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FAMÍLIA, TRADIÇÃO E PODER NO VALE DO PARAÍBA FLUMINENSE: O

BARÃO DE PATY DO ALFERES E SUA MEMÓRIA

Thiago de Souza dos Reis**

Nas últimas décadas temos observado um crescente interesse pelos estudos dos ramos

familiares e, entre eles, uma atenção mais detida sobre os grupos familiares da região cafeeira

do vale do Paraíba do Sul. Esses estudos, que abordam desde questões relacionadas às

famílias oriundas da classe senhorial à formação das famílias escravas, buscam ampliar o

escopo das pesquisas em curso sobre essa região.

O vale do Paraíba do Sul, região que teve obteve seu auge econômico por volta do

início da segunda metade do século XIX, apoiando-se sobre o tripé: café, terra e escravo.

Após o período de auge da cultura do café, Vassouras experimentou o que a

historiografia costuma chamar de “grandeza” econômica,1 ou seja, um momento em que a

produção do grão vem declinando lentamente, isso em decorrência do envelhecimento dos

cafezais e da inexistência de áreas de matas virgens para a ampliação do espaço plantado.

Mesmo assim, o conjunto da produção do café ainda se mostrava eficiente e lucrativo.2

No caso da população escrava vassourense, o momento da grandeza econômica

abrange um período em que foi verificada uma crescente busca por novos espaços sociais e de

direitos, posterior ao momento em que foi observada a estabilidade na composição desse

grupo, estabilidade fundamentada na “crioulização dos plantéis, no maior equilíbrio em sua

composição sexual e etária, no aumento do número de famílias estáveis, na disseminação do

cultivo de roças familiares”.3

Nosso foco de análise está voltado para um período histórico no qual encontramos a

escravidão, enquanto instituição, passando por mudanças estruturais significativas. A Lei do

Ventre Livre, em 1871, é um marco que delimita o início da intervenção do Estado na

** Doutorando em História Social no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGH/UNIRIO). Professor no curso de graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida. Professor no curso de graduação em História na Universidade Estácio de Sá. 1 O termo “grandeza” foi primeiramente utilizado por Robert Slenes em um trabalho no qual problematiza a questão da decadência da cultura cafeeira no Vale do Paraíba nos idos de 1870. Cf SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O Mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In COSTA, Iraci del Nero da. História econômica e demográfica. São Paulo: IPE/USP, 1986. 2 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. 3 idem.

2 regulamentação da escravidão no Brasil com a intenção de revogá-la aos poucos, o que seria

completado com a abolição total em 1888.4 O próprio imperador, na Fala do Trono de 22 de

maio de 1867, já antecipava o tom do debate, que se intensificaria na década seguinte, quando

recomenda a discussão da abolição do trabalho escravo:

O elemento servil no Império não pode deixar de merecer oportunamente a vossa consideração, provendo-se de modo que, respeitada a propriedade atual e sem abalo profundo em nossa primeira indústria – a agricultura – sejam atendidos os altos interesses que se ligam à emancipação.5

Ricardo Salles, em Nostalgia Imperial, desenvolve uma ampla análise sobre a questão

do emancipacionismo, sua antecipação ou adiamento como medida de manutenção da ordem

imperial, em que demonstra que as políticas empreendidas pelo Estado refletiram a tentativa

de “antecipar o futuro”, de controlar a “torrente” que se anunciara, mesmo sob pressão de

diversos grupos com interesses muitas vezes conflitantes.6

É de vital importância para este trabalho analisar a escravidão como uma instituição,

ou seja, como um modelo de ação social, “estratificado historicamente, destinado a satisfazer

necessidades vitais do homem e a desempenhar funções sociais essenciais, perpetuado pela

lei, pelo costume e pela educação”,7 dessa forma a escravidão, encravada em um processo

histórico dinâmico, passou por adequações ao longo de toda a sua existência no Brasil,

moldando-se às necessidades e anseios da sociedade, mas perpetuando-se até certo ponto,

quando as pressões concorrentes se tornam mais fortes e acabam por extingui-la.

Mary Douglas aponta que as instituições “se baseiam na natureza e, em conseqüência,

na razão. Sendo naturalizadas, fazem parte da ordem do universo e, assim, estão prontas para

fundamentar a argumentação”,8 pois

4 CASTRO, Hebe M. Mattos de. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: NOVAIS, Fernando A. (coord.) e ALENCASTRO, Luiz Felipe (org.). História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 359-360. 5 Apud SALLES, Ricardo. Nostalgia Imperial. A formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 159. 6 ibidem, p. 158-167. 7 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 36. 8 DOUGLAS, Mary. Como as instituições pensam. São Paulo: EDUSP, 2007. p. 61.

3 quanto mais as instituições abrigam as expectativas, mais elas assumem o controle das incertezas, com um efeito a mais: o comportamento tende a conformar-se à matriz institucional. Se tamanho grau de coordenação for alcançado, a confusão e a desordem desaparecem. [...] Elas começam estabelecendo regras e normas e, eventualmente, podem acabar acumulando todas as informações úteis. Quando tudo está institucionalizado, nenhuma história ou nenhum outro dispositivo de acumulação são necessários: ‘A instituição diz tudo’”.9

Contudo, para esse momento da escravidão no Brasil, seria muito oportuno o

comentário de Aléxis de Tocqueville sobre a emancipação da escravidão africana nas colônias

francesas de meados do XIX:

A escravidão é destas instituições que duram milhares de anos sem ninguém se dar ao trabalho de se perguntar por que ela existe. Mas é quase impossível mantê-la depois que esta pergunta é feita.10

Ou seja, a escravidão já não mais se enquadra na ordem natural das coisas, passa a ser

questionada enquanto instituição e já não consegue “dizer tudo”.

Localizamos – por abstração metodológica – esse momento tênue entre o final do

processo de perpetuação da escravidão dentro da sociedade e o início do processo de sua

extinção a partir da proibição efetiva do tráfico internacional de escravos de 1850, quando a

propriedade de escravos, que antes era disseminada em todas as parcelas da população livre,

vai se concentrando nas mãos dos grandes fazendeiros e pessoas mais abastadas. Esse

movimento de concentração da propriedade escrava reflete no modo como a escravidão era

encarada pela população: se antes de 1850 ela era tida como natural, após 1850 vai perdendo

legitimidade, culminando no crescimento do movimento abolicionista ao final da década de

1870.11 Dessa forma, nossa análise se restringirá a um período de mudança institucional, onde

os escravos estavam em busca de espaços de autonomia e os senhores, pelo menos uma parte

significativa deles, preocupados com a manutenção do regime escravista.

Assim, esse trabalho pretende analisar um manual agrícola vassourense do ano de

1847, a Memória sobre a Fundação de Huma Fazenda na Província do Rio de Janeiro, sua 9 Ibidem, p. 57-8. 10 TOCQUEVILLE, Aléxis. A emancipação dos escravos. Campinas: Papirus, 1994. 11 Cf Hebe M. Mattos de Castro. op. cit.

4 Administração e Épocas em que se devem fazer as Plantações, suas Colheitas, etc., etc., de

autoria de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, futuro Barão de Paty do Alferes, para

verificar o tom do discurso senhorial com relação à escravidão e as possíveis adaptações

concernentes ao período de mudança institucional então em voga. A escolha da obra se deve

ao fato de que, mesmo tendo sido escrita antes do contexto da crise da escravidão, a Memória

foi reeditada, como veremos, por duas vezes nos anos de 1863 e 1878. Dessa maneira,

entendemos que o teor de suas páginas ainda estava consoante com a mentalidade daquela

sociedade, o que justificou sua reimpressão posterior, esse premissa se apóia na constatação

de Ricardo Salles que diz não haver, para o período posterior à abolição do tráfico de

escravos,

razões para se acreditar que tais medidas [propostas por Werneck em seu manual] não tenham sido seguidas por muitos [senhores] ou mesmo pela grande maioria deles, ao menos em Vassouras e, possivelmente, em todo o Vale do Paraíba fluminense.12

A MEMÓRIA SOBRE A FUNDAÇÃO DE UMA FAZENDA

Para essa análise, é importante compreender, através da análise mais “fina” dos

atores situados no topo da hierarquia social, a complexidade de suas relações e de seus laços

objetivos com o conjunto ou com setores da sociedade. Nesse sentido, o enfoque

metodológico a ser aplicado é o da prosopografia.

Buscar contextualizar a situação narrada em seu contexto local através do uso de uma

documentação constituída de dados usuais que consentissem a aplicação do método

prosoprográfico, como os registros paroquiais, atos de ofício, dados cadastrais e documentos

administrativos, possibilita uma abordagem diferenciada sobre o grupo familiar, o que a

distingue das análises que buscam atrelar a família somente ao político ou econômico.

Para Jacques Revel (1998, 13), os

12 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo.

5 fenômenos maciços que estamos habituados a pensar em termos globais, como o crescimento do Estado e a formação da sociedade industrial, podem ser lidos completamente diferentes se tentamos apreendê-los por intermédio das estratégias familiares e das trajetórias biográficas de homens que foram postos diante dele. (...) Consiste, afinal de contas, em levar a sério as migalhas de informações e em tentar compreender de que maneira o detalhe individual, os retalhos de experiências dão acesso a lógicas sociais e simbólicas que são as lógicas do grupo ou mesmo de conjuntos muito maiores.

Nesse tocante, o foco de nossa análise será o grupo familiar Lacerda Werneck, que

tem como um de seus principais ramos Francisco Peixoto de Lacerda Werneck que recebe o

título de Barão de Paty do Alferes por mercê de Sua Majestade o Imperador D. Pedro II aos

quinze dias do mês de dezembro do ano de 1852, título ao qual foram acrescidas as Honras de

Grandeza, também por mercê de Sua Majestade, aos dois dias do mês de julho do ano

seguinte.13

A negociação do título nobiliárquico, em especial pelo vulto dos valores nela

envolvidos, demonstra a importância do futuro barão como rico proprietário de terras e

escravos, não só da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Paty do Alferes como de

toda a região cafeeira do vale fluminense do rio Paraíba do Sul, então uma das áreas agrícolas

mais importantes para a economia do Império do Brasil. É o que fica claro na mensagem

enviada por Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, em 1852, ao seu correspondente na

Corte, onde escreveu pedindo-lhe que cuidasse de seu baronato: “o meu amigo está autorizado

a gastar, vindo com grandeza o despacho, até 10:000$000, ou até 15, se não houver outro

remédio”.14

Mesmo antes da obtenção da mercê, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck já se

mostrava um hábil fazendeiro que aumentara sua fortuna às custas do café e do trabalho

escravo. Tendo herdado a fazenda da Piedade e algumas dezenas de escravos de seus pais,

deixou como herança para seus filhos, além desta, seis fazendas, imóveis e mais de 600

escravos. Nos idos da década de 1840 escreve sua Memória sobre a Fundação de Huma

13 BRAGA, G. H. F (comp.). De Vassouras: história, fatos, gente. Rio de Janeiro: Ultra-set Ed., 1978. p. 26. 14 Carta ao amigo e Sr (Bernardo). Rio de Janeiro, 1852. Arquivo Nacional. Cód 112, v 3, p. 44-45. Apud MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. O Império do Retrato: família, riqueza e representação social no Brasil oitocentista (1840-1889). Tese de Doutoramento. Niterói: UFF, 2006. p. 102.

6 Fazenda na Província do Rio de Janeiro, sua Administração e Épocas em que se devem fazer

as Plantações, suas Colheitas, etc., etc., onde relata sua experiência como fazendeiro e suas

aspirações com relação ao futuro de seu ofício e propriedades.15

A Memória é um texto muito rico do qual se pode depreender a mentalidade da elite

senhorial agrária da época, visto tratar-se de uma obra fundamentada, sobretudo, na

observação do cotidiano e nas experiências prévias como fazendeiro. É particularmente

interessante para nossa análise porque foi escrita em um período no qual crescem as críticas

aos métodos adotados pelos fazendeiros na lavoura do café, tidos como arcaicos, baseados em

um sistema que esgota o solo, pondo em risco o futuro de uma lavoura que acaba de atingir

seu auge de produtividade. Nesse aspecto, é valiosa a observação que Stanley Stein16 tece

sobre tal conjuntura, quando analisa os Relatórios dos Presidentes da Província do Rio de

Janeiro de 1° de abril de 1848 e de 1° de agosto de 1859:

Apanhados, assim, entre a rápida diminuição de reservas florestais e o preço ascendente de gêneros alimentícios e escravos, os fazendeiros eram agora criticados pelos seus métodos agrícolas tradicionais e incontestados. Ao escrever em 1848 que a “rotina à qual a maioria de nossos fazendeiros se condenou” foi responsável pela diminuição da qualidade do café do Rio, o presidente da província fez uma declaração que seria repetida ao longo do século. Onze anos mais tarde, outro registro provincial censurava o “espírito de rotina que domina muitos de nossos fazendeiros”.17 (Grifos nossos)

Prossegue Stein sua observação valendo-se das notas de outros comentaristas, como a

fala de Francisco de Paula Cândido em Clamores da agricultura no Brasil, de 1859:

Com a mesma força de trabalho, como podemos produzir no solo de agora desgastado e supostamente inútil tanto quanto produzimos na terra ainda virgem, sem mudar o método ao qual nossos fazendeiros são tão apegados?18 (Grifos nossos)

15 Em 1847 a Memória fora publicada nas páginas de O Auxiliador da Indústria Nacional e, nesse mesmo ano, lançada em forma de livro. WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de huma fazenda na província do Rio de Janeiro, sua administração e épocas em que se devem fazer as plantações suas colheitas, etc., etc. In: BRAGA, op. cit. p. 23-53. 16 STEIN, op. cit. 17 STEIN, op. cit. p. 76. 18 Idem.

7 Ou ainda das anotações feitas pela Baronesa do Paty do Alferes, Maria Izabel

d’Assunção, no seu Relatório do estado da nossa casa, documento anexo ao inventário dos

bens do Barão Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, realizado em 1862, em que protesta

contra a falta de visão da elite agrária, visto a “resistência completa ao exame e estudo da

agricultura como uma ciência”.19

Ainda sobre essa conjuntura, Stein prossegue, agora analisando o comentário de

Caetano Furquim de Almeida:

Alguns anos antes, um comerciante com interesses em Vassouras e no Rio, desesperado com o método que convertia encostas férteis em montes de terra estéril declarou: “Uma vez que nenhuma tentativa tem sido feita para melhorar o solo – nenhum fertilizante, nenhuma irrigação, nem o uso de qualquer método – a terra acabou se desgastando rapidamente”. Depois resumiu sua observação numa frase: “O solo é cultivado com métodos e instrumentos de 300 anos atrás”.20 (Grifos nossos)

É interessante ressaltar que, apesar das críticas ferrenhas ao sistema de produção e às

técnicas de cultivo, a região fluminense do vale do rio Paraíba do Sul foi nessa época a maior

produtora de café do Brasil, respondendo por uma imensa parcela da produção nacional desse

gênero. Mesmo que a produção de café na região de Vassouras tenha sido desenvolvida a

partir de técnicas agrícolas tradicionais, alcançou uma alta produtividade – resultado direto

das grandes áreas cultivadas, que eram constantemente renovadas com a expansão da lavoura

para novas áreas, antes ocupadas por matas virgens. Os críticos desse sistema argumentavam

que ele era baseado em um ciclo vicioso, pois com a escassez de matas para a expansão da

lavoura a produtividade estaria seriamente comprometida, visto que, nesse sistema, o cafezal

tem sua produção reduzida significativamente, quase que à metade, por volta dos quinze a

vinte anos de idade.21

Assim, nesse cenário de técnicas agrícolas totalmente tradicionais, arraigadas pela

tradição, a Memória do Barão de Paty e suas propostas não foram além de um

“aperfeiçoamento da rotina”, onde as características básicas eram perpetuadas, apesar de um

19 Baronesa do Paty do Alferes, Relatório do estado da nossa casa, 1862. Apud STEIN, op. cit. p. 76. 20 STEIN, op. cit. p. 76 e 77. 21 Cf STEIN, op. cit.

8 discurso que pregava uma renovação das técnicas vigentes22, foi o que constatou a própria

Baronesa de Paty: “as idéias do filho ainda são as do pai, a quem o avô persuadiu”.23 E é o

que veremos nas linhas seguintes.

De certa forma, a Memória do Barão pode ser encarada como um documento pessoal

de transmissão de informações, orientações, conselhos, pedidos... no seio de uma rede

familiar, como também o é um testamento. No caso da Memória, seu conteúdo diz respeito a

um modo de proceder nos negócios e na administração de uma fazenda, já o testamento

indicaria o modo de proceder após a morte de um familiar, como devem ser dirigidos os ritos

post-mortem, os expedientes religiosos e por fim a divisão dos bens. Assim, quando da análise

de documentos pessoais como cartas, diários, memórias, testamentos, inventários post-

mortem, Ana Maria Mauad e Mariana Muaze em A escrita da intimidade, trazem o seguinte

alerta:

Os documentos produzidos com uma função social específica são importantes testemunhos dos modos de ser e agir do passado. Mas a aparente objetividade do relato não deve matizar a sua capacidade de construir representações sobre práticas cotidianas.24

Assim, o fato de o Barão de Paty dedicar sua Memória a seu primogênito, Luiz

Peixoto de Lacerda Werneck – o mesmo que mais tarde será responsável por uma “revisão”

da obra do pai –, já fundamenta a afirmação que sua esposa faria quinze anos mais tarde,

sobre a necessidade de tratar a agricultura como uma ciência, como vimos no trecho

anteriormente selecionado da obra de Stein. É interessante verificar uma aparente contradição

entre a atitude e as propostas do Barão e a fala da Baronesa. Contradição apenas superficial

como veremos.

Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, o primogênito do Barão, havia acabado de

regressar da Europa onde terminara seus estudos, tendo se formado bacharel em direito pela

Academia de Paris e pela Universidade de Roma, aparentemente, ao menos para seu pai, um

22 Idem. Cf WERNECK, op. cit. p. 23-53. 23 Baronesa do Paty do Alferes, Relatório do estado da nossa casa, 1862. Apud STEIN, op. cit. p. 78 24 MAUAD, Ana Maria e MUAZE, Mariana. A escrita da intimidade: história e memória no diário da Viscondessa do Arcozelo. In: GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de Si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 197-198.

9 “homem das letras”, inexperiente no que tange o fatigante ofício de agricultor, justificando a

dedicatória do Barão:

Apenas chegas da Europa vejo-te casado e fazendeiro, sem nenhum conhecimento da agricultura usada entre nós. Alguns momentos ocupei-me em escrever esta pequena Memória, explicando-te os mais triviais usos e costumes de nossa agricultura. Dedico-te este meu pequeno trabalho, a fim de que possas, sem esses obstáculos de que se acha rodeada a maior parte dos nossos agricultores, entrar na vida laboriosa que vás encetar. Possa o Céu fazer-te feliz e dar-te tanta quanta fortuna te deseja.25 (Grifos nossos)

É clara a intenção do Barão, exercendo seu papel de pai, de transmitir seus

conhecimentos, adquiridos e fundamentados no exercício do papel de fazendeiro bem-

sucedido, ao seu filho “inexperiente”. Isso se explica, uma vez que a maneira de administrar

uma fazenda e, principalmente, a técnica utilizada na cultura do café encontravam

justificativas históricas para se perpetuarem, pois

Durante a metade do século anterior, uma nova colheita havia se adaptado com sucesso onde a terra anteriormente jamais havia sido cultivada. Os preços sempre em ascensão e o rápido crescimento na produção de café justificavam a expansão contínua; e mesmo se a justificativa fora mais geral, a dúvida é se as técnicas poderiam ter progredido além daquela rotina aperfeiçoada, defendida por Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, de Vassouras, Barão de Paty, em sua Memória.26 (Grifo nosso)

Dessa maneira, podemos dizer que a prática agrícola já havia se enraizado

socialmente, já era regida por relações constantes, ou seja, já teria alcançado uma ordem ou

padrão social, que se reproduzia ao longo do processo histórico.27 Concomitantemente a isso,

a falta de interferência de agentes externos concorrentes, fortes o suficiente para imprimir

mudanças substanciais nas relações vigentes, acabava por perpetuar a prática agrícola pela lei,

25 WERNECK, op. cit. p. 31. 26 STEIN, op. cit. p. 78 27 JEPPERSON, Ronald. Instituciones, Efectos institucionales e Institucionalismo. In: POWELL, Walter W.; DIMAGGIO, Paul J. (Org). El Nuevo Institucionalismo en el Análisis Organizacional. México: Fondo de Cultura Economica, 1999, p. 193-215.

10 pelo costume, pela educação, pela cultura e/ou pela tradição28, nesse caso, sobretudo por esta

última.

Fato que esse processo de manutenção das práticas agrícolas, ao menos no caso

estudado, se mostrou bem-sucedido, pois se deu mesmo sob críticas ou sob influências de

“idéias estrangeiras”.29 De certo que os fazendeiros enfrentassem escolhas a todo tempo, mas

“ao fazê-lo buscavam orientação na experiência dos seus pares, em situações semelhantes e

em relações com padrões já estabelecidos”30, por isso as “idéias estrangeiras” não se

mostraram suficientemente fortes para provocar mudanças significativas nas relações já

estabelecidas, ao menos no período aqui analisado.

Contudo, o discurso do Barão também primava por mudanças. Sua Memória destaca-

se pelo valor dado à organização do espaço da fazenda enquanto fundamento facilitador do

trabalho, amplificando seus resultados. Dessa maneira tece diversos comentários acerca dos

modelos de construção a serem empreendidos, dos lugares mais adequados para o cultivo de

pomares e hortas visando suprir as necessidades internas da fazenda e para as lavouras

comerciais; nesse ínterim dá especial atenção à necessidade de abertura de vias de

comunicação entre os locais de produção que maximizem os benefícios com os mesmos

esforços empregados.

Um outro ponto que devemos ressaltar é a crítica que Francisco Peixoto de Lacerda

Werneck faz às queimadas cujos “fogos que por descuido lavram anualmente às vezes as

melhores localidades, tornando estéreis terrenos que podiam dar avantajado produto”.31

Mesmo assim, entendemos que a Memória, apesar de seu tom crítico às técnicas agrícolas

vigentes e das mudanças necessárias ressaltadas, não primava pelo abandono total dos hábitos

antigos, somente procurava alterá-los de maneira a maximizar os recursos empregados no

processo produtivo.

Ainda sobre as queimadas, entende que

28 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 36. 29 “(...) as idéias estrangeiras pouco podiam impressionar os fazendeiros, que às vezes mal podiam assinar seus nomes, muito menos dedicar tempo à leitura de um manual que freqüentemente não passava de teoria, quando não de uma simples compilação de técnicas que evoluíam em terras estrangeiras. Outras indagavam por que deveriam se preocupar com um tipo de exploração agrícola que poderia ser inaplicável aos solos do Brasil. De qualquer maneira, não tinham alguns dos autores de manuais advertido contra os teóricos agrícolas?”. STEIN, op. cit. p. 78 30 POWELL, Walter W.; DIMAGGIO, Paul J. (Org). op. cit. p.44. 31 WERNECK, op. cit. p. 45.

11

O maior desperdício se encontra em quase todos os lavradores não só deixando apodrecer as madeiras sobre a terra, podendo-as conduzir e recolher para armazém, como mesmo lançando-lhes fogo com o maior sangue-frio, como que se estivessem fazendo uma grande coisa. Sem dúvida que não se podem lançar abaixo e cultivar nossas matas virgens sem se lhes lançar fogo, porém está da vossa parte acautelar quanto ser possa a ruína total de preciosidades que, reduzidas a cinzas, nem vós nem vossa décima geração tornarão a encontrar nessa terra devastada. (...) É, pois, tal o desmazelo que há sobre este importante ramo, que mete dó e faz cair o coração aos pés daqueles que estendem suas vistas à posteridade e olham para o futuro que esperam a seus sucessores.32

Toda essa falácia em relação às queimadas, no fundo tinha um único motivo, que

passa longe da preocupação com a redução da fertilidade dos solos e da posterior facilitação

da erosão dos mesmos: o desperdício da madeira, sobretudo os “paus de lei”. Mantinham-se

os métodos fundamentais, arcaicos, apenas objetivando a maximização das vantagens obtidas

com os mesmos.33

No que dizia respeito, mais estritamente, à cultura do café, o Barão já anunciava a sua

ruína, causada pela escassez de matas virgens para a expansão dos cafezais, mas erroneamente

anunciava o chá como o gênero agrícola que, substituindo o café, em breve se tornaria a

principal cultura de exportação do país.34 Ou ainda que:

Outros muitos recursos ainda nos restam se por desgraça nossa o café caísse em total abatimento. Seria conveniente que os nossos lavradores simultaneamente dividissem a sua indústria e não se ocupassem só de um ramo, fazendo por conseqüência dar-lhe queda mortal.35

É interessante citar que nem mesmo o Barão apostara seriamente no chá ou na

diversificação de suas culturas – apesar de bradar que essa seria a maneira mais eficaz de

minimizar as perdas frente ao crescente desgaste da cultura do café –, pois o inventário de

seus bens realizado após sua morte não relata nenhuma outra cultura digna de nota, mas é

32 Ibid, p. 34. 33 Ibid, p. 33-35. 34 Ibid, p. 43-44 35 Ibid, p. 53

12 bastante detalhista com relação ao número e à idade dos pés-de-café existentes em cada uma

de suas propriedades.36

Apesar de sua argumentação muitas vezes ser amparada nos erros dos outros, como no

caso das queimadas, a Memória também encontra amparo na fundamentação de experiências

e conselhos de familiares. Dessa maneira, o discurso se ampara também na tradição familiar,

o que reforça e amplia sua credibilidade junto àquela sociedade. Vejamos:

Ainda existe hoje, em frente à casa de meu pai, um cafezal que foi decotado tendo trinta anos, e ainda nele se encontravam ótimas árvores carregadas de frutos (...).37 (...) Lembro-me de dizer-me meu sogro uma vez: Tenho governado mais de mil escravos, dirigido muitos trabalhadores forros, mas nada me tem dado tanto que fazer como a camarada da tropa.38

Era a voz da experiência falando. Experiência acumulada por gerações. Mesmo que as

propostas contidas na Memória à primeira vista possam parecer inovações técnicas, não

passaram de “aprimoramentos da rotina” que visavam o aperfeiçoamento dos métodos em uso

já existentes.

Naquilo que concerne especificamente à mão-de-obra da lavoura, o Barão referia-se à

escravidão como se fosse o “germe roedor do Império do Brasil e que só o tempo poderá

curar”.39 Contudo, na sua visão, era o único tipo de mão-de-obra possível, mesmo que seu

preço à época não condissesse com a renda que dele se podia tirar, isso somado ao inicial

fracasso dos projetos de imigração de colonos europeus e asiáticos. Nesse aspecto, o manual

propõem consideráveis iniciativas para a melhoria das condições de vida dos cativos, visando

principalmente diminuir sua mortalidade.40

Diante dessa realidade, o autor da Memória elabora suas orientações em uma política

baseada na cessão de certos direitos aos escravos, como o direito às folgas nos domingos e

dias santos, ao pedaço de terra para o cultivo de pequenas roças, a roupas adequadas, a

36 Inventário de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, 1862. CDH/FUSVE. 37 WERNECK, op. cit. p. 41. É importante ressaltar que em 1847, o pai do Barão, o Sargento-Mor Francisco Peixoto de Lacerda já havia falecido. 38 Ibid, p. 52 39 Ibid, p. 36. 40 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 281-4.

13 formação de famílias, o que dava direito também a espaços reservados dentro das senzalas,

costumeiramente chamados de cubículos.41

O fazendeiro deve, o mais próximo que for possível, reservar um bocado de terra onde os pretos façam suas roças; plantem o seu café, o seu milho, feijão, banana, batata, cará, aipim, cana etc. Não se deve porém consentir que a sua colheita seja vendida a outrem, e sim a seu senhor, que deve fielmente pagar-lhe por um preço razoável, isto para evitar extravios e súcias de taberna. Esse dinheiro serve-lhe para o seu tabaco, para comprar sua comida de regalo, sua roupa fina, de sua mulher se é casado, e de seus filhos. [...] Essas suas roças, e o produto que delas tiram, faz-lhe adquirir certo amor ao país, distraí-los um pouco da escravidão, e entreter com esse seu pequeno direito de propriedade.42 (Grifo nosso)

A adoção dessas medidas visava suavizar o modo de produção, distraí-los da

escravidão, se é que isso fosse possível. No fundo, os mecanismos de cessão ou

reconhecimento de direitos tinham por fim último a intenção de apertar os nós que atrelavam

o cativo à sua condição, visto que ao se insurgir contra a sua situação, o escravo, na maior

parte das vezes, corria o risco de perder tais “direitos”, a família, a terra. O controle senhorial

não se restringia ao implícito, a cessão ou reconhecimento de direitos era acompanhado de

perto pela exigência da disciplina no trabalho, na execução de tarefas e metas, onde qualquer

desvio deveria ser punido. Nas palavras do Barão “o senhor deve ser severo, justiceiro e

humano”.43

41 A cessão de certos direitos aos escravos nessa época, nos fins da primeira metade do século XIX, está consoante com a historiografia atual. Para conferir o debate atual da historiografia acerca do reconhecimento dos direitos dos escravos ver, entre outros: FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 - c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. MOTTA, José Flavio. Demografia histórica, família escrava e historiografia: relações familiares em um plantel de escravos em Apiaí (SP). Anais do IV Congresso Brasileiro de História Econômica. São Paulo: ABPHE – FEA/ USP, 2001. SLENES, R. W. Na senzala uma flor. Esperanças e recordações da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 42 WERNECK, op. cit. p. 44. 43 WERNECK, op. cit. p. 37. É interessante ressaltar que o cativeiro justo proposto pelo Barão, discurso comum nos manuais agrícolas das décadas de 1830 e 1840, é uma retomada de modelos presentes no Brasil desde o período colonial, que seria retomada novamente nas décadas de 1860 e 1870. LARA, S. H. Campos da violência: Escravos e Senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. e SCHWARTZ, S. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: EDUSC, 2001.

14 Mesmo os mecanismos de suavização do sistema tinham um limite. Muitos não

passavam de artimanhas para ludibriar a mão-de-obra, como o próprio Francisco Peixoto de

Lacerda Werneck reconhece. Uma delas, aliás, utilizada na colheita do café, é relatada em sua

Memória:

Um dos melhores expedientes que (em princípio quando os meus escravos não sabiam apanhar o café) estabeleci e de que tirei muito bom resultado foi o dos prêmios, v. g. marcava cinco alqueires como tarefa, e dizia-lhes: “Todo aquele que exceder terá por cada quarta 40 réis de gratificação”. Com este engodo, que era facilmente observado, consegui que apanhassem sete alqueires, que ficou depois estabelecido como regra geral.44

Por sua vez, o primogênito Luiz Peixoto de Lacerda Werneck reedita a Memória do

pai dando-lhe o nome de Memória Sobre a Fundação e Costeio de uma Fazenda, (re)editada

por ele pela primeira vez em 1863 e posteriormente em 1878.45 Sua capa traz como autor o

Barão e o comentário de que é “annotada pelo Dr. Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, Fidalgo

Cavalleiro da Casa Imperial, Commendador da Ordem de Christo, Director do Imperial

Instituto Fluminense de Agricultura, etc, etc”.46

Quando dissemos que se trata de uma reedição queremos dizer que o texto original foi

mantido em sua íntegra, apenas acrescido de algumas anotações feitas pelo Dr Luiz Peixoto

de Lacerda Werneck que não interferem e nem modificam o texto original do Barão, seu pai,

pois são algumas poucas notas de rodapé e algumas outras obras de autores relacionadas à

prática agrícola que foram anexadas ao fim da Memória propriamente dita, quase que uma

reunião de outros trabalhos que exemplificam o sucesso e o uso difundido dos métodos

agrícolas e do modelo de administração dos escravos destacados pelo Barão, o que dá crédito

ao trabalho do pai, justificando a reedição feita pelo filho.

No todo, a Memória anotada por Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, reproduz

fidedignamente o discurso de seu pai e as opiniões e orientações que havia lhe dado quando

do regresso da Europa. Não reflete apenas o discurso de seu pai, mas um discurso

44 Ibid, p. 40 45 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a Fundação e Costeio de uma Fazenda. Disponível em: http://143.107.31.150/bibliotecaPdf/pdf_416_web.pdf. Acesso em: 20 jan. 2008. 46 Idem.

15 institucionalizado naquela sociedade, um discurso de uma elite senhorial há muito

estabelecida, mesmo que as críticas ao modelo por ele endossado, como vimos, eram

crescentes. Era um discurso de reafirmação de um complexo código de conduta, de um

modo de proceder e, por conseqüência, um dos meios pelos quais seu(s) autor(es) se

identicava(m) e se relacionava(m) naquela e com aquela sociedade.

Na partilha dos bens do Barão em 1867, já após a morte da Baronesa, a parte que

coube a Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, entre outros bens, foi a mesma fazenda que

inspirou seu pai a escrever sua Memória, a da Piedade, que mais tarde seria vendida à sua

irmã Maria Isabel de Lacerda Werneck, então Viscondessa do Arcozelo.47

Em 1887, 40 anos após a escrita da “primeira” Memória, a Viscondessa do Arcozelo,

uma das filhas do Barão e da Baronesa de Paty, relata em seu diário a continuidade de práticas

listadas por seu pai: “O Castro [seu marido] dice aos pretos que os que apanhase de 6

alqueires de café para cima recebião 300$ por alqueire”,48 isso, mesmo já tendo sido

modificada, em larga medida, a administração da mão-de-obra escrava, inclusive com o

estabelecimento de salários para além dos prêmios, isso diante da pressão de movimentos

abolicionistas e da opinião pública.49

Muitas vezes o discurso de crítica assumido pelo Barão e seus familiares, seja na

necessidade do aperfeiçoamento das queimadas ou na irônica afirmação de sua esposa acerca

da transmissão das idéias de pai para filho, ou mesmo na necessidade de se tratar a agricultura

de modo mais científico ou quando vislumbrada a administração dos plantéis de escravos e

seus mecanismos de controle, fica nítido o apego à tradição.

O Barão não diversificou sua produção como aconselhou seu filho a fazer. A Baronesa

após a morte de seu esposo gozou a vida por mais quatro anos, vindo a falecer em 1866, nesse

período, apesar das críticas ao modelo adotado, não empreendera nenhuma modificação

importante do contexto. Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, o primogênito, apesar de reeditar

a Memória do pai, atitude que nos pareceu ter como finalidade a preservação da memória do

47 MAUAD e MUAZE, op. cit. p. 201 e 205. 48 Apud MAUAD e MUAZE, op. cit. p. 209. Em seu diário, a Viscondessa trata de diversos assuntos do seu cotidiano, relata seus sentimentos e emoções com viagens, casamentos, perda de entes queridos, dá atenção também à administração de suas terras, escravos e empregados, descreve seu dia-a-dia como mãe, esposa, dona-de-casa, e mesmo com essa profusão de temas ainda é possível identificar marcas da tradição em suas ações. Outra vez é a tradição que legitima a ação. 49 MAUAD e MUAZE, op. cit. p. 209.

16 Barão naquela sociedade, vende sua fazenda já exaurida para sua irmã. Por sua vez, a

Viscondessa do Arcozelo, mesmo quarenta anos após a edição da Memória, ainda apresenta

atitudes aconselhadas por seu pai.

Em um primeiro momento as propostas contidas na Memória e as ações práticas do

Barão e de seus familiares pareciam um contra-senso. Contudo, o discurso de repulsa ao

atraso e aos métodos agrícolas arcaicos não parece ter sido posto em prática, somente

figurando como retórica. Podemos constatar que tal discurso não objetivava em si a mudança

dos fundamentos pátrios daquela sociedade senão sua adaptação visando a sua perpetuação,

visto que já se encontravam há muito institucionalizados sendo reproduzidos por mecanismos

de respaldo através do costume, tradição e cultura dentro daquela sociedade ao longo do

processo histórico. Essa também é a nossa conclusão com relação à escravidão, posto que as

medidas de suavização dessa instituição visavam o seu prolongamento no processo histórico e

a continuação do controle por parte da classe senhorial.

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