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Vontade, Razão e Liberdade em Hegel: breves notas a partir da
obra “A Ideia de Justiça em Hegel”, de Joaquim Carlos Salgado
Diego Vinícius Vieira1
Vinícius Batelli de Souza Balestra2
Resumo: O presente artigo é apresentado na disciplina de
SEMINÁRIOS HEGELIANOS XVII, com base no sétimo capítulo da obra
“A Idéia de Justiça em Hegel”, com vistas a refletir introdutoriamente
sobre a noção de vontade em Hegel, e o modo como essa noção irá
participar da construção da ideia de justiça hegeliana.
Epígrafe
Sumário: I. Introdução. II. Liberdade: superação do teórico e do prático. III. O Pensar Livre, A Vontade Livre IV. Conclusão
I. INTRODUÇÃO
O presente texto tem por objetivo investigar a noção hegeliana de
vontade. Movimentamo-nos, assim, em direção a uma Ética Filosófica;
partimos do reconhecimento de que as categorias que permitem pensar o
agir humano, o ethos, são de natureza filosófica3.
1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.2 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo.
O Capítulo estudado, intitulado “A Vontade”, integra a terceira
parte da obra “A Idéia de Justiça em Hegel” do professor Joaquim Carlos
Salgado, e introduz o tema da vontade e da liberdade para que se possa
pensar a ideia de justiça.
Digno de nota, nesse sentido, é o apontamento de Lima Vaz a
respeito de uma Ética em Hegel. Lembra o autor que Hegel jamais
chegou a lecionar Ética e sequer dedicou, como seus antecessores, uma
obra específica à Ética. Ainda assim, Vaz considera Hegel como o autor,
entre os filósofos modernos, que mais imprimiu uma marca ética ao seu
pensamento4.
II. LIBERDADE: SUPERAÇÃO DO TEÓRICO E DO PRÁTICO
Indagar sobre a vontade em Hegel implica refletir a respeito do
postulado da liberdade. De que modo a razão, a liberdade e a vontade
estão imbricadas no Sistema da Totalidade hegeliano: eis aqui o cerne da
reflexão feita pelo Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado no capítulo intitulado
“A Vontade”, de sua clássica obra A Ideia de Justiça em Hegel.
O jusfilósofo mineiro introduz o tema ensinando que, em Hegel, a
dialética entre liberdade e ordem social se desenvolve no âmbito da
Filosofia do Espírito, esse momento da Filosofia no qual o pensar se auto-
revela e se conhece. A Filosofia do Espírito, aponta Salgado, é o momento
da liberdade. O Espírito é livre, e busca na história a perfeição dessa
liberdade:
O Espírito está em si mesmo, no seu elemento ideal, como unidade de si mesmo; porque está no seu próprio mundo, e não fora de si mesmo, é essencialmente essa liberdade, cuja perfeição ele busca na história, vale dizer, a sua liberdade é
3 Tal definição de Ética Filosófica é tributária das lições de Henrique Cláudio Lima Vaz.4 Lima Vaz 370
ação, movimento, “negação constante de tudo” o que a contesta. 5
A liberdade é o conteúdo da unidade do pensar. Essa unidade só é
possível na superação da Filosofia da Natureza, superação essa que
chamamos de Filosofia do Espírito. Dizer, portanto, que a liberdade é
erigida a partir da Filosofia do Espírito, é dizer sobre um instante em que
ocorre a superação da dualidade entre teórico e prático, em que se
suprassume a separação entre, natureza - como exteriorização do pensar
puro - e Lógica, o pensar puro.
O Espírito é revelado em dois espaços sem precedência entre si,
quais sejam, a História e a Lógica6. Dito de outro modo, o Espírito só
pode saber de sua estrutura lógica (apresentada sob a forma de Ideia
Absoluta) no desenrolar da História, no decorrer de sua relação
consciente com o mundo exterior. É na história que o Espírito se revela a
partir de si mesmo, fazendo convergir saber da razão e agir da vontade.
É dessa forma, portanto, que Hegel recupera o tempo – que, para
Kant, não podia ser pensado - e o apresenta no real (como história do
Espírito) e no logos (sucessão dos momentos).7 Veja-se a explicação do
professor Salgado:
A lógica hegeliana é o modo pelo qual Hegel interpreta o tempo na estrutura do logos. Diferentemente de Aristóteles que separa o lógico do temporal, mas dando-se condições de pensar o temporal na categoria do tempo que existe fora do pensar, e ao contrário de Kant para quem o tempo não é realidade nem categoria, mera forma de intuição do sensível que não alcança o grau do pensar, Hegel faz do logos o real e trata o tempo como modo pelo qual o logos se mostra (no processo da Lógica) na sucessão de seus momentos.
5 SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 227.6 Salgado afirma que o liame entre histórica e lógica, em Hegel, é a Fenomenologia. SALGADO, A Ideia de Justiça em Hegel. Cit... p. 232.7 SALGADO, A Ideia de Justiça em Hegel. Cit... p. 231.
A Lógica8, ensina Salgado, é o momento teórico do Espírito, um
momento que é, ao mesmo tempo, início e fim. Diz-se que é momento final
porque é nele que o Espírito sabe de si, isto é, atinge o saber absoluto. No
entanto, para atingir esse saber do pensar, o Espírito já deveria estar em
sua plenitude no início de seu desenrolar histórico. Seu desdobramento
como práxis se dará pela mediação da estrutura exteriorizada da Ideia, a
natureza. Só então é que, dinamizado pelo trabalho9, o Espírito se torna
livre.
É com a mediação da natureza que o Espírito supera a dualidade
entre o teórico e o prático, entre a natureza e o pensar puro, e se torna
Espírito livre. Assim, a liberdade não se contrapõe, como já brevemente
explicitado, à natureza, mas se torna possível a partir da oposição
natureza/pensar puro. Se dizemos que o Espírito se produz10 na história, é
nela que ele desenvolverá seu momento teórico inicial, e retomará esse
momento teórico ao final, mas aí já mediado pela natureza.
Sabemos, portanto, que em Hegel a liberdade é conteúdo da
unidade do pensar, superação da dualidade entre razão prática e razão
teórica11. Isto porque o pensar é teórico e prático, é ser e agir. Não há
uma razão daquilo que é e outra daquilo que deve ser (prática): intelecto
e vontade se unem no pensar. O pensar, portanto, não é apartado da
prática, vez que a prática é ela mesma o pensar exteriorizado.
Contra interpretações de Hegel que privilegiem o momento teórico
ou o prático da razão como preponderante, o professor Salgado adverte:
8 A Lógica, ensina Salgado, é o pensar de si mesmo; a Fenomenologia, o conhecer de si mesmo. A Filosofia do Espírito, pensar que ao mesmo tempo se conhece e auto-revela. SALGADO, A Ideia de Justiça em Hegel. Cit... p. 231.9 SALGADO, A Ideia de Justiça em Hegel. Cit... p. 232.10 A esse respeito, vale percorrermos as palavras do próprio Hegel: “é o espírito, em sua liberdade, a mais alta afirmação da razão consciente de si, que a si mesma se dá a realidade e se produz como mundo existente.” Filosofia do Direito, página 34.11 SALGADO, A Ideia de Justiça em Hegel. Cit... p. 233.
Dizer, portanto, que um desses momentos dá a tônica do pensamento hegeliano, que o lado prático é o primeiro, subjugando o teórico, é vê-lo somente a uma dimensão, unilateral e abstratamente, ao arrepio do seu próprio modo dialético de pensar, que se caracteriza pela inclusão do “terceiro excluído” da lógica formal como modo de superação do “ou um, ou outro”, “nem um, nem outro” no “tanto um como outro. A dialética do juízo disjuntivo passa pela negação absoluta dos dois termos “nem um nem outro”.12
III. O PENSAR LIVRE, A VONTADE LIVRE
O que significa partirmos de um filosofar que leva em conta a
unidade de teoria e práxis? Significa reconhecer que o agir sem pensar
não pode existir, ao menos não como fato humano. O humano que age, se
determina no mundo, e tal determinação significa conhecer-se. Ao mesmo
tempo, conhecer é agir, amparado na vontade livre. A vontade de agir
tem em si o teórico, não é possível ação sem reflexão. E o agir como
práxis, como dissemos, traz em si o téorico, na unidade que o Espírito
atingiu em seu momento de liberdade.13
Os momentos do pensar, ensina Hegel, são um auto-movimento do
próprio pensar, que não se produz por realidades externas, mas se
determina por tudo aquilo que está contido no próprio pensar. O pensar é
absolutamente livre, porque se determina a si mesmo14. Nesse sentido é
que o professor Salgado ensina que, para Hegel, o pensar é teórico e
prático, é agir e ser:
O pensar é teórico e prático. É pensar como ser e agir, como atividade livre que se conhece e tem como fim esse
12 13 SALGADO, A Ideia de Justiça em Hegel. Cit... p. 236.14 SALGADO, A Ideia de Justiça em Hegel. Cit... p. 238.
conhecer; o pensar se dirige a um resultado, a um fim, que é seu conhecer. E só é conhecer enquanto quer, enquanto se impulsiona para esse conhecer. Ele é desde o início o que deve ser como fim ou resultado. Ser e dever-ser não se separam, mas se completam como dois aspectos da dialética do pensar.
Acrescenta o professor Salgado, ainda nesse sentido, que a vontade
é um modo particular de pensar. O pensar se manifesta ativamente na
forma da vontade, pois se dirige para a exterioridade. De tal modo que, se
o pensar é: a) livre, isto é, como pensar auto-determinável) e b) prática e
teoria. O mesmo diremos da vontade.
A vontade tem na liberdade sua substância e também está nesse
momento de unidade do teórico e prático, vez que sem a vontade não é
possível fazer teoria. A vontade é forma de manifestação do puramente
teórico, do pensamento. Assim, reforçamos a unidade da liberdade, posto
que, como substância da vontade, é agir livremente e pensar livremente.15
Outra lição do professor Salgado é relevante para tratarmos da
vontade. O autor aponta a distinção entre os conceitos de poetiké
(techné), praktiké e theoretiké, desde a filosofia grega, a partir de
Sócrates e Platão. A primeira, define Salgado, é atividade “prática”, mas
voltada à perfeição do objeto, enquanto a praktiké está orientada à
perfeição do próprio agir.16
A unidade desses três elementos está presente já na união da teoria
e prática, que já tratamos. A poiésis, assim, é trabalho (exterorização do
Espírito na história), presente na teoria e na práxis; captar o mundo,
dominar a natureza implica em ser livre, pois conhecer a coisa é o
trabalho da consciência sobre si. Assim, oportuno citar:
O eu é livre (zu-Hause, bei-sich-sein) na medida em que capta o mundo no seu conceito; isso implica o domínio da natureza em todas as suas formas, já que o conceito só se
15 SALGADO, A Ideia de Justiça em Hegel. Cit... p. 236.16 SALGADO, A Ideia de Justiça em Hegel. Cit... p. 240.
perfaz na práxis do homem na sociedade e na sua poiésis na natureza
Disto, temos a circularidade entre pensar e querer. Querer e pensar
são ações, reflexão teórica e agir prático estão ambas conectadas ao
pensar. O pensar é agir, e o agir no mundo é uma exteriorização do
pensar, bem como um determinar-se que contribui para conhecer a si
mesmo. Pensar é um ato de vontade; não pode existir ato de vontade (no
sentido prático) sem o pensar.17
IV. IDÉIA E LIBERDADE
Ainda, o professor Salgado relaciona as noções até aqui trabalhadas
com o tema dos capítulos anteriores, a Ideia. A ideia é Espírito Absoluto,
unidade do Espírito Subjetivo (sob a forma da razão, do pensar) e
Espírito Objetivo (na forma de agir da vontade), produto do processo
enciclopédico. Assim é que a Ideia pode ser dita vontade racional, pois é
nela que se unificam o conhecer e o agir. 18
Por isso se diz que, em Hegel, razão e vontade não são faculdades
distintas; o pensar é que se desdobra em duas atividades distintas,
teórica e prática, sem prejuízo de sua unidade atingida como liberdade,
isto é, como Espírito. Vontade, assim, é um desdobramento da atividade
do pensar. A abolição da separação sujeito-objeto, no sistema hegeliano,
permite dizer que o objeto, a princípio exterior ao homem, se insere no
homem, se torna parte desse homem quando conhecido.
Ainda sobre a Ideia, a liberdade e a vontade, Salgado escreve:
A Ideia é essa unidade do saber do homem do que é essencial ao pensamento, a liberdade. O saber da Idéia é o
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saber do saber do homem “que a sua essência, fim” (vontade) e “objeto” (intelecto) “é a liberdade”. Esse saber do saber da liberdade é a Idéia.
Em outras palavras, o saber tem, simultaneamente, como objeto e
fim, como essência e intelecto, o saber da liberdade. Prossegue, então, o
professor Salgado, expondo-nos a respeito da liberdade do Espírito. Esta
só pode ser real quando o Espírito sabe da sua liberdade (e o saber dessa
liberdade é a filosofia19), e esse saber tem de se dar no plano do universal.
Ou seja, a liberdade da qual o Espírito tem de saber não está no âmbito
da particularidade, é uma liberdade de todos.
No entanto, pelo próprio princípio da dialética hegeliana, de negar,
conservar e elevar, esse saber não pode ser um saber estóico, um saber
abstrato da liberdade. O saber da liberdade tem de levar em conta a
história, para que se conceba uma liberdade efetiva. Ensina Salgado que,
parra Hegel, não basta ter a liberdade, é preciso ser a efetividade dessa
liberdade, o que se dá no saber especulativo.20 A respeito dessa liberdade
estóica, a qual Hegel se opõe, Salgado escreve:
O estoicismo é assim a primeira forma do reconhecimento, puramente interior, segundo o qual todos são iguais porque todos são centelhas da razão e livres. A sua liberdade interior, abstrata, não se realizando plenamente e contrapondo-se à universalidade da razão, traz, a partir desse conflito, o ceticismo, pelo qual, não podendo o escravo alcançar a liberdade concreta pela ação do trabalho – o que se fará pela ação de uma nova luta - , dirige-se ao mundo não para negá-lo pela ação física e racional do trabalho, mas pelo puro pensamento, cuja liberdade ou poder de negação é absoluta.21
Temos, assim, que a liberdade estóica é uma liberdade abstrata,
que não permite o saber do saber da liberdade, mas apenas pode ser
entendida de maneira interior, no puro pensamento. O Espírito Absoluto
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tem, por outro lado, que procurar o saber da liberdade no teórico e no
prático, no singular e no universal, no ter e no ser.
A respeito dessa concepção de liberdade em Hegel, uma liberdade
que busca ser efetivamente no plano do real, Podemos trazer valiosa lição
de Pierre-Jean Labarrière, em seu texto “Hegel 150 Anos Depois”. Nesse
texto, o autor relaciona as reflexões de Hegel a respeito da Revolução
Francesa e do ideal de liberdade absoluta nela contido com a própria
concepção de liberdade que permeará o pensamento de Hegel.
Labarrière conta então que Hegel considerava que o ideal inicial da
Revolução Francesa, de uma liberdade radical, mergulhou com rapidez
na confusão do período do Terror porque deixou de levar em
consideração as condições históricas que impunham limites concretos às
aspirações da vontade dos revolucionários.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo:
Edições Loyola, 1996, p. 227.
HEGEL, G. W. F.. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo:
Martins Fontes, 1997. 329 p.
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