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compilações doutrinais
VERBOJURIDICO ®
DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR
O TESTE DA AFIRMAÇÃO POSITIVA
___________
João Caleira
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 2
Do Princípio da Igualdade
nos contingentes especiais de acesso ao ensino superior O teste da afirmação positiva
——— JOÃO CALEIRA
DESCRIÇÃO SUMÁRIA: Trabalho realizado na cadeira de Direito da Igualdade Social, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (ano letivo 2011-2012) Prof.ª Doutora Helena Pereira de Melo SUMÁRIO: O acesso ao ensino, e no nosso caso, ao ensino superior, sempre foi uma das prioridades do Estado pós-social de direito, portanto, é facilmente compreensível que, garantir a todos uma igualdade de oportunidades, não só a nível formal, mas também material, constitui um dos objetivos do nosso legislador. Para concretizar este dever estadual foi inserido, na nossa ordem jurídica, os contingentes especiais, ou seja, formas de acesso a grupos minoritários da nossa sociedade. Quando existe uma discriminação por parte do legislador, este tem de garantir que esta promove uma maior igualdade e não uma desigualdade ainda pior do que a existente. Decidimos estudar este instrumento da ordem jurídica portuguesa pela simples razão de não haver qualquer outro estudo sobre a temática em questão. Se a ausência de investigação é preocupante por um lado, por outro, constituiu uma oportunidade de explorar e trabalhar o regime de uma ótica mais aprofundada, investigando as suas raízes históricas de uma forma inédita e de escrutinar as razões da sua existência hoje em dia. ABSTRACT: The access to education, and in our case, higher education has always been a priority for the Post-Social State of Law, therefore, it is easily comprehensible that warranting everyone an equal opportunity, not only at the formal level, but also material, is one of the objectives of our legislature. To fulfill this duty, it was put in our legal system, some special categories, in other words, forms of access for minority groups in our society. Whenever there is discrimination by the legislature, it must ensure that it promotes greater equality and not an inequality even worse than the existing one. We’ve decided to study this instrument of the Portuguese legal system for the simple reason that there are no other studies on the subject in matter. If, on one hand, the lack of research is a concern, on the other, it has provided an opportunity to explore and work the system on a much more intense level, by investigating its historical roots in a unique way and to scrutinize the reasons for its existence today CLASSIFICAÇÃO: Novos Ramos do Direito — Direito da Igualdade Social.
1. INTRODUÇÃO
“Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”1. Esta
simples frase é a base de qualquer sociedade democrática, segundo ela, todos os homens
são iguais – "All men are created equal", de acordo com a declaração de independência
norte americana. Mas o que realmente quer isto dizer? Será que devemos interpretar este
1 Constituição da república portuguesa, artigo 13.º
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 3
princípio de uma forma estritamente formal e literal, ou seja, que a lei não pode
discriminar ninguém?
Tentaremos, analisando o regime dos contingentes especiais, evidenciar que o
legislador promove uma verdadeira igualdade através de uma discriminação, não negativa
– uma vez que, para essa, basta uma ausência de lei – pois, tal como George Orwell
afirmou, todos os homens são iguais, embora uns sejam mais iguais que outros2, mas
positiva, por forma a respeitar a máxima de que a verdadeira igualdade consiste em tratar
por igual o que é igual e por desigual o que é desigual.
O Regulamento do concurso de acesso e ingresso no Ensino Superior Público, resulta
da Portaria n.º 258/2011 de 14 de Julho, estabelece um contingente geral, no qual todos os
candidatos estão inseridos. No entanto, dentro deste, existe um determinada quota
destinada a grupos que, segundo o legislador, não estão numa posição que lhes permita
concorrer com os restantes de uma forma paritária e que, como tal, devem ser tomados
como especiais.
Pretendemos com este trabalho demonstrar que o princípio da igualdade, para estar
completo, necessita do complemento da ação afirmativa, denotando quais os pressupostos
necessários para que esta união seja possível.
De seguida, procederemos ao escrutínio do regime em questão, testando-o, com o
fim de verificar se o mesmo se adequa à nossa ordem constitucional.
2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE
O princípio da igualdade é um dos direitos mais queridos na era constitucional em
que vivemos. Tanto na Declaração de Independência, como na Déclaration des Droits de
l`Homme et du citoyen, este princípio é um dos primeiros a ser apresentado, pela sua
importância óbvia no romper com as tradições do antigo regime. Nesse sentido, não é de
espantar que este princípio, pilar das revoluções liberais oitocentistas, ainda hoje constitua
uma das mais incontestáveis referências constitucionais. Assim sendo, o legislador teve a
necessidade de concretizar este princípio na nossa lei fundamental, plasmando-o no artigo
13.º.
O direito pode e, no nosso entender, tem de, ser uma ferramenta que garanta a
igualdade, proporcionando um tratamento igual ao que é igual e um tratamento desigual ao
que é desigual – é esta a forma de atingir a justiça. Se assim não fosse, o que aconteceria é
2 No livro “Animal Farm”, George Orwell escreve "All animals are equal, but some animals are more equal than others"
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 4
que, pela ordem natural, a suposta igualdade para todos, sem uma regulação social, iria
permitir manter situações de privilégios para alguns e de opressão para outros.
“Este novo modelo constitucional supera o esquema da igualdade formal rumo à
igualdade material, o que significa assumir uma posição de defesa e suporte da constituição
como fundamento do ordenamento jurídico e expressão de uma ordem de convivência
assentada em conteúdos materiais de vida e em um projeto de superação da realidade
alcançável com a integração das novas necessidades e a resolução dos conflitos alinhados
com os princípios e critérios de compensação constitucionais”3.
A igualdade pela qual pugnamos, expressa um regime jurídico claro, no qual as
pessoas devem ser tratadas como iguais pelo Direito e, como tal, têm determinados
direitos e deveres – esta é a máxima que deve ser almejada por e para todos. Porém, se
alguém não estiver numa situação de igualdade, e o justificar devidamente, ou seja,
prove que realmente existe um motivo para uma discriminação, então, o tratamento
desigual deve impor-se. É de ressalvar, no entanto, que este tratamento não deve ser
utilizado para trazer benefícios à pessoa/grupo visado, mas antes, para anular,
diminuir, ou compensar a desigualdade a que está sujeito.
Podemos dividir o princípio da igualdade em duas dimensões: uma negativa, que
vem proibir a discriminação indevida; e uma positiva, que vem exigir medidas que
assegurem uma igualdade jurídico-material. Ambas podem ser obtidas por diversos
mecanismos jurídicos – através de repressão, sanções “penais”, ou através de
mecanismos de estímulo, sanções “premiais”.
Concluindo, a igualdade impõe uma diferenciação sendo que para esta ser real é
necessário que o Estado a construa. Nesse sentido, não basta uma igualdade formal,
esta tem de ser efetiva, ou seja, tem que se desdobrar também na sua vertente material
– não basta ter uma dimensão discriminatória negativa, mas também positiva. É,
assim, um conceito mais complexo do que simplesmente tratar a todos por igual.
3 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3. Ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2001.
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 5
3. AÇÃO AFIRMATIVA
Podemos definir ação afirmativa como sendo “uma política estatal e privada, de
caráter essencialmente transitório e emergencial, cuja finalidade é a promoção da igualdade
social através da progressiva redução das desigualdades sociais”4.
Com a evolução dos diversos Estados em matéria de preocupação social, e com uma
maior sensibilidade destes para os problemas dos cidadãos e para combater desigualdades,
os programas e políticas de ação afirmativa começaram a aparecer.
Numa era moderna, em que as constituições vão ganhando um maior destaque e na
qual os direitos fundamentais evoluem, este processo tem vindo a implicar um
desenvolvimento do princípio da igualdade, em especial do seu aspeto material. Como tal,
os Estados tiveram a necessidade de criar políticas públicas que garantissem o respeito
pelos direitos, principalmente das minorias.
3.1. Fundamento das Ações Afirmativas
O fundamento base das ações afirmativas é a dignidade da pessoa humana, tal como
exige o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. A intenção do Estado é a de
reduzir as desigualdades existentes, promovendo uma igualdade material, sendo que as
medidas concretizadoras da mesma podem ser das mais variadas, como as cotas ou o
sistema de preferências.
É de ressalvar a função psicológica das ações positivas na sociedade que, criando
uma maior igualdade entre os seus cidadãos, promove o sentimento de humanidade,
conduzindo à inexistência de conceitos como raças superiores ou dominadoras, abraçando
os destinatários das medidas, que ficam integrados na sociedade de uma forma mais
paritária, sendo reconhecidos pela sua individualidade, consagrada como não limitadora
das suas capacidades5.
Como já referimos, a igualdade tem o objetivo de tratar o que é igual como igual e o
que é desigual como desigual. No entanto, esta igualdade não é natural, tendo de ser
construída. Esta responsabilidade é mesmo um dever para o setor público – o dever da
4 SILVA, Moema Santana. A política de descriminação positiva euquanto instrumento de transformação social. Revista Electrônica sore a reforma do Estado, RERE, Número 22- Junho/Agosto 2010 – Salvador – Bahia – Brasil – ISSN 1981 – 1888.
5 Idem
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 6
diferenciação. Paulo Leivas defende que o Estado é obrigado a realizá-lo, existindo um
ónus, para quem sofre uma desigualdade, de pedir um tratamento adequado, ou seja, desde
que haja uma “razão suficiente que há-de ser buscada no plano de um discurso jurídico
racional com base em uma teoria da argumentação jurídica”6.
Sendo certo que é permitido discriminar positivamente através do princípio da
igualdade, resta-nos saber quais os requisitos para que tal seja possível. Um programa de
ação afirmativa tem de ser adequado, numa relação de meio, modo e fim, e lícito,
excluindo-se, em princípio, os fatores do artigo 13.º da Constituição.
Resta saber quais os critérios concretizadores da ação afirmativa. Consideramos
prudentes os critérios de Celso Antônio Bandeira de Mello: «Em verdade, o que se tem de
indagar para concluir se uma norma desatende a igualdade ou se convive bem com ela é o
seguinte: se o tratamento diverso outorgado a uns for “justificável”, por existir uma
“correlação lógica” entre o “fator de discriminação” tomado em conta e o regramento que
se lhe deu, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade, se, pelo
contrário, inexistir esta relação de congruência lógica ou – o que ainda seria mais flagrante
– se nem ao menos houvesse um fator de discriminação identificável, a norma ou a conduta
serão incompatíveis com o princípio da igualdade.(…) Sempre que a correlação lógica
entre o fator de discriminação e o correspondente tratamento encartar-se na mesma linha
de valores reconhecidos pela constituição, a disparidade professada pela norma exibir-se-á
como esplendorosamente ajustada ao preceito isonômico»7.
Esta explicação parece-nos, no entanto, incompleta, sendo necessário adicionar a
indicação do professor Marlon Alberto Weichert, que defende que devem ser «manejados
razoável e proporcionalmente em face das situações que se pretende desigualar e do fim da
“desigualação”. Ou seja, o tratamento atribuído às situações não pode, sob o pretexto de
igualar, acabar por criar uma nova situação antiisonômica (que não promova uma
discriminação positiva).”»8.
Em suma, é necessário verificar se se encontram preenchidos os requisitos daquele
que apelidamos de “teste da ação afirmativa”:
1) Uma desigualdade de facto que justifique um tratamento diverso;
6 LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Os direitos dos homossexuais a tratamento isonômico perante a previdência social: o caso do Ministério Público Federal X Instituto Nacional do Seguro Social. In: GOLIN, Célio; Weiler, Luis Gustavo. (Org.) Homossexualidades, Cultura e política. Porto Alegre: Sulina, 2002, p. 49-70.
7 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Princípio da isonomia: Desequiparações Proibidas e Desequiparações Permitidas, Revista trimestral de Direito Público, 1/1993, p. 81/82.
8 WEICHERT, Marlon Alberto. Isenções tributárias em face do princípio da Isonomia. Revista de informação legislativa, n. 145, Brasília, Senado Federal, jan/mar 200, p. 241-254.
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 7
2) Uma correlação lógica entre o fator de discriminação e a norma criada;
3) A norma discriminatória tem de estar na mesma linha de valores
reconhecidos pela Constituição;
4) Proporcionalidade entre a medida em questão e a desigualdade existente. A
medida tem de conduzir a uma igualdade material e não criar uma outra situação
discriminatória negativa.
4. O REGIME DO CONCURSO NACIONAL DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR
PÚBLICO
Todos os anos é necessário proporcionar aos cidadãos portugueses a oportunidade de
ingressarem no ensino superior. Tal é concretizado através do Concurso Nacional de
Acesso ao Ensino Superior Público, regulado pelo Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de
Setembro, concretizado pela portaria n.º 258/2011 de 14 de Julho, sendo o mesmo
organizado pela Direção-Geral do Ensino Superior9. Para o âmbito do nosso trabalho,
afigura-nos necessário entender o regime dos contingentes especiais.
“Na 1.ª fase do concurso nacional, as vagas fixadas para cada curso, em cada
Instituição de ensino superior são distribuídas por um contingente geral e por contingentes
especiais de vagas aos quais são afetadas determinadas percentagens de vagas:
1. Candidatos emigrantes portugueses e familiares;
2. Candidatos militares em regime de contrato;
3. Candidatos portadores de deficiência física ou sensorial;
4. Candidatos oriundos dos Açores;
5. Candidatos oriundos da Madeira.
Os candidatos que reúnam as condições para algum destes contingentes especiais
concorrem a uma percentagem de vagas especialmente destinada a esse contingente. Caso
não seja obtida colocação por esta via, no processo de seriação, o candidato é incluído no
âmbito do contingente geral.
9 In http://www.dges.mctes.pt/
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 8
Na 2.ª e 3.ª fases existe um único contingente.”
Em suma, através da análise do regime, observamos que na 1ª fase existe um número
pré-determinado de vagas e para preenchê-las os candidatos concorrem, uns contra os
outros, num contingente geral.
O legislador notou que nem todos os candidatos estão em verdadeira situação de
igualdade. De modo a minorar essa desvantagem, criou os contingentes especiais, ou seja,
determinou que nesse número de vagas, uma percentagem deveria ser reservada
exclusivamente para os candidatos de certos grupos.
Em termos gerais, o que esta forma de distribuição de candidatos vem permitir é que
candidatos com notas mais baixas entrem à frente de outros, o que, numa primeira
avaliação, pode parecer perverso, atentando contra o princípio da Igualdade e o
reconhecimento do mérito, mas como já foi referido, estas discriminações podem ser
admissíveis caso passem no teste da ação afirmativa.
Nesse sentido, parece-nos necessário testar os diferentes contingentes especiais para
verificar se são justificáveis ou se estamos perante uma violação infundada do princípio da
igualdade.
Antes de passarmos ao estudo do regime em vigor dos contingentes, é importante
que conheçamos a sua história, e de que modo o legislador tem vindo a legislar sobre o
assunto.
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 9
5. OS CONTINGENTES ESPECIAIS
A Constituição da República portuguesa, no seu artigo 74 vem consagrar o seguinte:
Artigo 74.º
(Ensino)
Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades
de acesso e êxito escolar.
A nossa constituição impõe que seja dado um direito de igualdade de oportunidades a
todos os que queiram estudar. No entanto, o legislador constituinte não se ficou por ai, mas
especificou que esta igualdade de oportunidades teria de se concretizar igualmente no
acesso ao ensino superior através do artigo 76:
Artigo 76.º
(Universidade e acesso ao ensino superior)
O regime de acesso à Universidade e às demais instituições do ensino superior
garante a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo
ter em conta as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo,
cultural e científico do país.
Isto implica, como já observámos, que o legislador terá de concretizar o aspeto
material do princípio da igualdade de forma a combater as desigualdades naturais
existentes. Para isso foram criados os contingentes especiais.
Neste tópico dos contingentes especiais, é fundamental referir o Decreto-lei n.º
397/77 de 17 de Setembro, porque é neste decreto que o Estado veio, pela primeira vez,
expressar a necessidade de promover uma política de igualdade de oportunidades no acesso
ao ensino superior. Citando o primeiro parágrafo:
“Constitui preocupação do Governo, na sequência das disposições constitucionais
que à matéria se referem, salvaguardar a qualidade e promover a melhoria do ensino
ministrado nas escolas superiores, para o que deverá, tendo em conta as condições que a
todos garantam o acesso a este grau de ensino, em função das suas capacidades e em
termos da mais estreita igualdade de oportunidades, tomar as medidas adequadas ao
cumprimento daquelas disposições e finalidades”.
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 10
Observamos que, desde cedo, garantir o acesso ao ensino superior, em função das
capacidades dos candidatos e em termos da mais estreita igualdade de oportunidades,
constituía uma prioridade para o Estado.
Deste modo, procedemos à análise da primeira portaria que regulou o acesso ao
ensino superior, a portaria n.º 615/78 de 14 de Outubro. Nesta observamos que, no artigo
13º, Distribuição dos contingentes, os únicos contingentes existentes é o de 1% para os
candidatos do território de Macau, 3% para os candidatos da Região Autónoma da Madeira
e 3,5% para os candidatos da Região Autónoma dos Açores. Podemos achar que
relativamente aos militares e aos filhos de emigrantes, a lei apenas veio proporcionar a tal
igualdade de oportunidades mais tarde, visto que não existe um contingente próprio para
eles. Não é verdade. O que acontecia nesta época, é que esses candidatos tinham uma ajuda
muito mais eficiente, pois não lhes foi concedido um contingente especial, mas antes um
regime de Supranumerários, ou seja, Artigo 5.º, “Serão isentos da candidatura à matrícula
no ensino superior, ingressando directamente nele, em regime de supranumerários”. Este
não é um regime que nos caiba tratar neste trabalho, no entanto, importa referir que era
através destes que os militares e os emigrantes ingressavam no ensino superior português.
Mas sendo que hoje temos estes regimes em contingentes especiais, e se essa figura
dos supranumerários foi extinta, quer dizer que houve uma evolução, e é essa que nós
aproveitamos para explicar de seguida.
Na portaria n.º 173/86, encontramos, pela primeira vez, a adição de um novo
contingente especial, no artigo 31.º, número 1, na alínea f), estabelecendo o “contingente
especial para os candidatos portadores de deficiência física ou sensorial: 1% daquele
número;”.
Na portaria n.º 544/89, temos a criação de um novo contingente especial, no artigo
8.º, número 1, na alínea d), “Contingente especial para emigrantes portugueses e seus
familiares: 7% daquele número;”.
E finalmente, na portaria n.º 634/93, consta no artigo 8.º, número 1, alínea e) o
“Contingente especial para cidadãos que se encontrem a prestar o serviço militar efectivo
nos regimes de voluntariado ou de contrato – 2% daquele número;”.
Podemos concluir que a evolução dos contingentes foi gradual, embora legislador
sempre tenha tido a preocupação de proporcionar a todos uma igualdade de oportunidades
para ingressarem no ensino superior, e para tal sucedeu a reformas ao longo dos anos, até
chegar ao regime que temos hoje, na portaria n.º 258/2011 de 14 de Julho, o artigo 9.º, que
expõe o regime dos contingentes:
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 11
Artigo 9º (Contingentes)
1 — Na 1.ª fase as vagas fixadas para cada curso em cada estabelecimento de ensino
superior são distribuídas por um contingente geral e por contingentes especiais.
2 — São criados os seguintes contingentes especiais:
a) Contingente especial para candidatos oriundos da Região Autónoma dos Açores,
com 3,5 % das vagas fixadas para a 1.ª fase;
b) Contingente especial para candidatos oriundos da Região Autónoma da Madeira,
com 3,5 % das vagas fixadas para a 1.ª fase;
c) Contingente especial para candidatos emigrantes portugueses e familiares que
com eles residam, com 7 % das vagas fixadas para a 1.ª fase;
d) Contingente especial para candidatos que se encontrem a prestar serviço militar
efectivo no regime de contrato, com 2,5 % das vagas fixadas para a 1.ª fase;
e) Contingente especial para candidatos portadores de deficiência física ou
sensorial, com o maior dos seguintes valores: 2 % das vagas fixadas para a 1.ª fase ou
duas vagas.
3 — O resultado do cálculo dos valores a que se refere o número anterior:
a) É arredondado para o inteiro superior se tiver parte decimal maior ou igual a 5;
b) Assume o valor 1 se for inferior a 0,5.
4 — As vagas atribuídas ao contingente geral são o resultado da diferença entre o
número de vagas fixadas para a 1.ª fase e as vagas afetadas aos contingentes especiais nos
termos dos n.os 2 e 3.
5 — O disposto no presente artigo será revisto para a candidatura de 2012 e anos
subsequentes.
Tendo demonstrado o desenvolvimento dos contingentes especiais até ao estado que
o encontramos hoje em dia, estamos em condições de estudarmos cada contingente
especial em específico e verificar se, hoje em dia, são válidos, e se ainda estão em
conformidade com o princípio da igualdade.
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5.1. Contingente especial para candidatos emigrantes portugueses e
familiares
O regime a que os candidatos emigrantes portugueses e familiares estão sujeitos
consta no artigo 12.º da portaria n.º 258/2011 de 14 de Julho, e resulta no seguinte:
Artigo 12.º (Contingente especial para candidatos emigrantes portugueses familiares
que com eles residam)
1 — Para efeitos do disposto neste Regulamento:
a) É emigrante português o cidadão nacional que tenha residido durante, pelo
menos, dois anos, com carácter permanente, em país estrangeiro onde tenha exercido
atividade remunerada por conta própria ou por conta de outrem;
b) É familiar de emigrante português o cônjuge, o parente ou afim em qualquer grau
da linha recta e até ao 3.º grau da linha colateral que com ele tenha residido, com
carácter permanente, no estrangeiro, por período não inferior a dois anos e que não tenha
idade superior a 25 anos em 31 de Dezembro de 2011.
2 — Podem concorrer às vagas do contingente especial previsto na alínea c) do n.º 2
do artigo 9.º os estudantes que, cumulativamente, satisfaçam as seguintes condições:
a) Sejam emigrantes portugueses ou familiares que com eles residam;
b) Apresentem a sua candidatura no prazo máximo de três anos após o regresso a
Portugal;
c) Tenham obtido no país estrangeiro de residência:
ca) Diploma de curso terminal do ensino secundário desse país ou nele obtido que aí
constitua habilitação de acesso ao ensino superior; ou
cb) A titularidade de um curso de ensino secundário português;
d) À data da conclusão do curso de ensino secundário residam há, pelo menos, dois
anos, com carácter permanente, em país estrangeiro;
e) Não sejam titulares de um curso superior conferente de grau português ou
estrangeiro.
3 — A condição a que se refere a alínea c) do número anterior pode, a requerimento
do estudante, ser substituída pela obtenção de diploma de curso terminal do ensino
secundário em país estrangeiro limítrofe do país estrangeiro de residência desde que seja
comprovado, pela autoridade diplomática portuguesa, que a realização do curso de ensino
secundário naquele país se deveu:
a) À maior proximidade entre a escola secundária e a residência; e
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 13
b) A maiores facilidades de transporte da residência para a escola.
4 — O requerimento a que se refere o número anterior é objeto de análise
casuística, competindo a decisão sobre o mesmo ao diretor-geral do Ensino Superior.
Este contingente especial vem dar uma resposta ao problema dos imigrantes que
quisessem retornar para estudar no ensino superior português, uma vez que se considerou
que não estavam nas mesmas circunstâncias que os restantes candidatos.
Para verificar se esta diferenciação é justificada e se está em conformidade com o
princípio da igualdade, o primeiro ponto a aferir é se existe uma desigualdade de facto que
justifique este tratamento diverso.
Atendendo a que o legislador teve em conta que os emigrantes, assim como os
familiares que com eles residam, estiveram a estudar longe do ensino nacional, com planos
curriculares diferentes, não nos parece que estes estejam em plena igualdade de
circunstâncias com os candidatos que estiveram a estudar em Portugal nos últimos anos.
Nesse sentido, podemos concluir que existe uma desigualdade de facto que justifica um
tratamento diverso.
Quanto ao segundo passo, é necessário verificar se existe uma correlação lógica entre
o fator de discriminação e a norma criada.
Para responder a esta questão, temos de identificar o principal problema do candidato
em questão.
Na verdade, o candidato esteve, no mínimo, 2 anos fora do país, provavelmente a
estudar uma matéria diferente da que é lecionada no ensino português e, portanto, não parte
de uma posição de igualdade ao realizar os exames nacionais. No entanto tem de cumprir
certos requisitos, constantes da alínea c) do n.º 2 do aludido diploma legal, designadamente
ter completado um curso de nível equivalente ao ensino secundário em Portugal e não pode
ser titular de um curso superior. Tendo em conta, que o objetivo deste candidato é iniciar
os estudos no ensino superior em Portugal, a norma que vem dar-lhe condições para entrar
numa universidade portuguesa de forma diferente da dos demais candidatos, é a solução
correta para seu problema, existindo assim a correlação lógica necessária.
Confirmados os dois primeiros requisitos, resulta que a norma discriminatória está
em conformidade com os valores reconhecidos pela Constituição. O artigo 74º, n.º2, alínea
j), dispõe que é necessário “assegurar aos filhos dos imigrantes apoio adequado para
efetivação do direito ao ensino”.
Com este preceito constitucional, que visa permitir a todo o cidadão português
regressar ao seu país para estudar, o legislador preenche o terceiro requisito do teste.
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 14
Finalmente, temos de garantir que existe proporcionalidade entre a medida em
questão e a desigualdade existente. A medida tem de conduzir a uma igualdade material e
não criar uma outra situação discriminatória negativa, o que nos parece ser verificável, na
medida em que esta vem proteger o candidato emigrante, não o discriminando, nem
beneficiando-o. Na realidade, o efeito real desta medida é o de compensar a desigualdade
existente pelo facto de este não ter estudado no seu país e não beneficiá-lo por haver
estudado fora.
Podemos concluir que a ação afirmativa de proporcionar aos candidatos emigrantes,
ou familiar destes, 7% das vagas da 1º fase das universidades públicas portuguesas está em
conformidade com o princípio da igualdade, não se afigurando qualquer
inconstitucionalidade.
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 15
5.2. Contingente especial para candidatos militares em regime de contrato
Quanto ao regime dos candidatos militares em regime de contrato previsto e disposto
no artigo 13.º da portaria n.º 258/2011 de 14 de Julho, estipula o seguinte:
Artigo 13.º
Contingente especial para candidatos militares em regime de contrato
Podem concorrer às vagas do contingente especial previsto na alínea d) do n.º 2 do
artigo 9.º os estudantes que, à data da apresentação da candidatura, satisfaçam,
cumulativamente, as seguintes condições:
a) Tenham prestado, no mínimo, dois anos de serviço efetivo em regime de contrato
(RC):
aa) Quer se encontrem ainda a prestar serviço em RC;
ab) Quer já tenham cessado a prestação de serviço em RC e desde a cessação não
tenha decorrido um período superior ao do tempo em que prestaram serviço em RC;
b) Nunca tenham estado matriculados em estabelecimento de ensino superior
público.
No período pós o 25 de Abril de 1974, é aceitável que os militares tenham
influenciado a abertura desta oportunidade para todos os que prestaram um especial
trabalho ao país e que agora queiram estudar. Resta saber se abrir esta exceção para os
militares cumpre com os requisitos necessários para não entrar em colisão com o princípio
da igualdade, ou se, pelo contrário, foi um abuso por parte do poder que os militares
conseguiram após a revolução.
Necessitamos de passar este regime pelo teste da ação afirmativa.
Estamos perante uma desigualdade de facto que justifique um regime diverso do
normal? Os militares precisam de estar no campo há pelo menos 2 anos, e só nessa
situação faz sentido que realmente exista um contingente especial para estes, pois os
exames do ensino secundário para o acesso ao ensino superior têm a duração de dois anos.
Portanto, o que acontece é que quando um candidato esteve a prestar serviço militar
durante mais de dois anos se candidata ao ensino superior, já não está nas mesmas
condições que os restantes candidatos. Assim, terá de repetir os exames, mas como esteve
dois anos fora do ensino, este encontra-se perante uma desigualdade de facto que justifica a
necessidade de haver uma forma de acesso diferente da estipulada para o contingente geral.
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 16
Afigura-nos agora a necessidade de avaliar a correlação lógica entre a discriminação
existente e a norma criada. A nosso ver, estamos perante uma situação análoga ao do
candidato emigrante. Sendo que o militar esteve dois anos fora do ensino normal, quando
este pretender concorrer ao ensino superior encontra-se numa situação mais complicada e
em desvantagem. O seu problema reside na entrada para a faculdade. É precisamente neste
ponto que reside a desigualdade e é justamente esta questão que a norma vem regular,
sendo que lhes atribui a possibilidade de ingressar no ensino superior através de um grupo
exclusivamente adaptado às caraterísticas destes candidatos.
Reunidos os dois primeiros requisitos, temos agora de verificar se esta norma está em
harmonia com os valores constitucionais. Tendo em conta a história da nossa democracia,
é normal que a constituição tenha protegido os militares e encontramos a concretização
deste ponto no artigo 267.º, que estipula:
Artigo 276.º
(Defesa da Pátria, serviço militar e serviço cívico)
7. Nenhum cidadão pode ser prejudicado na sua colocação, nos seus benefícios
sociais ou no seu emprego permanente por virtude do cumprimento do serviço militar ou
do serviço cívico obrigatório.
Este artigo fundamenta o regime especial atribuído aos militares por terem prestado
serviço militar ao país. O Estado obriga-se a ajuda-los de modo a que não fiquem
prejudicados. Na realidade, se este contingente não existisse, um candidato militar seria
prejudicado no seu acesso ao ensino superior, pois não estaria em pé de igualdade com os
restantes candidatos do contingente geral. Porém, como estiveram a fazer um trabalho em
prol de todos nós e ao qual a constituição dá especial relevo, justifica-se o tratamento
especial. Esta é a razão pela qual, decorridos dois anos, os militares podem ingressar no
ensino superior através de um contingente especial, enquanto alguém, após concluído o
ensino secundário, optou por trabalhar, ao invés de se candidatar ao ensino superior,
entende-se que tal opção foi para o seu proveito, logo o Estado não está vinculado a
garantir que essa pessoa não seja prejudicada, da mesma forma que faz para com os
militares.
Por último, resta-nos a proporcionalidade da medida e a desigualdade que visa suprir,
garantindo que não gera uma outra discriminação. Parece-nos que atribuir 2.5% das vagas
da entrada para o ensino superior aos candidatos que contribuíram com pelo menos 2 anos
de serviço patriótico ao país é proporcional. Porém, afirmar que esta situação não gera
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 17
nenhuma discriminação, pois que se algum jovem que conclui o secundário e prestou
serviço militar durante três anos tem a possibilidade de concorrer às faculdades públicas à
sua escolha através de um contingente especial, já alguém que depois de terminar o 12º
ano, ingressou nos bombeiros, estando a serviço por um período não inferior a 2 anos, e
que depois pretende aceder no ensino superior, não lhe é concedido o mesmo apoio de que
beneficiam os militares. Parece haver uma discriminação nesta situação, todavia a
constituição dá efetivamente uma grande importância ao serviço militar, pondo-o num
patamar superior relativamente a todos os restantes trabalhos que um candidato possa
realizar e na verdade é que existe uma outra razão para tal. O serviço militar tem um
conjunto de exigências e deveres que justificam este benefício. De facto, não é possível
comparar os sacrifícios pessoais de um militar com um bombeiro, ou outra profissão que
um jovem possa realizar.
Então em que ficamos? Esta medida cria uma nova discriminação? Parece-nos que
não, uma vez que a situação de um militar (especialmente a sua constante disponibilidade e
ausência por longos períodos de tempo) não é alcançada por nenhum outro serviço,
justificando a especial proteção dada pela constituição a este grupo.
Desta forma concluímos a análise do contingente especial militar.
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 18
5.3. Contingente especial para candidatos portadores de deficiência física ou
sensorial
Quanto ao regime dos candidatos portadores de deficiência física ou sensorial a que
estão sujeitos consta no artigo 14.º da portaria n.º 258/2011 de 14 de Julho, e resulta no
seguinte:
Artigo 14.º
Contingente especial para candidatos portadores de deficiência física ou sensorial
1 — Podem concorrer às vagas do contingente especial previsto na alínea e) do n.º 2
do artigo 9.º os estudantes que satisfaçam os requisitos constantes do anexo II.
2 — Os estudantes que requeiram a candidatura às vagas deste contingente podem,
se para tanto reunirem condições, concorrer simultaneamente às vagas de um dos
contingentes a que se referem as alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 9.º
3 — Os estudantes a quem seja indeferido o requerimento de candidatura às vagas
deste contingente especial são considerados no âmbito do contingente geral e, se for caso
disso, no âmbito do contingente especial que hajam indicado nos termos do número
anterior.
Os direitos em defesa de cidadãos portadores de deficiências são relativamente
recentes. Esse facto justifica o porquê de vir conceder a estes um contingente especial
desde 1986. Justifica-se a ação afirmativa neste caso?
Teremos de confirmar se existe uma desigualdade de facto que fundamente a
existência de uma medida discriminatória. Ser portador de uma deficiência significa que
uma pessoa sofre de uma ausência ou disfunção de uma estrutura, neste caso, física ou
sensorial. Por conseguinte a desigualdade existe na capacidade da própria pessoa, logo é a
própria desigualdade que justifica a aplicação da medida.
Acresce que, podemos questionar se existe a tal correlação lógica entre a
desigualdade, neste caso, as deficiências das quais os candidatos são portadores, e a
medida de criar um contingente especial. A necessidade que estes candidatos têm é apenas
a de terem as suas ausências de capacidade compensadas por uma medida que os venha
auxiliar no acesso ao ensino superior. Esse é o objetivo do contingente especial, permitir
que estes candidatos concorram entre si, em bases iguais e de mérito, para poderem entrar
na universidade onde pretendem estudar. Portanto, concluímos que a solução está
logicamente direcionada para solucionar a desigualdade natural.
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 19
Outra questão é saber se a medida está de acordo com a linha de valores
constitucionais no que concerne ao terceiro ponto do teste da ação afirmativa.
O Estado português está obrigado a cumprir com a carta dos direitos fundamentais da
União Europeia, e no artigo 26.º desta está especificado que:
Artigo 26.º
(Integração das pessoas com deficiência)
A União reconhece e respeita o direito das pessoas com deficiência a beneficiarem
de medidas destinadas a assegurar a sua autonomia, a sua integração social e profissional
e a sua participação na vida da comunidade.
Logo os cidadãos portadores de deficiência devem de beneficiar de medidas de
integração social e profissional, o que obviamente implica a igualdade de oportunidades no
acesso ao ensino superior. A Constituição não só reitera este ponto da Carta no artigo 71.º,
como também estipula na alínea g) do número 2 do artigo 74.º uma incumbência especial
ao Estado:
Artigo 74.º
(Ensino)
2. Na realização da política de ensino incumbe ao Estado:
g) Promover e apoiar o acesso dos cidadãos portadores de deficiência ao ensino e
apoiar o ensino especial, quando necessário;
Por conseguinte concluímos que um dos objetivos da constituição é promover
medidas de apoio aos cidadãos portadores de deficiências físicas ou sensoriais.
Com mais este patamar superado, resta-nos abordar a última questão. A medida é
proporcional à desigualdade? Ou será que se cria uma nova discriminação? Esta medida
parece-nos vir concretizar a igualdade material que a Constituição defende que exista. Na
realidade, a desigualdade natural é óbvia. Não é prudente que estes candidatos concorram
com os demais do contingente geral, pois não se encontram nas mesmas condições
pessoais que os restantes. Logo, a solução passa por proporcionar aos candidatos
portadores de deficiências físicas ou sensoriais um contingente especial de modo que
possam estar em igualdade quando concorrerem para o ensino superior.
Nestes termos, o contingente especial concedido a estes candidatos está em
conformidade com o princípio da igualdade pois concretiza a igualdade material exigida
pela constituição portuguesa.
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 20
5.4. Contingente especial para candidatos oriundos das Regiões Autónomas
dos Açores e da Madeira
Quanto ao regime a que os candidatos oriundos das regiões autónomas dos Açores e
da Madeira estão sujeitos consta no artigo 14.º da portaria n.º 258/2011 de 14 de Julho, e
resulta no seguinte:
Artigo 10.º
Contingentes especiais para candidatos oriundos das Regiões Autónomas dos Açores
e da Madeira
1 — Podem concorrer às vagas dos contingentes especiais previstos nas alíneas a) e
b) do n.º 2 do artigo anterior os estudantes que, cumulativamente, façam prova de que:
a) À data da candidatura residem permanentemente há, pelo menos, três anos na
Região Autónoma dos Açores ou na Região Autónoma da Madeira, respectivamente;
b) Durante o período a que se refere a alínea anterior, estiveram inscritos,
frequentaram e concluíram um curso de ensino secundário em estabelecimento de ensino
secundário localizado na Região Autónoma em que têm residência;
c) Nunca estiveram matriculados em estabelecimento de ensino superior público.
2 — Podem ainda concorrer às vagas do respectivo contingente especial os
estudantes que, cumulativamente, comprovem:
a) Serem filhos, ou estarem sujeitos à tutela, tanto de funcionário ou agente, quer da
administração pública central, regional e local quer de organismo de coordenação
económica ou de qualquer outro instituto público, como de magistrado, conservador,
notário, funcionário judicial, membro das Forças Armadas ou das forças de segurança;
b) Haver a sua residência permanente sido mudada há menos de dois anos para
localidade situada fora da área territorial do referido contingente em consequência de o
progenitor ou de a pessoa que sobre eles exerce o poder tutelar ter entretanto passado a
estar colocado nessa localidade;
c) À data da mudança de residência referida na alínea b), residirem
permanentemente há, pelo menos, três anos na Região Autónoma dos Açores ou na Região
Autónoma da Madeira, respectivamente, e aí terem estado inscritos no ensino secundário;
d) Nunca terem estado matriculados em estabelecimento de ensino superior público.
3 — De entre os candidatos às vagas de cada um dos contingentes especiais
referidos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo anterior, os candidatos que concorrem ao
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 21
abrigo do n.º 1 do presente artigo têm prioridade de colocação em relação aos que
concorrem ao abrigo do n.º 2.
4 — Os candidatos às vagas do contingente especial para a Região Autónoma dos
Açores apenas podem concorrer a vagas desse contingente respeitantes a cursos
congéneres dos professados na Universidade dos Açores desde que, na lista ordenada de
opções a que se refere o n.º 2 do artigo 20.º10, também concorram, antes daquelas, às
vagas dos cursos congéneres da referida Universidade.
5 — Os candidatos às vagas do contingente especial para a Região Autónoma dos
Açores podem ainda concorrer a vagas desse contingente respeitantes a cursos
congéneres dos professados na Universidade dos Açores sem que concorram, antes
daquelas, na lista ordenada de opções a que se refere o n.º 2 do artigo 20.º, às vagas dos
cursos congéneres da referida Universidade, quando não reúnam, em relação a estes, as
condições a que se referem as alíneas b) e d) do artigo 6.º11
6 — Os candidatos às vagas do contingente especial para a Região Autónoma da
Madeira apenas podem concorrer a vagas desse contingente respeitantes a cursos
congéneres dos professados na Universidade da Madeira desde que, na lista ordenada de
opções a que se refere o n.º 2 do artigo 20.º, também concorram, antes daquelas, às vagas
dos cursos congéneres da referida Universidade.
7 — Os candidatos às vagas do contingente especial para a Região Autónoma da
Madeira podem ainda concorrer a vagas desse contingente respeitantes a cursos
congéneres dos professados na Universidade da Madeira sem que concorram, antes
daquelas, na lista ordenada de opções a que se refere o n.º 2 do artigo 20.º, às vagas dos
cursos congéneres da referida Universidade, quando não reúnam, em relação a estes, as
condições a que se referem as alíneas b) e d) do artigo 6.º
A preocupação por parte do Estado Português em garantir um contingente especial
aos estudantes das regiões autónomas foi sempre uma constante. O motivo que fundamenta
tal proteção é a insularidade a que estão sujeitos. O legislador considerou, na altura em que
10 2 — A candidatura consiste na indicação, no formulário de candidatura online, por ordem decrescente de preferência, dos pares estabelecimento/curso para os quais o estudante dispõe das condições de candidatura adequadas e onde se pretende matricular e inscrever, até um máximo de seis opções diferentes
11 b) Ter obtido em cada uma das provas de ingresso fixadas para esse par estabelecimento/curso a classificação mínima a que se refere o n.º 2 do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 296 -A/98;
c) Ter satisfeito e ou realizado, conforme os casos, os pré -requisitos fixados para ingresso nesse par estabelecimento/curso, nos termos do n.º 2 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 296 -A/98, se exigidos;
d) Ter obtido, na nota de candidatura, a classificação mínima a que se refere a alínea c) do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 296 -A/98.
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 22
criou estes contingentes especiais, que as condições do sistema de ensino básico e
secundário nas ilhas era mais precário que o restante do continente, portanto, não se
encontravam em circunstâncias de igualdade quando fossem concorrer às vagas do ensino
superior.
Na altura em que os contingentes foram criados, esta medida era de extrema
importância. Cabe-nos avaliar se hoje em dia, a base que sustenta esta desigualdade
mantém-se, fazendo-a passar pelos requisitos necessários da ação afirmativa.
Assim, o primeiro ponto necessário que temos de analisar é se existe uma
desigualdade de facto que justifique um tratamento diverso por parte do legislador. Para
verificar a desigualdade são necessários vários estudos sérios sobre a realidade existente.
Como este trabalho não tem as ferramentas para estudar esse fenómeno, decidimos
concentrar os esforços na análise de três fontes.
O relatório realizado pelo DGES sobre os últimos 10 anos de concurso nacional12,
um estudo realizado pelo observatório das desigualdades sobre as infraestruturas
disponíveis13 e o ranking ao nível dos distritos dos resultados dos exames nacionais em
2011 realizado pelo Público14.
Começando pelo relatório dos DGES, o panorama que este revela é que, dos
contingentes especiais, este é o contingente mais utilizado, sendo que no total destes
houve, no ano de 2009, 2 565 candidatos, sendo que 2076 estavam inscritos pelos
contingentes das regiões autónomas. No entanto, candidatos destas duas regiões, no total,
foram 2466, ou seja, quatro quintos candidataram-se pelo contingente especial. É curioso
notar, no entanto, que 50% pretendeu estudar no próprio distrito como primeira opção.
Quanto aos colocados, de 2466 candidatos, houve 1094 colocados, sendo que 953 ficaram
no próprio distrito. Ou seja, de todos os candidatos dos Açores e da Madeira, apenas 141
candidatos foram estudar para o continente. Quanto ao total de colocados na universidade
da Madeira, 96% eram deste mesmo distrito, enquanto nos Açores, este número desce para
78%. No entanto, a primeira conclusão que podemos retirar é que, os candidatos das
regiões autónomas pretendem estudar na própria região, e nesta já têm uma preferência
regional de 50%, ou seja, em questão de mérito, 50% das vagas estão reservadas aos
estudantes das ilhas.
12http://www.dges.mctes.pt/NR/rdonlyres/65940C16-E227-4AA2-9DF1-F1478932A8EF/4576/DGESacesso_DezAnosCN_0009.pdf
13 http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/index.jsp?page=indicators&id=74
14 http://static.publico.pt/homepage/infografia/educacao/rankings2011/
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 23
Sobre a questão das infraestruturas e, em especial, sobre o rácio alunos/professores,
verificamos que a média nacional ronda os 7/8 alunos por cada professor, e nas regiões
autónomas não existe nenhuma diferença acentuada relativamente aos restantes distritos.
No que diz respeito às médias dos exames nacionais por distrito, observamos que a
média nacional é 10,45 valores. Encontramos Coimbra, Lisboa, Leiria, Aveiro, Porto e
Viana do Castelo acima da média, sendo Coimbra com a melhor média de 11,02 e Viana
do Castelo com a mais baixa no valor de 10,56. Os restantes distritos encontram-se abaixo
da média, sendo que os cinco piores distritos são (em ordem de pior para melhor),
Portalegre (9,19 valores), Bragança (9,63 valores), R. A. Madeira (9,68 valores), R. A.
Açores (9, 75 valores) e Beja (9, 78 valores).
Tendo em conta estas informações, podemos questionar-nos se estamos realmente
perante uma desigualdade de facto que imponha um tratamento diferenciado aos
candidatos que provêm das regiões autónomas. Segundo a pesquisa realizada, diríamos que
não. No entanto, admitimos que a insularidade e as infraestruturas existentes nas regiões
autónomas estejam em piores condições e que tal não proporcione aos seus alunos um
ensino ao nível médio do país.
Admitindo que existe realmente uma desigualdade de facto que justifique a norma
apresentada, temos de observar a correlação lógica entre a norma criada e a desigualdade
existente.
Em nosso entender, a desigualdade que deve ser tida em conta é a precariedade do
sistema de ensino das regiões autónomas, sendo este o único motivo que justifica que o
mérito seja posto de parte (ainda que parcialmente, pois os candidatos do contingente
concorrem entre si) em defesa dos alunos destas regiões. A norma permite que os
candidatos das regiões autónomas passem à frente de outros candidatos com médias
superiores, porque não tiveram a mesma qualidade de ensino, bem pelo contrário, tiveram
um ensino fraco que não lhes dá condições de concorrerem em termos iguais. Se esta for a
razão, então concordamos que existe uma correlação lógica entre a norma criada e a
desigualdade de facto.
Gostaríamos apenas de enfatizar que esta é a única razão que possibilita esta ação
afirmativa. No entanto, existem várias opiniões que fundamentam este regime no facto de
as viagens serem dispendiosas, por estarem longe da família, etc. Este tipo de argumentos
não servem de forma alguma para justificar o contingente especial, pois não existiria
correlação lógica entre a norma criada e a desigualdade. Se as justificações fossem apenas
essas, então as medidas apropriadas seriam bolsas de estudo, viagens custeadas pelo
Estado, mas nunca um instrumento que permitisse alunos com notas mais fracas passassem
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 24
à frente de alunos com melhores notas, isto é, colocar a região à frente do mérito
individual.
Concluímos portanto que existe uma correlação lógica entre a norma criada e a
desigualdade de facto, desde que se comprove que o sistema de ensino das regiões
autónomas esteja num nível inferior e mais precário que o do resto do continente.
Quanto à terceira barreira da ação afirmativa, esta norma tem de estar em sintonia
com os valores constitucionais. Neste ponto a constituição específica, não obstante o artigo
13.º da Constituição afirmar que ninguém pode ser beneficiado em razão do território de
origem, no artigo 81.º, alínea e):
Artigo 81.º
(Incumbências prioritárias do Estado)
Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social:
e) Promover a correcção das desigualdades derivadas da insularidade das regiões
autónomas e incentivar a sua progressiva integração em espaços económicos mais vastos,
no âmbito nacional ou internacional;
O estado tem a obrigação de promover a correção das desigualdades derivadas da
insularidade, e é esse o caso com que nos deparamos, portanto, para solucionar este
problema, o contingente especial foi a forma escolhida pelo legislador.
Finalmente, surge-nos o problema da proporcionalidade desta medida, isto é, se esta
não cria outras discriminações. Neste ponto, temos algumas dúvidas sendo que o problema
levanta duas questões.
Em primeiro lugar, esta medida apenas seria possível se as regiões da Madeira e dos
Açores estivessem no final da tabela no que concerne às médias das classificações dos
alunos que o Estado português avalia através das respetivas médias de candidatura. Ora tal
não acontece. Na realidade, tanto os alunos de Portalegre como de Bragança estão em
piores condições para ingressar no ensino superior do que os alunos das regiões autónomas
da Madeira e dos Açores. Como é possível explicar aos candidatos destes dois distritos que
candidatos das regiões autónomas lhes vão passar à frente (mesmo com piores notas!)
porque têm um ensino desigual? A desigualdade existe, mas nesta comparação Portalegre e
Bragança estão numa posição mais deficitária que as regiões autónomas. Afigura-se neste
caso uma claríssima violação do princípio da igualdade, da não discriminação, do benefício
injustificado.
Um exemplo muito prático. Nas colocações do ano 2011, para o curso de medicina
da Universidade Nova de Lisboa, a última nota de entrada do contingente geral foi de 18.6,
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 25
do contingente geral dos Açores entraram alunos com média de 16,1 e da Madeira com
média de 17.2. Como é possível dizer a um candidato de Bragança ou de Portalegre, que
mesmo em condições de ensino muito precárias, mas que trabalhou e com o seu mérito
conseguiu média de 18,5 mas foi preterido por um aluno dos Açores com média de 16,1?
Esta é uma situação possível e perversa, pois carece de qualquer fundamento fático-legal.
Estes candidatos foram, de facto, discriminados sem qualquer razão.
Outro exemplo, curso de medicina da Universidade do Porto, última nota de entrada
do contingente geral foi 18.5, a última da região autónoma dos Açores foi 15.2. Temos
uma diferença de 3.3 valores que são preteridos sem qualquer justificação.
Este fenómeno é conhecido como discriminação inversa (reverse discrimination), ou
seja, quem era discriminado agora está a provocar uma discriminação a outros. É, por um
lado, positivo porque demonstra que a ação afirmativa resultou e que houve progressos,
mas por outro lado é negativo (para a medida) porque revela a necessidade de lhe pôr um
fim.
No entanto, este é apenas um problema, existe outro que, a nosso entender, sofre da
mesma gravidade. Os números 4 e 6 do artigo do regime dos contingentes especiais para
candidatos oriundos das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira vêm permitir que
usufruam do contingente especial para um curso professado na universidade da sua região,
desde que coloquem o curso da sua terra em primeiro lugar. Dito de outra forma, se o
candidato não tiver mérito para entrar na universidade da sua própria região, mesmo tendo
preferência regional de 50%, então nesse caso, este poderá candidatar-se a um curso do
continente. Vejamos o caso dos candidatos da Madeira para concorrerem ao curso de
psicologia no ano de 2011. O último a entrar no curso de Psicologia na Universidade da
Madeira entrou com média de 13.5. Os que não entraram, podem entrar na segunda opção
através do contingente especial. No caso do curso de psicologia da Universidade de Lisboa
entraram candidatos através do contingente especial com média entre 13.3 e 13.5. Estes
candidatos passaram à frente de todos os que tiveram média inferior à última nota do
contingente geral deste curso que foi 15,6. Ou seja, os piores candidatos das regiões
autónomas que não entraram nos cursos dos seus distritos (onde aliás, a média de entrada
de alunos da região é de 96%), podem usufruir do contingente especial para vir estudar
para o continente, onde passam à frente de candidatos com médias até 2 valores superiores.
Este regime vem permitir, portanto, uma situação em que o pior aluno poderá sair
mais privilegiado que o melhor aluno. Supondo que temos um aluno com média de 15.5
valores, e um segundo com média 13.3, e que ambos pretendem entrar na Universidade de
Lisboa, estes são obrigados a colocar esta como segunda opção para usufruírem do
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 26
contingente geral (ficando como primeira opção a Universidade da Madeira). Ora, o que se
sucede é que o bom aluno, com a média de 15.5 valores fica colocado na Universidade da
Madeira (pois foi obrigado a coloca-la como primeira opção) e o mau aluno consegue
ingressar na Universidade de Lisboa pois não foi bom o suficiente para entrar na
universidade da sua região. Ou seja, o mau aluno foi beneficiado relativamente ao bom
aluno para entrar na melhor faculdade.
Ora, podemos concluir que esta medida consubstancia nitidamente uma
discriminação, não positiva, mas antes negativa, portanto, não passa no teste da ação
afirmativa.
Como podemos então fundamentar que este contingente especial continue em vigor?
Na época em que este foi criado, era totalmente justificado, o legislador tinha todas as
razões para o fazer e estava a concretizar os valores constitucionais do nosso ordenamento
jurídico. No entanto, uma das características de toda a ação afirmativa é a sua limitação
temporal. Estas são temporárias, não devem ser criadas para durar para sempre, mas só
enquanto durar uma desigualdade. A nosso ver, a desigualdade que justificava esta medida
para o caso das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira já não existe, o que torna
este instrumento inconstitucional e violador do princípio fundamental da igualdade.
Coloca-se, enfim, uma última questão relativamente a este contingente especial. Se
este contingente especial viola o princípio da igualdade e provoca discriminações negativas
contra vários cidadãos portugueses, porque subsiste na nossa ordem jurídica?
As ações afirmativas são criadas sempre tendo em vista corrigir as desigualdades,
quando estas deixam de existir, as medidas discriminatórias devem desparecer com elas.
No entanto, para que tal aconteça é necessário que o legislador assim decida. Sendo esta
uma discriminação que permanece na nossa ordem jurídica à mais de 40 anos, é necessário
coragem ao poder político para inverter a situação. Cabe ao legislador repor a igualdade.
JOÃO CALEIRA PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 27
6. CONCLUSÃO
O objetivo deste estudo é levar o leitor a ponderar sobre até que ponto o princípio da
igualdade é concretizado nos sistemas jurídicos e se hoje em dia está corretamente aplicado
nos diferentes contingentes especiais existentes. Para isso é importante reter diversos
pontos:
1. O princípio da igualdade é um dos mais importantes de qualquer ordem jurídica
democrática, no entanto, este não é tão restrito quanto “a lei é igual para todos”. Na
verdade, para concretizarmos este princípio do seu aspeto material são necessários
instrumentos de regularização que corrijam as desigualdades naturais;
2. Este tipo de instrumentos surge na forma de ações afirmativas. Estas foram
aplicadas pela primeira vez nos Estados Unidos da América mas rapidamente foram
adotadas por vários países do mundo. Para que a sua aplicação seja possível, é necessário
passar no “teste da ação afirmativa”. Este consiste em quatro pontos:
Uma desigualdade de facto que justifique um tratamento diverso;
Uma correlação lógica entre o fator de discriminação e a norma criada;
A norma discriminatória tem de estar na mesma linha de valores reconhecidos
pela Constituição;
Proporcionalidade entre a medida em questão e a desigualdade existente. A
medida tem de conduzir a uma igualdade material e não criar uma outra situação
discriminatória negativa.
3. O Estado português está obrigado, segundo o artigo 74.º da Constituição da
República Portuguesa a proporcionar uma igualdade de oportunidades a todos os cidadãos
que queiram estudar no ensino superior. Para isso foram criados os contingentes especiais;
4. Estes contingentes foram primeiramente criados em 1977, assim como uma
outra figura, os “supranumerários”. Estes últimos extinguiram-se, à medida que os
contingentes especiais foram-se desenvolvendo até chegar ao ponto que os encontramos
hoje;
5. Para cada que cada contingente especial esteja de acordo com o princípio da
igualdade, estes têm de cumprir com todos os requisitos do “teste da ação afirmativa”;
VERBOJURIDICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NOS CONTINGENTES ESPECIAIS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR : 28
6. O contingente especial para candidatos emigrantes portugueses e familiares
cumpre com todos os requisitos necessários, assim como o dos candidatos militares em
regime de contrato e os candidatos portadores de deficiência física ou sensorial;
7. O contingente especial para candidatos oriundos das Regiões Autónomas
dos Açores e da Madeira não cumpre com os requisitos básicos para estar em harmonia
com o princípio da igualdade.
8. Para corrigir esta “desigualdade artificial”, cabe ao poder político ter
coragem para legislar nesse sentido.
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JOÃO CALEIRA
Trabalho realizado em 24-05-2012 ——————————————
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