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Guimarães Rosa Índia Budismo Grande Sertão: Veredas.
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
FACULDADE DE LETRAS
BRUNO MAZOLINI DE BARROS
A EXISTNCIA ILUSRIA DO DIABO EM GRANDE SERTO: VEREDAS: RASTROS BUDISTAS NA OBRA DE JOO GUIMARES ROSA
Porto Alegre 2014
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
FACULDADE DE LETRAS
BRUNO MAZOLINI DE BARROS
A EXISTNCIA ILUSRIA DO DIABO EM GRANDE SERTO: VEREDAS: RASTROS BUDISTAS NA OBRA DE JOO GUIMARES ROSA
Dissertao apresentada como requisito para a obteno do grau de Mestre em Letras, rea de concentrao Teoria da Literatura, pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Letras da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria Lisboa de Mello
Porto Alegre 2014
BRUNO MAZOLINI DE BARROS
A EXISTNCIA ILUSRIA DO DIABO EM GRANDE SERTO: VEREDAS: RASTROS BUDISTAS NA OBRA DE JOO GUIMARES ROSA
Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Letras, rea de concentrao Teoria da Literatura, pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Letras da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.
Aprovada em ___ de _____________ de 2014.
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________ Profa. Dra. Ana Maria Lisboa de Mello (Orientadora) PUCRS
___________________________________________ Profa. Dra Maria Tereza Amodeo PUCRS
___________________________________________ Prof. Dr. Demtrio Alves Paz - UFFS
Porto Alegre 2014
Para Andra Lima, Jane Tromge e Jigme Tromge.
Sempre.
AGRADECIMENTOS
De maneira geral, a todos dos meus pais at algum profissional da sade
desconhecido que possibilitaram a sustentao da minha vida, das mais
diferentes maneiras, ao longo de quase trinta anos, especialmente em 2012.
A todos os professores que, generosamente, dispuseram do seu vigor,
conhecimento e compaixo para fazer com que uma criana que no sabia ler
conseguisse construir algum conhecimento para dar rumo sua prpria vida. Em
especial, aos professores budistas que ainda no abandonaram um estudante de
capacidade e conduta duvidosas como eu.
A todos os professores da FACCAT, especialmente Profa. Luciane Wagner
Raupp, o dedicado suporte no desenvolvimento inicial deste projeto, como um
trabalho de concluso de curso.
Profa. Ana Maria Lisboa de Mello, a coragem em aceitar a proposta para a
dissertao, a pacincia com o orientando e o encanto que gera toda vez que fala de
qualquer texto literrio.
Profa. Maria Eunice, com grande admirao.
Ao Prof. Carlos Reis, a erudio, clareza e disponibilidade.
Ao Prof. Ricardo Kralik, os produtivos encontros lusitanos.
Profa. Maria Tereza Amodeo, Profa. Regina Kohlrausch e ao Prof.
Ricardo Barberena.
A todos os colegas que, junto aos professores, tornaram as aulas verdadeiras
aulas; que foram companheiros seja para discutir um texto literrio, seja para fazer
uma visita.
Aos funcionrios da PUCRS e CAPES, o financiamento da bolsa.
Ao Dr. Charles Reidner, Dra. Beatriz Seligman e, especialmente, Dra.
Andra Moretto. A todos os enfermeiros e funcionrios da Santa Casa e do Instituto
Kaplan.
A todos que fizeram com que eu chegasse em Porto Alegre a cada semana.
A todos que me hospedaram na cidade nestes dois anos: Dbora, Nenung,
Helena, Luciano, Letcia, Graa, Edleusa, Rita, Fbio.
Mas o dono do stio, que no sabia ler nem escrever, assim mesmo possua um livro, capeado em couro, que se chamava
o Senclr das Ilhas, e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance,
porque antes eu s tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinrias.
Grande serto: veredas, Joo Guimares Rosa
Mas tem que ser assim: s podemos compreender o essencial partindo dos detalhes, esta a experincia que tirei tanto dos
livros como da vida. preciso conhecer todos os detalhes, porque nunca se pode saber qual ser importante depois, e
que palavras esclarecero alguma coisa.
As brasas, Sndor Mrai
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo investigar os rastros de budismo em
produes de Joo Guimares Rosa, como alguns poemas de Magma, o conto
Minha gente, de Sagarana, o prefcio Aletria e Hermenutica, de Tutamia, e a
narrativa Cipango, de Ave, Palavra, e, com base nelas, demonstrar a presena de
um aspecto da filosofia budista a ideia de existncia ilusria dos fenmenos
em Grande serto: veredas, condensado em um raciocnio de Riobaldo sobre a
existncia do diabo. Lidas atravs do conceito de paradigma indicirio de Carlo
Ginzburg, em que informaes marginais de uma obra podem revelar um dado
maior, as referncias ao Buda e ao budismo, apontadas nessa pesquisa, explicitaro
que a presena budista no meramente perifrica na obra do autor, mas, inclusive,
significativa para a construo de uma proposta de leitura de Grande serto:
veredas.
Palavras-chave: Grande serto: veredas. Joo Guimares Rosa. Budismo. Iluso.
ABSTRACT
The present study aims to investigate the traces of Buddhism in the work of Joo
Guimares Rosa, as in some poems of Magma, in the short story "Minha gente",
from Sagarana, in the preface "Aletria e Hermenutica", from Tutamia, and in the
narrative "Cipango" of Ave, Palavra, and, based on them, demonstrate the presence
of one aspect of Buddhist philosophy the idea of the illusory existence of
phenomena in Grande serto: veredas, condensed in a reasoning of Riobaldo on
the existence of the devil. Read through the concept of evidence paradigm of Carlo
Ginzburg, in which marginal data of a work may reveal a larger information, the
references to Buddha and Buddhism, which are highlighted in this research, would
spell out that the Buddhist presence is not merely peripheral on the work of the
author, but is even significant for the construction of a reading proposal for Grande
serto: veredas.
Keywords: Grande serto: veredas; Joo Guimares Rosa; Buddhism; Illusion
SUMRIO
1 INTRODUO: UMA MANEIRA DE LIDAR COM O BUDISMO NO SERTO ..... 9 2 PEGADAS DE BUDA NO SERTO ...................................................................... 16 2.1 RASTROS NAS VEREDAS ................................................................................ 16 2.2 O PACTO DE GUIMARES ROSA COM O BUDISMO ..................................... 21 2.2.1 Tutamia: a orientao .................................................................................. 23 2.2.2 Magma: o Oriente na poesia ......................................................................... 27 2.2.3 Sagarana: Buda no meio da nossa gente .................................................... 34 2.2.4 Ave, palavra: Buda no cerrado ..................................................................... 38 3 DIABO E BUDA NO REDEMUNHO DE GRANDE SERTO: VEREDAS ............ 41 3.1 OS POSSVEIS CAMINHOS DO DEMO ............................................................ 41 3.2 UM BUDISMO QUE CABE NO SERTO ........................................................... 44 4 (DES)CRENA DE RIOBALDO ACERCA DA EXISTNCIA DO DIABO ............ 54 4.1 O DIABO NO EXISTE ....................................................................................... 54 4.2 O DIABO EXISTE ................................................................................................ 57 5 A MEDIDA DA EXISTNCIA DO DIABO ............................................................... 61 5.1. A VISO BUDISTA NO SERTO ...................................................................... 62 5.1.1 Diabo composto ............................................................................................. 62 5.1.2 Diabo dependente .......................................................................................... 65 5.1.3 Diabo impermanente ...................................................................................... 67 5.2 RIOBALDO: SERTANEJO ERUDITO? ............................................................... 70 5.2.1 Conscincia da impermanncia de tudo .......................................................... 73 5.2.2 A existncia ilusria do diabo ........................................................................... 76 6 UM JAGUNO DE INSIGHTS ............................................................................... 80 6.1 CONFLITOS E TRANSFORMAES ................................................................ 84 6.2 TUDO ILUSRIO ............................................................................................. 88 7 CONCLUSO: RIOS DE INTERPRETAO ....................................................... 92 REFERNCIAS ......................................................................................................... 97
9
1 INTRODUO: UMA MANEIRA DE LIDAR COM O BUDISMO NO SERTO
O quo inusitado, ou descabido, pode ser afirmar que o raciocnio do famoso
jaguno de Grande serto: veredas (2006) , no mnimo, muito prximo da viso
budista sobre a existncia dos fenmenos? Como, no interior de Minas Gerais,
Riobaldo vai articular um pensamento formalizado sculos antes, na ndia?
Em primeiro lugar, a apario de Buda e do budismo em literatura de lngua
portuguesa no algo to incomum. Ela observada em produes literrias que
datam, pelo menos, desde o sculo XIX, atravessando o sculo XX e chegando ao
sculo XXI. Mesmo que bastante incidentais tanto em relao ao texto em que
aparecem quanto obra de alguns autores essas aparies demonstram como
isso no algo particular obra de Guimares Rosa, e que Buda j tem um
caminho, mesmo que curto e um tanto discreto, na literatura de lngua portuguesa.
Em Portugal, em A correspondncia de Fradique Mendes, de Ea de Queiroz
(2009), o narrador discute a possvel superioridade do entendimento do budismo
acerca da bondade em relao ao cristianismo. Ainda no sculo XIX, no Brasil,
pode-se apontar o caso dos poemas de Eu, de Augusto dos Anjos (2010), no qual
cinco referncias explcitas podem ser identificadas.
No sculo XX, o texto de Fernando Pessoa (1995) intitulado Sakyamuni,
postumamente publicado, em que o poeta portugus trata de alguns aspectos da
doutrina budista, pode ser um exemplo da presena de Buda na literatura de lngua
portuguesa. Outro caso a discreta apario no poema Ex-voto, em Orculos de
maio, de Adlia Prado (1999), em que o eu-lrico confessa a incapacidade de se
tornar budista. H a referncia tambm no poema Sem budismo, de Distrado
venceremos, de Paulo Leminski (2013). Um caso na prosa brasileira, por exemplo,
o romance de Joo Ubaldo Ribeiro (1999), A casa dos budas ditosos, cuja narradora
no deixa de explicitar o impacto que esttuas de budas, que viu em um templo
chins, causaram em sua vida esse templo d nome ao romance.
No sculo XXI, em apenas uma dcada, as aparies persistem: em
Monglia, de Bernardo Carvalho (2003), o narrador observa a peculiar manifestao
do budismo no pas asitico que d ttulo ao texto. Em Barba ensopada de sangue, a
personagem que no reconhece face nenhuma, nem a prpria, criada por Daniel
Galera (2012), entra em contato e questiona alguns pontos dos ensinamentos de
Buda no balnerio de Garopaba, em Santa Catarina. J em Hani, um ex-monge
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budista do Vietn e seu objeto de f cruzam a vida do protagonista David, filho de
brasileiro, em Chicago, no romance de Adriana Lisboa (2013)1.
Em segundo lugar, a presena budista em Grande serto: veredas j foi
indicada por relevantes estudiosos da obra do autor mineiro. Antes de enumerar
alguns desses apontamentos, no entanto, vale observar as diferentes linhas de
estudos que predominam em relao ao romance de Guimares Rosa e como a
proposta de analisar o raciocnio de Riobaldo, alinhada filosofia budista, pode
seguir veredas j mapeadas.
Wille Bolle (2004), em grandeserto.br, prope demonstrar como o romance de
Joo Guimares Rosa um retrato do Brasil, um romance de formao do pas. A
fim de situar sua prpria proposta no quadro de estudos sobre Grande serto:
veredas, Bolle sistematiza o que seriam as cinco abordagens recorrentes sobre a
obra de Guimares Rosa.
A primeira maneira de abordagem composta pelas linhas de estudos
lingusticos e estilsticos, que visam subsidiar a interpretao do texto. A segunda,
pelas abordagens de gnero, composio e estrutura textuais, que buscam dar
conta da intertextualidade e situar o texto no universo literrio. A terceira, pela crtica
gentica, que busca elucidar o processo de criao da obra. A quarta, pelas
interpretaes esotricas, mitolgicas e metafsicas. A quinta, pelas interpretaes
sociolgicas, histricas e polticas.
Para Bolle, nos ltimos anos, houve uma polarizao dessas duas ltimas
linhas, sendo a quarta uma tendncia recorrente na interpretao do romance. O
autor afirma, por exemplo, que na questo de anlise sobre o pacto com o diabo, at
a apresentao de seu trabalho, a anlise histrica foi eclipsada por uma
sobrevalorizao dos aspectos existenciais, esotricos, msticos e metafsicos
(BOLLE, 2004, p. 147).
Provavelmente, a princpio, este trabalho poderia ser encaixado na quarta
categoria, pelo fato de abordar a questo da presena de elementos budistas na
obra de Guimares Rosa. No entanto, este estudo no se resume a isso, visto que
questes intertextuais e de composio da obra tambm foram levadas em
considerao na anlise das referncias budistas, alm de elementos de estudos 1 Esses so apenas exemplos que visam ilustrar a presena de elementos budistas na produo literria em portugus, e esta breve enumerao no se prope a abarcar a totalidade de obras com esse tipo de elementos e, muito menos, julgar a importncia deles na interpretao de cada um desses textos.
11
lingusticos terem sido usados como suporte na interpretao. H, ainda, o fato de
que alguns apontamentos que do suporte a esta dissertao vm de estudiosos
que Bolle exemplifica como representantes de grupos de interpretaes
sociolgicas, como Walnice Galvo, pioneira nesse tipo de crtica.
Por um lado, por diversos motivos, no se prope aqui um ensaio com a
abrangncia do estudo de Bolle (2004, p. 148), o qual visa extrair dos elementos
esotricos, mticos e metafsicos conhecimentos histricos, polticos e sociais; por
outro, com a presente proposta, mais elementos so explicitados para que outras
interpretaes e estudos possam surgir e, talvez, outros conhecimentos histricos,
polticos e sociais possam, futuramente, ser extrados das obras de Guimares
Rosa.
O estudioso alemo, explicitando uma das bases de sua proposta de
interpretao de Grande serto: veredas, traz Os sertes como uma obra precursora
do romance de Rosa e afirma:
No est em jogo, bem entendido, nenhuma relao causal, gentica ou determinista entre as duas obras, algo que possa ser empiricamente comprovado, mas uma afinidade eletiva, uma relao intertextual, cujo pano de fundo so dimenses mais abrangentes, como a questo do gnero retratos do Brasil e um presumvel projeto emancipatrio da literatura brasileira. Assim concebido, o mtodo comparado e contrastivo pode se tornar um procedimento heurstico bastante frutfero nesta anlise e interpretao do romance de Guimares Rosa (BOLLE, 2004, p. 30).
Este trabalho prope, em certa medida, algo semelhante ao que Bolle
realizou, apesar de os dois estudos estarem em campos diferentes e de possurem
abrangncias especficas. No se busca comprovar, aqui, com total certeza, que
budismo o que Riobaldo diz, apesar de serem evidentes as marcas de budismo em
outros textos do autor mineiro. Ou seja, no o ponto afirmar que Guimares Rosa
usou, indubitavelmente, budismo na composio do romance. No entanto, seguindo
marcas budistas na obra do autor e estabelecendo relaes intertextuais, prope-se
ento uma outra interpretao, e no uma leitura absoluta e redutora, sobre a forma
como o diabo existe em Grande serto: veredas e sobre como isso construdo,
tanto dentro do prprio romance quanto, de certa forma, em um panorama de textos
do autor.
Raffaela
RaffaelaNotaBem como pretendido por mim e com apoio na hermenutica de Gadamer e com os nveis, dentre eles o subliminar, apontado pelo meu orientador Dilip Loundo em Dilogos Tropicais.
12
Dessa maneira, usando de diferentes linhas de abordagem crtica da obra do
autor mineiro, alm de dados explcitos de sua poesia e narrativa, pode-se identificar
uma sinalizao de que Buda deixou pegadas no serto de Guimares Rosa.
O primeiro exemplo de como essa presena budista na produo do mineiro
j foi indicada pela fortuna crtica a obra As formas do falso, de Walnice Galvo
(1972), autora representante tanto de leituras de crtica gentica quanto sociolgicas
de Grande serto: veredas. Em seu estudo, Galvo (1972, p. 14) afirma que
Riobaldo detm uma concepo metafsica veiculada pelo espiritismo popular, mas
que tem a sofisticao do budismo e das ideias de Herclito e que as diversas
histrias que se emaranham no incio do romance como a de Joo Pind e de
Maria Mutema lembram alguns textos budistas e confucianos.
Joo Adolfo Hansen (apud DICK; FACHIN, 2008), outro estudioso da obra de
Joo Guimares Rosa, ao ser perguntado sobre como essa narrativa dialoga com
outras obras, afirma que h [...] muita coisa oriental, hindusta, budista etc. no
romance. Tanto Hansen quanto Galvo no apontam direta e extensivamente ou
porque no se propem ou porque no era relevante no momento em questo, para
os seus estudos o que h de budismo e como isso est articulado na obra do
autor mineiro.
J Francis Utza (1994) o faz, de certa maneira, quando explicita relaes do
budismo zen com o Aikid como as noes de Budos em personagens
secundrias da obra. Mas essas relaes, assim como as personagens que cita, so
pouco relevantes no entendimento da obra como um todo por meio da filosofia
budista, pois lidam com situaes ou personagens bem pontuais do romance, e no
com um escopo maior. Para Utza (1994, p. 167), Vupes, o alemo, porta valores
da filosofia dos Budos: embora domine perfeitamente as tcnicas, conhece a
superioridade do esprito sobre a fora bruta e, como os monges zen, se desloca
sem armas. Outro personagem o do-Zabudo, cujas caractersticas e o prprio
nome trazem marcas dos Budos e do zazen2.
A presena budista em Grande serto: veredas, no entanto, no se restringe
noo de Budos e construo de uma personagem secundria do romance. H, no
raciocnio de Riobaldo sobre a existncia do diabo, uma familiaridade grande com
2 A ideia de Budos, ou o caminho do combate, est presente, por exemplo, na base filosfica de artes marciais como o Aikid, e est calcada na busca da superao da dualidade vencedor-vencido. Zazen a disciplina meditativa do budismo zen.
13
um aspecto da filosofia budista desenvolvido extensivamente pela escola filosfica
indiana Madhyamika.3 Essa viso budista possui nuanas complexas no s
filosficas, mas tambm histrico-culturais e, aqui, a fim de explicitar a presena
da viso budista no romance, s um recorte da filosofia ser tomado como objeto de
estudo. Basicamente, essa escola filosfica vai refutar argumentos ao invs de
propor ideias em si que postulam a existncia ou uma no existncia intrnseca
dos fenmenos. Uma das formas de refutao a essas postulaes a anlise das
caractersticas de permanncia, de dependncia e de composio dos fenmenos,
que, se no possurem essas trs qualidades, so considerados desprovidos de
uma existncia verdadeira.
Essas trs caractersticas so as mesmas que Riobaldo analisa no diabo, j no
incio do romance. Porm, chegar concluso ou ao mero apontamento de que o
raciocnio do jaguno Riobaldo sobre a existncia do diabo muito prximo do
seno o prprio raciocnio budista sobre a existncia dos fenmenos uma tarefa
relativamente arriscada. Porque fogem vista do leitor, e do prprio pesquisador,
todas as estratgias de construo ficcional e toda a bagagem intelectual de Joo
Guimares Rosa, e, assim, realizar a aproximao entre uma narrativa Roseana e
um aspecto da filosofia budista significa tentar desbravar um terreno delicado,
veredas talvez infindveis, bastante perigosas.
Perpassam tanto o romance quanto o restante da obra do autor elementos
culturais, religiosos e filosficos das mais diversas origens, e a explicitao desse
raciocnio budista em Grande serto: veredas no visa anular a coerncia dessas
outras vises ou negar a presena delas no romance. De qualquer maneira, no h
como afirmar categoricamente que filosofia budista o que Riobaldo articula ao seu
interlocutor. H, porm, como Carlo Ginzburg (1989) sugere em Sinais: razes de
um paradigma indicirio, captulo de Mitos, emblemas e sinais: morfologia e histria,
o caminho de seguir, pelas obras do escritor mineiro, rastros, indcios que do
suporte a essa proposta. Segui-los no significa, no entanto, somente us-los para
levantar a hiptese: como o prprio historiador italiano declara, esses rastros so a
confirmao da hiptese em si.
Assim sendo, a primeira parte deste trabalho corresponde ao mapeamento dos
3 Ou Caminho do Meio. Proeminente escola filosfica budista estabelecida por Nagarjuna, no sculo II, na ndia. Faz parte da base filosficas de tradies budistas do Japo, da China e do Tibete, por exemplo.
14
rastros. O critrio de seleo em relao a eles foi o fato de serem referncias
explcitas ao budismo. Isso significa que no foram levadas em considerao, como
presena budista na obra do autor, possveis interpretaes de algum texto, mas
somente ndices compostos pelas palavras Buda, budismo, zen etc.
A pesquisa lida com rastros de budismo em poemas de Magma (1997), em
uma novela de Sagarana (2001b), em um prefcio de Tutamia (2001c) e em uma
narrativa de Ave, palavra (2001a). Cada uma dessas marcas budistas no texto de
Guimares Rosa possui um grau de importncia diferente; no entanto, tomando-as
em conjunto, elas parecem apresentar o seguinte padro, que se provou til na
anlise da identificao de um possvel raciocnio budista nas divagaes de
Riobaldo sobre a existncia do diabo: a possibilidade da presena do elemento
oriental no serto, a presena de um narrador erudito e o fato de o elemento oriental
estar ligado a um processo de transformao. Esse padro aparece tambm em
Orientao, conto de Tutamia, que narra a passagem de um chins pelo interior
de Minas Gerais.
Na segunda parte, abordada a questo da presena do diabo no romance e a
forma de budismo que d suporte anlise proposta. O diabo, no romance de
Guimares Rosa, como apontado por crticos como Antonio Candido, Walnice
Galvo, Kathrin Rosenfield, tem um papel crucial no texto, e a presena dele no
significativa somente como elemento folclrico ou religioso. Em Grande serto:
veredas, o diabo o elemento que, ao ser analisado por Riobaldo, desencadeia
questionamentos profundos no ex-jaguno.
Esses questionamentos so os que podem ser tomados como uma possvel
presena budista no romance. Para melhor analis-los, ainda na segunda parte, h
uma apresentao de o que poderia ser a base do budismo e dos apontamentos da
escola filosfica Madhyamaka.
Aps a identificao dos rastros, a delimitao de seus padres e do
esclarecimento tanto da faceta do budismo quanto da faceta do diabo, chega-se ao
corpo principal da dissertao: a discusso sobre a forma como o diabo existe,
segundo o raciocnio de Riobaldo, em Grande serto: veredas. Pretende-se mostrar,
no presente estudo, um fundamento para o raciocnio, um recorte especfico que
representaria a anlise do jaguno sobre a existncia ilusria do diabo. medida
que essa base explicitada, ela precisa ser confrontada com os argumentos
budistas. Esse confrontamento o que poder proporcionar uma melhor visibilidade
RaffaelaRealce
15
presena do conceito budista de iluso no romance de Guimares Rosa.
Ainda nesse momento do trabalho, ser discutido o tipo de erudio de
Riobaldo, o tipo de conhecimento e mtodo que permitiria um jaguno raciocinar de
modo semelhante filosofia Madhyamaka. Alm disso, outros insights de Riobaldo
sero abordados, alinhados a algumas ideias budistas.
Amealhando todos esses dados, pode-se chegar s seguintes questes: isso
tudo compromete a interpretao do romance? Como? Ou essas questes no
passam de um detalhe irrelevante na obra do autor? Com o alinhamento da proposta
de anlise da existncia do diabo, uma questo crucial do romance, ao raciocnio
budista sobre a existncia ilusria dos fenmenos, outros elementos de Grande
serto: veredas e a prpria interpretao da narrativa ganham outro significado,
explicitando, assim, a fora polissmica da literatura de Joo Guimares Rosa.
16
2 PEGADAS DE BUDA NO SERTO
Era uma silenciosa invaso. Cipango, Ave, palavra, Joo Guimares Rosa
2.1 RASTROS NAS VEREDAS
Carlo Ginzburg (1989), em Sinais: razes de um paradigma indicirio, captulo
de Mitos, emblemas e sinais: morfologia e histria, explica como seguir rastros , na
verdade, um modelo epistemolgico ou mesmo um paradigma de pesquisa. O
formalizador desse mtodo ainda usado na histria da arte seria Giovani
Morelli, quem sistematizou e usou esse modelo no sculo XIX.
Morelli desejava atribuir aos quadros de museus europeus muitos sem
assinatura, outros repintados ou mal conservados, e de difcil distino entre o
original e sua cpia os seus verdadeiros autores. Para tanto, ele indicava que se
basear nas caractersticas mais comuns e identificveis das obras do artista o
caminho normalmente tomado no poderia ser a melhor opo, visto que elas
so, talvez, as mais imitveis. O italiano afirmava que o ideal seria prestar ateno
nos pormenores pouco chamativos, detalhes e dados que no corresponderiam aos
aspectos mais comuns da obra ou da tendncia esttica a qual o artista estaria
engajado. Assim, ao dar valor a esses detalhes em relao ao conjunto da obra, era
possvel ento revelar a autoria de uma determinada pea.
O conhecedor de arte seria como Sherlock Holmes, o detetive de Conan Doyle,
que desvenda o crime por meio de dados que so imperceptveis maioria das
pessoas. Mas Ginzburg ressalta que o mtodo no to ingnuo quanto parece. O
autor d destaque relao que Sigmund Freud (1995, p. 228) estabelece entre a
psicanlise e o paradigma de Morelli em O Moiss de Michelangelo:
Parece-me que seu mtodo de investigao tem estreita relao com a tcnica da psicanlise, que tambm est acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de aspectos menosprezados ou inobservados, do monte de lixo, por assim dizer, de nossas observaes.
Esse mtodo detetivesco que lida com informaes marginais uma
abordagem muito prxima da psicanlise o que vai embasar a aproximao
entre o raciocnio de Riobaldo e um aspecto da filosofia budista.
Os ensaios de Morelli continham a proposta de:
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(...) um mtodo interpretativo centrado sobre os resduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, os pormenores normalmente considerados sem importncia, ou at triviais, baixos, forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do esprito humano (GINZBURG, 1989, p. 149-150).
Nada mais residual do que a presena do budismo na obra de um autor cujas
referncias eruditas como as filosficas e as literrias e as populares a
pitoresca cultura do serto tm projeo e reconhecimento vlidos tanto para
leitores comuns quanto para a crtica especializada. Essa residualidade que
aparece em Sagarana e em Tutamia, por exemplo a que vai, junto com
elementos do prprio romance, legitimar a interpretao de um dos questionamentos
do esprito humano que surgiram ao longo da histria a real existncia ou a no
existncia dos fenmenos , que est corporificado, no caso, em Grande serto:
veredas, na figura do diabo.
Juntar rastros e chegar a uma concluso por meio deles o que o gesto
talvez mais antigo da histria intelectual do gnero humano: o do caador agachado
na lama, que escruta as pistas da presa (GINZBURG, 1989, p. 154) gerar,
segundo Ginzburg (1989, p. 152), um saber venatrio, que a capacidade de, a
partir de dados aparentemente negligenciveis, remontar a uma realidade complexa
no experimentvel diretamente. Assim, essa decifrao de cunho venatrio se d
por meio da anlise da parte pelo todo ou do efeito pela causa. Vrios indcios da
presena de budismo na obra de Guimares Rosa legitimam uma interpretao de
uma das facetas do romance do autor.
Apesar de o mtodo de Morelli ter sido bastante criticado na poca, embora
tivesse sido operado com frequncia, mas de no ter sido teorizado formalmente at
os escritos do italiano, Ginzburg ressalta que esse mtodo base de muitas
disciplinas indicirias reconhecidas, como a medicina, a paleontologia, a filologia e a
crtica textual, por exemplo.
O autor salienta tambm a diferena entre seguir meros rastros e pegadas para
caar e a anlise da escrita, das pinturas e dos discursos, nos quais o mtodo de
Morelli se prope a revelar um sinal mais certo da individualidade do artista
(GINZBURG, 1989, 171). Este no o caso, no momento, mas sim seguir os rastros
do budismo na obra de Guimares Rosa para elucidar um raciocnio de Riobaldo
sobre a existncia do diabo. No entanto, no se deixa de explicitar, indiretamente, o
RaffaelaRealce
RaffaelaNotaSer que esses resduos precisam necessariamente estabelecer uma ligao ou uma concluso no pensamento mais completo e complexo presente no romance Grande Serto? Ou, poderamos considerar que esses rastros so por si prprios grandes expresses da filosofia budista e indiana?
18
que talvez possa ser uma caracterstica peculiar do autor.
Outro dado que Ginzburg levanta sobre o paradigma indicirio a possibilidade
do rigor nesse tipo de investigao; rigor que, desde Galileu, tem orientao
quantitativa e antropocntrica e coloca as cincias humanas no dilema entre a
fragilidade de uma cincia pouco vigorosa, com resultados relevantes, em relao a
uma cincia forte, com resultados irrelevantes. De qualquer forma, o autor acredita
que, seja para seguir os rastros de um animal ou para analisar uma obra de arte, o
paradigma indicirio tem um rigor flexvel que inelimitvel, visto que:
(...) suas regras no se prestam a ser formalizadas nem ditas. Ningum aprende o ofcio de conhecedor ou diagnosticador limitando-se a pr em prtica regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderveis: faro, golpe de vista, intuio (GINZBURG, 1989, p. 179).
Ginzburg tem conscincia de que o termo intuio perigoso, mas frisa que,
no contexto do paradigma indicirio, ele se refere intuio baixa, em oposio
intuio alta. Esta ltima, limitada a alguns indivduos, seria uma forma de
conhecimento superior no compartilhada por todos. No entanto, a aplicao do
paradigma indicirio por meio da intuio baixa, que no tem nada a ver com a
intuio suprassensvel dos vrios irracionalismos dos sculos XIX e XX
(GINZBURG, 1989, p. 179). Segundo o autor, essa intuio baixa est difundida por
todo o mundo, sem qualquer barreira geogrfica, histrica, tnica, sexual ou de
classe e, por isso, no pertence a um homem especfico.
por meio desse paradigma, percebendo rastros e processos regulares na
obra de Guimares Rosa, que se pode confrontar o raciocnio do jaguno Riobaldo
com a filosofia budista que questiona a maneira como tudo existe. Os rastros,
cronologicamente, esto em Magma, Sagarana, Tutamia e em Ave, palavra. Todos
eles, alm de dados do prprio romance do autor mineiro, permitem aproximar um
raciocnio budista a um raciocnio de Riobaldo sobre a existncia do diabo.
O que significa, porm, para a crtica literria, encontrar rastros budistas na
obra de Guimares Rosa, que eclodem em outra interpretao sobre a existncia do
diabo e talvez de todo o romance em si?
Para Barthes (2009, p. 161), a crtica uma metalinguagem que se debrua
primeiramente sobre o objeto discurso e no sobre o objeto mundo, seja
imaginvel ou no; isso significa que a proposta da crtica no absolutamente
RaffaelaRealce
RaffaelaNotaIrei aprofundar mais minhas leituras nestes e em outros textos citados, entretanto, penso no quo seria interessante um trabalho focado nestes rastros e no apenas em como eles corroboram uma tese preconcebida.
19
descobrir verdades mas somente validades. Assim, baseando-se em rastros
budistas na obra de Guimares Rosa, cabvel propor uma leitura vlida de Grande
serto: veredas. No entanto, por si s, esses vestgios de budismo no eliminam
outras propostas de leitura do romance, j realizadas. O argumento de Barthes
(2009, p. 161, grifos do autor) , novamente, pertinente nessa situao:
Pode-se dizer que a tarefa da crtica (esta a nica garantia de sua universalidade) puramente formal: no consiste em descobrir, na obra ou no autor observado, alguma coisa escondido, de profundo, de secreto, que teria passado desapercebida at ento (por que milagre? somos ns mais perspicazes que nossos predecessores?), mas somente em ajustar, como um bom marceneiro que aproxima apalpando inteligentemente duas peas de um mvel complicado, a linguagem que lhe fornece a sua poca (existencialismo, marxismo, psicanlise) linguagem, isto , ao sistema formal de constrangimentos lgicos elaborados pelo prprio autor segundo sua prpria poca.
Caso no sejam apontados os dados budistas propostos aqui, a leitura de
Grande serto: veredas no estar prejudicada. Apont-los no desvendar um
segredo essencial do romance. Caso esses dados sejam trazidos tona, outra
leitura surge, por exemplo, quando os rastros so coletados e o raciocnio de
Riobaldo sobre a existncia do diabo alinhado, ou ajustado, como Barthes declara,
a um aspecto da filosofia budista. No entanto, isso no uma proposta reveladora
crucial ao entendimento do romance, que elimina interpretaes diversas, sejam de
fundo cabalstico, cristo, histrico ou sociolgico. Se, no tempo de Barthes, a poca
fornecia linguagens como o existencialismo e a psicanlise aos crticos, a poca
atual fornece linguagens com a filosofia budista, mesmo que no extensivamente,
como as citadas anteriormente. De qualquer forma, ao que tudo indica, ao se levar
em conta o que os rastros levantados explicitam, essa linguagem j estava
disponvel, de diferentes formas, para Guimares Rosa.
Assim, a presena budista na saga de Riobaldo uma confirmao, entre
tantas outras, que revela o que Barthes (2007, p. 17-18) declara como as trs foras
da literatura, que se realizam completamente em Grande serto: veredas. Em Aula,
a famosa aula inaugural no Colgio de Frana em 1977, o crtico afirma que a
primeira fora da literatura est no fato de que
20
(...) todas as cincias esto presentes no monumento literrio. nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, absolutamente, categoricamente realista: ela a realidade, isto , o prprio fulgor real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopdica, a literatura faz girar os saberes, no fixa, no fetichiza nenhum deles; ela lhes d um lugar indireto, e esse indireto precioso.
Pelos indcios, pelas formas como eles se manifestam nas narrativas do autor
mineiro, o budismo est, nesse lugar indireto, em Grande serto: veredas. No se
sabe se foi colocado intencionalmente no romance; de qualquer forma, est l,
revelado por meio do paradigma indicirio.
A segunda fora da literatura a capacidade de representao. Para Barthes
(2007, p. 21),
Desde tempos antigos at as tentativas da vanguarda, a literatura se afaina na representao de alguma coisa. O qu? Direi brutamente: o real. O real no representvel, e porque os homens querem constantemente represent-lo por palavras que h uma histria da literatura.
O que Riobaldo uma criao artstica tanto questiona sobre o diabo, ao
aproximar o raciocnio do jaguno com a filosofia budista? A incapacidade de se
apreender o real do diabo, de se condensar uma possvel essncia ou natureza da
existncia do diabo, da ausncia desse real, visto que, como Barthes afirma, o
real no pode ser representvel. Ainda para Barthes (2007, p. 27-28), a terceira
fora
(...) consiste em jogar com os signos em vez de destru-los, em coloc-los numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurana arrebentaram, em suma, em instituir no prprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronmia das coisas.
A articulao entre o raciocnio de Riobaldo e o budismo mostra como mais um
jogo de signos ocorre com as palavras nonada e travessia que, alinhados
anlise da essncia do diabo, do outro significado ao romance , s duas estrelas
na constelao de jogos lingusticos que Guimares Rosa criou para expressar o
real no representvel em lngua portuguesa. Lngua que, como as outras,
segundo Barthes, desptica, controladora, mas, no romance do autor mineiro, tem
o poder subvertido; em Grande serto: veredas, a lngua trapaceada, ela
literatura.
RaffaelaRealce
RaffaelaNotaAcho importante o achado desses indcios, ou seja, alguma indicao da relao entre autor/obra com a cultura indiana, mas pelo que entendi, devo me debruar no no texto, mas na filosofia e seu impacto na literatura estudada, no caso, de Guimares.
21
2.2 O PACTO DE GUIMARES ROSA COM O BUDISMO
O famoso estudo de Antonio Candido (1983, p. 294), O homem dos avessos,
anuncia que h tudo para quem souber ler em Grande serto: veredas. Leituras
sobre a presena do Oriente no romance e em outras obras de Joo Guimares
Rosa so recorrentes na fortuna crtica do autor. Em entrevistas, narrativas e em
outras fontes como cartas, depoimentos de familiares e investigao do seu
esplio , alm dos prprios estudos crticos, encontram-se sempre menes e
anlises ligadas a algum elemento originrio principalmente da ndia, da China ou do
Japo nos textos de Guimares Rosa.
Em narrativas s a ttulo de ilustrao, e no de anlise, neste momento
pode-se citar a presena do imigrante chins em Orientao e do imigrante
japons em Cipango. Nos poemas de Magma, h diversas referncias ao Oriente4
e at mesmo o uso de uma forma potica tradicionalmente japonesa, o haicai.
Em uma das cartas ao tradutor italiano de Corpo de Baile, Guimares Rosa
explicita algumas de suas leituras:
Ora, voc j notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em essncia so antiintelectuais, diferem o altssimo primado da intuio, da revelao, da inspirao, sobre o bruxulear presunoso da inteligncia reflexiva, da razo, a megera cartesiana. Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e So Paulo, com Plato, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff com Cristo, principalmente (BIZZARRI apud ROSENFIELD, 2006a, p. 113).
Em depoimento concedido ao Simpsio Internacional em Comemorao ao
Centenrio de Joo Guimares Rosa, realizado em Berlim, a filha do autor mineiro,
Vilma Guimares Rosa (2009, p. 315), afirma que, mesmo sendo o pai catlico, ele
era ecumnico no seu respeito s outras religies, tendo investigado sobre todas
elas. Ao que os rastros na obra do autor indicam, o budismo est presente nesse
grupo de religies. Na famosa entrevista a Gnter Lorenz (1983, p. 82), enquanto
debatem a noo de existncia de uma brasilidade, Guimares Rosa explicita uma
postura particular em relao religiosidade:
4 Toda vez que se falar em Oriente no presente texto, a referncia ao Extremo Oriente, ou sia Oriental.
RaffaelaRealce
RaffaelaNotaFazer um apanhado de textos do prprio autor e daquele livro sobre depoimentos que est junto aos romances que tenho.
RaffaelaRealce
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Outro exemplo, desta vez referente a mim mesmo, para que voc possa acreditar tranquilamente estou certo de que voc far esta pergunta durante nossa conversa, por isso antecipo a resposta. Eu no sei o que sou. Posso bem ser cristo de confisso sertanista, mas tambm pode ser que eu seja taosta maneira de Cordisburgo, ou um pago crente la Tolstoi.
Na biblioteca do autor, em meio a obras filosficas, crists e judaicas, figuram
obras hindus e uma obra do alemo Karl Neyman sobre Buda, Die Reden Gotamo
Buddhas, publicada em 1924 (UTZA, 1994). Em diversos estudos, com diferentes
nveis de enfoque e relevncia, autores apontam dados relativos presena de
elementos orientais na obra de Guimares Rosa.
Em Corpo de baile, podem-se destacar os textos Cara de bronze e Uma
estria de amor. Suzi Frankl Sperber (1976) aponta diversas relaes entre
passagens da primeira narrativa citada e elementos hindustas da obra Chndogya
Upanishad5, presente na biblioteca do autor; j Heitor Martins (2000) explicita como
h, na segunda, coexistindo com elementos platnicos, uma aluso a um famoso
texto do budismo zen6.
Acerca de Grande serto: veredas, Kathrin Rosenfield (2006b) indica que a
tica de Riobaldo sobre o grupo de jagunos est alm da viso cavalheiresca j
anunciada por outros estudiosos e se aproxima, muitas vezes, de uma
representao muito semelhante a dos gandhravas, mitolgicos seres celestiais da
ndia.
Utza (1994 e 2009) explica e analisa extensivamente dados relacionados ao
taosmo e ao hindusmo no romance de Guimares Rosa e como eles aparecem na
formao de personagens e de nomes e na descrio de espaos da narrativa. Alm
disso, revela essa presena no s em narrativas, mas tambm em depoimentos
pblicos e privados do autor.
Se, por um lado, a possibilidade da existncia de um raciocnio budista em
Grande serto: veredas pode ser considerada um tanto inslita, por outro,
completamente possvel, ao se levar em considerao, alm do j citado
anteriormente, outros dados da obra do autor e do prprio romance. O que pode ser
observado sobre a presena de elementos orientais em geral na obra de Guimares
Rosa vale tambm para os elementos budistas, especificamente: Como de
5 Upanixade so cada um dos livros que contm comentrios, instrues e explicaes sobre os Vedas. 6 Texto formalizado por Kakuan Shien no sculo VII, no qual uma personagem est em busca de um boi que, na verdade, nunca sumiu (MARTINS, 2000).
RaffaelaRealce
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costume, o escritor espalhou pelo seu discurso vrios ndices, a partir dos quais
qualquer ouvinte-leitor atento pode ter condies de construir, pedra por pedra, a
globalidade do sentido que fora voluntariamente ocultado (UTZA, 1994, p. 42).
Como extrair, justificar ou revelar a forma como essa presena budista ocorre
nos textos rosianos? Uma proposta de rumo para essa investigao para se
construir pedra por pedra, como declarou Utza, ou para se seguir cada um dos
rastros, indcios, como Ginzburg (1989) sugere consiste em investigar os
seguintes elementos encontrados no conto Orientao, de Tutamia: (1) a
possibilidade da presena do Oriente no serto; (2) a relao desse elemento com
uma forma de transformao junto ao conflito desse dado oriental com outro
elemento, geralmente do prprio serto; e (3) a presena de um narrador erudito que
traz ou explicita o elemento do Oriente na narrativa.
Ginzburg (1989), como j mencionado, afirma que no h regras prontas nem
metodologia padronizada para a anlise dos indcios. Assim, esses trs elementos
presentes em Tutamia so, aqui, uma espcie de linhas-guia para seguir as
pegadas de Buda e de sua filosofia na literatura de Guimares Rosa e explicitar,
assim, a maneira pela qual o budismo est presente em Grande serto: veredas.
O conto Orientao foi publicado posteriormente ao romance e s outras
produes em que se identificam dados orientais e budistas, e casa uma dessas
presenas possui variaes particulares ou tem todas essas caractersticas. De
qualquer maneira, produes do autor de diferentes perodos comportaram, em
diversos nveis, a presena de Buda ou de sua filosofia dentro da poesia ou dentro
da narrativa de Guimares Rosa.
2.2.1 Tutamia: a orientao
Orientao traz a histria de Quim e Rita. Yao Tsing-Lao um chins que
chega ao interior de Minas Gerais e que se estabelece como cozinheiro na casa do
engenheiro local. Depois de algum tempo, o chins, que passa a ser conhecido
como Quim, consegue desenvolver uma atividade prpria e at se casa com uma
sertaneja, Rita Rola.
No se sabe qual o motivo da vinda de Yao Tsing-Lao para o interior de
Minas Gerais, entretanto ele esteve l, por mais absurdo que isso possa parecer.
Yao Tsing-Lao chegou, viveu e partiu do serto. Como diz o narrador, em puridade
RaffaelaRealce
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24
de verdade consciente da inusitabilidade de o que est contando , um chins
viveu no interior de Minas Gerais.
O Oriente cabe na narrativa no s por meio da presena de uma
personagem chinesa, mas pelo prprio lxico do discurso. O narrador de
Orientao injeta em todo o relato, do comeo ao fim, elementos que remetem
China: pio, bambus, plvora, porcelana, seda, drago, bssola. Assim, na narrativa
ocidental desse narrador, no h somente a histria de um oriental no serto, mas
tambm elementos orientais com uma funo. A presena desse lxico parece ser
uma tentativa de manter o interlocutor ligado ao Oriente (assim como Rita Rola
mantm-se conectada tambm), de maneira que a imagem do local de origem de
Quim no fosse esquecido, mas permanecesse no interior de Minas Gerais, como
permaneceu no de Rita.
Alm disso, Yao Tsing-Lao no foi sempre o mesmo, assim como alguns dos
que o conheceram, durante a sua passagem pelo interior do Brasil. Em sua nova
terra, ele sofreu uma primeira transformao: o nome dele foi facilitado para
Joaquim (ROSA, 2001c, p. 160), um nome em portugus, ganhando, dessa
maneira, uma forma local. Mais tarde, passa a ser chamado de Quim, ainda mais
familiar e informal, o que demonstra familiaridade com ele por parte de quem o
denomina dessa maneira. Depois do trabalho de cozinheiro, Quim prosperou e
tornou-se um pequeno produtor rural, e passou a ser conhecido como Se Quim.
Para cada nome, um homem diferente: Yao Tsing-Lao chins, Quim cozinheiro, Se
Quim proprietrio de chcara. medida que ele assume novos papis na sociedade
para a qual migrou, ganha nomes diferentes e, nesse conto, medida que ele ganha
mais status na sociedade, mais local e significativo o nome do imigrante. Yao
Tsing-Lao est totalmente integrado ao serto, j faz parte da cor local, no
aparecendo como aliengena ou contraditrio a esse espao.
A moa com quem o imigrante se casou Feia, de se ter pena de seu
espelho (ROSA, 2001c, p. 161) , no que alcanou o aparelho fonador de seu
amante, no mais Rita Rola, e sim Lola ou Lita. A partir da transformao do
nome, como ocorreu com o companheiro, vieram outras, concomitantemente: A
gente achava-a de melhor parecer, seno formosura (ROSA, 2001c, p. 161). Depois
do incio do processo de metamorfose da moa, depois de ela semelhar mesmo
Lola-a-Lita (ROSA, 2001c, p. 161), ela passou a ser denominada pelo narrador por
variaes como a Rola, Lolalita, Rola-a-Rita, Rita a Rola e Lola Lita, e no
25
mais por Rita Rola, seu nome original. medida que vai se modificando mais, o
nome vai variando tambm, e assim ela j no a mesma do incio do conto.
A transformao que havia comeado com a paixo, quando a forma de Rita
Tomava porcelana, terracota, ao menos; ou recortada em fosco marfim, mudada de
cpula a fundo (ROSA, 2001c, p. 161), com a separao de Quim, intensifica-se: a
sertaneja assumiu trejeitos orientais, calada levemente, no sbrio e ciente, e s rir
(ROSA, 2001c, p. 163). At o modo de andar mudou, e tinha passo enfeitadinho,
emendado, reto, propinhos p e p (ROSA, 2001c, p. 163). No conto, Quim e Rita
transformaram-se: Rita, casando-se com ele, integra-o completamente sociedade
local e, mais tarde, leva o marido a deixar o local; e ele mesmo que, no final,
involuntariamente torna-a mais chinesa do que nunca.
O elemento oriental no serto no est somente sofrendo transformaes,
ganhando a cor local, mas tambm gerando transformaes em outros. Depois de
se casarem, Quim (que, curiosamente, casou-se de gravata, um elemento de
vesturio tipicamente ocidental) ensinava modos e vestia Rita com indumentrias
orientais: seda, leques. O relacionamento dos dois, no entanto, no suportou
diferenas culturais, e o primeiro motivo de embate que aparece no conto foi o fato
de que a esposa achava que o que h de mais humano a gente se sentar numa
cadeira (ROSA, 2001c, p. 162). Foi difcil para Rita compreender um hbito que o
chins provavelmente mantinha: o de sentar-se de pernas cruzadas ou ficar de
ccoras. H uma incompatibilidade desse hbito oriental com o que a moa
interiorana acredita. Depois do conflito, Quim desaparece, e Rita fica com saudades
e empreende, sozinha, a mudana que o marido talvez ficasse feliz em ver.
Outro dado que precisa ser observado a certa carga de erudio que o
narrador de Orientao possui. A partir da variao fontica gerada pela pronncia
do nome de Rita pelo chins, ele aplica na sertaneja, que se orientaliza, brincando
com o nome dela, a sombra da personagem de uma famosa obra da literatura
ocidental: Lolita. Esse jogo com Lolita revela outros dados: a histria contada
depois de 1955, ou seja, depois da publicao do livro de Vladimir Nabokov, tendo
em vista que a expresso lolita passa a ser aplicada para caracterizar determinado
comportamento e tipo de mulher, a partir da publicao do romance. Alm disso, o
mais importante, revela o nvel de instruo do narrador: se ele sabe aplicar o termo,
pode ter lido o livro. Claro que o modo de ser lolita no est atrelado ao tempo e ao
espao, mas , na narrativa, um cone cultural do Ocidente, aplicado a uma mulher
26
que est em processo de orientalizao. , de certa forma, como se Oriente e
Ocidente no pudessem se separar: ao mesmo tempo em que se torna cada vez
mais chinesa, um cone da cultura ocidental faz parte de sua caracterizao.
O narrador ainda joga, em mais um sinal de erudio, com a famosa
expresso latina veni, vidi, vici. Na narrativa, ela aparece como vindo, vivido, ido
(ROSA, 2001c, p. 160), o que no deixa de aplicar, novamente, uma nova sombra
ocidental dessa vez, a sombra de Csar em uma personagem oriental do
conto.
Tutamia, no entanto, no proporciona somente Orientao, mas um outro
dado mais revelador: a presena de um mecanismo semelhante ao do koan do
budismo zen em anedotas. Segundo o autor mineiro, em Aletria e Hermenutica,
um dos prefcios da obra, as anedotas especialmente as que ele denomina
anedotas de abstrao , por meio do humor, podem conduzir a certa
transcendncia. Em relao ao humor, isso ocorre especialmente porque escanha
os planos da lgica, propondo-nos realidade superior e dimenses para mgicos
novos sistemas de pensamento (ROSA, 2001c, p. 30).
Para ele, a quebra da lgica que ocorre nessas anedotas guarda semelhana
com o mtodo budista, particular da tradio zen, conhecido como koan. No
budismo zen, tradio tipicamente japonesa, o koan uma histria, uma afirmao
ou pergunta absurda ou contraditria, inacessvel ao modo de pensar convencional
(MATTIS-NAMGYEL, 2010). A ttulo de quebrar conceitos e paradigmas do
estudante, o mestre zen apresenta ao aluno um koan, um enigma, sobre o qual o
discpulo precisa meditar, e a funo desse tipo de questionamento explicada pelo
prprio Guimares Rosa (2001c, p. 35, grifo do autor), em uma nota do prefcio:
Sem resposta, s ardilosa, [uma das anedotas contada no prefcio] lembra clebre koan: Atravessa uma moa a rua; ela a irm mais velha, ou a caula? Apondo a mente problemas sem sadas, desses, o que o zenista pretende atingir o satori, iluminao, estado aberto s intuies e reais percepes.
Esse prefcio e os outros, segundo Utza (1994, p. 28) so apresentados
como intervenes diretas aos textos de Tutamia. Apesar de o prefcio parecer
fazer somente uma referncia discreta a esse mtodo budista, ela tem significativa
importncia. Diz Utza (1994, p. 28):
27
Jogadas em notas de rodap, e portanto marginalizadas num texto por definio fora do texto, as observaes sobre o zen mostram-se essenciais para a compreenso deste primeiro prefcio: todas as histrias de loucos, palavras infantis, e outras incurses no absurdo, fora da lgica convencional, so, na verdade, koans suscetveis de facultar o acesso realidade superior.
Tanto o ponto feito pelo autor mineiro quanto o feito pelo estudioso francs
podem ser brevemente ilustrados com elementos de Orientao. O humor aparece
na descrio inicial de Rita, que era Feia, de se ter pena de seu espelho. To feia,
com fossas nasais (ROSA, 2001c, p. 161). Ocorre tambm quando o narrador
descreve, sem deixar de explicitar o mgico da ocorrncia, o incio da transformao
que Rita passa a sofrer: No que o chino imprimira mgica vital, viva vista: ela,
um angu grosso em frma de pudim (ROSA, 2001c, p. 161). O narrador no
esconde, usando de humor na descrio da moa, o absurdo da feiura e da
metamorfose. Ao final do conto, Rita est chinesa: alcana um estado que revela
tanto transcendncia quanto um disparate em relao logica corrente de como as
coisas funcionam.
Dessa maneira, Orientao, assim como Aletria e Hermenutica, pstumos
a outras obras de Guimares Rosa, nas quais a presena budista pode ser apontada
ou inferida, revela algumas veredas a serem seguidas na aproximao (ou que
justificam essa aproximao) de um raciocnio do jaguno Riobaldo sobre a
existncia do diabo com a viso de uma escola filosfica budista sobre a existncia
dos fenmenos. No entanto, antes de Grande serto: veredas, j no incio de sua
apario no cenrio literrio, marcas de budismo podem ser identificadas nos
escritos de Guimares Rosa.
2.2.2 Magma: o Oriente na poesia
Os poemas de Magma j apresentam, talvez cronologicamente, na produo
do autor que vm a pblico, de alguma maneira, as primeiras marcas de budismo na
obra de Joo Guimares Rosa. Por ter caractersticas prprias de uma obra potica,
a anlise dessa primeira obra no corresponde completamente aos dados
levantados em Orientao. De qualquer forma, Oriente e budismo esto dentro de
Magma.
Premiado pela Academia Brasileira de Letras em 1936, a obra, s publicada
postumamente, , segundo o parecer da comisso julgadora, poesia centrfuga,
RaffaelaRealce
28
universalizadora, capaz de dar ao resto do mundo uma sntese perfeita do que
temos e somos. H a, vivo de beleza, todo o Brasil: a sua terra, a sua gente, a sua
alma, o seu bem e o seu mal (ALMEIDA, 1997, p. 6). O Brasil de Magna, no
entanto, no s o de Iara, bois e da Serra da Mantiqueira, tambm composto de
formas, imagens e personagens que no so locais.
A prpria Academia Brasileira de Letras cita a utilizao do haicai pelo autor,
mas a presena do Oriente na obra no ocorre somente por meio da forma potica.
Alm dela, observam-se elementos oriundos da ndia, do Japo e da China: dentro
do Brasil de Magma cabem muitas outras culturas, como se percebe nos poemas
Amarelo, Azul, Na Mantiqueira, Pudor estico, Justificao, Delrio e
Necrpole. Neles, h claras referncias a outras cores no originalmente
brasileiras, como o parecer do prmio aponta. Na poesia do autor, aparece a
possibilidade da existncia do Oriente no Brasil, algo que ser recorrente tambm
em sua prosa.
Amarelo (ROSA, 1997, p. 55) sobre o trabalho de um pintor da China:
Kuang-Ling, pintor chins de mscara de cera, feliz de pio, e brio de drages, molha o pincel na gua de ocre do Huang-Ho, e, entre lanternas de seda, pinta e repinta, durante trinta anos, sulfreos e asiticos girassis, na incrvel porcelana de um jarro dos Ming...
O poema est permeado de elementos relativos ao pas do pintor: pio,
drages, lanternas de seda, vaso de porcelana, alm, claro, da dinastia Ming e do
famoso Rio Amarelo (Huang-ho), um dos principais da China. A presena no s
temtica, mas lexical tambm, como em Orientao.
Em Azul (ROSA, 1997, p. 57), uma pea tpica do vesturio japons, citada:
o quimono.
Uma vanessa tropical travou na campnula de uma ipomia o vo oscilatrio e helicoidal. Dobra o quimono de franjas sinuosas, [...]
29
J em Na Mantiqueira (ROSA, 1997, p. 70), h meno a um elemento
facilmente identificvel da flora oriental:
Por entre as ameias da cordilheira dormida, a lua se esgueira, como um ltus branco, na serra de dorso de um crocodilo, brincando de esconder.
Ao descrever o luar de uma das mais conhecidas formaes do relevo
brasileiro, a Serra da Mantiqueira, o eu-lrico deste poema compara o astro a um
ltus branco. Essa planta, no extremo Oriente, usada na alimentao, na medicina
e possui tambm um valor significativo na cultura e em religies asiticas. Aqui, h
uma caracterstica que est presente em outras obras do autor: um elemento
estrangeiro agregado ao local, um pouco do Oriente no cu do Brasil.
Em Pudor estico (ROSA, 1997, p. 72), aparece uma meno a uma frmula
particular de suicdio: o hara-kiri. Esse tipo de suicdio, praticado por samurais no
perodo medieval japons, que se d em nome da honra (TAKEI; KAWAL; MORI,
2000), mencionado no poema:
Acuado entre brasas um escorpio volve o dardo e faz o hara-kiri...
Em Justificao (ROSA, 1997, p. 78) aparece a grande cadeia de montanhas
da sia: o Himalaia.
Ponham o Amazonas ao p do Himalaia, e ali nascer, depressa, uma raa de homens pequeninos...
O eu-lrico sugere o que Guimares Rosa faz em sua obra: unir um elemento
ocidental o rio Amazonas com um oriental o Himalaia. Ao sugerir essa
juno, parece haver uma justificativa ao fato de algumas tribos nativas do
Amazonas guardarem semelhana (devido estatura e aos olhos puxados) com
alguns povos asiticos. como se, de certa forma, a sia estivesse nesse interior
do Brasil, que a Amaznia.
Elementos que tipicamente so remetidos aos chineses tambm aparecem no
RaffaelaRealce
RaffaelaNotaAtentar-se para o fato da adaptao que o autor possivelmente faz de elementos brasileiros em lugar de indianos e outros, num paralelo com a ideia de adaptao ocorrida nas fbulas e seus animais e moral tpicos de cada regio e citada por Dilip Loundo em Dilogos Tropicais.
30
poema Delrio (ROSA, 1997, p. 89, grifo nosso):
No sentes na tua boca um gosto de papoulas?... Passa o leno de seda de tuas mos sobre minha fronte, e no me digas nada: a febre est, baixinho, ao meu ouvido, falando de ti...
A papoula e a seda esto muito associadas cultura chinesa. A papoula,
apesar de ser encontrada tambm no Leste europeu, est ligada principalmente ao
pio, que, por sua vez, est relacionado s famosas Guerras do pio entre a China
e a Inglaterra no sculo XIX. A seda outro elemento popular da cultura chinesa que
ganhou o Ocidente e d nome at a uma famosa rota comercial que surgiu entre a
sia e a Europa: a Rota da Seda. Apesar de essa rota referir-se ao sculo XIX, esse
percurso j abarcava grande movimentao de comerciantes, peregrinos e
conquistadores entre o sculo I e o sculo XV (PALAZZO, 2009). Tanto a papoula
quanto a seda passaram a fazer parte da cultura ocidental, assim como os
elementos orientais, em Magma, passam a fazer parte do Brasil. Em algumas obras
posteriores a esses poemas, a rota, na obra de Guimares Rosa, no entanto, no
a da seda, Ocidente-Oriente: como acontece em Orientao e em Cipango, de
Ave, palavra, a rota passa a ser Oriente-Ocidente.
Depois de referncias China e ao Japo, outra figura da cultura indiana
aparece em um poema de Guimares Rosa, desta vez, o deus hindu Vichnu, em
Necrpole (ROSA, 1997, p. 129):
[...] E, de monte para monte, se transmitem transcendncias absurdas: o problema dado ao elefante Iriarte pelo Deus Vichnu...
O deus Vichnu tem o epteto de o Mantenedor do universo e, juntamente com
Brama e Indra, completa a trade de deuses mais importantes do hindusmo
(CAMPBELL, 1994). No poema, o homem, ao escavar montes, trabalha
transformando o mundo, assim como o deus Vichnu tem como funo trabalhar o
universo, fazer a manuteno do universo. Em Magma, o autor faz a manuteno do
que Brasil, acrescentando elementos que no so os tipicamente usados para
representar a sua terra, a sua gente, a sua alma.
Raffaela
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O Buda, uma das famosas figuras da ndia e fortemente presente tambm
na China e no Japo citado como um elemento de comparao em
Caranguejo (ROSA, 1997, p. 44):
Caranguejo sujo, desconforme, como um atarracado Buda roxo ou um dolo asteca...
Uma das mais representativas personagens do Oriente assimilada ao
caranguejo, animal tpico da fauna do litoral brasileiro. Ocorre, como nos outros
poemas, uma integrao do elemento oriental paisagem local. Buda parece figurar
tambm em Elegia (ROSA, 1997, p. 50, grifo nosso):
Teu sorriso abriu como uma anmona entre as covinhas do rosto infantil. Estavas de pijama verde, nas almofadas verdes, os pezinhos nus, as pernas cruzadas, pequenina, como um dolo de jade que teve por modelo uma princesa anamita.
dolo, no poema, pode ser associado famosa esttua de Buda de jade da
Tailndia que, por ser verde, conhecida como Buda de Esmeralda , j que a
menina est sentada, de pernas cruzadas, vestida de verde. Essa esttua foi levada
do Laos de volta Tailndia na segunda metade do sculo XVIII e est abrigada no
complexo de templos de Wat Phra Kaew, em Bangkok (WILLIANS et al., 2009). No
entanto, pode ser tambm uma referncia a outras duas famosas esttuas de Buda,
tambm de jade, de um antigo templo de Shanghai, fundado em 1882 e destrudo
por um incndio. As duas esttuas, provenientes da Birmnia, foram resgatadas e
esto no novo templo, fundado em 1918 (TRANJAN, 2008). A mulher est descala
e de pernas cruzadas, como o Buda normalmente representado em esttuas. De
qualquer forma, novamente, a imagem de Buda est presente em um dos poemas
de Magma.
Curiosamente, a imagem de algum sentado de pernas cruzadas j evocou
outras vezes, em obras significativas da literatura ocidental, a figura de Buda. Isso
pode significar que essa presena nos poemas de Guimares Rosa no um fato
isolado na histria da literatura, no um fato totalmente particular da obra do
RaffaelaRealce
RaffaelaRealce
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autor.7
Na poesia brasileira, h, no mnimo, dois casos da presena de Buda, tambm
com produes entre o sculo XIX e XX: Pedro Kilkerry e Augusto dos Anjos. O
primeiro, poeta simbolista da Bahia com pouca projeo nacional, relaciona Buda ao
silncio:
No sei se mesmo a minha mo que molha A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa. Penso um presente, num passado. E enfolha A natureza tua natureza. Mas um bulir das cousas... Comovido Pego da pena, iludo-me que trao A iluso de um sentido e outro sentido. To longe vai! To longe se aveluda esse teu passo, Asa que o ouvido anima... E a cmara muda. E a sala muda, muda... Afonamente rufa. A asa da rima Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda Novo, um fantasma ao som que se aproxima. Cresce-me a estante como quem sacuda Um pesadelo de papis acima...8
No trecho acima, do poema o silncio, Buda aparece em meio a
expresses comuns filosofia que ele postula: iluso, o jogo ambguo com pena
(como objeto para escrita e como tambm pesar e sofrimento) e com muda
(como ausncia de palavras e som e tambm como o verbo mudar). Buda, depois
de dias sentado em silncio, aps ter atingido a iluminao, rompe-o e expe seus
ensinamentos (KHYENTSE, 2008), expondo outra faceta da realidade. Por isso o
poema relacionou Buda e o silncio, visto que, quando este ltimo rompido, como
Buda outrora o fez, outra maneira de encarar a realidade emergiu. 7 Na prosa ocidental, s a ttulo de exemplo, em O corao das trevas, de Joseph Conrad (2010, p. 14), romance de 1899, h uma referncia ao Buda logo no incio da obra: recomeou, erguendo um brao a partir do cotovelo com a palma da mo para cima de tal forma que, com as pernas dobradas diante de si, tinha a pose de um Buda pregando em roupas europeias e sem uma flor de ltus. O narrador tambm o faz no ltimo pargrafo do romance: Marlow silenciou e permaneceu sentado, afastado, indistinto e calado, na pose de um Buda meditando (CONRAD, 2010, p. 134). Toda a narrativa, toda a ao narrada o miolo do romance est compreendido por essa imagem de algum sentado como Buda. Ainda na literatura em lngua inglesa, entre o sculo XIX e XX, outra referncia a uma esttua de Buda vem de Henry James em Retrato de uma senhora. Uma das personagens do romance, Ralph, ao comentar sobre seu amigo, Lorde Warburton, diz: Eu, no lugar dele, seria to solene quanto uma esttua de Buda (JAMES, 2007, p. 97). A presena dessas imagens tm, em maior ou menor grau, implicaes na interpretao das personagens ou at mesmo do romance, dependendo do caso. Alm da j citada em Orientao, a participao de elementos budistas na prosa de Guimares Rosa ser analisada nos prximos subcaptulos e captulos. 8 Poema disponvel em: . Acesso em: 13 mar 2013.
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O segundo, Augusto dos Anjos, poeta de repercusso nacional, faz, em pelo
menos cinco poemas do livro Eu, menes ao Buda e ao budismo. Em As cismas
do destino (ANJOS, 2010, p. 27) h duas:
Pois quem no v a, em qualquer rua, Com a fina nitidez de um claro jorro, Na pacincia budista do cachorro A alma embrionria que no continua?!
E ainda:
Todos os personagens da tragdia, Cansados de viver na paz de Buda, Pareciam pedir com a boca muda A ganglionria clula intermdia.
Outra apario ocorre no ttulo e tema do poema Budismo moderno (ANJOS,
2010, p. 37), e outra em Os doentes (ANJOS, 2010, p. 45):
E nua, aps baixar ao caos budista, Vem para aqui, nos braos de um canalha, Porque o madapolo para a mortalha Custa 1$200 ao lojista!
Assim como nos poemas de Pedro Kilkerry, nos de Augusto dos Anjos, as
referncias a Buda e ao budismo em Guimares Rosa esto relacionadas a
elementos comuns da filosofia, como a pacincia, qualidade que deve ser cultivada
pelo praticante budista; a paz, que no contexto budista pode estar ligada tanto
qualidade de tranquilidade quanto noo de nirvana; e a ideia de transitoriedade e
impermanncia de tudo, junto com a de morte. Essas contemplaes permeiam
todos os poemas de Augusto dos Anjos citados e so pontos-chaves nos
ensinamentos budistas.
Em Magma, h, principalmente, a integrao de elementos do Oriente aos
elementos do Brasil, mas no necessariamente uma integrao de uma filosofia
budista como ocorre em Augusto dos Anjos, por exemplo ao texto. O conjunto
de poemas traz o padro de coexistncia entre elementos locais e orientais que ir
se repetir na obra do autor. Ao longo da produo artstica de Guimares Rosa, no
entanto, ir se observar uma integrao cada vez maior do budismo a elementos
ocidentais, brasileiros, locais.
RaffaelaRealce
RaffaelaRealce
RaffaelaNotaNum pouco de li de alguns poemas de "Magma" notei, principalmente, a ideia da impermanncia de tudo e transitoriedade: "Gargalhada" e "Paraso Filosfico", por exemplo.
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2.2.3 Sagarana: Buda no meio da nossa gente
Em Sagarana, na narrativa Minha gente, a referncia ao Buda se expande um
pouco alm das meras comparaes que se estabelecem nos poemas de Magma.
No texto, no h somente um meno ao Buda, mas a supostas palavras do
prncipe indiano tambm. A epgrafe da narrativa uma quadra intitulada Cantiga
para treinar papagaio. O papagaio s repete as palavras, no tem conscincia do
que significam. Guimares Rosa, no entanto, no repete os quatro versos atribudos
a Buda como um papagaio o faria. Essa citao no um mero intertexto,
despropositado; na narrativa, ela um elemento totalmente integrado ao do
texto:
Chove. Chuva. Moles massas. Tudo macio e escorregoso. Com o que proferiu Gotama Buddha, o pastor dos insones, sob outras bananeiras e mangueiras outras, longnquas: Aprende do rolar dos rios, dos regatos monteses, da queda das cascatas: tagarelante, ondeia o seu caudal - s o oceano silncio (ROSA, 2001b, p. 237).
O autor usa neologismos, dado recorrente na obra dele, para apresentar Buda.
Pastor pode ser tomado como aquele que guia, e, no contexto filosfico-religioso, o
mestre, o professor. Insones uma referncia clara ao termo buda, que, em
snscrito, significa aquele que despertou, o que acordou do sono da ignorncia.
Assim, Buda, com o epteto de pastor dos insones, o mestre daqueles que no
dormem mais em ignorncia. Ele atingiu a iluminao sob a rvore ficus religiosa,
uma figueira. Mas referncias locais de rvores, as que poderiam estar ao redor da
casa e prxima rede em que o narrador dormia, so a bananeira ou a mangueira.
Usando essa estratgia do neologismo, que mais tarde se tornaria uma das marcas
de sua obra, o autor traz Buda e sua filosofia para dentro de seu texto9.
A quadra que o narrador atribui ao Buda, porm, no ocorre de maneira
displicente. Ele prepara a apario dessas palavras de forma que fiquem
9 vlido lembrar que, na mesma dcada em que Sagarana foi lanado, surgiu, nos Estados Unidos, um movimento que ficou conhecido como a Gerao Beat. Os escritores desse grupo, com destaque para Jack Kerouac e Allen Ginsberg, estudaram e incorporaram em suas obras elementos de vrias tradies espirituais e filosficas, principalmente do budismo. Kerouac sentiu-se atrado pelos conceitos budistas de sofrimento, de impermanncia e de natureza ilusria da vida (PROTHERO, 1991). De maneira diferente que esses escritores norte-americanos, o autor mineiro tambm incorpora, como v-se em Sagarana e em outras obras, alguns conceitos budistas aos seus textos.
Raffaela
RaffaelaRealce
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naturalmente integradas narrativa e no paream estranhas ao leitor. J no
comeo da novela, invoca indiretamente, por meio de Santana, a imagem de um
meditador, contemplador, sob uma rvore:
Santana se encaramujou: est ausente deste mundo, no departamento astral dos problemistas. E este deve ser um dos motivos da segurana com que ele enfrenta qualquer roda ou ambiente: haja algum seno, sejam os outros hostis ou estpidos, ou estpidos e hostis a um tempo, e Santana se encosta em qualquer parte, poste ou rvore, e problemiza, problemiza sem parar (ROSA, 2001b, p. 215).
Outra ideia ou imagem de eremita meditador vem da curiosa descrio de um
dos trs poos de um crrego da regio: Os poos grandes so apenas trs: o de
cima serve de piscina para os camaradas; no do meio, de gua limosa, mora um
jacar ermito, de vida profunda, que deve ser verde e talvez nem exista; o ltimo,
aonde vamos, o poo (ROSA, 2001b, p. 228). A ideia a de um eremita, um
solitrio que, dubiamente tem vida profunda: ou mora no fundo ou tem grande
profundidade de ser. Buda, sozinho, como um eremita embaixo de uma rvore, teve
insights profundos, atingiu a iluminao.
Alm disso, mais a frente, ainda antes de mencionar Buda, h duas menes
ao Oriente. Ao comentar sobre o gosto de Tio Emlio pela caa, declara: E, de tanto
ver a paca apontar da espumarada do poo, bigoduda e ensaboada como um chins
em cadeira de barbeiro... (ROSA, 2001b, p. 225). Logo na sequncia, quando
descreve Maria Irma pela primeira vez, sobre os olhos: To lindos, que s podem
ser os tais olhos sia-na-Amrica de uma pernambucana (ROSA, 2001b, p. 225).
Essa segunda meno importante, visto que, ao longo da narrativa, o autor
sempre destaca os diferentes olhares da prima, por quem se descobre apaixonado.
Dessa forma, toda vez que ele fala nos olhos dela, essa primeira descrio est,
indiretamente, espalhada pela narrativa inteira.
Outro ponto a ser notado o fato de o trecho atribudo a Buda possuir
elementos locais e recorrentes na novela; alm das bananeiras e mangueiras, h o
rio, o regato, a cascata: O crrego, saindo da ipuera, um rego fino e reto (ROSA,
2001b, p. 227); Havia uma cachoeira no rego, com a bica de bambu para o tubo de
borracha (ROSA, 2001b, p. 239), Quando eu ia repetir o meu amor pela terceira
vez, ela, com voz tnue como cascata de orvalho, de folhe em flor e flor em folha...
(ROSA, 2001b, p. 244). O seguinte trecho que revela, de certa forma, essas
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estratgias acima usadas na construo do texto:
Porque todos os crregos aqui so misteriosos - somem-se solo a dentro, de repente, em fendas de calcrio, viajando, ora lguas, nos leitos subterrneos, e apontando, muito adiante, num arroto ou numa cascata de rasgo. Mas o mais enigmtico de todos este ribeiro, que s vezes sobe de nvel, sem chuvas, sem motivo anunciado, para minguar, de pronto, menos de uma hora depois (ROSA, 2001b, p. 231, grifo do autor).
A apario das supostas palavras de Buda na narrativa alimentada por esses
crregos que aparecem e somem no texto, que eclodem mais a frente como a
citao atribuda ao Buda em si; ela semelhante ao ribeiro, ganhando destaque,
surgindo inesperadamente no texto; a apario, porm, como demonstrado, tem
motivos que a anunciam. Todos esses dados em conjunto do suporte para que a
citao atribuda ao Buda e seu ensinamento no soem estranhos na narrativa, nem
paream despropositados. Mas por que ela est no texto? Que funo poderia
assumir?
Essas possveis palavras de Buda, provavelmente, referem-se a ensinamentos
de meditao shamata, o calmo permanecer. Em alguns ensinamentos sobre esse
mtodo de meditao silenciosa, a pacificao que ocorre na mente, medida que
se progride nessa prtica, pode ser dividida em cinco diferentes estgios:
semelhante a uma cachoeira caindo de um penhasco; a um rio que corre por
desfiladeiros na montanha; a um grande rio fluindo com facilidade; a um lago
levemente agitado por ondulaes na superfcie; e, finalmente, uma meditao que
semelhante um oceano sem ondas (KHYENTSE, 2013).
De acordo com Khenchen Thrangu (1998), uma das experincias que ocorrem
ao se praticar esse tipo de meditao que a mente, ao ficar estvel e relaxada,
pode fazer com que o meditador experimente estgios sutis de prazer, que evoluem
para estados significativos de bem-aventurana. No se deve, porm, segundo o
autor, apegar-se a esses estados, para que o meditador no fique sob o poder
delas.
Sendo assim, o narrador lembra seja no sonho ou enquanto narra a
experincia e usa dessas possveis palavras do Buda para demonstrar como
chegou no estado de bem-aventurana e deleite que foi o sonho com as diferentes
vnus, que culmina com a apario de uma vnus real, Maria Irma. Esse estado
comea a ser narrado logo em sequncia citao do pastor dos insones: Mas,
RaffaelaRealce
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do mudo fundo, despontam formas, se alongam. Anfitrites dormidas, na concha da
minha mo, e anadimenas a florirem da espuma (ROSA, 2001b, p. 237). Do
estado de calma em que a mente est, surge o estado de prazer; das espumas do
oceano calmo, surgem as vnus.
A experincia que ele teve foi particular, interna: Meu esprito fumaceou, por
ares de minha s posse (ROSA, 2001b, p. 238). E depois de ter vises de
diferentes deusas, quem aparece Maria Irma. Tudo indica que o narrador apegou-
se como Thrangu (1998) indica no fazer experincia do prazer que teve e
que culminou com a apario da prima. Isso porque, a partir desse ponto da
narrativa, ele est preso ao sentimento que tem por Maria Irma, e os jogos
emocionais j se iniciam no primeiro dilogo, assim que ele acorda ou simplesmente
sai da experincia. Ele pergunta para ela:
a respeito... Bem, sobre... Voc quer saber se eu deixei algum amor, a esperar por mim? Se deixou, ou no, no me interessa... Ento, por que voc quis perguntar, prima? E por que foi que voc adivinhou a pergunta, primo? (ROSA, 2001b, p. 238)
O que antes era s um interesse vago uma lembrana de namoro de
infncia e uma experincia de prazer com um sonho , com o tempo, o narrador
passou a estar sob o poder da atrao por Maria Irma, e com o estado mental
totalmente dependente das atitudes da moa: O sorriso de Maria Irma era quase
irnico. No me zanguei, mas tambm no gostei (ROSA, 2001b, p. 242). Quando
ela recebe a visita de um homem, depois de sentir cime ao ver os dois juntos, ele
concluiu: Entre Maria Irma e esse moo h qualquer coisa. Exaspero-me. Detesto-
os! (ROSA, 2001b, p. 242). Mas, assim como toda a narrativa est permeada pelo
fluxo contnuo de movimento das guas cascatas, rios, crregos e chuvas , as
emoes do narrador ganham outro rumo e desguam em Armanda, amiga da
prima. O sentimento do narrador por Maria Irma como o rio citado por ele, que, da
mesma forma que sobe de nvel, esvai-se rapidamente.
Dessa maneira, por meio dos neologismos, da preparao do texto e
consequentemente do leitor para receber a informao e para relacionar a
experincia do narrador a uma experincia descrita por Buda, a integrao do
Oriente no interior de Minas Gerais no soa estranha: Buda e sua filosofia passam
RaffaelaRealce
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naturalmente a fazer parte da narrativa de Guimares Rosa, ambos no esto em
uma dico estranha ao texto.
Como em Orientao, vale notar que o narrador de Minha gente tem certa
carga de erudio: ele sabe jogar xadrez, entende as citaes francesas de Santana
e evoca as referncias literrias do amigo. Aqui, isso faz com que no soe estranho,
nos locais e tempo em que vive e visita, o fato de ele conhecer Buda e seus
ensinamentos. Alm disso, a citao atribuda a Buda est no momento de
transformao do narrador: como mencionado, ele passa a estar sob as emoes
que sente por Maria Irma, e ele tem conscincia disso.
2.2.4 Ave, palavra: Buda no cerrado
A obra pstuma Ave, palavra traz a narrativa Cipango, na qual algumas personagens so imigrantes japoneses que vivem de agricultura na regio de
Campo Grande, MS. Alm da simpatia, do hbito de trabalhar e at da prpria
decorao da casa Tudo ali dentro era inesperado e simples, mas de um simples
diferente do nosso, desenrolado de velha sabedoria dos olhos (ROSA, 2001a, p.
145) , o narrador observa em dois momentos da visita que faz colnia, a
particularidade fsica de um chefe de famlia que encontra, o agricultor Takeshi
Kumoitsuru.
Primeiro, repara que esse japons tem Cabea raspada, com topete: cismo-o
um sacerdote do xint ou budista, amigo da raposa branca. Seu sorriso no
dissimula um aspecto apreensivo (ROSA, 2001a, p. 145). E, em seguida,
complementa: E o homem figurava mesmo um buda-bonzo, ou xam monge, ou
ds-c o que seja (ROSA, 2001a, p. 146). Nessa narrativa, uma figura central do
universo budista evocada duas vezes para que o narrador consiga descrever a
fisionomia de uma das personagens; a figura recorrente na memria do narrador.
Novamente, o Oriente est integrado ao interior do Brasil: os agricultores
japoneses esto adaptados e organizados na regio, alm de produzirem, pelo
menos, o suficiente para se alimentarem bem. Quando um dos imigrantes reclamou
sobre a dificuldade da vida ali, o narrador ratifica a informao: Nem h de estar
pobre assim, comer ao dia seus trs arrozes (ROSA, 2001a, p. 145). Alm disso,
levando em conta o narrado, no h conflito na convivncia ou na interao dos
japoneses com o local ou com o grupo que os visita.
RaffaelaRealce
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Se em Orientao o modo de Quim sentar trouxe desentendimentos, o
narrador de Cipango descreve essa peculiaridade oriental com naturalidade. Ao
falar sobre os imigrantes nos vages do trem, declara: Muitos, em geral as
mulheres, se sentavam no cho, cruzando as pernas, aos cantos ou pelo corredor,
gente que no se acostumava ainda a permanecer em cadeira ou banco (ROSA,
2001a, p. 143). Isso era inadmissvel para Rita Rola.
Nessa narrativa, assim como algumas das citadas anteriormente, o elemento
oriental est ligado transformao de algo local. Neste caso, o local em si que se
transforma, a paisagem do interior do Brasil perde sua particularidade e ganha ares
orientais:
Num raso pedao de terreno, verde-verde de todo plantado, luminoso de canaizinhos de irrigao, vamos trs pessoas, uma famlia. Paravam numa paisagem em seda. At no caminhar dos sulcos dgua no entremeio das midas culturas, na separao das poucas rvores mantidas, puderam os Sakamota impor a este cho um torcido toque de arte nipnica com sua assimetria intencional, recesso de calados espaos inventados e riscos que imveis guardam qualquer coisa do relmpago (ROSA, 2001a, p. 146).
A paisagem do Centro-Oeste do Brasil torna-se paisagem em seda, sob
influncia do trabalho praticamente artstico dos imigrantes na configurao da
plantao. Eles transformaram o local, mesmo que s um pedao dele, apenas num
raso pedao de terreno.
O narrador, como o de Orientao e de Minha gente, no deixa de
demonstrar certa erudio, que em Cipango revela-se por meio tanto do
conhecimento de dados da imigrao japonesa quanto da prpria cultura nipnica.
Ele sabe como se configurou a organizao dos japoneses: Parece que se agrupam
segundo a procedncia: em Araatuba so quase todos de Kiu-Shiu, de Kagoshima;
de Okinawa, aqui em Campo Grande (ROSA, 2001a, p. 143). Alm disso, conhece
at o nome de um dos instrumentos de trabalho, uma espcie de faca, em japons:
Com o ko-tch largo cutelo curto cortava cana para a vaca (ROSA, 2001a, p.
145).
Entre todas essas narrativas, Cipango a qual a presena de um elemento
budista causa menos estranheza. Fazer referncia a Buda ao falar de uma visita a
uma comunidade japonesa , de certa forma, esperado: o budismo faz parte da
cultura e, caso alguma esttua, por exemplo, tivesse sido notada em um altar, isso
seria completamente normal ou at bvio. De qualquer forma, interessante notar
40
que, nessa narrativa, h uma constatao e reiterao do narrador, como se
quisesse deixar clara esta peculiaridade, sobre a aparncia meio enigmtica de
Takeshi Kumoitsuru: ele se parecia, em um primeiro momento, que depois se
confirma, um sacerdote budista. Alm disso, h a explicitao da transformao que
o elemento oriental pode causar no local, mesmo que seja uma mudana na
percepo do narrador em relao a um pequeno pedao da propriedade rural.
Dessa forma, tendo rastreado pegadas de Buda em alguns textos de
Guimares Rosa, e pelo fato de elas terem uma ocorrncia semelhante ao longo da
obra do autor, a aproximao de um raciocnio de Riobaldo sobre a existncia do
diabo com um aspecto da filosofia budista , no mnimo, cabvel, no s por esses
rastros que existem, mas tambm pela prpria semelhana que guardam entre si.
Como os crregos misteriosos citados em Minha gente, que ora esto aparentes,
ora no, h um fluxo de aparies de Buda na obra do autor mineiro. Em Sagarana,
Tutamia e Ave, palavra, as guas esto aparentes. Em Grande serto: veredas, no
entanto, a presena se d como a do crrego subterrneo. Em um primeiro
momento, o crrego parece no estar l, mas, ao se investigar, ser encontrado.
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3 DIABO E BUDA NO REDEMUNHO DE GRANDE SERTO: VEREDAS
Diabo, no Ocidente, figura muito potente no universo do cristianismo e no
imaginrio popular, aparece, em Grande serto: veredas, envolvido em um
raciocnio muito prximo de um outro, formalizado na ndia budista. O que poderia
ser considerado uma contradio ou equvoco tomar uma figura crist e alinh-la
a um pensamento oriental ganha outra medida quando observado que tanto o
diabo quanto o budismo aparecem, no romance de Joo Guimares Rosa, com
roupagens diferentes das comumente identificadas.
3.1 OS POSSVEIS CAMINHOS DO DEMO
Em As formas do falso, Walnice Galvo explicita como Grande serto:
veredas construdo em cima de ambuiguidades. Para a autora, esse o esquema
que organiza o romance, e tudo se passa como se ora fosse ora no fosse, as
coisas s vezes so e s vezes no so (GALVO, 1972, p. 13). O diabo, na
narrao, no deixa de estar sob este princpio. Por exemplo, entre tantas outras
ambiguidades que o romance comporta, destacam-se: Riobaldo , ao mesmo
tempo, filho de fazendeiro e jaguno, letrado e er
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