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FICHA TÉCNICA
TÍTULO LIBRETOS MATERIAIS PARA O FIM DO MUNDO – 7
Março 2017 PROPRIEDADE E EDIÇÃO INSTITUTO DE LITERATURA COMPARADA MARGARIDA LOSA WWW.ILCML.COM | VIA PANORÂMICA, S/N 4150-564 PORTO PORTUGAL E-MAIL: ilc@letras.up.pt TEL: +351 226 077 100
CONSELHO DE REDACÇÃO DE LIBRETOS DIRECTORES ANA LUÍSA AMARAL ANA PAULA COUTINHO GONÇALO VILAS-BOAS ROSA MARIA MARTELO
ORGANIZADOR DO LIBRETO Nº 9 PEDRO EIRAS
AUTORES PETER HAYSOM RUI TORRES SOFIA FREITAS
ASSISTENTE EDITORIAL LURDES GONÇALVES
CAPA A partir de Saturno Devorando o seu Filho, de Francisco de Goya
PUBLICAÇÃO NÃO PERIÓDICA
VERSÃO ELECTRÓNICA ISBN 978-989-99375-7-4 DOI: 10.21747/9789899937574/fimdomundo7
OBS: Os textos seguem as normas ortográficas escolhidas pelos autores. O conteúdo dos ensaios é da responsabilidade exclusiva dos seus autores.
© INSTITUTO DE LITERATURA COMPARADA MARGARIDA LOSA, 2017
03/2017: 3 - ISBN 978-989-99375-7-4 | 10.21747/9789899937574/fimdomundo7na
Nota de abertura
No dia 21 de Dezembro de 2012, a expectativa de um fim do mundo – tão
espectacular quanto improvável – foi vivida à escala planetária. Entre terrores genuínos e
um irónico ambiente de festa, a data fatídica passou sem incidentes, e profecias de novas
datas para uma destruição do planeta começaram imediatamente a surgir.
O que é o fim do mundo? Um juízo universal da humanidade, conforme dizem os
textos vetero- e neotestamentários? Uma catástrofe ecológica, global e iminente, provocada
pelo homem? A alegoria de um mundo que perdeu as suas (meta)narrativas, vogando sem
verdade e sem destino, após Auschwitz e Sarajevo? O pretexto para a sedução do
espectáculo, entre filmes-catástrofe e um delicioso imaginário da destruição? Ou o confronto
de cada qual com a sua morte própria? Por que nos fascina e aterroriza este tema milenar,
nunca resolvido – e o que temos a ganhar com a exploração do nosso próprio terror?
Para estudar o imaginário do fim do mundo, o Instituto de Literatura Comparada
Margarida Losa organiza, desde 2013, uma série de seminários abertos, coincidindo com os
equinócios e os solstícios. Os libretos Materiais para o Fim do Mundo recolhem alguns
ensaios apresentados nesses seminários, ou textos afins. Neste sétimo libreto, Peter Haysom
estuda o «fim do mundo rural» no romance de Aquilino Ribeiro Quando os Lobos Uivam
(1958), mostrando como a intervenção do governo, em pleno Estado Novo, ao expropriar as
serras e impor uma política de arborização, condena a subsistência das comunidades; Rui
Torres, interroga os conceitos de fim, início e ciclo, a literatura entre o modelo clássico do
livro e a deriva cibernética, cruzando Cortázar com Gaiman, Herberto com Batman – num
texto experimental, em diálogo com um processador aleatório de texto; e Sofia Freitas
encontra nos Cadernos de Vaslav Nijinsky um conflito entre a invenção de uma nova
linguagem coreográfica no século XX, na senda dos Ballets Russes, e uma dupla catástrofe: a
demência pessoal e a destruição na Primeira Grande Guerra, fim do mundo que é também o
fim da dança.
Pedro Eiras
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“Obsessiva eternidade”:
O fim do mundo rural, segundo Aquilino Ribeiro
Peter Haysom
Universidade do Porto
Resumo: Este ensaio considera um apocalipse parcial: o fim do mundo rural, uma realidade sociológica
evidente numa sociedade cada vez mais urbanizada e globalizada. O estudo concentra-se no romance
português Quando os Lobos Uivam, escrito por Aquilino Ribeiro e publicado em 1958, considerando a
forma como este autor retrata o antes, o durante e o depois de um apocalipse rural. O texto consid era
estas três componentes apocalípticas: a conceptualização de um mundo em perfeita harmonia com o seu
entorno natural; os actos do governo que conduzem à destruição deste mundo; a terra pós-apocalíptica
que aparece nas últimas páginas do romance. Conclui-se que, neste romance dos anos cinquenta, Aquilino
Ribeiro antecipou o fim do seu mundo rural, da Beira Alta, um fim que viria a concretizar-se nas décadas
seguintes.
Palavras-chave: Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, rural, local, apocalipse
Abstract: This essay considers a partial apocalypse: the end of the rural world, an obvious sociological
reality within an increasingly urbanised and globalised society. The study focuses on the Portuguese novel
Quando os Lobos Uivam, written by Aquilino Ribeiro and published in 1958, considering the way in which
this author portrays the before, during and after of a rural apocalypse. The text considers these three
apocalyptic components: the conceptualisation of a world in perfect harmony with its natural
environment; the actions of the government which leads to the destruction of this world; and the post-
apocalyptic land which appears in the final pages of the novel. It is concluded that in this 1950s novel,
Aquilino Ribeiro anticipated the end of his rural world, of the Beira Alta, an end which would become a
concrete reality over subsequent decades.
Keywords: Aquilino Ribeiro; Quando os Lobos Uivam; rural; local; apocalypse
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Imaginemos um mundo dentro do nosso mundo, que todos conhecemos, mas que
já deixou de existir. Em 2005, o então Presidente da República, Jorge Sampaio,
participou num colóquio intitulado «Poder Local em Tempo de Globalização»,
organizado pela Universidade de Coimbra. No seu discurso de abertura, Sampaio
salientou determinadas áreas em Portugal, nomeadamente as zonas afastadas dos
centros urbanos, que considerava como mortas, contrapondo as “conurbações
metropolitanas” e as “áreas de forte potencial turístico” às “regiões em perda,
demograficamente rarefeitas e envelhecidas com uma economia rural em crise ou em
completa desagregação” (2005: 10). De facto, pode-se observar o desaparecimento
progressivo ou até a destruição ativa de antigas comunidades rurais ao longo de várias
gerações, em muitos países. No caso português, as políticas públicas e as obras
realizadas por sucessivos regimes podem ser associadas ao fim de aldeias tradicionais,
como se verifica na decisão do Estado Novo de esvaziar Vilarinho da Furna para
construir uma barragem durante os anos sessenta e setenta (cf. Antunes 2005).
No que se refere à cultura portuguesa, a consciência da perda das comunidades
rurais é evidenciada no filme Ainda Há Pastores? (2006), realizado por Jorge Pelicano,
que retrata as aldeias isoladas na Serra da Estrela; isto é, um “mundo” quase
completamente desaparecido. Podemos destacar ainda o livro Estrada Nacional (2016),
escrito pelo poeta Rui Lage, que constitui um elogio ao mundo rural, através de versos
que evocam uma sociedade em vias de extinção:
São lustres no vestíbulo das serras,
castiçais, crostas incandescentes
que amortalham calvários passados,
são braseiras viradas nas encostas
por algum deus desastrado,
farinha de estrelas peneirada
no firmamento
e ardida na masseira do fomento
e da coesão regional. (2016: 18)
Considerando esta preocupação na cultura contemporânea com o
desaparecimento das comunidades tradicionais, o meu ensaio irá debruçar-se sobre o
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cenário do fim do mundo rural, tal como retratado pelo ficcionista português Aquilino
Ribeiro no seu romance Quando os Lobos Uivam, de 1958. Proponho que esta obra
retrata o antes, o durante e o depois de um apocalipse: o fim da aldeia portuguesa
tradicional, de uma comunidade que desaparece, embora a terra, o espaço, continue.
I: Um mundo à parte
Segundo a Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, a palavra “mundo” significa “o
conjunto dos seres existentes considerados na sua unidade e totalidade” (Freitas 1991:
1031), uma definição que nos permite conceptualizar um mundo parcial, particular e
situado. Cito também Rosa Maria Martelo, no seu texto “Fim do mundo/reiniciar”,
quando afirma que “o fim do mundo também é um lugar, um lugar último, extremo”,
porque a expressão pode ter um “sentido topográfico, espacial” (2015: 12-13). Dito isto,
parece-me prudente retomar ainda uma pergunta feita por Raquel S., na sua
comunicação durante o Seminário do Fim do Mundo III.2: “O fim do mundo tem de se
referir à História? Qual é a sua dimensão: (...) O desaparecimento de um lugar, como uma
aldeia submersa por causa da construção de uma barragem?” (2015: 38). Eis o nosso
ponto de partida, uma aldeia. Provavelmente a autora remetia para o caso de Vilarinho
da Furna, mas os seus comentários poderiam referir-se facilmente à aldeia aquiliniana.
Ora, a sociedade de aldeia, na Beira Alta, constitui “o centro vital da visão do
mundo de Aquilino Ribeiro”, nas palavras de Alfredo Margarido (1985). Esta tendência
verifica-se, por exemplo, nos seus romances mais conhecidos: Terras do Demo (1919) e
Andam Faunos pelos Bosques (1926). Em Romance de Camilo (1956), o autor retrata a
sua terra natal como uma espécie de “mundo” à parte, longe dos centros metropolitanos,
e com uma identidade própria: “[As aldeias de Portugal são] pequenos formigueiros
humanos com uma humanidade quase bíblica, que pouco variou desde séculos, íamos
dizer desde o princípio do mundo” (1963: 83, itálico meu).
Do mesmo modo, Quando os Lobos Uivam, um dos últimos romances de Aquilino,
apreendido pelo Estado Novo, retrata uma comunidade rural antiquíssima, preservada e
inalterada como se desde os primeiros dias da humanidade. A narrativa estabelece,
desde as primeiras páginas, a noção de uma sociedade congelada no tempo: “Com a
breca, [Manuel Louvadeus] achava tudo tal qual! Os dez anos de ausência apagaram-se
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como um sopro perante a obsessiva eternidade que se lhe oferecia ao lance de olhos”
(2014: 13). As aldeias da Serra dos Milhafres (o cenário ficcional da narrativa)
aparecem-nos como artefactos, comunidades atrasadas que se recusam a ser tocadas
pelo presente: “A aldeia, tal como se acha hoje com um atraso de muitos séculos sobre o
mundo civilizado, queda indiferente à aventura. (...) O que condiz é a serra como está.”
(idem: 78-79). O autor estabelece ainda uma relação directa entre a idade da serra e a da
existência humana: “A serra era de nossos pais e avós, dos nossos rebanhos, dos lobos
que no-los comiam (...). A serra foi dos serranos desde que o mundo é mundo, herdada de
pais para filhos” (idem: 34, itálico meu). Desta forma, o entorno natural é apresentado
como um elemento indispensável da identidade do serrano, como lembra o narrador: “A
serra é por assim dizer a extensão universitária destas aldeias rupestres, desabridas e
broncas, autênticas terras do Demo. E aldeias e serras estão consubstanciadas até a sua
fibra mais íntima” (idem: 69).
II: O apocalipse deste mundo rural
Perante esta visão de uma sociedade totalmente dependente do seu entorno,
qualquer ameaça ao ambiente implica necessariamente uma batalha existencial. No
romance, a teimosia do Estado Novo em expropriar os terrenos da Serra e arborizar o
território é retratada como uma força destrutiva, que destrói os recursos essenciais para
os aldeões: “Nós não temos tapadas nem bosques. Temos umas belgas à beira do rio, que
dão centeio e milho, e é a serra que dá o leite e a lã, pois que ali se apascenta o nosso
vivo. (...) Se não dispusermos da serra, no Inverno morremos entiritados” (idem: 70-71).
Neste contexto, o autor remete para a fragilidade e o estado de dependência da
economia rural em Portugal durante a época, como Álvaro Cunhal comentou no seu
prefácio ao romance, escrito em 1963: “Com a actual estrutura agrária, tirar os ‘baldios’
aos povos serranos é dar um golpe mortal ao efectivo pecuário dos camponeses pobres,
reduzir a sua já pobre vida a um nível de miséria, liquidar as pequenas explorações
camponesas dessas regiões” (2008: 14). No entanto, para além de colocar em causa a
sobrevivência económica e física dos habitantes com o seu projeto de destruição, o
Governo retratado no romance ameaça a própria essência serrana, que depende dos
elementos naturais: “Os senhores propõem-se cobrir os penhascos de arvoredo,
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remover o cascalho dos oiteiros, atulhar as ravinas e os barrancos. Vão destruir o retrato
da família. Aquilo é o retrato da família serrana. (...) Os penhascos são a âncora do seu
próprio sentimento” (Ribeiro 2014: 74-75).
Neste cenário, a causa apocalíptica é, paradoxalmente, aquilo a que as
autoridades chamam progresso ou desenvolvimento urbano, o inimigo das tradições
eternas do campo. Segundo o Engenheiro Streit, representante do Governo de Lisboa, as
forças de modernização não podem poupar as comunidades antiquadas:
O progresso não é um ferro de engomar. Alguma coisa vai cilindrando na sua marcha. Sempre
assim foi. O comboio matou o almocreve; o automóvel está a matar o comboio; amanhã o
automóvel será vítima do avião. Entravar a renovação do mundo em nome de coisas que apenas
têm de recomendável a poesia de que as cerca a madureza dos nossos hábitos não é de admitir.
(idem: 68)
Seguindo esta lógica, o Engenheiro considera que, para transformar em realidade
o sonho da modernização, será necessária a morte definitiva da comunidade. Assim, a
oposição das aldeias à arborização da Serra torna-se “o mundo rural que luta pela
sobrevivência”, tal como identificado por Luís Vidigal (2009: 218), sendo uma luta que
assumirá proporções bíblicas. Quando as autoridades salazaristas chegam com as suas
máquinas para começar as obras na terra, a resposta dos serranos remete para a própria
linguagem do Apocalipse: “Então o dia de juízo estava a amanhecer!” (Ribeiro 2014: 196,
itálico meu). O combate entre os serranos da Beira Alta e os engenheiros vindos de
Lisboa é-nos apresentado como uma batalha final, de vida ou morte: “se correr sangue,
muito sangue, salva-se a serra. Mas só assim com um grande baptismo…” (idem: 94).
Assim sendo, os lisboetas colocam em causa a existência de todo o “mundo” tal como
concebido pelos habitantes: “Os gritos bem lhes advertiriam que ia ser ali o fim do
mundo: Leva avante! Leva avante!” (idem: 206).
Todavia, as aldeias perdem esta “batalha” contra o Governo invasor, e perdem a
guerra. Os opositores são presos, o Governo toma conta dos perímetros da Serra, e
começa o colapso do mundo rural. A partir deste momento, Aquilino descreve um
ambiente de apocalipse paulatino, em que os actos das autoridades levam a cabo a
devastação desta sociedade beirã. É a paisagem natural da Serra dos Milhafres que mais
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sofre nas imagens infernais de destruição: “Cem homens ali, outros cem mais longe,
capinavam o mato, faziam queimadas (...). De manhã ao sol-pôr era ali uma inferneira
ininterrupta, com os motores a atroar a morrinha hibernal do planalto” (idem: 351).
Assim, Aquilino remete para um elemento importante nas narrativas apocalípticas: a
destruição pelo fogo, que já foi salientado por Pedro Eiras (2014). Podemos considerar,
por exemplo, os incêndios causados pelo primeiro anjo no Apocalipse bíblico: “O
primeiro anjo tocou a trombeta. Saraiva e fogo, misturados com sangue, foram lançados
sobre a terra; queimou-se uma terça parte da terra, a terça parte das árvores e também
toda a erva verde” (Ap 8:7).
No entanto, o que João de Patmos não contempla é a participação do próprio ser
humano na destruição do seu mundo, como acontece aqui nas ações de Teotónio
Louvadeus: “Ajuntou mato, carquejas, ramos secos (...). Acendeu um fósforo, viu as
primeiras flamechas, voltou a cavalgar, e toca rumo ao Norte” (Ribeiro 2014: 399). É
verdade, como relembra Pedro Eiras, que a vinda do fogo pode ser bem aceite, e que em
determinadas circunstâncias o ser humano poderá ter um “desejo de entrega ao
incêndio” (2014: 25-26). Não obstante, as imagens que se seguem, de devastação
terrestre e de atmosfera tóxica, são tudo menos agradáveis: “À noitinha, a serra dos
Milhafres era um pavoroso mar de chamas. O calor sufocava. Já os primeiros rescaldos,
empestando a atmosfera, exalavam um hausto envenenado, que era molesto respirar.”
(Ribeiro 2014: 402). Estamos perante a abertura das portas do Inferno nas terras do
Demo.
Simultaneamente, não é apenas o fogo que erradica esta comunidade beirã.
Testemunhamos também o efeito destrutivo das secas e da água: “Anos andados, depois
de longa estiagem à feição do Ceará, desabou sobre a serra dos Milhafres trovoada
nunca vista. A corda de água levou pontes e alpoldras, arrastou as terras aráveis,
socavou os maninhos, e teve assediados nos redis e em perigo a gados e homens” (idem:
402). Consideremos, mais uma vez, as imagens do fim contidas no Apocalipse. Não será a
trovoada que o sétimo anjo utiliza para fechar o ciclo de devastação? Voltemos à Bíblia:
“E houve vozes, e trovões, e relâmpagos, e houve um grande terremoto, como nunca
houve desde que há homens sobre a terra; tal foi este tão grande terremoto” (Ap 16:18).
É também o caso de Quando os Lobos Uivam, em que os elementos naturais apocalípticos
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são o último prego no caixão desta comunidade serrana. Fecho do circuito; fim do
mundo rural.
III: Depois do fim
No seu livro After the End: Representations of Post-Apocalypse (1999), James
Berger afirma que, na ficção pós-apocalíptica, o leitor normalmente vê os
acontecimentos do apocalipse numa sequência errática: “Temporal sequence becomes
confused. Apocalyptic writing takes us after the end, shows the signs prefiguring the
end, the moment of obliteration, and the aftermath” (1999: 6). Por sua vez, neste
romance de Aquilino, o autor retrata o fim do mundo através de uma cronologia lógica e
coerente: uma comunidade antes de ser destruída, os sinais que apontam para o seu fim,
o momento da sua erradicação, e o que resta depois do fim, num ambiente obliterado.
Nesta última parte, Aquilino retrata uma paisagem devastada por múltiplas forças
destrutivas, do ser humano e da natureza: “Aqui, além, no assomo dos cerros e lombas
estiradas, os pinheirinhos, tendo despido a rama abanados pelo ciclone, perfaziam,
negro e convulsos, uma lamentosa paisagem de guerra” (2014: 402). O tom pós-
apocalíptico deste último capítulo é salientado pelo pânico das entidades religiosas: “O
mundo anda fora dos eixos! – clamavam os curas do alto dos púlpitos” (ibidem).
No entanto, neste Waste Land da Beira Alta, o apocalipse não terá sido uma
oportunidade para fazer tábua rasa e começar de novo, como defendem Rosa Maria
Martelo (2014: 10) e Maria Manuel Lisboa (2011: 8). Nesta terra de depois do fim, não
resta ninguém, apenas os lobos que aparecem nas últimas páginas da narrativa. Lobos
que andam pelos terrenos onde antigamente habitavam seres humanos, mas que agora
se encontram abandonados: “Passaram à beira da Rochambana onde dantes havia
bulício, gado, sempre gente a levar e trazer e cães ladradores. O sítio agora estava
silencioso como um fojo.” (Ribeiro 2014: 408). Retomo outra questão colocada na
comunicação de Raquel S.:
Construímos, em anos e anos de história, uma ideia de que o fim é um começar de novo, uma
espécie de purga do que está errado, que traria mundos novos e renascimento. E se, em vez disso,
tudo terminar num fim final, num silêncio imenso? E se tudo o que existe deixar de existir? Se
ficar só o lugar do que já lá esteve (se é que isso fica)? (2015: 37)
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Pois bem, no apocalipse de Aquilino, as terras ficam no seu lugar, elas não
desaparecem, mas é apenas isso. E os restos, os restos da comunidade que existia, na
forma de ossos humanos: “Ah, mas que era aquilo, branco, cuspido da água, depositado
pelo aluvião (...)? Ossos, um braçado de ossos que o refluxo desenterrara, e que, lavados
da ganga, reluziam como a neve” (Ribeiro 2014: 409). Trata-se dos resíduos de uma
civilização do passado, condenada a ser apenas uma memória histórica.
Em jeito de conclusão, recordo um comentário de José Saramago sobre o Mestre
Aquilino, numa entrevista de 1985: “o mundo aquiliniano já não existe, é arqueologia”
(1985: 100). Se assim for, se a sociedade beirã de Aquilino Ribeiro de facto desapareceu,
é em Quando os Lobos Uivam que o autor contempla esse apocalipse. Segundo Pedro
Eiras, “importa agora interrogar a ruína apocalíptica não como profecia, mas como
descrição de um presente: o fim do mundo é hoje” (2014: 30); para Aquilino, o fim do
seu “mundo” acontecia em 1958: “Aquilino tem a consciência exacta de que a sua aldeia,
essa dupla aldeia, a real e a imaginária, está ameaçada de morte”, escreve Eduardo
Lourenço (1985: 21). Assim, numa das suas últimas obras literárias, Aquilino reflete
sobre os primeiros sinais de morte das comunidades rurais, devido às atividades do
Governo salazarista da época. A relação entre esta narrativa e a actividade do Estado
Novo é corroborada, aliás, pelo relatório da censura do livro: “todo ele foi arquitectado
para fazer um odioso ataque à actual situação política” (Nazaré, in Ribeiro 2014: I),
assim como no prefácio de Álvaro Cunhal: “Ante os olhos do leitor, surge, em ricas cores,
um quadro característico da actual vida social e política portuguesa” (2008: 13).
Ao longo das décadas seguintes, o começo do fim das comunidades rurais
retratado em Quando os Lobos Uivam viria a concretizar-se, devido ao êxodo rural e aos
fenómenos da globalização e da urbanização. Para o leitor de hoje, o romance aparece
como uma narrativa de depois do fim, porque, nas palavras de James Berger, trata-se de
um apocalipse que já aconteceu:
In the late twentieth century we have had the opportunity, previously enjoyed only by means of
theology and fiction, to see after the end of our civilization – to see in a strange prospective
retrospect what the end of the world would actually look like: it would look like a Nazi death
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camp, or an atomic explosion, or an ecological or urban wasteland. (...) We have been able to see
these things because they actually occurred. (Berger 1999: VIII)
Na verdade, há partes da Beira Alta de hoje que bem poderiam ser terras pós-
apocalípticas. Em alguns cantos da serra, não existe alma viva, apenas os lobos que
uivam.
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Peter Haysom (Newton Abbot, 1991) é licenciado pela Universidade de Cambridge
(Reino Unido) em Línguas Modernas e Medievais (Espanhol e Português) e mestre em
Estudos Literários, Culturais e Interartes pela Faculdade de Letras da Universidade do
Porto. Em Dezembro de 2016, completou o seu curso de Mestrado com uma dissertação
intitulada Mapeando as “Margens de Areia”: Políticas de localização em Novas Cartas
Portuguesas. As suas áreas de interesse académico incluem a literatura lusófona, os
estudos feministas, a literatura regional e regionalista, e a geografia literária/geocrítica,
considerando a importância do espaço geográfico na literatura portuguesa.
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O Fim do Princípio do Fim de ...
Rui Torres
Universidade Fernando Pessoa
Resumo: Partindo de uma reflexão acerca do modo como as travessias entre oralidade e escrita se
reconfiguram no actual contexto da ideografia dinâmica e das escritas digitais, propõe-se com este texto
uma avaliação das recorrências que uma escrita combinatória de cariz computacional poderá sinalizar e
problematizar, identificando passagens, diluindo fronteiras, reescrevendo o nosso entendimento dos
ciclos.
Palavras-chave: oralidade, escrita, texto digital, combinatória.
Abstract: Starting from a reflection on the way by which the crossings between orality and writing are
reconfigured with the current context of the dynamic ideographies of digital writing, this text proposes an
evaluation of the recurrences that a combinatorial writing of computational nature can signalize and
problematize, identifying passages, blurring boundaries, rewriting our understanding of the cycles.
Keywords: orality, writing, digital text, combinatorics.
Interrogações, provocações… eis o que vos posso trazer aqui. Admitindo que não
sabia o que estava a descobrir quando escrevi este pequeno – e talvez insólito – texto…
pergunto: seria amador a transformar-se na coisa amada, “com seu / feroz sorriso, os
dentes, / as mãos que relampejam no escuro. (…) [Com] ruído / e silêncio”, como em
Helder (1996: 12)? Ou estaria a desvendar os fins como nova metamorfose, e o texto
programado e múltiplo com que trabalho como porta, solstício, passagem para um novo
início? “O fim do princípio do fim de...”
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A minha inquietação: estará todo o fim destinado a tornar-se um novo princípio?
Estará em todo o alfa contido já o seu ómega? Mais: poderá a surpresa implícita na
geração textual combinatória e aleatória romper esse círculo/ciclo?
Como proceder através da investigação criativa? Primeiro, programa-se um texto,
acrescenta-se um léxico, afinam-se os algoritmos gerativos: “o fim do mundo é o
princípio da poesia”... Esse texto virtual, o qual inclui potencialmente triliões de textos
possíveis, aparecerá (entre aspas) nos interstícios do texto articulado, estando
disponível em http://telepoesis.net/fimdomundo.
Deixa-se o programa em modo de leitura infinita e a partir desse texto virtual a
máquina devolve-nos a inquietação imaginada: “a origem do tempo é o óbito do
universo”; “a morte da beleza não é o perecimento da terra, mas o declínio do encanto
na aurora da infância”; “o prólogo da humanidade é o nascimento do firmamento e a
agonia do cosmos”.
E como organizar e estruturar uma reflexão sustentada sobre “o fim do mundo” a
partir deste programa? Sem querer abordar o assunto da escrita digital como o fim da
literatura, como pretendia Kittler (1999: 130, 247), preferi indagar o eterno retorno de
oralidade e da escrita no texto digital. E ainda: ao invés de uma abordagem dicotómica
(o fim disto é o princípio daquilo) optar por um acaso triangular, múltiplo, imitando,
expandindo na melhor das hipóteses, a proposta de Pierre Lévy (2004: 127):
transitando entre a oralidade que regressa e a escrita que perdura, a ideografia dinâmica
integra ou desestrutura as anteriores. Junte-se a isto o jogo intertextual, a leitura do
mundo, a simbologia das passagens e dos ciclos: a liberdade.
1. Círculo, oralidade
Alberto Pimenta, numa tonalidade sensível (sensual, humorística) certamente
diferente da minha, dizia no seu poema erótico “Alfa e Ómega”:
tudo começa onde começa tudo o que em ti começa,
isto é, na origem, onde o tempo digamos entra e
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sai (…) aí onde tudo começa por começar, aí mesmo, onde tudo começa e acaba, ou seja, aí mesmo.
(Pimenta 1990: 193).
Os ciclos, aqui em celebração, os ciclos inscrevem, sitiam ou mobilizam o corpo-
natureza que habitamos? Haverá o fora dos ciclos?
Uma primeira abordagem, para quem, como eu, procura pensar a partir da
poesia, é olhar o imaginário do fim do mundo como morte e transfiguração: “a origem do
homem não é o ómega da poesia”; ou: “a abertura da poesia é o berço do cosmos”.
A oralidade metamorfoseia-se, insinua-se e expande-se na escrita. O círculo
mostra-se linha.
No entanto, de que ciclo (transição, passagem) poderemos falar na passagem da
escrita para as tecnologias digitais de inscrição efémera, das ideografias dinâmicas e
heterogéneas em rede, do invisível (etéreo e efémero) do texto em computador?
Três imagens, portanto, três símbolos, três figuras: círculo, linha, ponto (Lévy
2004: 127). Corresponderão a estas figuras outros modos (únicos, exclusivos, redutores)
de pensar as transferências, as passagens?
Oralidade, escrita, nuvem: “o fim da oralidade é o princípio da escrita”; “o fim da
escrita é o princípio da nuvem”; “o fim da nuvem é o princípio da oralidade” – seus
contrários, suas negações.
Manuel António Pina nos salve, pelo título do seu primeiro livro de poesia: “Ainda
não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde” (1974).
Tarde de mais para Augusto dos Anjos, que em “O Lázaro da pátria”, inquieto,
escrevia:
Há um cansaço no Cosmos... Anoitece,
Riem as meretrizes no Casino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece! (1912)
E o desconhecido desenha-se nos ciclos programados: “a génese da exuberância é
a raiz da crueldade”; ou: “a finalidade da sociedade não é o aniquilamento do desejo nem
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o objectivo do desejo é o declínio do espaço”; ou ainda: “a semente do homem não é a
morte da sedução”.
Recortemos um fragmento da cultura popular, extraído de uma novela gráfica, na
qual se sinalizam constelações de mitos que enredam esta questão do fim, do princípio…
Falemos de Sonho, Dream of the Endless, Morpheus, Oneiros e Kai'ckul, o Senhor dos
Sonhos e das Mutações (o Lord Shaper), o Príncipe das Histórias.
Usemos esta personificação antropomórfica do Sonho e do Sonhar, destacando-o
entre os vários Perpétuos criados por Neil Gaiman (os Endless, todos em D), seus
siblings: Destino, Morte (Death), Desejo/Desespero (gémeos), Destruição, Delírio
(outrora Deleite). Sonho, Morpheus, pai de Orfeu…
Numa estória publicada no arco intitulado A Hope in Hell (Gaiman 1993), Sonho
desce aos Infernos. Sonho perdeu os seus utensílios mágicos, os seus objectos de poder:
um elmo (capacete com função de coroa), a algibeira (saco com areia do sono) e um rubi
(essência de seus poderes). O objecto mais difícil de recuperar era o elmo, no Inferno.
Conduzido pelo demónio Etrigan a Dis, onde se encontra o palácio de Lucifer
Morningstar, Sonho fica a saber que o Inferno já não é uma Monarquia, mas antes um
triunvirato, chefiado por Lucifer, Azazel e Beelzebub: “o primórdio do firmamento é o
prelúdio da crueldade”?
Lucifer invoca os demónios do Inferno, e assim se encontra Choronzon, o novo
dono do elmo. Justamente adquirido, argumenta o demónio, por isso desafiando Sonho
para um duelo, um concurso de inteligência, tendo a própria realidade como campo de
luta. Leia-se: “o fim do planeta é o advento da inspiração”; “a fundação da beleza é a lei
do homem”.
Objectivo do jogo: imaginar a identidade de um objecto ou animal e usar as suas
propriedades para destruir o do inimigo: “a conclusão da sedução não é o início da
beleza”.
Choronzon inicia o jogo: “Eu sou um terrível lobo, a perseguir a sua presa,
predador letal”, ao que Morpheus responde: “Eu sou um caçador, montado num cavalo,
esfaqueando o lobo.” (Gaiman 1993: 123).
Morte, aqui, logo se torna razão para uma nova vida. Há sempre uma força maior
que surge. Assim: “a semente da literatura não é a destruição do desejo”; “o prólogo do
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mundo é o motor do mar”; “o ocaso do fascínio é a morte do povo”; “o berço da raça
humana é o declínio do firmamento”.
“Ceci tuera cela”, diz Claude Frollo perante a Notre-Dame de Paris (Hugo 1831),
tocando um livro e olhando para a catedral. “O fim da catedral é o princípio do livro” e “o
início da poesia não é a conclusão da crueldade” nem “a decadência do homem é o início
da literatura ou a semente da poesia ou o falecimento do mundo”.
Mas a luta continua, Choronzon, Morpheus: “Eu sou um moscardo, uma mosca
varejeira, picando o cavalo, derrubando o caçador”, contra: “Eu sou uma aranha,
comedora de moscas, com oito patas” (ibidem). Ou ainda Choronzon: “Eu sou uma cobra,
devoradora de aranhas, dentada venenosa”, contra “Eu sou um boi, esmagador de
cobras, pesados pés”. E ainda: “Eu sou o antrax, bactéria carniceira, destruidora da vida
quente”, ao que Sandman responde: “Eu sou um mundo, flutuando no espaço, gerando
nova vida”. Choronzon: “Eu sou uma nova, explodindo tudo... cremadora de planetas”
(idem: 124), contra “[e]u sou o universo – todas as coisas englobando, abraçando toda a
vida” (idem: 125).
“Ceci tuera cela”; “o fim disto é o princípio daquilo”.
Choronzon pára, perante o universo, mas avança, confiante: “Eu sou a Anti-Vida, a
Besta do Juízo Final. Eu sou o escuro no final de tudo. O fim dos universos, dos deuses,
dos mundos... de tudo. Sss. E o que serás tu, Senhor dos Sonhos?” (ibidem).
Ao que Morpheus responde: “Eu sou a esperança.”
I am hope. A esperança. A esperança sobrevivendo a toda a destruição.
Lucifer é orgulhoso, Lucifer Estrela da Manhã não gosta de ser humilhado, e
insinua que os demónios não deixarão Sonho sair do Inferno: os Sonhos não têm poder
no Inferno.
Mas Morpheus é o Senhor das Histórias, conhece os Ciclos, responde: “Que poder
teria o Inferno, se aqueles que aqui estão presos não pudessem sonhar com o Céu?”
(idem: 128).
A passagem (circular, anelar, cíclica): a passagem como descoberta. Descobrir é
colocar-se face ao desconhecido.
Para Pessoa, no fim do mar está o mostrengo... e “O mar sem fim é português”.
Mais, em “O Infante”, lê-se: “E a orla branca foi de ilha em continente, / Clareou,
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correndo, até ao fim do mundo, / E viu-se a terra inteira, de repente, / Surgir, redonda,
do azul profundo” (Pessoa 1934: 57).
Já Virilio vê o azul como fronteira, “espessura óptica da atmosfera, a grande lente
do globo terrestre, a sua retina brilhante (…) separa[ndo] a transparência da opacidade”
(2000: 21).
Nascimento pela morte: e por isso Buda, o Acordado, é representado, em alguns
rituais iniciáticos, como a morte, a morte como viagem para o renascimento (Chevalier
2010).
Círculo, oralidade: do espaço partilhado, da ausência de inscrição. A escrita será,
depois disso: linha, rasura, percurso, árvore; e o ideograma dinâmico, na nuvem
simulado: o ponto, o rizoma caótico, fractal.
Mas o ponto contém o círculo? É círculo?
“E no fim era o verbo” foi o título dado por Américo Rodrigues a uma
performance que fez em 24 de Fevereiro de 2016 no Salão Brazil, em Coimbra. No
resumo da sua intervenção, lia-se:
No início era a própria respiração. No início não era o verbo, era a respiração, o vento que
circulava dentro dos corpos, o sopro mágico. No início, era o ar. O ar que mantinha o corpo, um
corpo feito de ar e sangue. O ar é como o sangue, os dois essenciais. (Rodrigues 2016)
O grão da voz, o grão de linguagem. Ovo, início e fim. A tradição à espera de uma
nova morte, à espera de se transfigurar em algo novo. Uma morte como regeneração de
forças vitais.
Como Helder, transformando Brandão: "É preciso matar os mortos, / outra vez, /
os mortos” (1996: 292).
Tudo é sempre uma outra coisa maior. “Rose is a rose is a rose is a rose”, como
dizia Gertrude Stein (1993: 187). Estruturas minimais e repetitivas gerando a diferença,
fazendo deferência à iteração. Rosas ou flores de amendoeira, as dos renascimentos
frágeis, mensagem da Primavera, levemente sensíveis à geada.
Borboletas em círculos (como as que andam à volta de Delírio, irmã do Sonho...),
metamorfose-crisálida sonhando uma ressurreição. Como Falena, consumida pelo amor-
viagem à volta da chama do fogo, queimando as asas em círculos (Chevalier 2010: 316).
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Imortalidade, aliás, esse castigo. Que o diga Caim, o primeiro cultivador, o
primeiro assassino, o primeiro errante, sozinho vagueando pelo mundo, sem poder
morrer (idem: 143).
Talvez por isso Álvaro de Campos, em “No fim de tudo dormir”, mereça nova
atenção:
No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser...,
Este pequeno universo provinciano entre os astros,
Esta aldeola do espaço,
E não só do espaço visível, mas até do espaço total. (Pessoa 1944: 88)
Os perpétuos recomeços do calendário, a Porta dos deuses (Solstício de Inverno)
abrindo para a porta dos homens (Solstício de Verão). Brandão, ainda: “É uma voz – são
muitas vozes. É um grito – são muitos gritos. – É o grito contido há milhares de anos, o
grito dos mortos libertos” (1991: 42).
O que estava em baixo está agora por cima. O que está em baixo é uma imagem do
que está em cima. Cascata, com seu movimento descendente alternando com o alto
impassível do rochedo de onde cai a água (Chevalier 2010: 167, 177).
Uma cascata numa caverna: chãos-terra onde descansam os redentores,
abóbodas-céu onde se projectam as imagens do cosmos.
2. Linha, Escrita
E o círculo rompe-se, com a escrita. A linha é a escrita. A interacção dissocia-se de
comunicação.
O princípio da escrita é o elogio do inscrito, o móbil do fixado, do imóvel. Uma
Ordem e uma Ordenação. Falocêntrica (antes fosse Falenocêntrica...).
Ógmios, deus dos laços, vigia-nos aí. E escrita, entenda-se, contraditoriamente
até, em oposição ao saber, ao mutável.
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E por isso as Letras, essas partes do corpo (Chevalier 2010: 406). Letras alfabetos
com força criadora, em ordenações que não pode o ser humano conhecer, porque não
lhe foi dada a conhecer a sua ordem interna.
Poder demiúrgico do verbo. Entre a escrita e a nuvem vai estar o Golem, esse
homem-robot criado por meios mágicos e artificiais, imitando o divino fogo de
Prometeu, feito mudo porque os seus criadores não foram capazes de lhe dar a palavra.
Voz Verbal Vocal.
Escrita, transmutação, alquimia. Como Teleutai, aquele que faz morrer para
iniciar, para reiniciar, passagem de uma porta para outro lugar.
Esperança, diz Sonho no Inferno, acreditando na roda, na perfeição dos círculos,
dos recomeços.
Uroboro. Serpente que morde a sua própria cauda, fechada sobre si própria, auto-
fecundando-se, auto-mutilando-se (Chevalier 2010: 670). Uroboro serpente: linha
fugidia. Uroboro linha: serpente fugidia.
Situados assim na escrita, na linha, façamos um segundo rasgo, outro atalho no
percurso, relembrando a cena final de Batman: The Killing Joke, de Alan Moore.
Joker perseguido por Batman. Joker fugindo (até ao fim), resistindo (até ao fim) e,
quando impossibilitado de continuar a fugir e/ou a resistir, posto na encruzilhada final,
conta a Batman uma anedota, uma anedota acerca das linhas (ilusórias?) da escrita:
Tás a ver, havia estes dois tipos num hospício... e uma noite, uma noite eles decidem que já não
gostam de viver num asilo. Eles decidem que vão escapar! Então, tipo, eles sobem para o telhado,
e ali, mesmo ao lado de uma fenda estreita, eles vêem os telhados da cidade, estendendo-se à luz
da lua... estendendo-se para a liberdade. Agora, o primeiro tipo, ele salta a fenda sem problema.
Mas o seu amigo, o seu amigo não se atreveu a dar o salto. É que tás a ver, tás a ver... ele tem medo
de cair. Então, o primeiro tipo tem uma idéia... Ele diz: “Ei! Eu tenho a minha lanterna comigo! Vou
acendê-la ao longo da fenda entre os prédios. Poderás caminhar ao longo do raio da luz e juntas-te
a mim!” M-mas o segundo tipo só abana a cabeça. Ele d-d-diz... Ele diz: “O-o q-quê? Achas que eu
sou Louco? Tu desligarias a luz quando eu estivesse a meio do caminho!” (Moore 1988: s.p.)
Portanto, já se vê, a linha que separa a loucura da sanidade, a vida da morte, é a
mesma linha ténue, inventada, uma mesma linha invisível que separa os ciclos.
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Joker, claro, traz consigo a folia, o Carnaval, enunciando já uma outra passagem,
uma outra viagem: a celebração colectiva, dialogante, invertendo hierarquias, aceitando
contradições, integrando opostos, profanando e dessacralizando, resistindo à unificação.
Resistindo à escrita. Resistindo à escrita?
O salto e o voo dos “tipos” loucos da anedota de Joker ultrapassam a gravidade.
Paul Virilio, de novo: “Da matéria-terra ao espaço-luz vai apenas um passo, o do salto ou
o do voo, capazes de num instante nos libertarem da gravidade” (2000: 21).
A Linha, (a escrita?), sem princípio nem fim: vislumbramos a parte presente,
manifesta; mas imaginamos sempre, ad infinitum, a sua metamorfose, o seu princípio e o
seu fim. Serpente-uroboro é também rasto no chão, linha sinuosa que marca o
indiferenciado primordial, reservatório das latências, do virtual.
E o Círculo é uma linha. Não morre a oralidade com a escrita. Não morre a escrita
com a ideografia dinâmica, com o cibertexto. São uma outra coisa. Helder: “Eu procuro
dizer como tudo é outra coisa” (1990: 98).
Ou: “o fim do mundo é o princípio da poesia”; “a origem do mar não é o intuito da
graça”; “o prelúdio do fascínio não é o gérmen do encanto”.
3. Ponto, Nuvem
Poesia dialogando entre os ciclos em que se inscreve. Poesia na dobra, re-
cognição: “o prelúdio do homem não é a decadência do firmamento”; nem “a regra da
terra é o advento da inspiração ou o primórdio da raça humana”.
O regresso do Impermanente. Círculo feito ponto, voz primordial. Voz
Crepúsculo: recomeço, instante suspenso. A morte de um anunciando o outro.
Crepúsculo: imagem da hora da melancolia e da nostalgia (Chevalier 2010: 239).
Ceci tuera cela.
Uma nova literatura (o fim da literatura?) – como tradução, transposição,
intersemiose, alargando fronteiras.
Julio Cortazar: “Para qué sirve um escritor si no para destruir la literatura?”
(2004: 463).
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Esperança, linha invisível e subtil que atravessa a loucura, heteroglossia, como e
com o dialogismo implícito da própria textualidade. Colaboração, participação,
consciente de que não há, verdadeiramente, uma voz única, una, identificável, sequer.
Uma visão dinâmica da linguagem como princípio de uma nova génese.
Kittler, na sua arqueologia dos média, avisava: as redes de fibra óptica, através
das quais as pessoas estarão ligadas aos canais de comunicação, usados agora por cada e
qualquer meio, significam um princípio na história ou um fim da história (“for the first
time in history or for its end”), porque algo, antes do fim, está a chegar ao fim. Apaga-se
a diferença entre os meios, entre as linguagens, reduzidas a um mero efeito de superfície
(Kittler 1999: 1).
O fim da memória: esse o fim do mundo que aqui se celebra?
Encontrar, por isso, os traços da presença d(o espectro d)a literatura no discurso
da, e sobre a, tecnologia, e vice-versa, passa a ser o nosso trabalho.
A metodologia crítica a usar é a da Paranoia (“O-o q-que? Achas que eu sou
Louco? Tu desligarias a luz quando eu estivesse a meio do caminho!”, conforme o Joker).
Uma ciência forense para a escrita.
O princípio de algo é sempre o fim de uma outra coisa, e por isso estamos sempre
em fronteira, testando as passagens, atravessando túneis. Estamos sempre situados num
horizonte: “a inauguração do mundo não é a raiz do tempo”; “o óbito da humanidade não
é a semente da terra”.
A Escrita digital, convergência do círculo e da linha no ponto, oralidade e escrita
re-encontradas, é um Sinal dessa passagem: do ritual (oralidade, sincretismo) para a
teoria (escrita, inscrição). E daqui para a simulação, agora. Agora? “O motor do planeta é
o motor da espiritualidade”; “o ómega da literatura é o motivo da poesia”.
Ponto. Sequência discreta. Fim da escrita, fim do literário, fim do fixo. Tudo
sujeito a numerização e quantificação: “o aniquilamento do universo é finalidade da raça
humana”.
Por isso, estar no Horizonte é entender o que limita o pano celeste (Virilio 2000),
o que circunscreve e anula a nossa visão do além, o que se interpõe como fronteira, a
saltar, a saltar da “aldeola do espaço”… (Pessoa 1944: 88).
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Esperança, caminho do Arco-íris: mediação entre o céu e a terra, ponte entre
mundos, escada, caminho dos mortos / ascensão dos vivos. Porta dos deuses, porta dos
homens (Chevalier 2010: 83-84).
É estar em transição, vestindo a roupa do louco, seu colete de forças. Em
“Partitura do Maquinim”, Salette Tavares: “Eu visto o que vesti ao manequim / sou poeta
que mente o que se sente / e de só fico contente quando visto / aquilo que se ri atrás de
mim. // Manequim do meu amor como te vejo / todo de cera e sedas emprestadas / em
meu desejo sou eu que de manejo / em não, em flor / em tempestade e nadas.” (1965,
s.p.).
Concluindo (em modo Manifesto)
Uma poesia dinâmica e em rede, aberta e programada, fim do ciclo do literário
(não necessariamente da literatura): informada por diferentes convenções: mistura
híbrida de formas estéticas (página, moldura, pontos de vista móveis) e tecnologia
(interface, indexação, geratividade): “o fim da página não é o princípio da indexação”; “o
princípio da moldura é o fim da interface”.
No cibertexto, no ponto, ainda a memória do círculo/ciclo, e da linha: uma “visão”
que se materializa/naturaliza no computador.
Poesia algorítmica, programável, modular, composta de elementos discretos,
desautomatizando as operações de criação, acesso, manipulação.
Poesia variável. Não fixa, não permanente, em versão potencialmente infinita:
poesia trovadoresca, poesia performativa.
Poética do heterogéneo: caminho, pelos nós de uma rede contendo outras redes
compostas de outros nós e conexões, poesia fractal.
Uma poesia com um caminho a percorrer, do literário para o performativo: “O fim
do literário é o princípio do performativo?”.
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Rui Torres nasceu no Porto em 1973. É doutorado em Literatura Luso-brasileira
pela Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (EUA – 2002) e Pós-doutorado
em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil –
2007). Professor Associado com Agregação na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
da Universidade Fernando Pessoa, Porto, tem livros, artigos e outros textos publicados
sobre literatura, comunicação e cibertextualidades. É coordenador do Arquivo Digital da
Literatura Experimental Portuguesa e membro do Board of Directors da Electronic
Literature Organization.
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“Vi-me como Deus e o diabo, ao mesmo tempo”:
os Cadernos de Nijinsky entre a loucura e o fim do mundo
Sofia Mota Freitas
Universidade do Porto
Resumo: Vaslav Nijinsky (1889-1950), provavelmente o bailarino mais famoso do século XX, ganhou uma
aura mítica quando, em 1919, foi internado na casa de saúde Bellevue de Kreuzlingen, com o diagnóstico
de esquizofrenia. Meses antes de ser hospitalizado, Nijinsky escreveu quatro cadernos, que hoje são
conhecidos como o seu “diário”. Nos Cadernos observa-se que Nijinsky escreve segundo uma lógica
associativa, mas à medida que o diário avança, o discurso torna-se mais desorganizado e confuso. Nijinsky
escreve sobre a sua rotina em Saint-Moritz, os seus sentimentos pela mulher e pela filha, mas também
sobre a sua alimentação, os processos fisiológicos do seu corpo e o fim do mundo que acredita estar
prestes a acontecer, devido à escassez dos recursos naturais. Há fragmentos lúcidos e coerentes, mas há
também passagens delirantes que prenunciam o seu estado psicótico. Acima de tudo, o seu “diário” é um
testemunho do seu fim do mundo pessoal, deixando entrever o caos da sua vida interior.
Palavras-Chave: Nijinsky, fim do mundo, loucura, Freud, Daniel Paul Schreber
Abstract: Vaslav Nijinsky (1889-1950), the most famous dancer of the twentieth century, won a mythical
aura when, in 1919, was hospitalized in Bellevue Kreuzlingen’s asylum with a diagnosis of schizophrenia.
Months before his hospitalization, Nijinsky wrote four notebooks, today known as his “diary”. In the
notebooks, we observe that Nijinsky writes based on free association, but as the diary goes forward the
speech becomes more disorganized and confusing. Nijinsky writes about his daily-routine in Saint-Moritz,
his feelings for his wife and daughter, but he also tells us about his alimentation, the physiological
processes of the body and the end of the world that he believes is about to happen, due to scarcity of
natural resources. There are lucid and rational fragments, but there are also delusional ones which
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announce his psychotic state. Above all, Nijinsky’s “diary” is a testimony of his personal breakdown,
letting us see the chaos of his inner life.
Keywords: Nijinsky, end of the world, madness, Freud, Daniel Paul Schreber
Estou diante de um precipício onde posso cair,
mas não tenho medo de cair, por isso não cairei.
Vaslav Nijinsky
No dia 24 de setembro de 2015, estava eu a caminho da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, para assistir precisamente a um outro Seminário do Fim do
Mundo, quando fui comprar uns bombons para o meu avô, que nesse mesmo dia fazia 84
anos. Dirigi-me à menina da caixa para pagar; já não era uma menina, era uma senhora,
que, não sei por que razão ao certo, contou-me: um familiar próximo morrera havia
pouco tempo e não sabia como ultrapassar essa perda, disse-me que sentia um vazio.
Percebi que lhe tinha acontecido aquilo que Manuel António Pina descreve como um
encontro com a morte “com o rosto material e próximo de alguém que amamos”:
Então algo vulnerável se desmorona, o mundo que havíamos construído para nós, de um
momento para o outro, torna-se inabitável e desconhecido. Nomes, coisas, acontecimentos (o
próprio acontecimento da morte) se desvanecem e sentimo-nos partir de nós mesmos para fora
de nós como se sonhássemos (2014: 590).
Cheguei à faculdade, assisti ao seminário, mas durante todo o tempo algo me
atormentava, não sei se era ainda a expressão na cara da senhora quando me
perguntava: “E agora o que é que a gente faz?”; ou a minha incapacidade para lhe
responder. Não venho hoje dar a resposta que naquele dia não soube articular, julgo até
que não há resposta possível. Mas, a haver, penso que ela se encontra na arte, na sua
tentativa incansável de fazer “parar o tempo”, como formula Rui Chafes em Entre o Céu e
a Terra: “A arte é sempre uma deceção, não pode prometer nada. Mas a sua secreta
ambição é desmesurada: parar o tempo” (2014: 51). Por um lado, a arte com as suas
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diversas roupagens deseja obviar-se à morte, mas por outro, obriga a um confronto com
essa última realidade, ensina a aceitá-la, a conviver ou a lidar com a sua presença
constante sob a forma da ausência das pessoas que mais se estima. Nas palavras de
Luiza Neto Jorge: “O poema ensina a cair / sobre os vários solos / desde perder o chão
repentino sob os pés / (…) até à queda vinda / da lenta volúpia de cair” (1993: 141).
Segundo Arnaldo Saraiva, a literatura pode ser uma tentativa de “amortecer, apagar ou
sublimar a ideia de queda” (2015: 154) e Mário de Sá-Carneiro consagrou-se como o
poeta da queda, aquele que mais sagazmente sintetizou essa perda dos sentidos num
voo desamparado: “Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso… / (…) / Tombei… / E fico
só esmagado sobre mim!...” (2010: 37). Se admitirmos o verso sá-carneiriano – “Só a
beleza redime” (idem: 90) –, talvez possamos acreditar, como Rui Chafes, “no poder
imortal da arte (…) no seu poder catártico e purificador (…) na sua capacidade para nos
dar asas que nos permitam ‘voar sobre o mar ilimitado e planar livremente sobre toda a
terra’” (2014: 46).
Lembra-me, então, a queda de Vaslav Nijinsky, o famoso bailarino da companhia
Bailados Russos, internado com um diagnóstico de esquizofrenia quando ainda não
contava 30 anos de idade e que, até à sua morte – 30 anos depois –, nunca mais
recuperou a sanidade mental nem voltou a dançar. Este bailarino genial, coreógrafo de
três bailados – L’Après-Midi d’un Faune (1912), Le Sacre du Printemps (1913) e Jeux
(1913) – que chocaram o público e revolucionaram o mundo da dança, foi também um
artista incompreendido e, tal como Sá-Carneiro, teve de esperar algumas décadas para a
sua arte ser entendida.1 Após um período de fama e glória a dançar para a companhia de
Serguei Diaghilev (entre 1909 e 1914), Nijinsky casa impulsivamente com Romola de
Pulsky, uma jovem húngara que vinha, há algum tempo, seguindo a trupe russa em todas
as atuações. Diaghilev mantinha uma relação amorosa com o jovem prodígio e, sentindo-
se traído pelo inesperado casamento, expulsa-o da companhia, sem explicações.
Logo após o seu despedimento, Nijinsky escreve uma carta a Igor Stravinsky,
pedindo-lhe que interceda junto de Diaghilev, e afirma: “If it is true that Serge does not
want to work with me (…) then I have lost everything” (apud Acocella 1999: XV). Com
efeito, o bailarino percecionou corretamente a sua situação e pode-se dizer que este foi o
início do fim do mundo de Nijinsky. Apesar de ter voltado a dançar e a compor bailados,
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e ter até regressado à companhia por breves períodos de tempo, a verdade é que a
rutura com Diaghilev, a quebra na sua atividade como bailarino e coreógrafo, a
instabilidade financeira, as novas responsabilidades de marido e pai, o despoletar da
Primeira Guerra Mundial e a sua estadia forçada, de cerca de um ano e meio, na Hungria,
como prisioneiro de guerra, foram fatores que certamente contribuíram para o
agravamento da sua saúde mental2. Desta forma, a loucura do “Deus da dança”, como era
apelidado pelo público parisiense, catapulta o fim do seu mundo pessoal. Nijinsky só
morre em 1950, mas já em 1919 escreve:
A morte veio de repente, porque a desejei. Disse para comigo que não queria viver mais. Vivi
pouco. Só vivi seis meses. Disseram-me que estava louco. Pensava que estava vivo. Não me
deixavam em paz. Vivia e andava alegre, mas as pessoas diziam que eu era mau. Percebi que as
pessoas precisavam da morte e decidi que não faria mais nada, mas não podia. Decidi escrever
sobre a morte. Choro de dor. Estou muito triste. Estou aborrecido porque está tudo vazio à minha
volta. Fiquei vazio (2004: 153).
Poderia alongar-me sobre o declínio da vida do bailarino e a doença tornando-se
no seu carrasco – ou, como Nijinsky disse à mulher no dia em que ela o levou ao famoso
psiquiatra Eugen Bleuler: “Femmka, tu trazes-me a minha sentença de morte!” (Nijinsky
1940: 350). Poderia discorrer sobre os diversos hospitais, hospícios e casas de saúde
onde esteve internado, analisando os múltiplos tratamentos experimentais de que foi
cobaia, julgando a conduta da sua família, inventariando as suas crises psicóticas mais
graves, evidenciando a sua terrível angústia por se ver privado da dança, arte que o
acompanhava desde criança.3 Poderia, enfim, citar os seus relatórios clínicos, os
pareceres dos imensos médicos que consultou, a biografia escrita pela mulher, o livro de
memórias escrito pela irmã e tantos outros textos que o lembram como o “Deus da
dança” ou o “bailarino louco”.
Em vez disso, vou centrar-me naquilo que Nijinsky pode, pela sua voz, dizer.
Nijinsky escreve os quatro cadernos, hoje conhecidos como o seu “diário”, entre 19 de
janeiro e 4 de março de 1919,4 tempo que viveu em Saint-Moritz, na Suíça, com a mulher
Romola e a filha Kyra, no intuito de restabelecer a sua saúde num ambiente de paz e
sossego. Apesar de afastado da sua atividade profissional, o bailarino dedicava-se
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fervorosamente à dança, trabalhando múltiplas horas por dia em exercícios físicos e
também num inovador sistema de notação de dança que vinha a desenvolver havia
algum tempo. É nesta pacata vila suíça que Nijinsky dá o último espetáculo da sua vida,
no dia 19 de janeiro de 1919, num sarau de beneficência. Rui Chafes, ainda em Entre o
Céu e a Terra, garante que “A arte será sempre a fricção entre o mundo interior e o
mundo exterior. A capacidade de transformar esse conflito numa forma possível é o
trabalho dos artistas e dos poetas” (2014: 42). Assim, é possível pensar que a última
atuação de Nijinsky, produto artístico proveniente do atrito entre os seus mundos, é um
testemunho do estado do mundo exterior, abalado pela infindável guerra, e também a
denúncia do equilíbrio instável em que o bailarino sustinha a sua vida. O relato desta
atuação está incluído no seu “diário”, onde o bailarino conta que esse foi o “dia do [s]eu
casamento com Deus” (2004: 25), dando a seguinte descrição do evento:
A minha mulher ama-me muito. Tem medo de mim, porque hoje dancei de forma muito nervosa.
Dancei de forma muito nervosa de propósito porque o público compreender-me-á melhor, se eu
estiver nervoso (…) O público estava lá para se divertir. Pensava que eu estava a dançar para o
divertir. Dancei coisas terríveis. As pessoas tinham medo de mim, por isso pensaram que eu
queria matá-las. Não queria matar ninguém. Amava toda a gente, mas ninguém me amava, por
isso enervei-me (23-4).
Embora Nijinsky não o diga no seu testemunho, segundo Romola o bailarino
anunciou que ia dançar a guerra, os seus sofrimentos, as suas destruições e mortes:
Era apavorante. Vaslav dançava tão perfeitamente, tão maravilhosamente como nunca, mas de um
modo diferente (…) parecia encher a sala com todo o horror da humanidade sofredora. Era
trágico: havia-lhe nos gestos uma grandeza épica. Tão forte era o seu poder de sugestão, que nos
diríamos pairando sobre um campo de cadáveres (…) E dançava, dançava sempre, rodopiava no
espaço, arrastando com ele o público até à guerra, até à destruição, fazendo-o olhar de face o
sofrimento e o horror, mas ao mesmo tempo, lutando com os seus músculos de aço, servindo-se
da sua agilidade, da sua rapidez fulminante, da sua natureza etérea para poupá-lo ao fim
inevitável. Era a dança pela vida em oposição à morte (1940: 346).
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Veja-se ainda a descrição do escritor Maurice Sandoz que assistiu ao espetáculo e
oferece uma visão semelhante à de Romola, interpretando a dança do bailarino da
mesma forma:
E nós vimos Nijinsky, ao som duma marcha fúnebre, com o rosto convulso de horror ou de aflição,
caminhar sobre um campo de batalha, saltando por cima de um corpo em putrefação, esquivando-
se a um projétil, defendendo um sulco de terra banhado de sangue que aderia aos seus pés,
atacando um inimigo, fugindo dum carro de assalto, voltando atrás, ferido, moribundo, rasgando
com as suas mãos eloquentes os fatos que o cobriam e que se transformavam em farrapos.
Nijinsky, mal coberto pelos pedaços da sua túnica, sufocando, ofegava; uma sensação de opressão
invadiu a sala (apud Reiss 1958: 232).
Nesta sua última performance, Nijinsky afirma que o seu objetivo não é divertir o
público, nem quer dançar “coisas alegres” (2004: 24), em vez disso escolhe dançar a
morte, mostrar o sofrimento e a devastação que a guerra provoca, confrontar os
espectadores com os seus fantasmas. Esta conceção da dança foi aprendida na lição com
Michel Fokine. Este brilhante coreógrafo dos Bailados Russos publicou em 1914 uma
carta aberta sobre os propósitos estéticos do “novo bailado”, que deveria incluir “uma
aliança entre a dança e as outras artes (…) em pé de absoluta igualdade” (apud Lourenço
2014: 105). Na verdade, já em 1904, muito antes da estreia dos Bailados Russos (1909),
Fokine advogava que “O bailado não deve ser um mero divertissement (…) Acima de
tudo, a dança deve ser interpretativa; não deve degenerar ao ponto de se tornar uma
forma de ginástica. Deve, em suma, assumir a plasticidade da palavra” (apud ibidem). De
facto, ao querer retratar o horror da guerra através da dança, Nijinsky antecipa bailados
como Valley of Shadows do coreógrafo britânico Kenneth MacMillan. Este bailado choca
o público quando estreia, em 1983, no Covent Garden, pois coloca em cena a história de
uma família judia submetida aos horrores dos campos de concentração.
A guerra é um dos temas que mais preocupa Nijinsky, além de a dançar,
representa-a em desenhos obsessivos de rostos de soldados com olhos vermelhos.
Segundo Romola, quando o marido soube da boa-nova do armistício, terá dito: “– A paz,
a paz! Nunca haverá paz em semelhantes condições. A guerra continuará, mas de uma
maneira diferente, à socapa” (1940: 330). De facto, Nijinsky acreditava que toda a
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humanidade estava condenada devido ao capitalismo, à industrialização, à conduta
consumista e ao uso irracional dos recursos naturais oferecidos pela Terra. Assim, pode
ler-se nos seus Cadernos:
Sei quem provoca a guerra. As guerras provêm do comércio. O comércio é uma coisa terrível. O
comércio é a morte da humanidade. Se as pessoas não mudarem a sua forma de viver, o comércio
matá-las-á a todas (…) Gostava que destruíssem as fábricas porque sujam a terra. Gosto da terra
por isso quero protegê-la (…) Quero que as pessoas compreendam que devem renunciar a todo
este lixo porque lhes resta pouco tempo de vida. Sinto a asfixia da terra. A terra está a sufocar.
Produz tremores de terra (2004: 217).
Estas palavras de Nijinsky produzem uma reflexão válida sobre o estado do
planeta e são certeiras acerca da necessidade de mudança, no entanto há uma certa
modulação paranoica que vai pontuando a sua escrita5, impedindo uma clara exposição
de argumentos e ideias. Quase um século depois, Rui Chafes advoga de modo semelhante
a urgência em pôr fim à sociedade materialista: “Estamos a viver nos escombros dos
últimos dias (…) Cada vez mais pessoas estão a sofrer com o vazio desta época
materialista (…) a sua vacuidade sem desígnio, o consumismo desenfreado e absurdo, a
massificação da cultura” (2014: 46). O tom apocalítico das previsões do bailarino russo
para o futuro continua noutras passagens, onde reflete sobre a excessiva extração de
petróleo, a iminente escassez de combustíveis e alimentos, mostrando que é preciso
economizar, como ele próprio faz:
Falo pela boca de Deus (…) A terra está a desintegrar-se, porque o seu combustível está a apagar-
se. O combustível continuará a dar calor por mais algum tempo, mas não muito (…) toda a vida do
homem se apagará também, porque o homem deixará de poder abastecer-se de comida (...) As
pessoas abusam do combustível. As pessoas pensam que precisam de muitas coisas, porque,
quanto mais se tem, mais feliz se é. Sei que, quanto menos se tem, mais tranquilo se tem o espírito
(…) O combustível é uma coisa necessária, por isso devemos poupá-lo. Vou poupar combustível,
porque sei que assim a vida será mais longa (113-4, 168-172).
Afirmando reiteradamente que é Deus, Nijinsky vê-se como o Salvador da
humanidade e considera-se portador de uma mensagem messiânica; quer por isso
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publicar o seu livro com urgência em Zurique e distribuí-lo de forma gratuita por toda a
população, de preferência numa edição fac-similada para que toda a gente tenha acesso
à sua palavra escrita:
Eu sou o Salvador do senhor. Sou o Nijinsky, não sou Cristo. Amo Cristo porque ele era como eu
(…) Quero salvar da asfixia todo o globo terrestre. Os sábios devem largar os livros e vir ter
comigo. Ajudarei toda a gente porque sei muitas coisas. Sou um homem em Deus (…) Vou
escrever muito porque quero explicar às pessoas o que é a vida e o que é a morte (219).
Não se pode traçar um limite entre o que é aqui discurso lúcido e discurso
alucinado. Por diversas vezes ao longo da sua escrita, o coreógrafo d’A Sagração da
Primavera mostra estar consciente de que a sua família o considera louco e tenta
explicar as suas ações e as suas profecias do fim do mundo: “Sei que muita gente vai
dizer ‘Por que é que o Nijinsky passa a vida a falar de Deus? Enlouqueceu. Sabemos que
é só um bailarino’” (170). No fundo, Nijinsky sabe que algo se passa consigo, algo que ele
próprio não consegue controlar, por isso, escreve, desenha6, exercita-se e dança
compulsivamente7 ao longo dos meses que antecederam a sua hospitalização, como
forma de afirmar e preservar a sua sanidade mental: “Eu não morri para a arte. Aqui,
estou mais vivo do que antes” (227). Henry Miller coloca os Cadernos de Nijinsky entre
os cem livros que mais o influenciaram, e declara:
It is the writing of a man who is part lucid, part mad. It is a communication so naked, so desperate,
that it breaks the mold. We are face to face with reality, and it is almost unbearable. The
technique, so utterly personal, is one form which every writer can learn. Had he not gone to the
asylum, had this been merely his baptismal work, we would have in Nijinsky a writer equal to the
dancer (1969: 108).
Nesta linha de pensamento, Joan Acocella, editora inglesa dos Cadernos de
Nijinsky, considera que o seu “diário” é o único, escrito por um artista maior, que
testemunha a experiência de entrar no mundo da psicose em tempo real, e não em
retrospetiva (1999: VII). De facto, já G. S. Solpray, o editor da primeira versão francesa,
definia o texto como o “testemunho único de um esquizofrénico sobre si mesmo” (apud
Abreu 2004: 183). Em parte, as Memórias de um Doente dos Nervos de Daniel Paul
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Schreber, publicadas em 1903, constituem um relato autobiográfico das experiências,
visões e estádios da doença nervosa que Schreber, um conceituado jurista, sofreu
durante dez anos de internamento num sanatório com o diagnóstico de dementia
paranoides. No entanto, este relato não foi escrito ao longo da doença, mas já no seu final
e, portanto, em retrospetiva. Schreber considerava que o seu testemunho era “valioso
para a ciência” (1984: 20) e que se tornaria numa das “obras mais interessantes que já
foram escritas desde que o mundo existe” (7).
Na verdade, o seu livro só ficou realmente famoso quando Sigmund Freud
publicou em 1911 uma análise psicanalítica do jurista apenas a partir das suas
memórias. Deste modo, Freud interpreta psicanaliticamente a história clínica que o
próprio Schreber escreveu, e sintetiza que o paciente apresenta traços de megalomania,
delírios de perseguição e a vulgar fantasia de Redentor da humanidade, juntamente com
a crença de que uma catástrofe apocalíptica estaria iminente. Uma das catástrofes
previstas por Schreber seria um enorme terramoto, como na profecia de Nijinsky e no
Apocalipse de S. João. Freud conclui que este tipo de alucinação não é incomum em
doentes que sofram de paranoia e que o fim do mundo que profetizam é uma projeção
da catástrofe interna que sofrem: “A world-catastrophe of this kind is not infrequent
during agitated stage in other cases of paranoia (…) The end of the world is the
projection of this internal catastrophe; his subjective world has come to an end” (1958:
60-70).
Concluindo, podemos pensar que esta explicação também se aplica a Nijinsky: é o
caos da sua vida interior que provoca a visão apocalíptica do mundo. Com efeito, o que o
“Deus da dança” mais temia não era a morte física, mas os sofrimentos da alma: “Os
sofrimentos da alma são uma coisa terrível (…) a morte do corpo não é uma coisa
terrível (…) A morte não é só quando o corpo morre” (Nijinsky 2004: 96, 133). De forma
semelhante, Mário de Sá-Carneiro, partilhando as angústias da alma com o bailarino
russo, dirá:
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
(…)
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Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço… (2010: 23-6).
Bibliografia
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apresentada à Universidade Nova de Lisboa, através da Faculdade de Ciências Sociais e
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Sofia Mota Freitas é doutoranda em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É licenciada em Estudos Portugueses e
Lusófonos e concluiu o mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes na mesma
instituição, com a dissertação O Imaginário e a Representação da Dança em Mário de Sá-
Carneiro. As suas áreas de interesse são a Literatura Portuguesa, os Estudos
Interartísticos e os Estudos Feministas.
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Notas
1 Na verdade, Nijinsky teve de esperar bem mais do que os vinte anos previstos por Sá-Carneiro no poema “Caranguejola”: “Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda” (1937:113). A estudiosa Joan Acocella, na introdução à edição inglesa (não expurgada) dos Cadernos de Nijinsky, afirma que só nos anos ‘70 o bailarino foi reconhecido como um coreógrafo genial:
the idea of Nijinsky as a bolt from the beyond was based almost wholly on his dancing, not on his choreography, which very few people estimated at what seems to have been its true worth until the 1970s, with the publication of Richard Buckle’s biography Nijinsky and, above all, Lincoln Kirstein’s Nijinsky Dancing
(1999: XLIII).
2 Note-se que é muito provável que Nijinsky tivesse uma predisposição genética favorável à sua doença mental, uma vez que já em criança apresentava comportamentos com caraterísticas esquizoides e o seu irmão mais velho – Stanislav (ou Stassik) –, após sofrer um traumatismo craniano em criança, ficou mentalmente debilitado para toda a vida (Jackson 2015: 51). Joan Acocella também reflete sobre este assunto e sintetiza a opinião do psiquiatra Peter Ostwald que escreveu uma biografia – Vaslav Nijinsky. A leap into madness – com base nos dados clínicos do bailarino: “the dancer may have had a genetic predisposition to depression, through his mother (…) Ostwald also raises the possibility that Nijinsky may have suffered brain damage as a result of a serious fall that he took at age twelve” (1999: XIV). 3 Nijinsky foi aceite aos nove anos na Escola Imperial de Bailado de São Petersburgo, após realizar as difíceis provas de admissão (Moore 2013: 15). 4 Na verdade, não há qualquer certeza quanto a estas datas, uma vez que somente o terceiro caderno apresenta a data do início da sua escrita: 27 de fevereiro de 1919. Para mais informações ver a “Introdução” de Christian Dumais-Lvowski aos Cadernos de Nijinsky. 5 Para uma abordagem psicanalítica do diário de Nijinsky veja-se o artigo de Murray Jackson – “Vaslav Nijinsky: living for the eyes of the other” – incluído em Creativity and Psychotic States in Exceptional People. 6 José Gil, no seu livro Movimento Total. O corpo e a dança, reflete brevemente sobre os desenhos de Nijinsky, fazendo uma síntese das críticas que rodeiam este tipo de produção artística do bailarino:
Duas conceções opostas dividem em geral os poucos trabalhos que existem sobre os trabalhos de Nijinsky: ou são considerados como testemunhos clínicos da sua “esquizofrenia”, puras manifestações “psicopáticas” sem qualquer valor artístico; ou, pelo contrário, são vistos como mais uma expressão genial (…) de um ser de exceção, de grande cultura artística e literária (2001: 251).
O ensaísta salienta ainda que os seus desenhos estão profundamente ligados à dança e que são, de forma geral, prolongamentos do seu pensamento enquanto coreógrafo, ou seja, podem ser tidos como “projeções geométricas do espaço coreográfico” (253). 7 Além do relato de Romola que confirma a rotina de trabalho diário de Nijinsky, o próprio escreve no seu diário: “Escrevo muito. Desenho muito. Danço muito. Falo muito. Aborreço-me muito. Choro muito” (2004: 227).
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