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ECONOMIA COMPORTAMENTAL E TRAJETÓRIAS DE CONSUMO IN TERTEMPORAL -
ANOMALIAS E EVIDÊNCIAS DO CASO BRASILEIRO
Aluna: Patrícia Fonseca∗ – patifonseca@gmail.com
Orientadora: Dra. Roberta Muramatsu – rmuramatsu@uol.com.br
Resumo
Inspirado pelo referencial teórico da economia comportamental, o presente artigo buscou
apresentar e discutir duas anomalias da escolha intertemporal brasileira: a poupança
privada crescente em meio a episódios de hiper-inflação no final da década de 1980, e as
trajetórias de consumo crescente acompanhada por comportamentos de super-
endividamento e inadimplência, em meio a um cenário de possibilidades de planejamento do
orçamento, detectadas desde o ano de 2000. Defende-se a tese de que os conceitos
comportamentais de viés de projeção, pavor pela espera, desconto hiperbólico e auto-
controle, iluminam alguns elementos emocionais que estariam por detrás dos fenômenos
supracitados. Conclui-se por último, que consideráveis ganhos explicativos podem advir da
tentativa de inserir premissas psicológicas mais realistas na análise econômica da escolha
intertemporal brasileira.
Palavras-chave : Economia Comportamental; Poupança Precaucional; Super-endividamento
Abstract
Inspired by the behavioral economics approach, the present paper aimed to present and
discuss two Brazilian intertemporal choice anomalies: the increasing private savings along
with hyper-inflationary episodes in the end of the eighties, and the increasing consumption
trajectories followed by over-borrowing and delinquencies behaviors, in a environment where
is possible to do budget plans, observed since the year of 2000. We argue in here that the
behavioral concepts of projection bias, dread effect, hyperbolic discount and self-control,
enlighten some emotional aspects behind the above mentioned phenomena. Finally, we
conclude that a greater prescriptive power can be yielded from the attempt of including more
realistic psychological underpinnings in the Brazilian economic analysis.
∗ Agradeço a todos aqueles que estudaram antes de mim e que me permitiram escrever este trabalho. A bibliografia de meu trabalho não consiste apenas num conjunto de citações, é antes disso, um gesto de agradecimento. Agradeço o auxílio financeiro do PIBIC-MACKPESQUISA e a ajuda do Prof. Emerson Marçal no tratamento e compreensão dos dados. Agradeço a Caio Racy pelos comentários e também à Eustáquio Reis por ter me disponibilizado a base de dados do estudo Reis et al (1998). Agradeço especialmente a Rafael Seckelmann pelo contínuo apoio e compreensão. E principalmente serei eternamente grata à doação integral e incondicional da minha orientadora Dra. Roberta Muramatsu, sem a qual toda a pesquisa não teria sido possível.
Keywords : Behavioral Economics; Precautionary Saving; Over-borrowing
1. Introdução:
“A economia comportamental aumenta o poder explanatório da
ciência econômica ao provê-la de fundamentos psicológicos
mais realistas” (CAMERER e LOEWENSTEIN, 2004, p.1)
Dentre as diversas escolhas com as quais o agente econômico se depara diariamente, o
trade-off entre consumir e poupar, é sem dúvida uma das mais relevantes para a ciência
econômica, cuja seqüência de resultados vem a determinar a trajetória de consumo
intertemporal desses agentes.
Relevância essa, que se caracteriza também em função de implicações práticas que o
resultado agregado desse trade-off impõe à condução de política econômica. A persistência,
ou de preferências viesadas para o consumo imediato, ou de preferências viesadas para o
consumo futuro (poupança), pode comprometer o crescimento econômico de um país, caso
impacte o nível de investimentos, o nível de preços ou gere recessão. O ideal de previsão,
aplicado aqui a comportamentos de consumo e poupança, torna-se assim particularmente
interessante, podendo tal capacidade contribuir para elaboração e execução de melhores
políticas.
Nesse sentido, a decisão humana ao preceder qualquer fenômeno econômico, inclusive o
ato de poupar ou consumir, torna-se central no exercício preditivo. Se o conjunto das
escolhas de hoje culminam nos padrões econômicos do amanhã, prever eventos pede
suposições sobre o processo decisório individual. E a ciência econômica, em específico as
abordagens neoclássicas, por não demonstrarem interesse em desvendar os processos
geradores dessas escolhas, oferecem como solução o postulado de que as pessoas
respondem a incentivos. A escolha passa então a ser encarada na economia como produto
de uma inferência racional e otimizadora, fruto da ponderação dos custos e benefícios
delineados pelos incentivos econômicos presentes no momento da decisão.
Deste modo, apesar de não ser possível predizer exatamente qual será a escolha efetiva
dos indivíduos, pode-se a partir da observação dos incentivos macroeconômicos do período,
traçar pelo menos uma tendência confiável ou um comportamento esperado. Nessa crença
se baseiam, tanto a expectativa de qual será a resposta dos agentes às políticas
monetárias, quanto as principais projeções econômicas, denotando a centralidade de tal
premissa no estudo e na prática da economia.
A presente discussão surge da detecção de algumas anomalias. Em dois momentos da
história econômica brasileira foram observadas escolhas intertemporais anômalas, ou seja,
que divergiram claramente do esperado, dados os incentivos macroeconômicos do período.
Entre elas figuram-se: as crescentes trajetórias de poupança privada no final da década de
1980, em meio a episódios de inflação galopante; e a expansão atual do consumo privado
seguida de instâncias de super-endividamento e inadimplência, num cenário de estabilidade
de preços, altas taxas de juros reais e possibilidade de planejamento do orçamento e do
consumo futuro. Tais anomalias desafiam e fragilizam a compreensão econômica
convencional de que os agentes respondem a incentivos.
O ponto de partida deste artigo é a visão de que a economia comportamental é capaz de
melhor elucidar esses dois enigmas da escolha intertemporal brasileira. Tal abordagem
comportamental surge da lacuna que pode ser constatada no estudo proposto pelo aparato
convencional neoclássico, tanto em termos de objeto, como de metodologia, e em especial
no que diz respeito às premissas utilizadas para basear suas formulações (LEWIS ET AL,
1995).
Os desenvolvimentos comportamentais, visando superar certas limitações da abordagem
neoclássica, inserem em seus modelos novas suposições psicológicas, que compactuem
com as observações empíricas de que os agentes econômicos, ao invés de plenamente
racionais, se mostram dotados de racionalidade limitada (SIMON, 1957; MURAMATSU e
HANOCH, 2005) e apresentam forte inconsistência temporal. (STROTZ, 1955; LAIBSON,
1997)
O presente trabalho se apóia especificamente nos conceitos comportamentais de viés de
projeção, pavor pela espera, desconto hiperbólico e auto-controle, no intuito de iluminar tais
enigmas. Argumenta-se aqui que certas motivações emocionais, desencadeadas pelos
fenômenos supracitados, teriam distorcido a percepção dos incentivos econômicos destes
períodos, oferecendo assim uma explicação para a observação de padrões de consumo
intertemporal distintos das previsões dos modelos neoclássicos. (HALL, 1978; FRIEDMAN,
1957; MODIGLIANI e BRUMBERG, 1954)
Sugere-se aqui que a inserção de fatores psicológicos na compreensão de episódios e
trajetórias de consumo intertemporal é largamente defensável vis-à-vis os bons resultados
gerados. Desde já, ressalta-se que um melhor entendimento acerca dos fatores
determinantes das decisões de consumo e poupança tem claras implicações para políticas
públicas. Ademais, a consideração não só dos determinantes econômicos, mas também de
determinantes psicológicos delineia a possibilidade de uma expansão de escopo para a
ciência econômica aplicada à realidade brasileira.
Objetivando apresentar tais anomalias e as respectivas interpretações comportamentais, o
presente artigo está estruturado da seguinte forma: no referencial teórico são apresentados
brevemente os conceitos comportamentais de viés de projeção, pavor pela espera, desconto
hiperbólico e auto-controle que serão abordados no decorrer do artigo. Na metodologia são
detalhadamente citados os dados, nos quais foi baseada a análise empírica das trajetórias
de consumo intertemporal brasileiras de 1981 até 2007.
Na seção 4.1 é apresentado o resultado e a discussão do primeiro enigma que revelou a
coexistência de padrões de poupança privada crescentes, e de aceleração do processo
inflacionário no final dos anos 1980, além da respectiva interpretação comportamental que
sugere e justifica a existência de poupança precaucional em função de fatores psicológicos
como o viés de projeção e o pavor pela espera. No item 4.1.2 é levantada a hipótese de
ocorrência de um choque institucional em 1990, possível explicação para a queda drástica
observada na poupança privada dos agentes nesse período.
Na seção 4.2 discute-se a segunda anomalia da escolha intertemporal brasileira observada,
que revelou padrões de consumo crescentes seguidos de super-endividamento e
inadimplência, num cenário de possibilidade de planejamento do orçamento. Na seção
seguinte apresenta-se a interpretação comportamental para tal fenômeno, a qual faz alusão
à introdução das inovações tecnológicas no mercado de crédito brasileiro, e a fatores
psicológicos como o desconto hiperbólico e a falta de auto-controle que viriam a exacerbar
as projeções de utilidade advinda do consumo imediato, e a dificultar planejamentos
individuais de longo prazo.
No item 4.3 são feitas algumas considerações sobre as motivações emocionais e racionais
implícitas nos períodos estudados, sugerindo que a sobreposição das motivações
emocionais às racionais teriam distorcido a percepção dos incentivos econômicos desses
períodos, e resultado por isso nos padrões de consumo e poupança observados mas
inesperados. Por fim, a quinta seção tece as conclusões finais.
2. Referencial Teórico
“No âmago da economia comportamental está a convicção de que ao aumentar o
realismo dos pressupostos psicológicos da análise econômica se aperfeiçoará a própria
ciência econômica – gerando insights teóricos, melhorando as previsões de fenômenos
econômicos e sugerindo melhores políticas.” (CAMERER e LOEWENSTEIN, 2004, p. 1)
A suposição de que os indivíduos respondem a incentivos traz implícitas as premissas de
maximização da utilidade, racionalidade plena e homogeneidade de comportamentos,
sempre presentes na análise neoclássica. Espera-se não só que a opção do agente racional
vislumbre a trajetória que maximiza seus benefícios dados os incentivos econômicos, mas
que em geral todas as pessoas apresentem padrões semelhantes em resposta aos mesmos
incentivos. Por mais de cinqüenta anos, tal estrutura de maximização da utilidade dominou a
compreensão dos economistas sobre consumo e poupança pessoal (DIAMOND e
VARTIAINEN, 2007), influenciando os principais modelos intertemporais.
O modelo teórico de Hall (1978), por exemplo, “consiste de um consumidor representativo,
que escolhe o quanto consumir e poupar hoje, a partir da maximização de uma função bem-
estar” (REIS ET AL, 1998, p. 235). Assim como o modelo da renda permanente
(FRIEDMAN, 1957) e o modelo dos ciclos de vida (MODIGLIANI e BRUMBERG, 1954)
também baseiam suas hipóteses (consumo segue a renda permanente e poupança segue
os ciclos de vida - respectivamente) fortemente na suposição de maximização de uma
função utilidade descontada (desconto constante). Tais abordagens, apesar de não se
apresentarem como representações descritivas, têm sido questionadas por um número cada
vez maior de economistas. (DIAMOND e VARTIAINEN, 2007)1
Isso ocorre, por que o aparato neoclássico não tem se mostrado capaz de absorver uma
série de comportamentos de consumo e poupança observados na realidade empírica. Como
a existência de indivíduos que apresentam altos débitos no cartão de crédito e ao mesmo
tempo alocam uma grande parte de seus rendimentos para ativos ilíquidos, a correlação
excessiva entre consumo e renda, além dos baixos níveis atuais de poupanças preventivas,
entre outros. (LAIBSON, 1997; LAIBSON ET AL, 1998; FREDERICK ET AL, 2002;
ANGELETOS ET AL, 2002; MURAMATSU, 2006). A razão para que tais comportamentos
sejam encarados como anomalias e não sejam abrangidos pelo escopo dos modelos
neoclássicos, parece se encontrar na questionável suposição psicológica de que um ser
humano é capaz de maximizar suas preferências temporais.
A Economia Comportamental se insere nesse contexto por acreditar que premissas
psicológicas mais realistas podem aumentar a capacidade de predição e explicação dos
modelos econômicos, além de esclarecer alguns comportamentos tidos como enigmáticos.
Essa abordagem econômica mais próxima da psicologia, que segundo Matthew Rabin
(2002) não abandona os pressupostos neoclássicos, mas os complementa com novas
suposições comportamentais, tem conquistado cada vez mais o público de economistas em
função de alguns avanços já promovidos.
Modelos como o do viés de projeção, do desconto hiperbólico e aqueles que permitem
menos de 100% de auto-controle, têm obtido ótimos resultados não só na explicação de
anomalias, mas também têm demonstrado maior capacidade de explicar dados da
1 Estudos aplicados à realidade brasileira têm, por exemplo, refutado a hipótese de que os agentes brasileiros consomem de acordo com uma renda permanente (GOMES, 2004; GOMES e PAZ, 2005; PAZ, 2006). A observação de poupança pós-aposentadoria e de consecutiva queda no padrão de consumo vem a questionar também a hipótese do modelo dos ciclos de vida (MODIGLIANI e BRUMBERG, 1954)
economia real em exercícios de calibração e simulação econômica.2 A resolução do Equity
Premium Puzzle por Thaler e Bernatzi (1995) com fundamentos comportamentais vem a
reforçar o potencial que a inserção de melhores substratos psicológicos na economia
delineia.
Na presente abordagem, se buscará melhor compreender decisões de consumo e poupança
brasileiras, a partir da noção de viés de projeção, pavor pela espera, desconto hiperbólico e
auto-controle. Para tanto, os próximos tópicos abordarão brevemente o significado de tais
conceitos.
2.1 O viés de projeção
A modelo do viés de projeção é recente, foi desenvolvido por George Loewenstein, Ted
O’Donoughe e Matthew Rabin em 2003, e substitui o “princípio de maximização da utilidade
descontada pela hipótese empírica de que o indivíduo se baseia nos seus estados viscerais
correntes para prever suas preferências futuras e a utilidade associada aos cursos de ação
disponíveis” (MURAMATSU, 2006, p. 109). Formalmente a hipótese do viés de projeção
pode ser apresentada como previsões de utilidade absoluta do consumo e de utilidade
marginal do consumo, que ficam normalmente entre os valores verdadeiros futuros e os
valores do seu estado presente
A principal contribuição de tal desenvolvimento é o reconhecimento de que os agentes
apresentam dificuldades em fazer estimativas de suas preferências, gostos, valores e
emoções futuras, baseando-se por isso, fortemente em seus estados viscerais presentes
para avaliar as alternativas, e efetivamente escolher. A partir de tal ótica é possível concluir
que a percepção atual do ambiente interferirá diretamente na avaliação de perspectivas e
possibilidades futuras.
Se o agente fosse plenamente racional, possuísse informação completa e mantivesse seus
estados viscerais, suas avaliações sobre o futuro não gerariam viés. Corretas estimativas
sobre preferências e estados do ambiente futuro gerariam escolhas ótimas. No entanto,
além de a hipótese de informação completa não encontrar contrapartida na vida real, o
agente também apresenta dificuldades em avaliar corretamente quais serão suas
preferências futuras. Restando apenas ao ser humano dotado de racionalidade limitada
(SIMON, 1957) a alternativa de se basear nas informações que o hoje e experiências
passadas lhe provêem. Enfatiza-se aqui que tanto a percepção dos incentivos e da
informação, quanto a lembrança de experiência passadas são fortemente determinadas
pelos estados viscerais do agente e por suas emoções correntes.
2 Ver Angeletos et al (2002).
Desse modo, em função de limitações cognitivas e incapacidades computacionais, os
estados emocionais atuais (sentimentos de incerteza ou euforia, por exemplo) terminam por
impactar significantemente as avaliações futuras, viesando-as. Segundo os autores, as
pessoas por subestimarem como seu comportamento atual e fatores exógenos afetam sua
utilidade futura, acabam exagerando o grau em que suas preferências futuras se parecerão
com suas preferências atuais (LOEWENSTEIN ET AL, 2003).
Ressalta-se que o modelo do viés de projeção (LOEWENSTEIN ET AL, 2003) tem obtido
bons resultados na explicação de comportamentos intertemporalmente inconsistentes, como
o efeito propriedade e comportamentos destrutivos como o consumismo e o vício por
drogas, delineando os benefícios de se trabalhar com hipóteses comportamentais mais
realistas.
2.2 - O “pavor pela espera” (desconto negativo)
Taxas de desconto comumente são positivas, denotando que o agente prefere antecipar um
resultado positivo e postergar um resultado negativo. No entanto, Loewenstein (1987) e
diversos outros autores (BENZION ET AL, 1989; CARSON e HOROWITZ, 1990)
demonstraram que às vezes os agentes preferem antecipar um evento desagradável,
apresentando assim taxas de desconto negativas.
Isso ocorreria devido ao fato de que esperar por uma perda implicaria em sofrimento,
gerando o efeito chamado na literatura comportamental de “pavor pela espera” (dread
effect). Segundo Muramatsu e Fonseca (2008), tal indivíduo traz a perda a valor presente a
um custo muito mais alto, pelo simples fato de que o custo de oportunidade de esperar por
ela (ansiedade) pode ser muito alto. Dessa perspectiva, um agente que previsse uma queda
em seu padrão de consumo no futuro, preferiria poupar agora, antecipando a perda futura
como uma forma de se precaver dela e da ansiedade adjacente à espera.
Faz-se necessário diferenciar o comportamento de “antecipar perdas” do conceito teórico de
“suavização do consumo”. Como ilustrado pelos modelos neoclássicos, o agente racional
que suaviza o consumo, prevê corretamente e antecipadamente o tempo e a magnitude da
queda em seu padrão de consumo, e escolhe desviar um aumento na renda atual para a
poupança em detrimento do consumo, de forma a anular tal queda.
A abordagem comportamental compreende que dificilmente o agente apresentará tal
capacidade racional, na verdade o indivíduo não consegue prever o tempo e a magnitude da
queda em seu padrão de consumo, sua decisão é feita em meio a incertezas. Por isso é
pouco provável também que esse indivíduo antecipe uma queda em seu padrão de
consumo, enquanto vivencia um aumento em sua renda corrente. A grande diferença é que
se o agente suavizasse, ele não sofreria a queda no padrão de consumo, ao passo que
como o agente mostra dificuldades em apresentar comportamentos de suavização em
decorrência de suas limitações cognitivas, ele não só sofre tal redução em seu padrão de
bem-estar, como uma vez prevista a queda, ele escolhe antecipá-la.
2.3 O desconto não constante (hiperbólico)
“Funções de desconto hiperbólicas são caracterizadas por uma taxa de
desconto relativamente alta para curtos horizontes e por uma taxa de desconto
relativamente baixa para amplos horizontes”. (LAIBSON, 1997, p.445)
O modelo de utilidade descontada (SAMUELSON, 1937), assim como os principais modelos
intertemporais de consumo e poupança (FRIEDMAN, 1957; MODIGLIANI e BRUMBERG,
1954; HALL, 1978), tem como uma de suas suposições centrais a idéia de que o desconto
temporal do agente é constante ao longo do tempo. Implicando que tal indivíduo em nenhum
momento revê seu padrão de ordenação das preferências (MURAMATSU, 2006).
Essa consistência temporal, no entanto, dificilmente é observada na esfera da realidade
empírica, que ao contrário tem revelado experimentalmente uma série de comportamentos
estilizados que denotam inconsistência temporal, como o efeito magnitude, efeito
imediatista, efeito do sinal, efeito propriedade, entre outros. (FREDERICK ET AL, 2002;
CAMERER E LOEWENSTEIN, 2004; MURAMATSU, 2006; MURAMATSU e FONSECA,
2008)
Estudos e experimentos comportamentais têm sugerido que ao invés de uma taxa de
desconto constante, as pessoas parecem apresentar taxas de desconto que decrescem à
medida que o horizonte temporal da escolha se expande (funções de desconto
hiperbólicas). Se as taxas de desconto decrescem ao longo do tempo isso revela não só que
as preferências estão mudando, mas principalmente que neste caso, o agente apresentaria
preferências viesadas para o consumo presente (miopia), além de uma tendência a ser mais
paciente à medida que o evento ou a escolha em questão se afasta no tempo
(MURAMATSU E FONSECA, 2008).3
Tal concepção de desconto hiperbólico tem superado consideravelmente, em termos de
3 Para facilitar a assimilação do conceito de inconsistência temporal e de taxas de desconto decrescentes segue o exemplo: imagine que João tem duas escolhas por fazer. Primeiro escolher se prefere uma maça hoje ou duas amanhã. Depois escolher se prefere uma maçã em 30 dias ou 2 maças em 31 dias. Em relação à primeira opção ele pensou e prefere uma maça agora. Em relação à segunda, ele topa esperar mais um dia para receber o dobro da gratificação (duas maças). Se João fosse consistente ele escolheria ou 1 maça hoje e 1 maça em 30 dias, ou 2 maças amanhã e 2 maças em 31 dias. Sua preferência não mudaria acerca da mesma escolha, só porque uma delas está distante no tempo. O contrário também vale, sua preferência (prefiro ganhar mais ou quero o quanto antes) não mudaria, só porque uma das escolhas está próxima. No entanto as escolhas de João foram inconsistentes (houve reversão de preferências), e ele demonstrou que se a escolha está longe no tempo de acontecer, ele consegue ser paciente e esperar a maior gratificação. É essa idéia, apresentada aqui de forma caricata, que está por detrás da discussão.
explicação e previsão de fenômenos, a concepção anterior de taxas de desconto constantes
(funções de desconto exponenciais) haja vista que a reversão de preferências é um
fenômeno amplamente observável no cotidiano e por isso deve ser levada em conta na
tentativa de compreensão do comportamento individual econômico.
Em suma, a inconsistência temporal compreendida na concepção de função de desconto
hiperbólica traz como principal implicação a expectativa de que o indivíduo “fará escolhas
relativamente previdentes, quando estiver planejando adiantadamente (todos os custos e
benefícios ocorrem no futuro), mas fará escolhas um tanto quanto imprevidentes quando
alguns custos e benefícios estiverem no presente” (CAMERER e LOEWENSTEIN, 2004,
p.26).4
2.4 O auto-controle
A principal implicação de um desconto temporal não constante são os problemas de auto-
controle. Isso porque o agente espera perspectivamente (hoje) que no futuro ele aja com
previdência. Mas quando o futuro chega, ele se comporta contra seus desejos iniciais
perseguindo uma gratificação imediata (imprevidência) muito mais do que um bem estar de
logo prazo (CAMERER e LOEWENSTEIN, 2004). 5
Strotz (1955) foi o primeiro a reconhecer este problema de planejamento (planeja uma coisa
e faz outra) por parte dos agentes econômicos, que gostariam de agir de forma
temporalmente consistente. A importância de tal conceito é enfatizada para uma melhor
compreensão da dinâmica da economia. Isso por que problemas de auto-controle levam
agentes a consumir mais do que gostariam de uma perspectiva inicial (e equivalentemente a
poupar menos do que gostariam) (FREDERICK ET AL, 2002).
Pode-se afirmar que sempre existirão motivos tentadores (uma viagem inédita, uma
promoção) para um indivíduo burlar seus planejamentos previdentes anteriores (i.e. poupar
uma quantia todo mês). Se ele não conseguir se controlar (o que é difícil considerando o
maior peso que o desconto hiperbólico dá ao presente) acabará poupando menos e
consumindo mais do que pretendia.
Tal afirmação não só é atual, como amplamente corroborada pela observação casual.
Segundo os estudos de Bernheim (1995), Farkas e Johnson (1997) e Choi et al (2004) “uma
grande fração da população afirma estar poupando muito pouco (que seria,
4 A partir de agora quando for dito que o agente apresenta “desconto hiperbólico” leia-se taxas de desconto decrescentes. Não existe desconto hiperbólico, o desconto temporal do agente ou é constante ou é não-constante, mas toda tentativa de simplificação é bem-vinda para um melhor entendimento do texto. 5 É como se quando chegasse o dia 30, João avisasse que mudou de idéia e pegasse uma maça só mesmo. Ele não se mantém ao que ele planejou para si mesmo. Ele viola seus planos de ontem quando a possibilidade de gratificação imediata está em jogo.
significantemente menos do que planejado, ou menos do que apropriado) para a
aposentadoria” (DIAMOND e VARTIAINEN, 2007, p. 24). Atualmente essas baixas taxas de
poupança têm criado uma preocupação generalizada acerca da sustentabilidade do nível de
investimentos, crescimento, balanço de pagamentos, e da própria segurança financeira das
famílias.
De uma perspectiva macro, esses insuficientes e cada vez mais reduzidos esforços de
poupança ameaçam a existência do círculo virtuoso entre taxas de poupança e crescimento
de longo prazo. Podendo ao contrário, inserir o país numa armadilha da pobreza, onde as
baixas taxas de poupança induziriam o país à estagnação econômica, a qual mais tarde
impacta negativamente as já baixas taxas de poupança do país, condenando-o à pobreza.
(WORLD BANK, 1999)
O fato de que outras decisões importantes e relevantes para a economia além da poupança
também estão dispersas no tempo, como investimento educacional, entre outras, chama
novamente a atenção para a importância dos problemas de auto-controle. É necessário que
o agente se controle frente à tentação da gratificação imediata para que tais planejamentos
encontrem eco na realidade futura. Visto dessa forma, um melhor entendimento acerca dos
problemas de auto-controle poderia culminar numa maior compreensão acerca das
trajetórias de poupança de famílias e até países.
3. Metodologia
Visando detectar trajetórias inconsistentes de consumo intertemporal das famílias
brasileiras, o presente trabalho analisa detalhadamente o comportamento tanto da série de
consumo privado, quanto de poupança privada desde 1981 até 2007, buscando
compreender até onde o movimento dessas séries respeitou as previsões dos principais
modelos intertemporais neoclássicos (MODIGLIANI e BRUMBERG, 1954; FRIEDMAN,
1957; HALL, 1978) e os incentivos macroeconômicos de cada período.
A série de consumo privado foi construída e tem freqüência anual6. A série de poupança
privada também é anual e sua construção seguiu a metodologia do trabalho empírico de
Reis et al (1998)7. Como incentivos macroeconômicos foram considerados os níveis de
6 A construção da série de consumo privado foi feita a partir da série de consumo final subtraindo a série de consumo final da administração pública. Ambas as séries supracitadas foram retiradas do Ipeadata (ver www.ipeadata.gov.br) e deflacionadas pelo deflator implícito do PIB (que tem base 2006 igual a 1). 7 Acompanhando a metodologia de Reis et al (1998) a proxy de poupança privada no Brasil, respeitou a seguinte equação: Poupança Privada = Poupança Doméstica (Saldo das Operações Correntes com o resto do mundo + FBCF) - Poupança do Governo (FBCF da Adm. Pública, Construção + FBCF da Adm. Pública, Máquinas e equipamentos - Necessidade de Financiamento do Setor Público, Gov. Federal e Banco Central, operacional, com desvalorização cambial - Necessidade de Financiamento do Setor Público, Estados e Municípios, operacional, com desvalorização cambial). Todas as séries utilizadas nesta construção foram retiradas do Ipeadata e deflacionadas pelo deflator implícito do PIB.
renda, o nível da taxa de juros e o nível de inflação de cada período. Tomou-se medida de
renda, a série anual de PIB per capita deflacionada pelo deflator implícito do PIB. Como
medida do nível de preços foi considerada a série mensal do IGP-DI (FGV). E como medida
da taxa de juros tomou-se a série mensal da taxa de juros Over/Selic deflacionada pelo IPC
(IBGE)8. Todas as séries acima foram retiradas do IPEADATA.
Para uma segunda parte do trabalho foram utilizadas como medida de crédito para o
consumo privado, a série de saldo consolidado das operações de crédito (com recursos
livres referenciais para taxa de juros pré-fixada) no cheque especial e no cartão de crédito. E
como medida de inadimplência foi considerado o saldo acima mencionado, com atraso
superior a 90 dias. Dados de crédito pessoal, crédito consignado e de financiamento de
bens duráveis (i.e. carro, casa) não foram analisados, pois podem configurar investimento
em alguns casos, o que se desvia dos propósitos do texto. A seleção apenas das séries de
cheque especial e de cartão de crédito traduzem por isso a tentativa, de focalizar apenas o
crédito direcionado para decisões de consumo.
Ambas as séries supracitadas foram retiradas do sistema de séries temporais do Banco
Central do Brasil (ver www.bacen.gov.br), são mensais abrangendo apenas o período do
ano de 2000 até 2007 (não existem séries mais longas para cheque especial e cartão de
crédito) e foram deflacionadas pelo IPCA (IBGE)9
Reconhece-se que trabalhar com dados em painel seria o mais indicado para uma análise
que visa fazer inferências sobre o comportamento microeconômico do agente, e sobre o
processo de tomada de decisão. Contudo, não existem pesquisas em painel no Brasil (i.e.
POF e PNAD) que relacionem o perfil da pessoa ao seu perfil histórico financeiro. Por essa
razão, o presente esforço trabalhou com os dados agregados citados previamente.
A análise empírica aqui desenvolvida detectou dois momentos em que os comportamentos
de consumo e poupança privados parecem conflitar com os incentivos econômicos do
período. Tais anomalias desafiam a compreensão econômica convencional, e por isso
qualquer tentativa de elucidação sugere a possibilidade de expansão de escopo por parte da
ciência econômica. Argumenta-se neste estudo que o emprego da abordagem da economia
psicológica nos ajuda a explicar tais anomalias de consumo intertemporal observadas, que
serão explicitadas a seguir.
8 Para deflacionar a série de juros usa-se o IPC (IBGE) pois ele foi o índice oficial adotado a partir do Plano Cruzado (1986), e seriam sobre ele que seriam feitos os reajustes de rendimento. Para demonstrar a evolução da inflação usa-se o índice IGP-DI (FGV), pois tanto o IPCA (IBGE) quanto o IPC (IBGE) sofreram mudanças metodológicas (alterações na base) no período da década de 1980, como tentativa dos planos econômicos de refrear o processo inflacionário (que acreditava-se ser fortemente inercial) e por isso não consistem em boas aproximações do processo inflacionário vivido no período. 9 Neste caso utilizou-se o IPCA (IBGE) por considerar o peso que este índice dá ao setor de serviços da economia. Tais gastos estão fortemente relacionados com despesas em cartão de crédito e débito.
10
15
20
25
30
1981
1983
1985
1987
1989
1991
1993
% P
IB
0
500
1000
1500
2000
2500
3000
% a
.a.
Poupança Privada
Inflação (IGP-DI)
4 - Resultados e Discussões 4.1 - Inflação, incerteza e o enigma da poupança pr ivada crescente
“O período que compreende o início dos anos 80, até meados dos anos 90 é interessante
e peculiar, pois se constata que a elevação dos patamares inflacionários coincidiu com
aumentos substanciais das taxas de poupança privada”. (REIS ET AL, 1998, p. 234)
A década “perdida” de 1980 não deixou como legado apenas uma lacuna no crescimento e
desenvolvimento do país, deixou também alguns enigmas acerca do comportamento
individual do agente econômico brasileiro para a teoria econômica. Acompanhando o
Gráfico I abaixo, é possível perceber a existência de uma coincidência temporal entre a
elevação dos patamares de poupança privada, e a aceleração do processo inflacionário.
Levantando desde já a questão do por que indivíduos em meio a um ambiente de inflação
galopante escolheriam postergar o consumo e poupar mais.
Gráfico I Evolução da Inflação e da poupança privada no Brasi l de 1981 a 1994 .
Fonte: IPEADATA (tanto para elaboração da série de poupança privada, quanto como fonte do IGP-DI).
Os altos índices de inflação do período, que partem já de uma hiperinflação de 100% a.a. no
início dos anos 80, para patamares de 2013% a.a. em 1989, oferecem um forte desincentivo
à poupança. A abordagem de otimização intertemporal preveria um esgotamento da
poupança privada, uma vez que o custo compreendido pela perda de poder de compra
gerada pelo processo inflacionário, excede os benefícios que rendimentos reais da
poupança possam oferecer, deteriorando assim a renda real ao longo do tempo (HALL,
1978). Maximizar numa estrutura de ambiente inflacionária seria privilegiar o consumo
imediato10.
Apesar da estratégia individual esperada, ser aquela voltada para consumo presente, o
período que foi marcado por um baixo crescimento do PIB, total descontrole inflacionário,
10 Apesar de existir no Brasil o fenômeno da correção monetária e as famosas taxas overnight, elas não davam conta de restituir 100% o valor corroído pela inflação. A abordagem neoclássica em geral (teoria da utilidade esperada e descontada) e a citada abordagem de Hall supõem que as decisões dos agentes se baseiam nos valores monetários reais, não havendo assim espaço para fenômenos como o da ilusão monetária. (SHAFIR ET AL, 1997; HEUKELON, 2006)
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15
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45
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1981
1983
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1991
1993
% P
IB Poupança privada
Consumo Privado
baixas taxas de investimento, de poupança externa e de poupança do governo, apresentou
surpreendentemente altas taxas de poupança privada. (REIS ET AL, 1998; EDWARDS,
1995). Não só houve uma inesperada elevação dos estoques ótimos de poupança dos
brasileiros, como se percebe a partir do Gráfico II abaixo, uma retração simultânea do
consumo privado. Enfatiza-se aqui que tal observação num cenário de inflação
descontrolada é extremamente contra-intuitiva para a compreensão econômica neoclássica.
Gráfico II Evolução do consumo privado e poupança privada de 1 981 a 1994.
Fonte: Elaboração própria com base nos dados do IPEADATA.
Curiosamente observa-se a partir de 1985, o ensaio de uma trajetória de crescimento da
poupança privada, que salta de R$245 bilhões em 1985, para R$374 bilhões em 1987,
alcançando a cifra de R$458 bilhões em 1989, ou cerca de 30% PIB, como demonstra o
Gráfico II e a Tabela I abaixo. Já o consumo, acabado o período de congelamento de preços
do Governo Sarney (1986), apresenta queda partindo de R$994 bilhões em 1986 para cerca
de R$880 bilhões em 1988, chegando a patamares de R$868 bilhões em 1989.11
Tabela I Consumo Privado e Poupança Privada de 1983 a 1994.
Anos Consumo Privado (bilhões de reais)
Poupança Privada (bilhões de reais) Anos
Consumo Privado (bilhões de reais)
Poupança Privada (bilhões de reais)
1983 R$ 844 R$ 181 1989 R$ 868 R$ 458
1984 R$ 867 R$ 260 1990 R$ 909 R$ 213
1985 R$ 890 R$ 245 1991 R$ 953 R$ 208
1986 R$ 994 R$ 254 1992 R$ 948 R$ 264
1987 R$ 945 R$ 374 1993 R$ 969 R$ 259
1988 R$ 880 R$ 406 1994 R$ 1.013 R$ 255
Fonte: Elaboração própria com base nos dados disponíveis no IPEADATA. 11 Descrições dos períodos de congelamentos de preços, sempre mencionam a emergência do mercado negro que terminava por atender parte da população em função das crises de desabastecimento de produtos. Tanto o consumo oficial quanto o consumo via mercado negro estão contidos nas estimativas de consumo privado apresentadas aqui, visto que o presente trabalho se baseou na série de consumo final, contida nas Contas Nacionais do IBGE, que é calculada por resíduo. Em segundo lugar, vale chamar a atenção para um dado metodológico que vem a corroborar a observação de queda do consumo privado. Nos anos de 1987 a 1989 não existiram estimativas separadas para consumo final e variação dos estoques, ou seja, os dados de consumo final destes períodos, contém a variação dos estoques dos mesmos. Isso significa, que caso considere-se válida a recorrente afirmação de que nessa época os empresários especulavam com estoques, tal fato levaria a crer que houve elevação dos estoques no período, concluindo por isso que a queda no consumo privado observada nos anos de 1987 a 1989 foram potencialmente maiores dos que as observadas no Gráfico II e na Tabela I.
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10,4
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1986
1988
1990
1992
1994
Milh
are
s de
rea
is
PIB per capita real
Reis et al (1998, p. 234) enfatiza que “a poupança privada aumentou de tal ordem que a
taxa de poupança doméstica - que inclui a poupança privada e a do governo - apresentou
comportamento crescente”, apesar da despoupança do governo no período. A observação
de poupança crescente e consumo decrescente, justamente no período de cume
inflacionário, desafia não só a compreensão econômica acerca do comportamento
individual, mas principalmente a memória que se guardou dessa época. Tais dados sugerem
que a exaustivamente abordada despoupança voluntária do período e a “corrida para o
consumo” (MODIANO, 1990) seriam apenas falácias da história econômica brasileira.
Ressalta-se aqui, que os baixos níveis de renda dos agentes brasileiros seriam outros
fatores que deveriam contribuir para desincentivar um comportamento de poupança, já que
“poupar é relativamente menos atraente quando a renda é baixa” (DIAMOND e
VARTIAINEN, 2007, p. 33). Ademais, políticas econômicas do período, como defasados
reajustes salariais e as desvalorizações do câmbio deterioravam ainda mais a renda real
(MODIANO, 1990), debilitando dessa forma a possibilidade de planejamento do orçamento.
O Gráfico III na sequência, evidencia a deterioração na renda ocorrida no período, a qual
chegou a somar 30% de perda do poder de compra do salário mínimo, ao longo da década
de 1980. (MORAES, 1999)
Gráfico III PIB per capita real no Brasil de 1986 a 1994.
Fonte: IPEADATA
Investigando o que poderia ter levado os agentes privados brasileiros a elevar seus níveis
de poupança a cerca de 30% do PIB nesse período, poderia-se tomar taxas de juros reais
positivas como possíveis incentivos à poupança. Contudo diversos esforços empíricos
concluíram que “o efeito da taxa de juros real sobre a poupança privada é negligenciável” no
Brasil (GLEIZER, 1991, p. 63). Estudos como os de Reis et al (1998) e Gomes (2007)
chegaram à mesma conclusão de que os juros não são significativos na evolução da série
de consumo e poupança do Brasil.
Seguindo a orientação dos estudos citados, o presente trabalho descarta a hipótese de que
um aumento da poupança privada estaria sendo guiado por uma elevação na taxa de juros
real. Com isso em mente, busca-se esclarecer o enigma da poupança privada crescente,
respaldado em fundamentos da Economia Comportamental.
4.1.1 Interpretações comportamentais para esta anomalia
Inflação pode-se dizer, é um fator ampliador das incertezas sobre o futuro da vida
econômica individual. Em tais circunstâncias o principal coordenador de uma economia de
mercado, o sistema de preços, fica comprometido, e o conjunto de incentivos do ambiente
distorcido. O agente econômico perde seu principal sinalizador de informações, sendo
obrigado a conviver em meio à incerteza quanto a resultados futuros. Friedman (1977) e
Okun (1971) já haviam enfatizado a existência de uma relação positiva entre inflação e
incerteza.
Mais ainda, Issler (1991) afirma que a incerteza aumenta à medida que a média da inflação
avança. O Brasil no período que se estende de 1972 a 1985 apresentou uma variação da
taxa de inflação de 15% para 243% ao ano, e só no intermezzo de 1986 à 1989 esse
patamar avançou de 60% para 2.013% ao ano. Além disso, não apenas o processo
inflacionário em si gera instabilidade, e por conseqüência incerteza, mas programas anti-
inflacionários frustrados e políticas macroeconômicas incoerentes com um ambiente
inflacionado contribuíram no caso do Brasil para o crescimento da percepção de incertezas
e perigos, gerando um ambiente econômico adverso.
Entre 1986 e 1989 o país enfrentou o fracasso de três programas de estabilização (Plano
Cruzado de fev/1986, Plano Bresser de jun/1987 e Plano Verão de Jan/1989), cujos
congelamentos de preços culminaram inevitavelmente em desabastecimento da economia.
Os períodos posteriores aos planos foram, de acordo com Reis et al, acompanhados por
“fortes oscilações nas taxas de câmbio e de juros, instabilidade da atividade econômica e
aumentos de concentração na distribuição de renda” (1998, p. 242-243).
Em 1987 especificamente, o país enfrentou uma crise cambial que o levou à moratória
externa. Segundo Carneiro e Modiano (1990) um dos fatores que sem dúvida marcou o ano
de 1987 foi o aumento da incerteza. Para piorar, os desencontrados reajustes de preços e
salários intensificavam o clima de insegurança em que viviam os agentes, uma vez que o
preço de compromissos assumidos (i.e. aluguel) podia ser reajustado antes do dissídio
salarial. Em meio a tantas experiências negativas não seria difícil imaginar que grande parte
dos agentes econômicos estivessem formando expectativas nefastas quanto a
oportunidades futuras.
O viés de projeção, conceito formalmente proposto por Loewenstein et al (2003) vai prever
exatamente que numa estrutura de ambiente como a brasileira no final da década de 1980,
as perspectivas futuras dos agentes seriam extremamente pessimistas. Isso ocorreria, pois
segundo o modelo do viés de projeção os agentes estimam suas preferências futuras com
base em estados viscerais e emoções presentes (i.e. medo, ansiedade) e por isso
costumam projetar erroneamente suas preferências atuais nos sentimentos, preferências e
objetivos futuros (MURAMATSU, 2006). O presente dessa forma determinaria como este
agente enxerga o futuro.
A partir dessa análise, entende-se que a insegurança em que viviam os brasileiros naquela
época, impactaria não só a forma como este indivíduo enxerga o futuro (medo do que o
amanhã aguarda), mas principalmente impactaria a estimativa de suas preferências futuras,
viesando-as no sentido de um maior apelo por precaução. O viés característico advém do
fato de que, fazer estimativas num cenário econômico adverso tende a viesar negativamente
as conclusões sobre o futuro.
O contexto inflacionário da década de 1980, ensinou aos brasileiros que a inflação reduz
drasticamente o bem estar social (HASLAG, 1997), seja ao reduzir o crescimento via
incerteza, seja ao alterar a composição do produto (aumentando participação de serviços
financeiros e diminuindo a de bens de consumo como nota Issler e Pegurier - 1998). Os
agentes puderam perceber que o nível de atividade econômica foi restringido, e em razão
disso projetaram para o futuro o pessimismo do hoje via preferências temporais.
Essa expectativa negativa do agente em relação ao futuro que economicamente se
traduziria como “não sei se conseguirei manter meu padrão de consumo”, gera ansiedade
em função da limitada habilidade do agente de ajustar suas preferências ao que ele possui
(LOEWENSTEIN e ANGNER, 2002). Esse agente avesso às perdas (KAHNEMAN ET AL,
1990), apresentará em função disso um comportamento conhecido como “pavor pela
espera”: antecipará a perda futura esperada e restringirá hoje suas possibilidades de
consumo, surgindo assim uma instância de poupança precaucional (DARDANONI, 1991). É
mais aceitável para esse indivíduo perder agora na estrutura de ambiente conhecida (e fugir
da ansiedade da espera), do que encarar as características de um futuro ainda obscuro.
Argumenta-se no presente artigo, que o esforço de poupança da década de 1980 tinha
fortes motivações precaucionais (DEATON, 1992; CARROLL e SAMWICK, 1998). Ou seja,
era uma estratégia proveniente da incerteza que os agentes enfrentavam quanto à renda
futura e não fruto da tentativa de alocação ótima dos recursos familiares. Tal hipótese foi
confirmada econometricamente pelo estudo de Reis et al (1998). Explica-se assim porque o
fracasso dos três programas de estabilização pelos quais o país passou, por exemplo, foram
acompanhados por aumentos sucessivos na taxa de poupança privada, que partiu de 16,9%
do PIB em 1986 para praticamente 28,5% do PIB em 1989.
O presente artigo defende a tese de que o viés de projeção dos agentes e o desconforto
associado à espera por perdas (efeito “pavor pela espera”) seriam alguns dos fatores
psicológicos, capazes de explicar o comportamento de poupança precaucional num
ambiente extremamente inflacionário e permeado de incertezas, como o Brasil da época.
Percebe-se assim, que forte contribuição pode advir do uso de alguns conceitos
comportamentais na tentativa de compreensão de variáveis econômicas, implicando não só
na resolução de algumas anomalias brasileiras, mas num maior entendimento geral da
trajetória de consumo e poupança das famílias.
Essa compreensão traz um pedido de cautela ao se deparar com comportamentos de
poupança privada crescente. É necessário sempre avaliar os incentivos psicológicos ou
emocionais que o período delineia, pois se a motivação do movimento ascendente da
poupança for apenas precaucional, significa que será também pontual: se a incerteza acaba,
a poupança cai. Economistas que buscam compreender não só os ciclos pelos quais
passam a economia, mas principalmente prever sua duração, deveriam inserir mais
psicologia em suas análises econômicas, visto que a poupança é um fator potencial na
determinação do crescimento econômico de uma nação
Tendo abordado os motivos que levaram os agentes brasileiros a elevar seus estoques de
poupança em detrimento do consumo no final da década de 1980, resta ainda compreender
porque houve a precipitada interpretação de que houve aumento do consumo no período,
fato abordado em textos que discorrem sobre a época, mas que no entanto não encontram
contrapartida no estudo empírico fundamentado. Acredita-se aqui que dois fatores teriam
induzido a tal conclusão enganosa: a natureza não observável dos comportamentos de
poupança e um aumento da velocidade do consumo nesse período.
Entende-se que o agente apesar de elevar a proporção da poupança na sua renda familiar,
como resposta ao ambiente incerto em que vivia, tinha pressa em consumir os recursos
destinados ao consumo imediato, como uma forma de prevenir-se das perdas inflacionárias.
Assim que o salário era recebido, o indivíduo buscava garantir o consumo essencial de todo
o mês a menores preços. O consumo privado não aumento nesse período como se viu
anteriormente, mas a velocidade de consumo aumentou consideravelmente, tanto em
função da fuga de perdas inflacionárias quanto em função dos desabastecimentos ocorridos.
Defende-se assim a interpretação de que, a corrida para consumir, caracterizada algumas
vezes por filas em lojas e supermercados, e o fato de que não é possível saber a priori quais
agentes são poupadores apenas pela observação casual, seriam os motivos que estariam
por detrás das noções equivocadas de que houve nessa época despoupança voluntária e
aumento do consumo privado.
Argumenta-se aqui, que a estratégia observada de poupança precaucional dos agentes
brasileiros só será abandonada a partir do Plano Collor I. Isso porque o choque institucional
chamado “sequestro dos ativos” é capaz de promover considerável ajuste nas preferências
temporais dos agentes. Sugere-se que este evento teve papel significante na determinação
de um maior grau de impaciência e até certa miopia (preferências viesadas para o consumo
presente) por parte dos agentes brasileiros, merecendo por isso ser citado com mais detalhe
a seguir.
4.1.2 O choque institucional e o desfacelamento da estratégia precaucional
Em março de 1990, é anunciado o Plano Collor I, o quarto plano de estabilização econômica
desde o Plano Cruzado de 1986. E apesar de parte de seu conteúdo ser conhecido de
outros planos, como congelamentos de preços e tímidos ajustes fiscais ele surpreendeu
negativamente os indivíduos ao anunciar o congelamento em média de 70% do estoque de
ativos financeiros do país (NAKANO, 1990; BRESSER-PEREIRA, 1991; MORAES, 1999)
A Medida Provisória 168 decretou que apenas poderiam ser convertidos em Cruzeiros os
saldos dos depósitos à vista e das cadernetas de poupança até o limite de NCz$50.000, o
que dada a taxa de câmbio da época equivalia a um pouco mais que US$1.000 (NAKANO,
1990). Além disso, saldos superiores a CR$195.000 estavam sujeitos a partir de então à
tributação de 8% de IOF (Imposto sobre operações financeiras) no momento do saque
(MORAES, 1999). Tal congelamento representava a união de um confisco injustificado via
tributação com uma não declarada moratória interna, a partir do momento que entre os
ativos financeiros congelados estavam também os títulos da divida pública brasileira.
A audácia do Plano resultou num fantástico enxugamento de liquidez, reduzindo de um dia
para o outro os meios de pagamentos no conceito ampliado M4 (papel moeda; depósitos à
vista; títulos públicos em poder do setor privado; depósitos em caderneta de poupança;
depósito à prazo; e letras de câmbio) de cerca de 30% PIB para 9% do PIB (NAKANO,
1990). Para se ter idéia da distorção promovida, a demanda de moeda adequada seria de
pelo menos 14% do PIB. Em países capitalistas com moeda estável essa porcentagem
chega a 17% do PIB para os EUA, e a 30% do PIB para o Japão. (BRESSER-PEREIRA,
1991).
A reação não poderia ser outra, o “choque monetário tomou toda a sociedade de surpresa,
deixando-a perplexa” (NAKANO, 1990, p.140) e “reduziu ainda mais o já abalado crédito do
Estado e das instituições financeiras (BRESSER-PEREIRA, 1991, p.84). A poupança
privada cai vertiginosamente no ano de 1990, e subsequentemente em 1991, como mostra o
Gráfico IV, mantendo-se pouco acima de 15% PIB no restante de toda década, sem ter se
recuperado como se vê, até os dias atuais.
10,00
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20,00
25,00
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1991
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2003
% P
IB
Poupança Privada
Gráfico IV Poupança privada a partir do choque institucional d e 1990
Fonte: Elaboração própria com base nos dados disponíveis no IPEADATA.
Abaixo a tabela II vem a explicitar a magnitude do choque institucional e seu imediato
reflexo sobre o comportamento de poupança dos agentes privados brasileiros. Como é
possível observar, a mudança de patamares de 1989 para 1990 é drástica: enquanto em
1989 (valendo lembrar que esses dados provém de registros consolidados ao final de um
ano) a poupança privada chegava a quase 30% do PIB brasileiro, somando cerca de R$458
bilhões de reais, em 1990 ela praticamente se reduz em mais da metade, caindo para
13,92% do PIB e não passando de R$213 bilhões de reais. Um redução de exatos 53,49%
num curto período de um ano.
Tabela II Evolução da Poupança Privada de 1985 a 1992.
Fonte: Elaboração própria com base nos dados disponíveis no IPEADATA.
Pode-se explicar a reversão do padrão de poupança nos termos da noção de aversão à
perda. O indivíduo avesso às perdas atribui um maior incômodo às situações de perda em
relação ao quanto aprecia os ganhos (RABIN, 1998), sendo por isso fortemente impactado
pelo choque institucional. Tal ação mina a tentativa de precaução via poupança do agente,
que buscava garantir seu padrão de bem–estar e acaba por ser negativamente
surpreendido.
O presente artigo compreende que frente a tal incentivo o agente cessa sua estratégia de
poupança precaucional. Tal mudança na ordem institucional abre espaço para novos
confiscos, e se não existem mais garantias de que o sacrifício da contenção do consumo
presente se reverterá em consumo futuro, não há sentido em fazer poupança precaucional.
Para o agente avesso a perdas sua poupança só faz sentido se tiver liquidez, se puder ser
resgatada a qualquer momento, é essa certeza que permanece implícita no comportamento
de poupança precaucional.
Anos Variáveis 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992
Poupança Privada (%PIB) 17,55% 16,92% 24,07% 26,16% 28,56% 13,92% 13,46% 17,12%
Poupança Privada (bilhões de reais) R$245 bi R$254 bi R$374 bi R$406 bi R$458 bi R$213 bi R$208 bi R$ 264 bi
Compreende-se assim não só o potencial impacto que más instituições podem gerar sobre
os agregados de uma economia, e sobre até as crenças e preferências temporais de seus
agentes, mas principalmente como a inserção de uma ótica psicológica sobre
comportamentos de poupança ilumina certas reversões de padrões ao longo do tempo.
Na sequência, será abordado o segundo enigma da escolha intertemporal brasileira
detectado pelo presente artigo.
4.2 - Estabilização Macroeconômica, Inovações Finan ceiras e o enigma do super-
endividamento
Outro momento curioso da história econômica brasileira se apresenta a partir da segunda
metade da década de 1990 até os dias atuais. Nesse período a estabilização econômica já
era uma realidade vivida por todos os brasileiros. O Plano Real de 1994 conseguiu com
sucesso debelar o processo inflacionário, devolvendo a estabilidade do poder de compra da
moeda. Nessa nova estrutura de ambiente torna-se possível um planejamento do consumo
intertemporal, uma vez que se tem segurança na perspectiva do quanto a renda futura
representará como poder de compra.
Levando em conta que também vigorou nesse período uma política monetária de altas taxas
de juros reais, onde a taxa Selic/Over real chegou a um pico de 27%a.a. em 1998, poder-se-
ia argumentar que tal cenário traduzia consideráveis incentivos a poupar de uma perspectiva
neoclássica. A substituição do consumo abordada pelo modelo de renda permanente
(FRIEDMAN, 1957), pelo modelo de ciclos de vida (MODIGLIANI e BRUMBERG, 1954) e
principalmente pelo trabalho seminal de Hall (1978), implica a grosso modo, que “uma maior
taxa de juros real esperada leva os consumidores a postergar o consumo, tudo o mais
constante” (CAVALCANTI, 1993, p. 203).
Contudo a evidência empírica brasileira tem confrontado tal concepção, e apesar de taxas
de juros positivas têm se observado um boom no consumo das famílias (ALÉM e
GIAMBIAGI, 1997), como mostra o Gráfico V abaixo. O consumo privado que somava cerca
de 1,1 trilhão de reais em 1995, alcança em 2006 a cifra de 1,41 trilhão de reais. Um
aumento real de 28% do consumo nacional privado em pouco mais de 10 anos. Isso
contando que a variação do PIB nesse mesmo período foi de algo em torno de 31,4%, um
valor muito próximo, sugere que o consumo tem acompanhado de perto as variações na
renda.
1100
1175
1250
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1995
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de
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Consumo Privado
0150300450600750900
1995
1997
1999
2001
2003
2005
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ais
Poupança Privada
Gráfico V Consumo privado no Brasil a partir de 1995.
Fonte: Elaboração própria com base nos dados disponíveis no IPEADATA.
Ao mesmo tempo, a poupança dos agentes privados não apresentou grande alteração,
quando comparada com os altos níveis observados no final da década de 198012 (rever
Gráfico I e IV). Depois do choque institucional de 1990, a poupança privada cai para
aproximadamente 14% do PIB, e tem se mantido pouco acima desse nível no restante da
década de acordo com a Tabela III abaixo, não ultrapassando em nenhum momento uma
proporção de 19 % do PIB.
Tabela III Poupança Privada e Consumo Privado como proporção d o PIB de 1994 a 2005.
Anos Poupança Privada
(% PIB) Consumo Privado
(% PIB) Anos Poupança Privada
(% PIB) Consumo Privado
(% PIB)
1994 15,0 59,6 2000 12,8 64,3 1995 18,0 62,5 2001 12,4 63,5 1996 15,3 64,7 2002 12,9 61,7 1997 16,0 64,9 2003 15,4 61,9 1998 17,8 64,3 2004 14,8 59,8 1999 13,7 64,7 2005 18,3 60,3
Fonte: Elaboração própria com base nos dados disponíveis no IPEADATA. Gráfico VI Poupança privada no Brasil a partir de 1995
Fonte: Elaboração própria com base nos dados disponíveis no IPEADATA.
12 O fato de que as altas taxas de juros não produziram significante impacto na poupança privada, corrobora o resultado de alguns trabalhos que apontam para uma pequena elasticidade-juros da poupança (EDWARDS, 1995). Ênfase deve ser dada para os estudos de Gleizer (1991), Reis et al (1998) e Gomes (2006) que concluíram que a taxa de juros não é um fator impactante no comportamento de poupança usando especificamente dados brasileiros
11
11,4
11,8
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PIB per capita real
De acordo com o Gráfico VI acima, observa-se apenas uma leve deterioração da poupança
privada a partir de 1998, que acaba por ser recuperada de 2003 para cá. Em suma, a
poupança manteve-se curiosamente constante apesar do crescimento da renda observado
no período. O Gráfico VII abaixo apresenta a evolução da renda per capita brasileira, que
avançou 11,8% no intervalo de 1995 e 2006, um crescimento vale lembrar bem abaixo dos
28% observados no consumo privado.
Gráfico VII Evolução do PIB per capita no Brasil a partir de 19 95
Fonte: IPEADATA
As observações acima sugerem a existência de uma preferência revelada por parte dos
agentes brasileiros em destinar ganhos de rendimento à incursão em padrões de consumo
mais elevados. Ademais, o fato de que a poupança privada não se recupera depois do
choque institucional de 1990, apesar da renda per capita dos brasileiros estar crescendo
(Gráfico VII) e do ambiente de estabilidade e segurança favorável ao planejamento do
orçamento, corrobora não só a hipótese de que o grande incentivo para a poupança do
período anterior eram as incertezas macroeconômicas (hipótese levantada pelo artigo),
como também parece confirmar a proposição feita anteriormente, de que tal experiência
teria formado nos agentes novas preferências temporais voltadas ao consumo presente.
Induzindo à observação de comportamentos míopes.
Coadunando com a perspectiva acima de miopia, está o fato de que a tomada de crédito
para consumo por parte do setor privado tem apresentado considerável expansão, assim
como também tem se elevado as instâncias de super-endividamento e os índices de
inadimplência, denotando a existência de preferências mal adaptadas ao ambiente. Neste
cenário de possibilidade de planejamento do orçamento, os agentes revelam dificuldades
em equilibrar a renda familiar com os apelos de consumo e compromissos já assumidos.
Os gráficos VIII e IX a seguir apresentam a tomada de crédito e a respectiva evolução dos
níveis de inadimplência, apenas para as ferramentas financeiras cartão de crédito e cheque
especial, traduzindo a tentativa de capturar somente o volume de crédito que foi direcionado
para decisões de consumo.
147
10131619
mai/
00
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01
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/07
Bilh
ões
de r
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s
Volume contratado noCheque Especial
Volume contratado noCartão de Crédito
048
1216202428
mai/
00
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/01
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/07
%
Inadimplência noCheque Especial (%)
Inadimplência noCartão de Crédito (%)
Gráfico VIII Operações de crédito para consumo a partir de 2000.
Fonte: BCB-DEPEC
Como pode ser observado a partir do gráfico acima, desde o ano de 2000 o volume de
crédito contratado no cheque especial dobrou, passando de cerca de 6 bilhões de reais para
mais de 13 bilhões reais por mês. Já as operações via cartão de crédito apresentaram
desempenho ainda mais significativo, tendo aumentado mais de 17 vezes o volume
contratado, partindo no ano de 2000 de cerca de 1 bilhão de reais para uma demanda atual
de quase 18 bilhões de reais por mês.13
Gráfico IX Inadimplência acima de 90 dias no cheque especial e no cartão de crédito desde 2000.
Fonte: BCB-DEPEC
Contudo, é a inadimplência que mais chama a atenção, mostrando que escolhas
equivocadas ou impensadas têm sido feitas. Do ano de 2000 para cá, a porcentagem
inadimplente no cheque especial pulou de cerca de 3% para 10% do crédito disponibilizado,
como mostra o Gráfico IX. No cartão crédito, os números assustam: a porcentagem
inadimplente pulou de 2,5% para praticamente 25% de todo crédito concedido. Tais dados,
sugerem a possibilidade de deterioração das finanças familiares brasileiras.
Robert Hall afirmava que os “consumidores estimam seu bem-estar econômico de um modo
inteligente que exige um olhar sobre o futuro” (1978, p. 985), no entanto as evidências
13 Vale lembrar que tomar crédito via cheque especial é o mesmo que estar em débito na conta corrente. E que o volume contratado no cartão de crédito (na presente análise) não abrange pagamentos que foram feitos à vista, ou seja, nessas cifras só se encontram os valores referentes a pagamentos à prazo no cartão de crédito e referente a quem escolheu pagar a parcela mínima da fatura do cartão de crédito no mês.
brasileiras recentes levam necessariamente ao questionamento dessa perspectiva. Tem
realmente os brasileiros se importado com seu consumo futuro? E se o têm porque não
exercem a possibilidade de planejamento do orçamento que tal estrutura de incentivos do
período delineia? Os tópicos a seguir buscarão iluminar alguns fatores que poderiam estar
levando esses indivíduos a privilegiar o consumo imediato, baseando-se mais uma vez em
fundamentos comportamentais.
4.2.1. Interpretações comportamentais para esta anomalia
De 1994 até os dias atuais consideráveis mudanças tem ocorrido no cenário econômico
individual. A expansão do crédito, com destaque para o alargamento dos prazos de
pagamento (ALÉM e GIAMBIAGI, 1997) e a popularização de inovações financeiras como o
cartão de crédito, são algumas delas, que colaboraram no sentido de aumentar as
possibilidades do agente econômico, que antes se via preso à sua renda corrente. Um
problema, no entanto, surge do reconhecimento de uma limitação cognitiva, que questiona a
capacidade do indivíduo de frente a um crédito tão facilitado, resistir às tentações do
consumo imediato, e se manter fiel a seus planejamentos previdentes de longo prazo.
Segundo as palavras precisas de Webley e Nyhus (1998, p. 6) o “comportamento é
resultado da intensidade experienciada de tentações, e da habilidade de executar o auto-
controle em situações onde há conflito entre o curto prazo (gastar agora) e os objetivos de
longo prazo (orçamento doméstico sólido)”. O desconto hiperbólico do agente, por exemplo,
transforma o presente numa tentação ao supervalorizar o benefício do “comprar agora” e
subestimar o incômodo do “pagar depois” (KILBORN, 2007), desencorajando uma atitude
precavida frente a um conflito entre o hoje e o amanhã.
Se por um lado os agentes freqüentemente determinam metas de poupanças pessoais, do
outro está a tentação do comprar agora e violar os planos anteriores. A constatação da
existência de problemas de auto-controle emerge da observação de que os agentes tendem
a violar sistematicamente seus planos de longo prazo à medida que os períodos futuros
tornam-se atuais (STROTZ, 1955), em função da maior taxa de desconto que o agente
apresenta no presente (desconto hiperbólico).
Isso implica que ao se deparar com a possibilidade de consumo imediato, com uma
promoção ou com uma facilidade de pagamento, o agente tende a superestimar o quanto
essa oportunidade “vale a pena”, se esquecendo, ou pelo menos subestimando o impacto
de tal decisão sobre seus planejamentos de longo prazo (como poupar uma certa quantia
todo mês). A consequência da não percepção individual dessa disposição curto-prazista é
incorrer seguidamente na “tentação do consumo imediato”, pois a maior taxa de desconto
para o presente revela um apelo consumista e imediatista.13
As inovações financeiras tomam seu papel neste cenário ao facilitar o acesso à gratificação
imediata. O excesso de liquidez é uma armadilha perigosa para o agente inconsistente que
sempre superestima a utilidade do consumo presente, pois não só o leva a sabotar
sistematicamente seus planejamentos previdentes, como fica delineada a possibilidade de
que a inexistência de restrições ao crédito, implique na observação de instâncias de super-
endividamento sub-ótimas, dados os objetivos de longo prazo dos agentes. (MEIER e
SPRENGER, 2007; KILBORN, 2007). Em vista disso, o modelo do desconto hiperbólico
prevê que as inovações financeiras vão impactar negativamente as taxas de poupança
individuais (LAIBSON, 1997; HEUKELOM, 2007).
O ambiente de estabilidade de preços e a trajetória ascendente da renda dos indivíduos
observados no período que se estende desde 1995, contribuem para um clima de otimismo,
que dispensa precaução. Sugere-se aqui que, assim como no final da década de 80 o
modelo do viés de projeção delinearia um apelo por ações previdentes, no ambiente atual o
agente fica despreocupado, pois o fácil acesso à liquidez se apresenta como um fator de
segurança econômica.
Outras dificuldades cognitivas acabam por exacerbar esse já existente sentimento de
otimismo. O fato de que os agentes utilizam atalhos mentais para prever a probabilidade de
eventos futuros, em particular eventos negativos, e de que tendem a subestimar o poder do
juro composto (KILBORN, 2007; DIAMOND e VARTIAINEN, 2007) leva-os a subestimar a
probabilidade de incorrer em situações desagradáveis como a inadimplência. Vivendo acima
de sua renda, mas não acima de seu crédito, o clima de otimismo leva os agentes a pensar
“nós daremos um jeito”, lembrando as palavras de Lendol Calder. (CALDER, 1999;
KILBORN, 2007)
É necessário chamar a atenção desde já, para o fato de que não há na presente discussão
espaço para valoração. Pegar crédito ou endividar-se não pode ser definido como algo ruim
ou bom. Mas nasce uma preocupação do fato de que os agentes em função de certas
características comportamentais (inconsistência, imediatismo e falta de auto-controle)
seriam levados a superestimar a utilidade (e necessidade) desse crédito no presente, e
assim a violar uma possível escolha prévia por cursos de ação mais previdentes.
13 A conclusão de que a inconsistência do agente tem papel importante na determinação do endividamento individual, confronta a visão de que são as condições da renda corrente que estão por detrás do comportamento de crédito. (MEIER e SPRENGER, 2007)
O caso atual brasileiro começa por se tornar crítico a partir da noção de que seus altos
níveis de impaciência (frente ao consumo) dificultam a complicada tentativa de auto-
controle, à medida que valorizam ainda mais o presente já superestimado pelo desconto
hiperbólico. O trabalho empírico de Reis et al caracterizou o grau de impaciência brasileiro
como surpreendentemente alto, sugerindo forte relutância em postergar o consumo.14
A principal implicação desse comportamento míope e impaciente, é que os agentes
apresentarão dificuldade em desenvolver uma poupança que respeite o seu ciclo de vida ou
em manter uma renda permanente ao longo da vida (FRIEDMAN, 1957; MODIGLIANI e
BRUMBERG, 1954), uma vez que sistematicamente sabotam seus planejamentos de longo
prazo.
O presente trabalho acredita que tal inconsistência temporal é um dos motivos que existem
por detrás da não observação da teoria da renda permanente no Brasil e da respectiva não
suavização do consumo, detectada pelos estudos de Issler e Rocha (2000), Gomes (2004) e
Gomes e Paz (2004). O agente inconsistente não consegue se manter fiel aos seus projetos
de poupança. E divergindo das previsões neoclássicas, nota-se que “há realmente um
excesso de sensibilidade do consumo à renda” no Brasil (GOMES, 2004, p. 394; GOMES,
2007), compactuando com a previsão do modelo de desconto hiperbólico (LAIBSON, 1997)
de que o consumo acompanhará de perto o progresso da renda, e apresentará por isso
variações cíclicas.15
Fica assim mais do que delineada a importância de se discutir os problemas de auto-
controle, e a melhor forma de contorná-los. Se substratos da realidade empírica que
corroborem a hipótese de inconsistência não faltam, o auto-controle por refletir a vontade de
resistir às tentações do consumo, acaba por “se tornar crítico na determinação da poupança
dos agentes” (DIAMOND e VARTIAINEN, 2007, p. 35)
Na literatura comportamental há um consenso, de que uma saída para as pessoas
conseguirem se engajar num planejamento de longo-prazo, sem se auto-sabotar, é tentar
limitar as escolhas futuras por meio de “estratégias de comprometimento” (DIAMOND e
14 Precisamente, os autores chegaram a valores de taxa de desconto intertemporal que se situam entre 0,9 e 0,8. Segundo eles “embora se deva esperar alguma impaciência de nossos consumidores, tendo-se em conta o seu nível de renda per capita e sobretudo a história inflacionária do país, os valores estimados para a taxa de desconto intertemporal surpreendem” (REIS ET AL, 1998, p. 264). O presente trabalho acredita que esses altos níveis de impaciência podem em parte ser explicados pelo choque institucional de 1990. 15 Alguns trabalhos costumam argumentar que a não observação da suavização do consumo no Brasil estaria relacionada a fatores como a falta de acesso ao crédito. Vale lembrar que como afirma Shea (1995), mesmo que uma gente seja restrito ao crédito, ele nunca é restrito a poupar, podendo sim mesmo frente a uma restrição de crédito apresentar um comportamento de suavização, em teoria. Outro argumento que poderia ser relevante seria uma alusão aos baixos níveis de renda dos agentes brasileiros. Contudo partindo de uma análise comportamental não é porque um agente ganha pouco, que ele poupa pouco, pois todos os agentes (em todos os substratos de renda) estão sujeitos à inconsistência temporal. Segundo Kilborn (2007, p.15) tais padrões comportamentais “são, se não universais, no mínimo compartilhados em grau significativo”
VARTIAINEN, 2007), aplicando parte de seus recursos em ativos ilíquidos. Dessa forma,
quando a “tentação do consumo imediato” chegar, a pessoa terá menos recursos
disponíveis para satisfazer os apelos da impaciência. Exemplos de aplicações ilíquidas
seriam ativos imobiliários, aplicações financeiras com prazo mínimo para saque, poupanças
compulsórias, entre outros16. A idéia é impedir ou desincentivar (por meio de punições como
multas) o “eu” do futuro de frustrar os planejamentos do “eu” de hoje.
Prover os agentes de mais informação sobre seus próprios vieses (tendência de
supervalorizar o presente) contribui também para o sucesso das estratégias de
comprometimento. Se a informação sozinha, não tem mostrado grandes resultados na
tentativa de elevar o grau de auto-controle dos agentes17, sem ela o indivíduo nem
reconheceria a necessidade de instrumentos de auto-controle.
Por último, fica a necessidade de se avaliar qual tem sido o papel social desse excesso de
liquidez. Apesar do ”crédito para consumo ter sido considerado algo positivo, na medida que
permite que os consumidores tenham uma vida melhor, alavancada pelo potencial de renda
futura.” (KILBORN, 2007, p. 14), e de existir a crença de que em função disso a expansão
do crédito traz ganhos de bem-estar para sociedade (GOMES ET AL, 2005), ficam algumas
dúvidas em aberto. Até onde a compreensão das limitações comportamentais e cognitivas
dos agentes vem a questionar tal perspectiva?
Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que a inconsistência do agente abre espaço para
instâncias de endividamento sub-ótimas, face os objetivos de longo prazo da pessoa
(MEIER e SPRENGER, 2007; HEUKELOM, 2007). Em segundo lugar, visto que a
impaciência é um dos fatores determinantes da inadimplência (MEIER e SPRENGER,
2007), deve-se também considerar a existência de uma maior predisposição brasileira à
inadimplência. Além de ser frustrante não conseguir alcançar as próprias metas, se o super-
endividamento recai em inadimplência, o agente sofre também considerável queda em seu
padrão de bem-estar. A perspectiva comportamental por isso sugere, que não
necessariamente a simples expansão do acesso ao crédito implica em ganhos de bem-
estar.
O presente trabalho defende a tese, em razão disso, de que o agente inconsistente deve ser
provido de ferramentas para lidar com sua própria inconsistência, numa tentativa para
aqueles que reconhecem a dificuldade e gostariam de se manter fieis aos seus
planejamentos de longo prazo, de contornar o problema. Conclui-se com isso que a
16 Nos Estados Unidos é muito conhecida uma estratégia de comprometimento chamada de “Christimas Club”, que consiste numa poupança compulsória que só pode ser sacada no período de Natal. 17 Estudos demonstram que “vises e heurísticas influenciam o comportamento de forma mais poderosa do que a informação”. (KILBORN, 2007, p. 23)
expansão e democratização do crédito deve ser acompanhada por uma expansão dos
mecanismos de comprometimento, os quais ainda são insuficientes, para não dizer quase
inexistentes, no Brasil.
4.3 - Algumas considerações sobre motivações racion ais e emocionais
“Antes do crédito estar amplamente disponível aos consumidores, estes
vieses permaneciam em grande medida nas sombras” (KILBORN, 2007, p. 22)
Indaga-se porque os brasileiros no final dos anos 1980 conseguiram se controlar frente à
opção do consumo imediato, apresentando altos níveis de poupança privada, ao passo que
hoje, apresentam problemas de auto-controle e instâncias de super-endividamento. O que
teria mudado?
Mudaram tanto as motivações racionais quanto as motivações emocionais dos agentes.
Argumenta-se aqui que ambas atuariam de forma a moldar a percepção dos incentivos
econômicos. A motivação emocional, no entanto, algumas vezes distorce tal percepção de
incentivos induzindo a escolhas efetivas difíceis de se defender, de uma ótica de otimização,
maximização ou simplesmente da noção de um agente racional.
O presente artigo levanta a hipótese que, da mesma forma como os efeitos renda e
substituição interagem entre si de modo a definir decisões de consumo e poupança, as
motivações emocionais e racionais quando antagônicas, também gerarão uma interação,
cujo fruto (caso as motivações emocionais superem as racionais) serão comportamentos de
consumo e poupança inesperados pela teoria neoclássica.18
No final dos anos 80, a motivação racional se voltava para o consumo presente, em função
do corrosivo processo inflacionário e dos defasados reajustes salariais que contribuíam para
a deterioração da renda. Contudo a motivação emocional do período, delineada pelo
sentimento de incerteza e insegurança quanto ao futuro, solicitava esforços de poupança
precaucional. Como foi visto anteriormente, a poupança privada apresentou forte
crescimento no período, sugerindo que tais motivações emocionais superaram as
motivações racionais de tentativa de maximização de resultados.
Já a partir da estabilização econômica de 1994, compreende-se que a motivação racional
apontava na direção da possibilidade de planejamento do orçamento, onde o maior acesso
ao crédito, altas taxas de juros reais, e inflação controlada induziriam a uma maior
suavização do consumo. No entanto, a motivação emocional somava não só a memória do
choque institucional de 1990, como também a inconsistência temporal do agente
18 Vale lembrar que a teoria neoclássica só não é capaz de captar tais incentivos emocionais porque de modo geral, se baseia em suposições psicológicas irrealistas, como as definidas pelos conceitos de racionalidade perfeita, informação completa e etc.
intensificada pelo advento das facilidades de crédito, estimulando assim um privilégio do
consumo imediato. O que se observa hoje, como previamente discutido, são crescentes
níveis de endividamento e de inadimplência, e não comportamentos de suavização
consumo, insinuando novamente que motivações emocionais se sobrepuseram às
motivações racionais na determinação da escolha efetiva.
Vale ressaltar que no final dos anos 80 a inconsistência temporal do agente não se
manifestava com força, pois ele estava preso à sua renda corrente, face à inexistência das
inovações financeiras. É verdade que ainda hoje uma parte da população ainda se encontra
restrita a liquidez, sem acesso a linhas de crédito via cheque especial e cartão de crédito por
não possuírem conta bancária ou por outros fatores19. Contudo tal proporção vem se
reduzindo a cada ano, evidenciando a necessidade de começar a levar em consideração
algumas ponderações aqui presentes.
Com isso, percebe-se que não se pode esperar do ser humano um comportamento
uniforme. Se novos incentivos econômicos entram em jogo, novas motivações racionais e
emocionais também emergem, resultando em novas (e algumas vezes inesperadas)
trajetórias comportamentais. A hipótese de poupança precaucional da década de 1980 não
conflita com a hipótese atual de miopia exatamente por isso. Um novo ambiente e novos
incentivos tenderiam a produzir novas resultantes. 20
Nessa mesma linha, Lucas (1976) já preconizava que a tradicional função consumo não é
invariante às alterações de política e a outras mudanças que aconteçam na economia. Por
isso, um melhor entendimento acerca dos comportamentos de consumo e poupança passa
necessariamente pelo estudo de seus processos geradores e pela análise de qual o impacto
que novas variáveis produzirão em tais escolhas. Sugere-se assim a conveniência de se
inserir um pouco mais de psicologia nas análises econômicas, entendendo limites, vieses e
possibilidades do agente econômico.
19 Os trabalhos de Reis et al (1998), Issler e Rocha (2000), Gomes (2004) e Gomes e Paz (2004) encontraram respectivamente porcentagens de consumidores restritos no Brasil da ordem de 80%, 74%, 85% e 61% (seguindo metodologia de Campbell e Mankiw, 1989). Apesar destes números serem extremamente significativos, nenhum dos trabalhos abrangeu um período além do ano de 2000. O presente trabalho por isso suspeita fortemente que tal restrição tenha caído, em função da popularização das inovações financeiras que vem ocorrendo desde então. 20 Neste caso vale citar o trabalho de Gomes (2007) que investigou econometricamente a plausibilidade da hipótese de miopia para o agente brasileiro em suas decisões de consumo intertemporal. Apesar dos dados não terem sido conclusivos na confirmação de tal hipótese concluiu-se que, uma vez que em alguns anos são observados sinais opostos para as taxas de crescimento do consumo e da renda, isso poderia se configurar em suavização do consumo, invalidando a idéia de miopia. O presente trabalho discorda de tal conclusão. A miopia é tida como um viés, mas não necessariamente se constituirá numa característica fixa e imutável do agente. Frente aos devidos incentivos tal agente pode alterar sua estratégia. Ademais o presente estudo suspeita que o choque institucional de 1990, evento relativamente recente, foi um dos grandes contribuidores para formação de tal viés no caso brasileiro, sendo assim é improvável que se encontrasse fortes indícios de miopia antes disso
6. Conclusão
O presente trabalhou buscou, respaldado nos desenvolvimentos da economia
comportamental, apresentar e discutir algumas anomalias da escolha intertemporal
brasileira, numa tentativa de lhes conferir maior elucidação. Entende-se que a tomada
decisão econômica consiste num fenômeno complexo, cujas tentativas de compreensão são
ainda limitadas. O presente artigo, no entanto, buscou contribuir para tal discussão ao inserir
fatores emocionais na explicação dos padrões de consumo intertemporais dos brasileiros.
Inicialmente, foi visto como os conceitos comportamentais do viés de projeção e do pavor
pela espera são capazes de iluminar as instâncias de poupança precaucional observadas na
década de 1980. Faz sentido a partir do entendimento da existência de limitações cognitivas
e computacionais, imaginar que o indivíduo com racionalidade limitada e avesso às perdas
optaria por trajetórias de poupança crescente. Em seguida levantou-se aqui a tese de que
tal estratégia de poupança precaucional seria abandonada a partir do choque institucional
de 1990, que mina a confiança dos agentes nas instituições. O movimento drástico da série
de poupança privada sugere a corroboração de tal hipótese.
Apresentado o primeiro enigma, a principal conclusão faz alusão aos ganhos explicativos
advindos da utilização de substratos comportamentais na análise econômica, e também ao
fracasso de políticas econômicas que desconsiderem os aspectos psicológicos dos agentes,
como a que culminou no choque institucional de 1990.
Em seguida, discutiu-se o papel do desconto hiperbólico e dos problemas de auto-controle
na determinação das trajetórias atuais de super-endividamento e inadimplência, mostrando
principalmente o papel das inovações financeiras, que facilitam o acesso à gratificação
imediata. O excesso de liquidez ao revelar a inconsistência temporal dos agentes, traz
consigo um pedido de cautela. A expansão das ferramentas de crédito deve
necessariamente ser acompanhada, por igual expansão dos instrumentos de
comprometimento e dos programas de conscientização (tanto do crédito quanto dos vieses
do agente), do contrário há possibilidade de deterioração das finanças familiares.
Conclui-se por fim que tais desenvolvimentos da economia comportamental podem
contribuir fortemente para uma melhor compreensão da realidade econômica brasileira.
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