessoas que não dispõem das condições necessárias para isso.A
questão fundamental que aí se coloca é a seguinte: o que caracterizam os
contextos e as condições sociais que, segundo nossa linha de argumentação,
impedem o aprendizado coletivo pressuposto para que as ações e as relações
entre os membros dessa imensa camada sejam marcadas por normas abstratas epor atitudes tolerantes? Ou então, por que as classes de baixa renda e
escolaridade se distinguem, enquanto classe, também por compartilharem um
outro tipo de personalidade que é construído reativa e depreciativamente em
relação a um padrão tido como superior e peculiar à classe média?
Para compreender esse processo é necessário pressupor que a forma
como os indivíduos avaliam e agem sobre o mundo está relacionada àquelas
propriedades e capacidades que eles puderam incorporar na constituição de suas
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identidades. Propomos aqui uma compreensão desse processo a partir da “teoria
do reconhecimento social”, de tal forma a poder demonstrar – por enquanto
apenas ensaísticamente – como ele é, no caso brasileiro, influenciado pela
novidade que o neopentecostalismo representa na condição de uma religiosidade
cujo suporte principal é a “ralé”, sobretudo seu segmento urbano.
Axel Honneth101nos oferece uma abordagem muito interessante sobre esse
processo, na qual encontramos a possibilidade de apreender, por um lado, a
necessária vinculação entre o aprendizado moral de indivíduos e camadas sociais
a um horizonte ético já disponível, e, por outro, as pré-condições psicossoais que
indivíduos e camadas sociais devem reunir para que o próprio aprendizado, em
tese permitido por aquele horizonte, seja efetivamente realizado.
A primeira exigência para que indivíduos e coletividades possam aprender
é a existência do que aprender, ou seja, de dimensões e formas de avaliar o
mundo e as relações sociais disponíveis no vocabulário avaliativo de uma
sociedade e que possam estar presentes nas relações de reconhecimento.
Segundo Honneth, esse vocabulário avaliativo, ou outros critérios institucionais de
avaliação moral nem sempre articulados lingüisticamente, corresponde à forma
como os sujeitos se reconhecem e em torno de que propriedades e dimensões
eles realizam esse processo. O conflito social seria, dessa forma, decorrente do
caráter restrito e opressor que as concepções de boa vida, em algum momento,
acabam assumindo diante das exigências de que novas dimensões e maneiras de
se viver uma vida valiosa e significativa sejam levadas em consideração. É
exatamente isso que Honneth chama de luta por reconhecimento: a busca
conflituosa por etapas mais abrangentes de eticidade intersubjetiva que forneçam
validade para uma identidade individual sempre mais exigente.
A modernização brasileira, como Jessé Souza procura argumentar, émarcada pelo fato de que as classes e os setores “europeizados” tornaram-se o
suporte social dos atributos e dimensões que constituem o individualismo moral,
tanto no que se refere ao tema da dignidade como o da autenticidade. Tanto a
percepção que esses segmentos têm do Estado e da política, como dimensões
impessoais que devem assegurar direitos e seguir regras, assim como as atitudes
101 Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo:
Editora 34, 2003.
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mais tolerantes que dispensam a questões “polêmicas” como o homossexualismo,
ou até mesmo a própria recusa do clientelismo como modelo adequado de
relacionamento político, revelam, na verdade, um padrão de aprendizado moral
muito semelhante àquele que, em sociedades centrais, não fora privilégio de uma
só classe.102Com isso, a questão passa a ser a seguinte: como explicar, no caso
brasileiro, a partir da teoria do reconhecimento, o fato de que uma camada
imensa de pessoas não passou pelo processo de aprendizado moral e político
que, em certo sentido, é uma possibilidade, uma vez que somos um país
moderno?
A resposta que podemos oferecer ainda é parcial, é que essa camada é de
tal modo privada de certos tipos de reconhecimento social que seus membros não
conseguem formar as pré-condições psicossociais necessárias ao
desenvolvimento de uma individualidade capaz de se engajar em relações e
valores modernos e impessoais, ou sustentar posições políticas tolerantes e não
autoritárias. A confiança e a capacidade de referi-se positivamente a instâncias
impessoais como o Estado e a política moderna depende de um processo anterior
de socialização, ocorrido nas relações pessoais mais íntimas e precoces, no qual
os sujeitos aprendem primeiramente a confiar em pessoas e em “outros
concretos”103.
Honneth analisa esse processo como sendo a primeira e mais elementar
experiência de reconhecimento na trajetória de uma pessoa. Para ele, através da
amizade, e sobretudo do amor entre pais e filhos, os sujeitos experimentam sua
primeira forma de aceitação, como seres carentes e que podem satisfazer suas
carências num contexto de encorajamento. As experiências da primeira infância
caracterizadas como fundamentais incluem acima de tudo o sucesso das relações
102 É preciso esclarecer que não pretendemos demonstrar ou defender a tese de que posturas e opiniõesintolerantes e anti-democráticas não existam nos setores médios e mais abastados da sociedade brasileira.Peculiaridades regionais, interesses econômicos e opções políticas claramente conservadoras fazem com que parte considerável desses setores se alinhem com posturas e opiniões desse tipo. Tendemos, no entanto, ainsistir na idéia de que esse alinhamento é realizado de forma consideravelmente mais “autônoma” ereflexiva do que no caso da “ralé”, justamente por que a “ralé” é privada dos recursos morais, cognitivos e“psíquicos” necessários a realização de escolhas políticas e existenciais distintas com um nível razoável de“refletividade” e “autonomia”.103 TAYLOR, Charles. “A Política do reconhecimento” In:________. Argumentos filosóficos. São Paulo: Ed.
Loyola, 2000a. p.241-274.
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afetivas, especialmente entre mãe e filho, de superar o equilíbrio precário entre
simbiose e auto-afirmação existente entre os dois.
A oferta afetiva incondicional é decisiva na constituição bem sucedida do ego,
isto é, de uma personalidade livre de ansiedades paralisantes que são capazes
de impedir a formação e a publicização de opiniões, de limitar a capacidade
deliberativa acerca de outras opiniões e, acima de tudo, de facilitar a alienação do
próprio ego – e portanto, de todas essas capacidades – em nome da necessidade
de aderir acriticamente a algum tipo de ídolo104. Não apenas as situações
precoces de ameaça das relações com as figuras concretas da mãe, na qual –
como vimos – o bebê é forçado a aceitar a autonomia de seu “objeto” de
referência, mas também as situações adultas de humilhação, produzem e
reforçam as ansiedades adquiridas desde a mais tenra infância.
É precisamente nesse período, como mostra Georg Herbert Mead, que o
sujeito vivencia suas primeiras relações simbólicas com “outros concretos”, a
cujos comportamentos tendem imitar como forma básica de receber aprovação.
Essa aprovação inicial, oferecida necessariamente por “outros concretos”, é uma
pré-condição para que os indivíduos possam confiar e considerar “outros
generalizados”105 como referência palpável de coordenação de suas ações e
escolhas existências e políticas, sejam esses “outros” instituições impessoais ou
valores abstratos.
A autoconfiança obtida nas relações afetivas primárias será a base para
um sentimento de estar em ordem, de ser alguém, e de se tornar aquilo que
outras pessoas confiam que ele se tornará. Essa fé mais primitiva na
fidedignidade e sustentação dos seres humanos constitui o que Giddens chama
de “segurança ontológica”, ou, como ele prefere, “a crença que a maioria do seres
humanos tem na continuidade de sua auto-identidade e na constância dos
ambientes de ação social e material circundantes”.106A confiabilidade na
sustentação dos seres humanos ou, como diria Mead, em “outros concretos”,
forma um primeiro compromisso social “com rosto” que será decisivo para que um
104 HONNETH, Axel. “ ‘Anxiety and Politics’ : The Strengths and Weaknesses of Franz Neumann’sDiagnosis of a Social Pathology”. Constellations. Vol. 10, N.2, 2003. p. 247-254.105 Cf. HONNETH, Op. Cit., 2003, parte II.106 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed Unesp, 1991, p. 95.
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indivíduo possa, em sua fase adulta, desenvolver compromissos “sem rosto” com
instituições e valores abstratos sem a mediação concreta e personalizada de
outros indivíduos.
Para Giddens, a “segurança ontológica” é um pré-requisito emocional, sem
o qual a capacidade cognitiva de perceber e de se posicionar diante da “presença
ausente” de instituições e de princípios abstratos e despersonalizados não pode
ser alcançada. Essa capacidade – a ser desenvolvida nas relações futuras de
reconhecimento social – é fortemente prejudicada por formas paralisantes de
ansiedade, responsáveis por minar o aprendizado moral de valores e princípios,
em prol de uma necessidade constante de que todas as relações sejam pautadas
pela mediação personalizada de indivíduos concretos. A contribuição de Giddens
é extremamente válida, uma vez que nos ajuda a perceber melhor a forma como
as experiências primeiras e mais íntimas de aceitação social acabam sendo
decisivas no controle ou na criação de ansiedades e patologias que vão
influenciar nas relações futuras e mais ampliadas de reconhecimento, onde
efetivamente ocorre o aprendizado moral e político disponível no horizonte
normativo de uma sociedade.
Apontamentos finais
Feitas essas considerações, podemos afirmar que o padrão de relações
familiares da “ralé estrutural” da sociedade brasileira é marcado pela inexistência
da oferta afetiva incondicional, a partir da qual as ansiedades e “inseguranças
ontológicas” que impedem o aprendizado moral pudessem ser mitigadas. No caso
do crescimento do pentecostalismo, o que temos é uma parte dessa “ralé”
buscando novos contextos para amenizar essas ansiedades e “inseguranças
ontológicas” através da mediação com “outros concretos”, como os deuses e
demônios percebidos de forma altamente personalizada, ao invés de
representarem regras éticas e princípios abstratos.
A “magia” atrai a “ralé”, pelo menos nesse caso, por que ela fornece um
contexto psicossocial que permite mitigar ansiedades e formas depreciativas de
auto-percepção, isto é, os desdobramentos psíquicos das experiências de não
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reconhecimento e de desrespeito, através de recursos cognitivos e avaliativos já
incorporados por essa “ralé”. A oposição binária “bem/mal” é representada
respectivamente no neopentecostalismo pelas figuras concretas do “pai das
luzes” e do diabo e seus seguidores; enquanto o primeiro realiza milagres e
distribui bens materiais e espirituais, aos segundos são atribuídas toda a culpa e
responsabilidade pelos males e sofrimentos que afligem um indivíduo. Na
verdade, a identificação “mágica” das forças que privam a pessoa de sua
autonomia constitui o principal recurso capaz de aliviar o sofrimento causado por
trajetórias marcadas pela ausência de formas básicas de reconhecimento social.
A principal lesão causada pela ausência de reconhecimento dos outros é o
sentimento de culpa e de inferioridade que impede uma pessoa de ter auto-
confiança, auto-respeito, e auto-estima. A eficácia da linguagem neopentecostal
estaria, desta forma, vinculada ao alívio que ela oferece a essa lesão, na medida
em insiste na idéia “mágica” de que a pessoa está possuída por espíritos do mau
e por isso mão pode ser responsabilizada pelas mazelas que a afligem nem pelas
condições degradantes de vida que seu comportamento tende a reforçar.107
Se os servidores do diabo são os responsáveis por problemas como o
alcoolismo, a violência doméstica e tantas outras formas de mazelas familiares e
existências, não há por que o indivíduo sentir vergonha ou culpa de sua condição
social. A presença de agentes malignos se apoderando da autonomia e da
capacidade de discernimento dos sujeitos tira-lhes a sensação de que seu
fracasso advém de suas próprias escolhas e, conseqüentemente, de que eles
tenham qualquer culpa ou responsabilidade sobre ele. As principais
denominações pentecostais não cansam de ressaltar que apenas uma
participação ativa e permanente nas atividades religiosas podem assegurar
proteção contra esses agentes malignos, não podendo haver nenhum tipo derelativização, por parte do “crente”, da leitura mágica que é feita do mundo e de
seus problemas. Essa leitura consiste, na verdade, em uma visão de mundo onde
toda forma de alteridade é percebida como ameaçadora, sendo rapidamente
107 Cf.LAURENT, Pierre –Joseph. “The Faith-Healers of the Assemblies of God in Burkina Faso: TakingResponsibility for Diseases Related to ‘living Together’”. Social Compass. 48(3), 2001. p. 333-351. Nesseestudo de caso o autor demonstra empiricamente como esse mecanismo de aliviar a culpa e levantar a auto-estima dos fiéis têm sido o principal responsável pelo crescimento da Igreja Assembléia de Deus entre os
camponeses e os setores urbanos de baixa renda am Burkina Faso.
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associada com a ação que agentes do mal empreendem no intuito de
desencaminhar os homens. As escolhas políticas e existenciais devem assumir
obrigatoriamente uma negação de toda alteridade, uma vez que qualquer
relativização da rígida divisão bem/mal traria o “crente” para uma condição de
vulnerabilidade frente à ação permanente dos agentes malignos. Segundo
Ricardo Mariano, "esses crentes não estão nenhum pouco dispostos a abrir mão
do sentido que o personagem Diabo e seu criador e oponente, Deus, são capazes
de conferir a caótica, precária e sofrida vida humana".108
Essa forma peculiar de conservadorismo político já havia sido percebida
por Eurico dos Santos como um componente intrínseco das visões “mágicas” de
mundo vindo corroborar nossas considerações teóricas e reforçar a tese de que
determinadas posições políticas só são viáveis aos grupos e classes que passam
por certas experiências de aprendizado moral, das quais emergem uma estrutura
sistemática de comportamento social que tende a se manifestar reiteradamente
em todas as escolhas, inclusive na “opção” de abrir mão de escolher. Podemos
inferir pois que o sucesso do pentecostalismo entre parte de nossa “ralé
estrutural” advêm dos recursos discursivos que as igrejas e seitas
neopentecostais oferecem aos fieis para mitigar ansiedades e “inseguranças
ontológicas” desenvolvidas em experiências de não reconhecimento social. Isso,
em tese, recuperaria as condições psicossociais exigidas para que os sujeitos
possam passar pelos processos de aprendizado moral e político, que as
instituições e os valores individualistas modernos já haviam permitido aos setores
“europeizados”. No entanto, a mesma linguagem religiosa que parece conseguir
recuperar essas condições psicossocias acaba sendo também responsável por
exigir que os fiéis sustentem uma leitura inflexível, simplificada e personalista das
escolhas políticas, existenciais e das relações sociais como um todo.Podemos sugerir que a filiação pentecostal não faz mais do que fornecer
condições – inéditas – de se ter o reconhecimento de “outros concretos”, posto
que um aprendizado capaz de levar à superação dos padrões clientelísticos e
autoritários – tomando como referência “outros impessoais e generalizados” –
arraigados no comportamento da “ralé” não é e nem pode ser empreendida num
108 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições
Loyola, 1999, p. 110.
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contexto onde a própria autonomia política e existencial é o preço a ser pago por
esta forma básica de reconhecimento que os sujeitos não tiveram nas relações
familiares.
A permanência do clientelismo e do populismo em nossa vida política deve
ser atribuída ao mesmo processo diferencial e seletivo de aprendizado que, desde
o fim da escravidão, vem produzindo uma “ralé” que tende a perceber e avaliar,
em lugar de valores e ideologias, apenas pessoas e arranjos pessoais. O recorte
de classe no Brasil não é como nas sociedades centrais, onde a disputa social se
traduz politicamente em ideologias e projetos nacionais diferenciados; no nosso
caso, uma “subclasse” – que sempre fora maior do que a própria classe operária
–é também despossuída dos recursos psicossociais, cognitivos e avaliativos
necessários à participação, ainda que restrita a eleições, na política moderna.
O personalismo e os “arranjos coronelistas” são engendrados na política
brasileira majoritariamente a partir dessa “ralé” privada, em quase toda sua
extensão, de formas primárias de reconhecimento social. Dessa forma, até
mesmo a fração mais moderna de nossa política, a 10 anos no poder, é obrigada
a fazer composições com os focos de poder clientelístico e “pré–ideológico”109que
encontram legitimidade nessa massa destituída de aprendizado social. Pode-se
falar, talvez, dos efeitos perversos e patológicos desse não reconhecimento como
muito semelhantes aqueles que Joaquim Nabuco atribui com genialidade à
escravidão e à ausência de uma política que tentasse evitar que a herança
escravocrata se estendesse até os nossos dias. Da mesma forma que as
propostas políticas mais retrógradas e anti-liberais encontraram apoio e
sustentação na “ralé” recém liberta do cativeiro no final do século XIX e início do
XX, temos hoje, cem anos depois, um Severino Cavalcanti110 como o retrato fiel
da linguagem moral e política que constitui a visão de mundo de nossa “ralé”atualizada.
109 Cf. REIS, Fábio Wanderley. “Brasil: “Estado e Sociedade” em Perspectiva. In: ______. Mercado eUtopia: Teoria Política e Sociedade Brasileira. São Paulo: Edusp, 2000110 Presidente da câmara de deputados da federação que defende abertamente o clientelismo, o nepotismo e as
relações pessoais na política.
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