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DO INFERNO DE DANTE À COCANHA: FOMES E GULAS
MEDIEVAIS
CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro1
Introdução
Comer é uma necessidade fisiológica. Mas quando se reflete sobre a alimentação do
ponto de vista antropológico, ou histórico, tal afirmação soa no mínimo incompleta. E
quando se trata da Idade Média na Europa, falar de comida é como falar de qualquer outro
assunto: uma questão de pecado e salvação. Ao mesmo tempo, é abordar uma era de
extremos: de grandes períodos de fome e consequente redução demográfica, sempre
associados ao castigo divino; até a concepção de lugares transcendentes: terras longínquas
feitas de comida e bebida, mas também o Inferno e o Purgatório, para aqueles que
idolatram a comida e a bebida desmedidas. A Idade Média é o tempo dos jejuns forçados e
dos banquetes desregrados; de Quaresmas e Natais pontuando as dietas.
O período medieval foi o tempo em que nobres, clero e camponeses lidaram de
maneiras diferentes com os alimentos disponíveis, mas todos legaram suas dietas e
conhecimentos culinários aos tempos posteriores. Este é o foco deste estudo: a alimentação
medieval, em sua dimensão prática (ingredientes, preparo e consumo) e transcendente, ou
seja, espiritual. Daí apresentar diversas representações, como as Regras de São Bento (Alta
Idade Média), a visão de Dante (Divina Comédia) e a utopia dos gulosos, a Cocanha (estes
da Baixa Idade Média).
Dieta medieval
A Alta Idade Média foi um período de fomes e privações. Os significativos
progressos agrícolas vieram por volta do ano 1000, com novas técnicas que tornaram a
1 Universidade Estadual de Londrina.
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produção de alimentos mais eficiente. BASCHET (2006, p. 102) cita o desmatamento e a
ampliação de área de cultivo (os essarts, ou clareiras) como sinais deste progresso. A
paisagem européia muda radicalmente: “estabelece-se a rede de aldeias, tal como ela irá
subsistir, no essencial, até o século XIX, e a relação quantitativa entre as zonas incultas ou
de matas (saltus) e o território humanizado (ager) mais ou menos inverteu-se”.
No decorrer do século XI, informa o autor, as aldeias aumentaram suas áreas
cutivadas. No século XII, foi a vez dos mosteiros e novos aldeões. Particularmente, os
monges cistercienses, por viverem mais isolados, aprimoraram suas técnicas agrícolas.
Citando Marc Bloch, Baschet diz que foi o maior aumento de terras cultivadas na Europa
desde a Pré-História.
É evidente que a “revolução agrícola” (conforme alguns autores defendem) não
ocorreu de forma imediata e universal. DUBY (1993, p. 107) cita Raul Glaber, que falou
de uma fome que “devastou a Borgonha” em 1033. O clima não ajudou e as hostilidades
entre grupos humanos pioravam tudo. O excesso de chuvas fez proliferar
incontrolavelmente as ervas e o joio. Duby diz que a Grécia, a Itália, a Gália e a Inglaterra
foram atingidias: “Como a falta de alimentos atingia a população toda, os grandes e os da
classe média tornaram-se parcos com os pobres, as pilhagens dos poderosos tiveram de
parar perante a miséria universal” (idem, p. 107-8).
A fome levou as pessoas a atitudes inumanas: “quando acabaram de comer os
animais selvagens e as aves, os homens, sob o domínio de uma fome devoradora,
começaram a apanhar para comer toda a espécie de cadáveres e de coisas horríveis de
contar”. E, logicamente, o fenômeno era espiritualizado: “o único recurso contra a
vingança de Deus era a meditação”. Mutilação, assassinato, canibalismo e até comércio de
carne humana fazem parte das narrativas da época. Muitos tentaram migrar, mas a inanição
os alcançou antes de chegarem ao seu destino.
DUBY (idem, p. 110) continua, apresentando a perspectiva espiritual dos fatos:
O mundo, para castigo dos pecados dos homens, foi vítima deste flagelo de penitência durante três anos. Retiraram-se então, para serem vendidos em proveito dos indigentes, os ornamentos das igrejas; dispersaram-se os tesouros que, como se vê nos decretos dos padres, tinham outrora sido constituídos para este efeito. (...) Quanta dor, quantas aflições, quantos soluços, queixas, lágrimas para os que viam tais coisas, sobretudo entre as pessoas da Igreja, bispos e abades, monges e monjas, e em geral, entre
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todos aqueles, homens e mulheres, clérigos e laicos, que tinham no coração o temor a Deus! As palavras escritas não podem dar uma idéia de tudo isto. (...) Então nosso tempo viu realizar-se a palavra de Isaías que dizia: ‘O povo não se voltou para aquele que o castigava’.
Por outro lado, é o próprio DUBY (1990, p. 577) que anota que no final da Idade
Média os corpos estavam muito melhor alimentados do que nos séculos anteriores. Ele diz
que os sobreviventes da Peste Negra (década de 40 do século XIV) e seus descendentes
conheceram condições materiais melhores, como uma maior produção cerealista, maior
consumo de carne, de vinho e de cerveja. Há registro de melhores soldos, alimentação de
doentes hospitalizados, regime calórico equilibrado estudado em Arles (meados do século
XV), atenção ao valor nutritivo dos alimentos. Um hábito era questionado: compartilhar
alimentos. Beber do mesmo jarro era sinal de polidez e até solidariedade, mas também
podia ser causa de transmissão de doenças.
MACDONALD (1995, p. 16) informa que “por seus livros de receitas sabemos que
os reis e os nobres da Idade Média gostavam de comida farta e bem temperada, que exigia
muitas horas de trabalho dos servos para ser preparada”. Segundo a autora, a dieta dos
ricos incluía muita carne e especiarias importadas, como açúcar, passas e vinho. Ao invés
de pratos, grandes pedaços de pão amanhecido. Eram os restos destes pães que eram dados
aos pobres, além de outras sobras, como ossos.
D’HAUCOURT (1994, p. 44-45) aponta que eram usadas tigelas, colheres, facas,
mas não garfos nem pratos ou guardanapos. As toalhas só eram postas à mesa em dias de
festas importantes ou em casas ricas. Só no século XIV o uso de toalhas começou a se
tornar comum, assim como os talheres foram vulgarizados no Renascimento. Quando
usadas, as toalhas eram bem maiores que as mesas e os convivas aproveitavam o fato para
limpar os dedos nelas. Por isso, nos grandes jantares, as toalhas eram trocadas após o
consumo dos pratos principais.
Já o povo comum tinha, obviamente, uma alimentação muito mais simples: pão
preto, algum queijo, ovos,e vegetais da própria horta, que podiam ser alho-poró, vagens,
cebolas e repolho. MACDONALD (1995, p. 17) diz que “costumavam fazer uma sopa
espessa de ervilhas secas, chamada pottage, que era muito bem vinda depois de um dia de
trabalho árduo no campo. Algumas famílias tinham um porco, que matavam no outono”.
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Esta carne era defumada para durar todo o inverno, já que não havia dinheiro para comprar
especiarias ou às vezes nem sal, para conservar a carne ou disfarçar o gosto.
D’HAUCOURT (1994, p. 40) afirma que os produtos locais eram a base da
alimentação dos medievais, “daí a elaboração em cada região de preparos e de hábitos
culinários, dos quais muitos ainda sobrevivem”. Foi o crescimento urbano e comercial que
trouxe maior diversidade à dieta: “Os parisienses do século XIII comiam carne de bois
normandos e até da Savóia, peixes frescos pescados na Mancha e, nas mesas dos ricos,
havia tâmaras, figos secos, limões e laranjas” (idem).
A autora observa que alguns alimentos eram, porém, essenciais a todas as classes.
Melhor exemplo é o pão, que podia ser de trigo, centeio ou cevada. A carne era um regalo,
e sua privação uma penitência. Podia ser boi, vitelo, carneiro, porco, conforme as
condições familiares. Raramente, porém, os animais engordavam muito.
A caça era normalmente permitida só aos senhores das terras, a partir do século IX.
Quanto aos animais domésticos, havia coelhos, galinhas, pombos e gansos. Cisnes e
pavões eram apenas dos nobres. Segundo LE GOFF e TRUONG (2006, p. 136), “as aves
domésticas eram particularmente estimadas”.
Quanto aos legumes, eram consumidas as favas, ricas em proteínas, e as ervilhas,
comidas com toucinho. Havia ainda repolhos, cebolas, alfaces, agrião, e frutas, como
cerejas, morango, pêssegos, framboesas, figos, nêsperas, amêndoas, avelãs, nozes,
castanhas, ameixas, peras, maçãs e, depois das Cruzadas, damascos e melões.
LE GOFF e TRUONG (2006, p. 136) expõem que “ao trigo dos agricultores
romanos, a Idade Média dava preferência frequentemente ao centeio e à aveia, à cevada e à
espelta, ao milho miúdo e ao sorgo”.
De acordo com D’HAUCOURT (1994, p. 42), o preparo dos pratos era muito
semelhante ao atual: “O campo comia a sopa de toucinho e de repolho que cozinhava no
caldeirão. As cozinhas mais esmeradas alternavam churrascos no espeto, grelhados,
cozidos, guisados, frituras”. Usavam-se muitos recheios, e ligas com miolo de pão
molhado e peneirado. Ingredientes hoje moídos eram antes pilados. Entre os temperos,
havia a canela, açafrão, pimenta e gengibre. A autora lembra, entretanto, que as cozinhas
monásticas quase não utilizavam tais condimentos, e os pratos tinham a fama de serem
insípidos. Tudo porque se temia as propriedades afrodisíacas dos temperos.
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Os doces eram também muito simples: sonhos, tortas de frutas, de creme e de
queijo, além de pudins. Eram consumidas ainda balas de frutas, doces de mel e de uva.
Para beber, vinho, cerveja, sidra e, a partir do século XIV, aguardente de frutas.
DUBY (1990, p. 203) lembra que “da despensa à mesa, os alimentos,
evidentemente, têm de passar por uma preparação”. As cozinhas burguesas ficavam fora de
casa até o século XIII, quando então saíram dos pátios e foram transferidas para as casas.
Algumas foram para os andares superiores – sótãos. No século XV, as cozinhas já podiam
ser sinal de conforto e status nas casas de famílias ricas. Já as mesas podiam ser
retangulares (sobre cavaletes) ou redondas, e serviam exclusivamente para as refeições, a
ponto de serem inventariadas como “mesa redonda de comer” (idem, p. 206).
D’HAUCOURT (1994, p. 44) cita um acordo vitalício feito entre um casal e os
monges de Beaumont-le-Roger, fixado em 1268. O casal doou seus poucos bens aos
religiosos, em troca de terem suas necessidades supridas por toda a vida: “o convento
forneceria diariamente um pão de sua fabricação, dois pães médios, um galão de sidra, de
cerveja ou de bebida dos monges, um prato de carne três vezes por semana e, nos outros
dias, seis ovos, na Quaresma, quatro arenques”.
De acordo com LE GOFF e TRUONG (2006, p. 137), o desequilíbrio alimentar
medieval era mais social do que nutricional, mais quantitativo do que qualitativo – “a
distinção social passava pela alimentação”. A Cocanha surgiu no imaginário popular a
partir do que se falava dos banquetes e festins dos nobres e das Cortes.
Os autores afirmam ainda que esta preocupação com a distinção social através dos
prazeres à mesa levou a uma “forma de refinamento que transforma o alimento em cultura,
e a cozinha, em gastronomia” (idem, p. 138). Foi quando então surgiram os manuais de
receitas culinárias – entre os séculos XIII e XIV. Foram incrementados os sabores (com
temperos e condimentos como a pimenta, canela, gengibre, mel e limão), as cores (açafrão,
cerejas, amêndoas), os cozidos (assados), os molhos e os doces.
Fome x gula
LE GOFF e TRUONG (2006, p. 57-8) lembram que “gula” vem de “goela” em
latim, e que os “pecados da carne e pecados da boca” caminham de mãos dadas. Ou seja,
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glutonia e luxúria estão sempre por perto uma da outra, especialmente – na visão cristã
medieval – entre os bárbaros e pagãos. Acrescentam os autores: “A indigestão é
igualmente associada ao pecado. A abstinência e o jejum dão o ritmo, portanto, do ‘homem
medieval’. O domínio do corpo é acompanhado do domínio do tempo...”. Daí a Quaresma,
difundida desde o século IV.
Segundo os autores, “o jejum é relativamente respeitado mesmo entre os leigos,
como mostrou Jean-Louis Flandrin em seus trabalhos” (idem, p. 59). Havia, pois, uma
tensão entre o Carnaval dos excessos e a Quaresma do jejum. São estes dois medievalistas
que mencionam a Cocanha, “uma das raras utopias da Idade Média e que aparece muito
precisamente em um fabliau [fábula] de 1250, descreve um território imaginário onde não
se trabalha, onde tudo é luxo e volúpia” (idem, p. 60).
As Regras de São Bento, escritas pelo Pai do Monaquismo Ocidental no século VI,
dedicam três capítulos ao correto modo de se alimentar: do 39 ao 41. O primeiro dá a
“medida da comida” e define o que é suficiente para o consumo diário de um monge:
“Portanto dois pratos de cozidos bastem a todos os irmãos; e se houver frutas ou legumes
frescos, sejam acrescentados em terceiro lugar” (ENOUT).
O importante, segunda a Regra, é que fiquem “afastados antes de mais nada
excessos de comida, e de modo que nunca sobrevenha ao monge a indigestão, porque nada
é tão contrário a tudo o que é cristão como os excessos na comida, conforme diz Nosso
Senhor: ‘Cuidai que os vossos corações não se tornem pesados pela gula’" (idem). Além
disso, fica ainda estabelecido que os “meninos de pouca idade” devem comer menos, e que
haja completa abstenção de “carnes de quadrúpedes”, exceto para os doentes e fracos.
Igualmente importante, é a “medida da bebida”, estabelecida “com escrúpulo”. De
maneira geral, deve prevalecer a parcimônia. Mas mais festejada é a abstinência de álcool.
Estes “receberão recompensa especial”. O Abade decide, desde que se mostre necessário
um aumento de consumo (em função do trabalho, por exemplo), mas sempre evitando
“saciedade ou embriaguez”. Isto porque, de acordo com São Bento, "o vinho faz apostatar
mesmo os sábios", e isto deve ser evitado a todo custo.
Finalmente, o capítulo 41 estabelece “a que horas convém fazer as refeições”,
seguindo a Liturgia das Horas:
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Da Santa Páscoa até Pentecostes, façam os irmãos a refeição à hora sexta e ceiem à tarde. A partir de Pentecostes, entretanto, por todo o verão, se os monges não têm os trabalhos dos campos ou não os perturba o excesso do verão, jejuem quarta e sexta-feira até a hora nona; nos demais dias jantem à hora sexta. Se tiverem trabalho nos campos ou se o rigor do verão for excessivo, o jantar deve ser mantido à hora sexta: ao Abade caiba tomar a providência. (...) De 14 de setembro até o início da Quaresma façam a refeição sempre à hora nona. Durante a Quaresma, entretanto, até a Páscoa façam-na à hora de Vésperas. Sejam essas celebradas de tal modo, que os irmãos não precisem, à refeição, da luz de uma lâmpada, mas que tudo esteja terminado com a luz do dia. E mesmo em todas as épocas esteja tanto a hora da Ceia como a do jantar de tal modo disposta, que tudo se faça sob a luz do dia.
Claro que o regime monástico de alimentação tem seus momentos de concessão.
Quando a alimentação é terapêutica, por exemplo, ela deixa de se aproximar do pecado. A
Regra 36 diz: “Também a alimentação de carnes seja concedida aos enfermos por demais
fracos, para que se restabeleçam, mas logo que tiverem melhorado abstenham-se todos de
carnes, como de costume” (ENOUT). Semelhantemente, a Regra 37 dá tratamento
relativamente especial aos idosos e crianças: “Considere-se sempre a fraqueza que lhes é
própria, e não se mantenha para com eles o rigor da Regra no que diz respeito aos
alimentos” (idem).
DUBY (1990, p. 65) também anota que os monges enfermos, “tornados menos
puros pela doença, seguiam um regime alimentar diferente: já não lhes era proibido comer
carne, considerada reconstituidora do sangue, do fogo de seu corpo débil; mas tornar-se
por um tempo carnívoros os excluía mais, e os afastava especialmente da comunhão”.
Para os monges de maneira geral, porém, deve prevalecer o que ROBERTS (1980,
p. 36) define como “austeridade de vida”: jejum, noites de oração, trabalho, fadiga e
humilhação. E afirma:
Em particular, o levantar-se de noite para fazer oração e o abster-se de comer a fim de melhor guardar a atenção a Deus, são partes importantes da ascese monástica. O jejum e as vigílias, cada um a seu modo, cavam uma profundidade nova no coração do monge, atingindo-nos em dois dos ritmos mais vitais: o do alimento, que é sucessivamente necessidade e satisfação, e o do tempo, com sua sucessão de dias e noites, de luz e trevas.
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ROBERTS (idem, p. 37) afirma ainda que alguns atos vão contra o ato de
conversão. Entre eles, comer em excesso, especialmente entre as refeições; e não observar
o jejum da comunidade: “O monge normal pode comer menos de vez em quando e
levantar-se mais cedo. Precisa até fazê-lo para fortalecer sua resposta à graça e evitar
maiores fraquezas”.
LE GOFF e TRUONG (2006, p. 134) afirmam que, inicialmente, a carne foi
simplesmente proscrita dos mosteiros, e até era comum encontrar conventos com um açude
ao lado, para piscicultura de consumo. Mas, com o passar do tempo, os hábitos alimentares
do alto clero foram reintroduzindo a carne em toda a rede monástica européia.
D’HAUCOURT (1994, p. 42) lembra que os excessos cometidos no inverno,
iniciados com as Festas (Natal e Oitavas de Natal), e regados com muita carne, levavam
não raro a doenças – erupções que existem até hoje, e que eram tratadas com sangrias. A
Igreja, contudo, prescrevia um remédio ainda melhor: a abstinência, na Quaresma. A
autora acrescenta: “O peixe então substituía a carne nas mesas. Castelos e mosteiros
tinham seus viveiros. Os peixes de água salgada ou de água doce eram os que comemos
ainda (...). Os peixes eram vendidos frescos, salgados, defumados ou secos.”.
A autora também discorre sobre algumas regras de etiqueta (idem, p. 45). Havia o
hábito de lavar as mãos. Nos mosteiros, o abade poderia despejar água nas mãos dos
hóspedes. Nas casas dos senhores, este serviço era executado pelos escudeiros, e em
algumas famílias mais ricas a água poderia ser aromatizada, com pétalas de rosa ou menta.
Sobre este aspecto, LE GOFF e TRUONG (2006, p. 139) sentenciam: “a Idade
Média civiliza as práticas alimentares”: não se pode assoar o nariz, cuspir ou oferecer um
alimento já mordido a um conviva. E mais (idem):
Não se come mais estirado, como entre os romanos, mas sentado. Com os dedos, é verdade, mas de acordo com as regras estritas, à imagem dos comedores de carneiro assado em pedaços na esfera cultural islâmica. Uma distância conveniente entre os convidados também é algo a respeitar. O ápice material dessa ‘civilização dos costumes’ será a invenção do garfo, que, após a Idade Média, virá de Bizâncio, via Veneza.
DUBY (1990, p. 85), ao descrever as refeições nas casas aristocráticas, afirma que:
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comer era um ato solene, público. O senescal zelava pela parte mãos nobre da ração, pelo “companage” [tudo aquilo que se come com o pão], as “esques” (escae, comidas), compradas fora e preparadas na cozinha, principalmente a carne, que cabia ao primeiro servidor (e essa procedência de carne é esclarecedora) apresentar e cortar diante do senhor; (...) Quanto à bebida de qualidade, isto é, ao vinho, também estava sob o controle de um oficial maior, o copeiro.
LE GOFF e TRUONG (2006, p. 134) falam de uma dupla perspectiva dietética
medieval. Uma, mais ascética, nasceu dos mosteiros. A outra, oriunda das classes
superiores, foi marcada pela busca de novos sabores – e prazeres. Eram dois modelos
alimentares opostos, que os autores chamaram de civilização do trigo e civilização da
carne: “A primeira, mais precisamente, composta da tríade trigo-vinho-óleo, e a da
Antiguidade mediterrânea dos gregos e dos romanos. A segunda pertence às populações
bárbaras, os germânicos em particular, com freqüência lançadas pelos autores antigos nas
trevas da bestialidade”.
Segundo eles, a oposição entre os dois modelos se acentuou nos séculos III e IV,
nos estertores do Império Romano Ocidental. Mais tarde, a oposição pareceu reeditada no
confronto cerveja pagã versus vinho cristão. Tanto assim que, no século XIII, franciscanos
faziam distinção entre “conventos de vinho” e “conventos de cervoise”, mas sem falar em
hierarquia.
Do Inferno à Cocanha
Em A Divina Comédia, Dante Alighieri reserva o terceiro círculo do Inferno aos
gulosos. Lá, eles ficam mergulhados na lama, sob uma chuva torrencial e gélida que nunca
cessa nem diminui, e são eternamente espancados por Cérbero, o cão mitológico de três
cabeças. Dante descreve um grosso granizo, neve, um ar tenebroso e uma terra fétida: eis o
destino dos gulosos. Neste cenário de horrores, o poeta identifica alguns espíritos,
conhecidos em vida pelos apetites insaciáveis. Com eles dialoga um pouco, ouve súplicas
por intercessão e, orientado por Virgílio, prossegue sua jornada.
Apesar de tudo, no esquema dantesco, o pecado da glutonia é um dos mais leves.
Tanto assim que fica em dos círculos superiores do Inferno (o terceiro círculo), entre os
pecados de incontinência – ao lado de luxuriosos, avaros/pródigos, iracundos/rancorosos e
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heréticos. São pecados derivados da fraqueza humana. Muito mais graves são os pecados
de violência e bestialidade, fraudes e traição.
Seguindo a mesma lógica da Cosmologia de Dante, o círculo dos gulosos no Monte
do Purgatório fica bem acima, quase no topo, abaixo apenas do círculo dos luxuriosos – o
último antes de alcançar o Paraíso Terrestre, o Éden.
Ao chegar ao círculo dos gulosos do Purgatório, Dante e Virgílio se depararam com
uma árvore, tão bela quanto alta, e uma nascente entre rochas, inalcançável. Um perfume
de fruta exalava da árvore, enquanto o barulho da água corrente parecia convidar a bebê-la.
Enquanto admirava a árvore e seu aroma, aproximou-se um grupo de almas
penitentes, todos com aspectos famélicos. Ou, nas palavras de Dante: “Tinham elas do
olhar a órbita cava, pálido o rosto e já tão descarnado que dos ossos a pele se enformava.
Não creio que já vi a tal extremo estado, pela fome que mais ele temia, Eresiton tivesse
então chegado” (Purgatório, Canto XXIII). Eresiton foi um homem condenado pela deusa
Ceres e ter uma fome inextinguível, até acabar comendo os próprios membros. A história é
contada por Ovídio em Metamorfoses.
As almas explicam então seu tormento: podem ver, ouvir e cheirar os alimentos e a
água, mas jamais alcançá-los ou consumi-los. Àqueles que em vida se entregaram ao
apetite, agora deveriam aprender a controlá-lo. Mas é uma penitência, não um castigo –
pois o tormento terá fim.
No outro extremo, a mentalidade medieval concebeu a utopia denominada Cocanha
– também conhecida como Cocagne, Cockaygne, Cuccagna, Cucaña, entre outras. Até no
Brasil surgiu uma versão local, em meados do século XX: São Saruê.
Consta que são várias as tradições que deram origem ao texto, originalmente dos
séculos XIII e XIV, dos quais são conhecidas oito representações. Dos séculos XVI e
XVII, existem 12 versões francesas, 22 alemãs, 33 italianas e 40 flamengas. Em 1559,
Bruegel pintou uma tela de Cocanha, e no final do século XVIII Goya também pintou um
quadro inspirado na terra utópica.
No período de transição entre a Medievalidade e a Modernidade, a concepção de
Cocanha foi vista de diferentes maneiras, conforme o estrato social. Para o poder estatal
incipiente, o país imaginário parecia inspirar uma sociedade sem autoridades – um perigo.
Para o clero, era a terra dos pecados da luxúria e da gula, e portanto a danação. Para a
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burguesia ascendente, era um país de vadios e preguiçosos contrários ao “progressso”. De
fato, Cocanha influenciou alguns movimentos revoltosos populares nos séculos XIV a
XVII, geralmente no Carnaval, período em que a subversão era, de certa forma, legitimada
há séculos.
Segue um trecho, da versão “Le fabliau de Cocagne” (FRANCO JR, 1998, p. 22-
26). Ele serve para ilustrar, mas vale assinalar que a obra em que este estudo se baseia traz
mais de uma dezena de variações, incluindo versões inglesa, alemã, holandesa e brasileira.
O nome do país é Cocanha;/ Lá quem mais dorme mais ganha:/Quem dorme até ao meio-dia/Ganha cinco soldos e meio. De barbos, salmões e sáveis/São os muros de todas as casas./Os caibros lá são esturjões,/Os telhados de toicinho,/As cercas são de salsichas. Existe muito mais naquela terra de delícias,/Pois de carne assada e presunto/São cercados os campos de trigo;/Pelas ruas vão se assando/Gordos gansos que giram. (...) Pelos caminhos e pelas ruas,/Encontram-se mesas postas/Com toalhas brancas/Onde se pode beber e comer/Tudo o que se quiser sem problema; (...) Basta pegar a seu bel-prazer;/Carne de cervo ou de ave,/Assada ou ensopada,/Sem pagar nada. (...) Corre um riacho de vinho./As canecas aproximam-se dali por si sós,/Assim como os copos/E as taças de ouro e prata. Este riacho do qual falo/É metade de vinho tinto,/Do melhor que se pode achar/Em Beaune ou no além-mar; A outra parte é de vinho branco,/Melhor e mais fino/Que o produzido em Auxerre,/La Rochelle ou Tonerre. (...) Quatro Páscoas tem o ano,/E quatro festas de São João./Há no ano quatro vindimas,/Feriado e domingo todo dia, Quatro Todos os Santos, quatro Natais,/Quatro Candelárias anuais,/Quatro Carnavais,/E Quaresma, uma a cada vinte anos,...
Considerações Finais
Na longa Idade Média européia, os atos de obter, preparar e consumir alimentos
eram especialmente revestidos de sentidos transcendentes, graças à influência da Igreja.
Quaresma, festas, vida monástica, entre outros elementos, moldaram a dieta do homem
medieval, ao lado do modo de produção, das relações sociais e das condições da Natureza.
Nobres, clero e camponeses conheceram a fome, os fracassos nas colheitas, os invernos
rigorosos. Provavelmente por isso surgiu a utopia chamada “Cocanha”, um lugar de gula,
de excessos, onde tudo é permitido, e pecado é não comer e beber.
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No outro extremo, a continência era elogiada, e a abstinência um sinal de santidade,
de controle dos impulsos pecaminosos. Aqueles que se entregavam à gula tinham um
destino totalmente oposto à Cocanha. Aguardava-lhes o Inferno, ou, na melhor das
hipóteses, um dos Círculos do Purgatório. Na visão de Dante, este era um lugar de privação
e sofrimento, mas também de esperança.
É entre estes dois extremos que viveu o homem medieval. E é entre estes mesmos
extremos que as sociedades dessacralizadas do século XXI vivem, com seus restaurantes
fast food, comida industrializada, apelos publicitários, e pesquisas científicas que
condenam e santificam os mesmos alimentos, semana sim, semana não.
A Cocanha moderna pode ser vislumbrada nos grandes supermercados, mas é
acessível apenas aos bolsos mais cheios. Neste aspecto, nada mudou. Quanto ao Inferno
dos gulosos, a secularização cuidou de escondê-lo, mantendo a preocupação humana
apenas na saúde corporal.
Mas ainda vivemos entre o Céu e o Inferno. Ainda somos medievais.
REFERÊNCIAS:
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. (Edição bilíngüe italiano/português, 3 volumes). São Paulo: Editora 34, 2001.
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.
DALLA BONNA, Fabiano. O céu na boca. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.
D’HAUCOURT, Geneviève. A vida na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
DUBY, George. O ano mil. Lisboa: Edições 70, 1993.
DUBY, George (org.). História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
ENOUT, D. João Evangelista, OSB. Regra do glorioso Patriarca São Bento. Disponível em http://www.osb.org.br/regra.html . Acesso em 17.10.2010.
FRANCO JR., Hilário. Cocanha: várias faces de uma utopia. Cotia: Ateliê Editorial, 1998.
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LE GOFF, Jacques e TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
MACDONALD, Fiona. O cotidiano europeu na Idade Média. São Paulo: Melhoramentos, 1995.
NOLA, Roberto de. Livro do cozinheiro. (Edição bilíngüe catalão/português). São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2010.
ROBERTS, Agostinho. Vida monástica: elementos básicos. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1980.
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