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7/30/2019 Em Busca do cio
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Em Busca do cio
Domenico de Masi
Inventamos e progredimos, mas continuamos espelhando um mundo atrasado em relao aos avanos da tecnologia.
Professor de Sociologia na Universidade de Roma, o autor prev que o prximo salto do homem ps-industrial aconquista de um novo bem-estar
No entender do escritor argentino Jorge Luis Borges, todos os poemas e romancesescritos ao longo dos tempos no fizeram outra coisa a no ser repetir, em verses
infinitas, sempre e apenas quatro histrias: a de uma cidade sitiada, a de uma viagem,
a de uma busca, a do sacrifcio de um deus. Creio que, nessa lista, pode-se somar uma
quinta histria perene: a de um homem que inventa ferramentas sempre mais
sofisticadas para se livrar da escravido do cansao e reconquistar o den do cioprazeroso.
Para entrever o futuro preciso no perder de vista o passado, repercorrendo a
marcha do progresso tecnolgico, longa, acidentada, interrompida em vrios pontos
porque, como observava o filsofo ingls Francis Bacon no sculo XIV, o tempo, como
o espao, tem os seus desertos e as suas solides.
Milhares de anos foram necessrios para domesticar o co que puxa o tren e para
dominar o fogo necessrio para cozinha os alimentos e se defender do frio. Outros milnios foram necessrios para
lanar a flecha com um arco, concentrando o mximo de empuxo num s ponto e num s momento. H 10 000 anos a
mulher pela primeira vez trabalhou na agricultura e o homem experimentou o pastoreio. Na Mesopotmia de 5 000
anos atrs, nasceram o eixo da roda, a astronomia, a matemtica e a escritura.
Esses progressos pareciam to desconcertantes que Aristteles, no primeiro livro da metafsica, sentenciou que tudo oque se podia imaginar para tornar mais cmoda a vida cotidiana do homem e satisfazer as suas necessidades prticas j
tinha sido descoberto. Portanto, nada restava seno se dedicar de corpo e alma
elevao do esprito.
Com essa convico e dotados de uma enorme quantidade de escravos, os gregos e
os romanos, durante os oito sculos da sua histria, no fizeram progressos
substanciais na cincia e na tecnologia. Na Atenas de Pricles, 50 000 cidados livres
eram servidos por 300 000 escravos. Quando Roma estava no pice do seu fulgor
imperial, a Itlia contava com 10 milhes de escravos numa populao de 50 milhes.A cada ano, o aprovisionamento de gado humano, como o definiu o historiador Marc
Bloch, atingia 500 000 unidades. S na Glia, Jlio Csar conseguiu fazer 1 milho de
prisioneiros.
Mas, quando na Idade Mdia os escravos comearam
a rarear, os nossos antepassados se lembraram das
oportunidades oferecidas pela tecnologia e
desfrutaram rapidamente das inovaes. O moinho de gua e de vento, o estribo e os
arreios dos cavalos, a roca de fiar, a rotao das culturas agrcolas, os culos, a plvora, o
relgio mecnico, a bssola e a imprensa permitiram substituir a fora humana pela
inorgnica e anteciparam a grande arrancada do pensamento que levaria ao iluminismo e revoluo industrial.
Foi no final do sculo XIV que Bacon, prevendo o salto tecnolgico que a humanidade
estava para efetuar, inverteu o pensamento de Aristteles e no seu tratado Instauratio
Magna afirma que tudo o que se podia fazer pela elevao do esprito j tinha sido feito
pelos gregos e pelos romanos: nada restava seno se dedicar filosofia das obras,
aplicao do intelecto s coisas concretas, ao progresso da indstria para melhorar
finalmente a vida prtica do dia-a-dia.
Esse grande programa inovador, ainda no incio do sculo passado, demorava em se concretizar. Se Jlio Csar eNapoleo, com dezoito sculos de distncia, desejassem percorrer a estrada entre Roma e Paris, teriam ambos gasto
O Homem
inventa
ferramentas
para se livrarda escravido
do cansao
Na Atenas de
Pricles, 50 mil
cidados livres
eram servidos
por 300 mil
escravosAinda no
sculo
passado, o
grande
programa
inovador
tardava
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muitas semanas. Se hoje quisssemos percorrer o mesmo trajeto, mesmo sem gozar dos
privilgios dos imperadores, empregaramos um tempo infinitamente mais curto.
O que determinou tanto progresso? Entre Napoleo e ns realizou-se a revoluo
industrial ou seja, aquele conjunto de inovaes tecnolgicas que, substituindo a
habilidade humana com mquinas e o esforo de homens e animais com energia inanimada,
torna possvel a passagem do artesanato manufatura, dando vida, assim, a uma economia
moderna.
Os dois maiores artfices espirituais e materiais dessa revoluo o engenheiro-economista Frederick Taylor na Filadlfia e o industrial Henry Ford em Detroit definiram
seus princpios fundamentais: a especializao dos trabalhadores exasperada at a repetio
exaustiva de poucos movimentos elementares; a padronizao dos produtos e dos
processos de modo a chegar produo em srie, sincronizao; e a coordenao das
tarefas at reduzir a fbrica a um imenso relgio no qual os homens e as mquinas
desempenham o papel de engrenagens programadas.
A sociedade industrial que da nasceu utilizou a tecnologia mecnica, a vapor e eltrica,distribuindo progresso capilar em todos os campos do saber terico e prtico, artstico e cientfico. Entre o fim dos
sculos XIX e o incio do sculo XX, Einstein revolucionou a fsica, Freud revolucionou a psicologia, Picasso revolucionou apintura, Schoenberg revolucionou a msica, Joyce revolucionou a literatura, Le Corbusier revolucionou a arquitetura.
Esse vagalho de novidades produziu outro vagalho de novidades. Enquanto a sociedade rural, centrada na produo
de novidades. Enquanto a sociedade rural, centrada na produo de bens agrcolas, havia consumido 10 000 anos para
gerar do seu seio a sociedade industrial, centrada na produo de bens materiais em srie, esta muito mais dinmica
empregou s dois sculos para gerar um terceiro tipo de sistema, a sociedade ps-indstria, centrada na produo de
bens imateriais, ou seja, de smbolos, esttica e de valores.
Para compreender que novas etapas nos esperam, convm observar que a sociedade ps-industrial tende no apenas
a aperfeioar o acervo de descobertas anteriores da histria humana, mas a abrir novos campos, cada um com um leque
prprio de possibilidades de desenvolvimento. Assim, a biologia molecular, por exemplo,
abriu caminho engenharia gentica e produo farmacolgica de molculas. Ainformtica se desmembrou em telemtica, em trabalho por via digital, em uma aventura
da conquista do tempo e do espao.
O impulso to forte que em quatro dcadas fizemos mais progresso que nos 40 000anos precedentes. E, diante de uma produo tecnolgica to rica e tumultuada
(computadores, fax, laser, satlites, robs, fibras ticas, novos remdios, mquinas
interativas), de novo, como no tempo de Aristteles, h os que esperam que esse ritmo
permanea uniformemente acelerado e os que, ao contrrio, comeam a sentir a sensao
de que j foi descoberto tudo o que havia a descobrir, e, portanto, s nos resta misso
de difundir as vantagens da nova era e nos dedicar novamente, como no tempo dosgregos e dos romanos, ao progresso intelectual.
Hoje a populao mundial doze vezes maior que na poca de Isaac Newton. A nossa
vida mdia (700 000 horas) seis vezes mais longa que a do homem de Neandertal e mais
que o dobro da dos nossos avs (300 000 horas). Estes trabalhavam 120 000 horas nos
curs de suas vidas, enquanto ns trabalhamos 80 000. Os nossos filhos por sua vez,
vivero em mdia 900 000 horas e trabalharo no mais que 50 000 horas.
Algumas previses para as prximas dcadas esto, sendo confirmadas pelos fatos.Continuar a crescer o nvel de escolarizao (que tende a
cobrir pelo menos os vinte primeiros anos de vida de cadacidado), se consolidar a difuso dos meios de comunicao
de massa e da informao em geral, graas miniaturizao
dos processadores eletrnicos e ao barateamento da
tecnologia digital. A qualidade fsica da nossa existncia
tender a melhorar, prolongando no s as horas de vida,
mas tambm as de lucidez menta, destreza do corpo e
capacidade profissional. Para isso j contribuem dede j os novos remdios que deram incio
ao processo de adiamento da morte e de parcial derrota da dor: o ter, a cortisona, a
penicilina, a aspirina, a cloropromazina, a vacina antiplio, a morfina, a plula
anticoncepcional e a mecloretamina.Se, nos prximos anos, o progresso tecnolgico continuar no ritmo atual, dever aumentar
a possibilidade de recolher, elaborar e difundir informaes atravs de processadores de
quinta e sexta gerao, atravs de sistemas complexos de satlite e de avenidas de fibras
Nossos filhos
vivero em
mdia 900
mil horas e
vo trabalhar
s 50 milA
sociedade
ps-
industrial
gerenciada
com
critrios
rurais
Em quatro
dcadas
fizemos
mais
progresso
do que em
40 mil anos
A
sociedade
industrial
distribuiu
progressocapilar em
todos os
campos
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ticas. Na mesma velocidade, a engenharia gentica permitir uma melhor seleo das espcies vivas e a biogentica
criar molculas capazes de prover a medicina de remdios bem mais eficazes que os atuais. A qumica e a fsico-
qumica produziro novos materiais, capazes de superar os limites existentes nos que se encontram atualmente nossa
disposio. A cirurgia, valendo-se do conjunto desses aportes cientficos, conseguir multiplicar a capacidade de
transplantar rgos e usar prteses.
E ainda que a tendncia crescente do progresso dos ltimos decnios fizesse uma pausa,
mesmo assim as novas conquistas, j estocadas na bagagem da humanidade, exigiro uma
reestruturao dos sistemas polticos, sociais e psicolgicos. A estrutura de nossaspersonalidades, assim como a de nossas comunidades nacionais e internacionais,
expresso de um mundo tecnologicamente primitivo em relao ao atual e espelha o seu
atraso. A sociedade ps-industrial gerenciada com critrios industriais ou at rurais.
Talvez seja mais fcil inventar progresso do que administr-lo, o que exige
adequadamento nas leis, na poltica, na estrutura social.
Em contraponto aos valores da arrancada industrial, todos centrados no empirismo, noracionalismo, no consumismo traduzido no imaginrio da posse, do poder e da riqueza -,
emergem valores novos, voltados mais para a criatividade, esttica, confiana,
subjetividade, feminilizao, afetividade, desestruturao do tempo e do espao, qualidade de vida. O que, por sua vez,exige um novo tipo de bem-estar, a ser reinventado.
A consequncia mais imediata e visvel dessa trajetria, que servir de teste para a administrao do nosso futuro, o
desemprego crescente. John Maynard Keynes j ensinava no sculo passado que o ndice tolervel de desemprego
numa economia saudvel de 2%. Hoje os Estados Unidos tem 8% de desempregados e os pases industrializados da
Comunidade Europeia superam os 10%. Tudo leva a crer que o processo tecnolgico eliminar cada vez mais trabalho
humano, que todo o esforo fsico e parte do esforo intelectual podero ser delegados a mquinas e que ao homem
restar s o monoplio das atividades criativas. Mas, a ser necessrio apenas o trabalho de uns poucos para alimentar o
grosso da populao, o que far a massa? Como desejaro serem gratificados os trabalhadores que restaro nas
fbricas? Como ser possvel passar do controle dos trabalhadores institucionalizado pela organizao do trabalho
industrial sua motivao necessria na organizao ps-industrial?
A humanidade espera com volpia novas descobertas: substncias para debelardefinitivamente a dor, sistemas para acabarem com o lixo radiativo transformando em
matrias incuas, novas fontes de energia, tcnicas adequadas para eliminar o barulho
e a fome e reabsorver a poluio. Paralelamente, nunca tivemos tantas ferramentas
para eliminar as quatro escravides da escassez, da tradio, do autoritarismo e do
cansao fsico.
Aristteles, citado vrias vezes porque o pai da cultura ocidental, sonhava: se cada
ferramenta pudesse, a partir de uma ordem dada, trabalhar por conta prpria, se os
teares tecessem sozinhos, se o arco tocasse sozinho nas cordas da ctara, ento osempreendedores poderiam privar-se dos operrios e os proprietrios, dos escravos.
Nunca, como hoje, estivemos to perto da realizao desse sonho: fbricas
inteiramente automatizadas j esto em operao em trs dos cinco continentes. O
mito de Ssifo pode finalmente ser reescrito.
Como se sabe, o heri grego foi punido pelos deuses por excesso de engenhosidade. Segundo a explicao clssica,tendo ele cometido um pecado intelectual, foi punido em compensao com uma pena material: transportar por toda a
eternidade uma rocha at o topo de um monte e, quando ela precipitava de novo at a base, tornar a peg-la e lev-la
outra vez at o alto do monte. Em plena sociedade industrial, o escritor francs Albert Camus reinterpretou esse mito:
sendo Ssifo um intelectual, o seu verdadeiro sofrimento no se consumava na subida, quando a sua mente estava todaocupada pelo esforo sobre-humano de transportar a rocha at o topo. O seu verdadeiro sofrimento era quando, com a
pedra mais uma vez no alto do monte, Ssifo tinha que descer a escarpada e, sem nenhum esforo, tinha toda a trgica
conscincia de ter sido condenado pela crueldade dos deuses a um trabalho intil e sem esperana.
Para ns, homens ps-industriais, h uma terceira alternativa. Ssifo vai construir um mecanismo eletrnico ao qual
delegar a canseira do transporte intil e banal e se sentar no alto do morro para contemplar o rob em funo,
saboreando enfim a felicidade do cio prazeroso.
Nunca
estivemos to
perto de
realizar o
sonho de
Aristteles
Ao homem
restar s omonoplio
das
atividades
criativas
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