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História dos Jovens: o mercado matrimonial de imigrantes italianos na Região Colonial
Italiana do Rio Grande do Sul (RCI). Colônia de imigração de Guaporé (1907-1917)
ISMAEL ANTÔNIO VANNINI
RODRIGO KUMMER
Introdução
Com o avanço dos programas de pós-graduação nas universidades gaúchas, a partir
dos anos 1990, a imigração italiana foi tema amplamente abordado. Os aspectos econômicos,
religiosos, demográficos, culturais, entre outros, foram contemplados pela historiografia. Ao
que se sabe, a História dos Jovens ainda é tema pouco estudado, pelo menos não temos uma
pesquisa sistematizada e de maior alcance que aborde a Região Colonial Italiana do Rio
Grande do Sul (RCI). De caráter incipiente, esta é uma proposta que avança na temática do
mercado matrimonial dos jovens de origem italiana imigrados para a colônia de Guaporé.
Iniciado em 1875, com períodos de fluxo oscilante, o processo imigratório se estendeu
até 1914, encerrando-se com a eclosão da Primeira Grande Guerra. Um importante percentual
de imigrados era composto de jovens que buscavam uma melhor condição de vida no novo
mundo. É neste grupo etário que se concentra a nossa embrionária pesquisa. Procuramos
investigar o comportamento do grupo etário quanto suas práticas matrimoniais adotadas
quando já assentados na nova pátria.
Com a base documental centrada nos registros matrimoniais na colônia de Imigração
de Guaporé, arquivados junto a paróquia Santo Antônio, onde se encontram os registros de
casamento, batismos, óbitos, etc, desde sua fundação, em 1897. O período para análise
corresponde entre 1907 a 1917, justifica-se pela importância de um determinado espaço de
tempo para os imigrados adaptarem-se e entenderem suas práticas no novo contexto.
Para atingirmos os dados do período analisado, foram levantados os registros de 1.122
matrimônios, averiguando-se as idades dos cônjuges em suas núpcias. Foram descartados,
obviamente, os que eram provenientes de outra etnia imigrante, como poloneses, alemães,
portugueses, entre outros. Da mesma forma, foram desconsiderados os ítalo-brasileiros,
Professor da UNICENTRO e Doutor em História pela PUC/RS. Doutorando CPDA/UFRRJ e Mestre em Ciências Sociais pela UNIOESTE.
provenientes das antigas colônias de imigração. O grupo analisado corresponde aos italianos
imigrantes, com registros do país de origem e que contraíram núpcias na colônia de Guaporé.
A historiografia da imigração aponta a carência de víveres, entre outros, como o
principal fator que estimulou os camponeses do norte italiano a emigrarem para a América.
Neste sentido, entendemos ser importante uma investigação em relação aos jovens imigrantes
quanto seu comportamento, práticas e estratégias em constituírem famílias na nova terra.
Entendermos até que ponto sustentaram sua cultura ou se foram responsáveis por transformá-
la segundo suas necessidades e interesses. A cultura entendida como elemento ativo,
sustentador, mas, também transformador das práticas dos diferentes grupos humanos.
O Projeto Imigracionista e a Ocupação da Região Colonial Italiana do Rio Grande do
Sul
Em fins do século XIX, um importante projeto envolvendo os governos brasileiro e
italiano, desencadeava a transladação humana de camponeses do Norte italiano para o Novo
Mundo. Após descartar a possibilidade de implementar a imigração de asiáticos, o governo
imperial brasileiro deu início ao processo de transladação humana dos meeiros italianos e
despossuídos.
A unificação tardia do País – a Itália se consolidara como nação em 1870 – há cinco
anos do início da emigração, e ao inserir-se no projeto de industrialização já implementado
pelas outras potencias europeias, os camponeses do norte não teriam espaço no contexto
econômico tecnológico. O arrendamento das terras e uma prática agrícola arcaica, de moldes
semifeudais, tornava a comunidade campesina um problema para as autoridades italianas. A
vida nas pequenas comunidades não ultrapassava uma existência subsistente. Na sua grande
maioria não eram proprietários, viviam em pequenas vilas e arrendavam acanhados lotes de
terras já esgotadas.
Uma situação inversa se encontrava do outro lado do Atlântico. Em um país
essencialmente agrícola como o Brasil, com importantes regiões desabitadas, a imigração era
ensejada, principalmente tratando-se de camponeses brancos europeus. A mão-de-obra livre
era reivindicada, tanto nas lavouras do café, pois sofria sua carência devido o avanço dos
estágios da abolição, como nas frentes de ocupação das terras devolutas. O país possuía
grandes glebas de terras que precisavam ser estrategicamente ocupadas, tanto por questões
econômicas como geopolíticas.
A lavoura do café absorveu parte do contingente humano imigrado, ali, seriam, na sua
maioria, assalariados ou contratados por mínima porcentagem sobre a colheita. Em maior
número, foram aqueles destinados a ocuparem as terras devolutas da serra gaúcha, onde se
tornariam proprietários de um pequeno lote. O projeto imigracionista destinou a região
localizada entre os Campos de Cima da Serra e a depressão central do Estado. Os Campos já
haviam sido ocupados para a produção pecuária, enquanto a Depressão Central fora habitada
por imigrantes alemães, assentados ainda no início do século XIX, conforme mapa abaixo1.
Fonte: SILVEIRA, Jair Pedroso. Da Itália a Vanini. Casca: Koinonia, 1999.
O projeto se iniciou com a criação de três núcleos colonizadores, Conde d'Eu (atual
município de Garibaldi) Dona Isabel (que viria originar Bento Gonçalves) e Caxias do Sul. O
intenso fluxo emigrante ensejou a fundação de novos núcleos, em 1880 foram implementadas
as colônias de Antônio Prado e Alfredo Chaves (atual Veranópolis) e, em 1892, foi criada a
colônia de Guaporé. No período de 1875 a 1914, o projeto do governo imperial brasileiro
introduziu mais de 100 mil italianos na serra gaúcha.
1 Representação geográfica regional do Estado do Rio Grande do Sul. Destaque em pontilhado, a região
nordeste, (serra gaúcha) região destinada à colonização italiana no final do século XIX.
As terras destinadas aos camponeses italianos não se adequavam a economia pastoril.
Densas matas de pinheirais, que predominavam a partir dos trezentos metros de altitude,
associadas aos íngremes acidentes geográficos da serra, formaram uma barreira natural entre
os Campos de Cima da Serra e a Depressão Central.
Após aguardar o período da quarentena, para evitar a proliferação de epidemias, os
colonos partiam de Porto Alegre, com pequenos barcos a vapor navegavam o rio Jacuí pela
Depressão Central e penetravam nos vales pelos seus afluentes. Estavam destinados a
colonizarem, como vimos, uma região intermediária e a produzirem gêneros de primeira
necessidade para abastecer a crescente capital da Província.
Ao deixar a terra natal, o imigrante vislumbrava o tão acalentado sonho de tornar-se
proprietário de um lote de terra. Assim estaria fugindo da exploração de arrendatário vivida
no Velho Mundo. Pela Lei de Terras, promulgada em 1850 pelo então governo imperial
brasileiro, as glebas devolutas que pertenciam ao governo, poderiam ser comercializadas.
Nesse sentido que as colônias de imigração foram demarcadas em pequenos lotes, que não
ultrapassavam os 250 metros de frente e 1000 ou 1200 metros de fundo.
As medidas condicionavam a formação de pequenas propriedades, que o imigrante
poderia adquirir mediante financiamento, estendido em prazos de até cinco anos para o
pagamento. Tornar-se patrão exigia a ocupação imediata e a consequente produção, gerando
os dividendos para quitar a dívida com o governo. As densas matas foram tombadas dando
lugar a predominante policultura, onde a mão-de-obra essencialmente familiar era empregada
em todo o processo da produção.
Mesmo em análise superficial, é facilmente observada a realidade adversa que os
camponeses encontravam no Norte italiano e uma sensível melhoria nas colônias da Serra
Gaúcha. Enquanto que na Europa as condições impossibilitavam a posse da terra, no RS os
camponeses, favorecidos pelos financiamentos do governo provincial, de longo prazo e
valores compatíveis, tornaram-se pequenos proprietários com considerável facilidade. Na
terra natal os colonos não viam perspectivas perante um país que direcionava os investimentos
na indústria, ao passo que na nova pátria a agricultura representava o sustentáculo econômico.
A dicotomia maior era o descaso do governo italiano perante os camponeses, que contrastava
com o empenho das autoridades imperiais e provinciais do RS, onde o governo favoreceu e
criou toda a infraestrutura para o projeto imigracionista.
O deslocamento emigratório dos camponeses promoveu a transplantação cultural do
Norte italiano para a RCI. Isto é, como todos os grupos humanos, os italianos do norte
carregavam suas práticas culturais há tempo enraizadas, que estruturavam sua vivência. No
entanto, a nova terra ensejou importantes transformações dos camponeses que ocuparam os
lotes no Novo Mundo. O contexto e a conjuntura da pequena propriedade policultora que se
delineava na colonização da Serra Gaúcha, contrastava com a condição de meeiro deixado no
Velho Mundo.
A abundância de víveres produzidos nas encostas do planalto é outro fator a considerar
entre as diferenças entre os dois países. Mesmo que acidentadas, as novas terras
representavam, antes de tudo, a sobrevivência, já, há muito, difícil na pátria mãe. Em geral,
evidenciam-se condições favoráveis à transladação humana, de modo que, em pouco mais de
meio século, as terras devolutas estavam efetivamente ocupadas e a região inserida no
processo econômico do estado e do país.
Os Jovens como Tema da História
Bases importantes para este projeto são produções originadas, sobretudo, após o
avanço da História Nova. Exemplo disso é a clássica obra organizada por Le Goff e Pierre
Nora (1995), onde são apresentados os novos processos da História: Novos Problemas, Novas
Abordagens e Novos Objetos, como o campo epistemológico da História.
Na coletânea de textos que envolvem os três volumes organizados por Le Goff e Nora,
os jovens recebem destaque com o artigo de Pierre Vidal-Naquet. O autor analisa a obra de
Joseph-François Lafitau, missionário da Companhia de Jesus, que se propôs a tarefa de uma
ciência do homem universal em uma perspectiva antropológica. Lafitau buscou nos ritos
iniciáticos a comprovação de características universais. “A descoberta devida a Lafitau, de
ritos de iniciação na Grécia, paralelos àqueles das sociedades ‘primitivas’, suscitou no século
XX, sobretudo, inúmeros trabalhos que foram recentemente sintetizados por historiadores”.
(NAQUET, 1995, p. 124).
Para a tarefa, Lafitau esteve na América como missionário no início do século XVIII e
conviveu no Canadá junto as comunidades indígenas hurons e iroqueses, analisando seus ritos
de iniciação. Tais ritos tratam da passagem quando o jovem ascende à comunidade dos
adultos. “É necessário por assim dizer que eles se tornem surdos e mudos e que aprendam
tudo de novo, recomeçam a viver depois de serem mortos de alguma maneira e tornam-se
homens esquecendo que já tenham sido crianças”. (NAQUET, 1995, p. 122).
Vidal-Naquet destaca que entre as inúmeras instituições humanas que o missionário e
antropólogo Nafitau enumera, a iniciação dos jovens deve ser vista com especial atenção. Isso
por que, na interpretação de Naquet, nos ritos iniciáticos ocorrem modificações radicais no
estatuto religioso e social do sujeito e do grupo a iniciar. “Filosoficamente falando, a iniciação
equivale a uma mutação ontológica do regime existencial. Ao final de suas provas, o neófito
desfruta de uma outra existência que não a de antes da iniciação: ele torna-se outro”.
(NAQUET, 1995, p. 122).
Uma das maiores, senão a maior contribuição para o tema dos jovens, é a obra
organizada por Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt. Ela é apresentada em dois volumes: A
História dos Jovens: Da antiguidade à era Moderna e História dos Jovens: a era
Contemporânea. A obra é composta por vários artigos, onde os autores apresentam múltiplos
pontos de vista. Cada um intervém com o próprio conhecimento específico, servindo-se de
fontes de que dispõe e com problemáticas formuladas nas pesquisas recentes. A obra
apresenta histórias de jovens no emaranhado de relações sociais específicas, ligados a
contextos e a momentos históricos distintos.
No artigo de Sabina Loriga, que compõe a obra História dos Jovens e trata deste grupo
etário na experiência militar, da mesma forma que Naquet, os ritos iniciáticos são a referência
para o estudo da juventude. “Tendo como base as inúmeras pesquisas sobre o exército hoje
disponíveis, parece-me, contudo, possível pôr em evidência como a imagem do ritual de
passagem para a idade adulta foi constituído e sedimentado lentamente”. (LORIGA, 1996,
p.17).
A contribuição de Daniel Fabre à obra da História dos Jovens, contempla a vida dos
jovens na aldeia. Mais uma vez o comportamento ritualístico permite compreender o grupo
social em questão. Analisando a festa “majeure” que ocorre na França, o autor identifica as
características de comportamento dos jovens e da aldeia em geral.
Assim, é possível, a partir de uma observação quase contemporânea – uma aldeia
da montanha negra languedociana dos anos 1960 –, estabelecer, de modo
regressivo, os traços recorrentes do que convém chamar de “juventude”,
sublinhando as inflexões que marcaram, em dois séculos, a história dos jovens
camponeses. (FABRE, 1996, p. 52).
A festa analisada por Fabre enfatiza um momento sublime do ritual de iniciação da
juventude que incide para as núpcias. “Com a primeira noite, eis enfim chegado o momento,
tão temido quanto esperado, de pôr a prova esse saber, pois o baile, antes de ser o lugar
principal de encontro e de confirmação dos pares, é aquele onde cada um vem expor-se a
todos os perigos das trocas galantes”. (FABRE, 1996, p. 59).
Em relação a Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul, os ritos sempre fizeram
parte dos estágios vividos na sociedade. Quanto à juventude, esta sempre esteve envolvida no
contexto da ritualização. Historiador da Imigração, João Carlos Tedesco evidencia este
fenômeno: “Não temos dúvida em afirmar que o colono imigrante reconstruiu seu mundo
cultural pelos atos e ritos individuais e comunitários religiosos”. (2006, p. 58).
A ritualização praticada entre os jovens representa uma passagem, uma alteração
profunda em sua vivência. Os mais variados ritos sempre estiveram presentes nas práticas
culturais dos grupos humanos. É neste sentido que o rito do matrimônio promovia importante
mutação na vivência dos jovens ítalo-gaúchos. Apesar de tal rito ser comum na grande
maioria das sociedades, para o grupo em questão, ele ganhou contornos estratégicos e se
constituiu quase que uma necessidade para a conquista da propriedade da terra e a
viabilização econômica. Ainda neste sentido, praticando uniões matrimoniais em idades muito
diferentes daquelas observadas na pátria de origem.
O Mercado Matrimonial na RCI
Ao abordarmos a temática do grupo etário dos jovens e seu mercado matrimonial,
buscamos compreender suas estratégias em constituir família. O matrimônio, neste caso como
rito religioso católico, transformou-se na importante estratégia de organização sócio familiar e
econômica. Contrastando profundamente com a realidade vivida no norte italiano. Como
vimos, a carência de terras e de víveres, foi o principal fator a incitar a emigração. No Velho
Mundo, a subsistência exigia a normalização dos nascimentos no interior da comunidade
camponesa.
Nesta perspectiva, podemos observar que os jovens italianos imigrantes foram
reprodutores dos valores e das condutas culturais herdadas do contexto europeu, mas,
também, protagonizaram sensíveis transformações, originando novas referências para a
sociedade. Neste caso, é importante ter em vista que a cultura é um conjunto de diferentes
recursos. No mundo ou na ação as categorias culturais adquirem novos valores funcionais.
(THOMPSON, 1998). Os significados culturais, sobrecarregados pelo mundo, são
frequentemente alterados. Sendo assim, quando as relações entre as categorias mudam a
estrutura é transformada. (SAHLINS, 1990).
Os valores funcionais aos quais Thompson e Sahlins referem-se, podem ser
identificados no fenômeno histórico da imigração italiana para a América, em especial, na
Serra Gaúcha. Quem observa esta alteração na cultura e nos valores funcionais é a
historiadora Cleci Eulália Fávaro, uma das mais destacadas historiadoras que se dedicou
profundamente nas pesquisas sobre as mulheres imigrantes e descendentes:
A mulher imigrante e sua descendência feminina após a diáspora para a América,
apesar de manter-se no ideal da cristandade, teve que assumir e assimilar um
compromisso muito adverso daquele vivido na Itália. É necessário irromper com o
imaginário coletivo de que a mulher italiana ao deixar a Europa e se instalar na
serra gaúcha, não teria sofrido alterações em seus valores e práticas. (2002, p. 126).
Há que se considerar que o conteúdo que é transmitido geracionalmente detém ampla
imbricação com o sistema familiar praticado que, por sua vez, tem a ver com o conjunto
(variável) de funções desempenhadas pela família numa determinada região ou grupo social.
(ANDREAZZA, 1999, p. 75). Deste ponto de vista, o comportamento da juventude italiana
imigrada, indica a reprodução e/ou a alteração das normas familiares, ao passo que também
aponta para as formas de recriação cultural das novas gerações de descendentes de imigrantes.
Ainda nesta condição de flutuação etária no casamento, MacFarlane (1990) entende
esta prática, como algo muito comum nas comunidades campesinas da Europa, perpetrada
desde o século XVIII. E com base na historiografia brasileira, Maestri (2000) corrobora nesta
afirmação. Para o historiador que viveu na Europa por duas décadas e tornou-se especialista
do tema da imigração italiana, o italiano que aportou no Brasil no final do século XIX,
possuía uma família pequena, reduzida em média de dois ou três filhos.
Ao que tudo indica, a comunidade italiana imigrante fez parte de um
movimento cíclico que se processou na dinâmica transgeracional. A historiografia que trata o
tema do mercado matrimonial entende este movimento como a alteração de modelos e
padrões que são descartados em determinados períodos e retomados em outros. Nesse sentido,
o casamento faria parte de estratégias objetivadas para o futuro. Nestas condições, Ariés
(1981) diz que o casamento incluía a partilha dos corpos, senão por desejo, por obrigação.
Sabe-se que com o tempo as famílias vão assumindo e estabelecendo novos papéis e
que isso promove modificações na forma de relacionamento entre os pais e os filhos. Isto
ocorre porque no interior de uma família, tanto as obrigações entre os sexos quanto os
compromissos entre pais e filhos não estão nitidamente preestabelecidos. Isso estimula a
divisão das funções, bem como o exercício do poder e das obrigações familiares. Assim, os
direitos familiares estão em constante negociação, na possibilidade de serem revistos
constantemente. (SARTI, 2000, p. 43).
A transmissão geracional define-se pela forma que cada sujeito lida com a herança,
pensando e criando a partir daquilo que lhe foi transmitido. No processo genealógico, o tempo
e o espaço se fundem. Onde podem se desencadear repetições aprisionantes ou elaborações
criativas e inovadoras. A tarefa do sujeito assim como da família e do casal é construir,
organizar e transformar suas heranças. (CARNEIRO; PONCIANO, 2007).
Essas considerações remetem a não perder de vista que trata-se de uma sociedade
imigrante, cujos traços culturais estiveram em risco devido ao processo imigratório, conforme
retrata Sahlins. (1990). Nessa perspectiva, o exercício de um sistema familiar conforma a
expressão concreta de uma cultura. Daí que apreender sua morfologia e mapear as
transformações ao longo do tempo equivale a recompor a transformação de uma visão de
mundo.
A tradicional historiografia italiana, em seu Manual Di Stória, identifica que a prática
em postergar ou antecipar o matrimônio era muito comum entre as comunidades europeias.
Desde o período medieval a medida era adotada em períodos em que havia a necessidade de
reduzir o número de nascimentos.
Vi è stato chi, come il demografo inglese John Hajnal, ha ipotizzato l’esistenza
nell’Europa preindustriale, di due modelli matrimoniali molto diversi. Il primo è
tardivo (piú o meno, 24 anni alle nozze per lei, 26 per lui) e caratterizzato dal fatto
che gli sposi mettono su casa in proprio. Qualora non ricevano dalle proprie
famiglie i mezzi per contrarre le nozze e avvivare um’attività autonoma. Il secondo
modello di matrimonio è invece precoce (20 anni per lui e meno per lei), e gli sposi
vanno a vivere nella famiglia del padre dello sposo. (FUMIAN & BENIGNO 1998.
P. 377) 2
2 Havia aqueles que, como o demógrafo Inglês John Hajnal, defendiam a hipótese da existência na Europa pré-
industrial, de dois modelos de matrimonio muito diferentes. O primeiro é tardio (mais ou menos, 24 anos para o
casamento para ela, 26 para ele) e caracterizado pelo fato que o casal adquiriu sua própria casa. Sem receber de
suas famílias os meios para contrair o matrimônio e viver uma atividade autônoma. O segundo modelo de
casamento é bastante precoce (20 anos para ele e menos para ela), e que o casal passou a viver na família do pai
do noivo.
Como vimos, postergar o casamento era uma prática que as comunidades do velho
continente laçavam mão em determinados momentos e épocas. Em relação a Itália,
especificamente, esta estratégia também foi muito comum. Uma série de estudos relacionados
ao matrimônio canônico, desenvolvidos pelo historiador Alessandro Giraudo junto a
Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, revelam uma média etária ainda mais elevada
que a média europeia durante o mesmo período.
In primo luogo i dati su Venezia, dove nel 1800 l’età media dele nozze era oscilante
tra i 29,9 di inizio secolo ed i 31,7 degli anni 80 per i ragazzi, mentre per le ragazze
l’età passò dai 28,8 ai 29,8, per ridiscendere ai 28 sul finire del secolo. Infine,
ultima raccolta di dati riportati nello studio riguarda Riana, nella Diocesi di
Parma, dove l’etá media nel periodo dal 1650 alla fine del 1800 fu di oscillante tra i
32 e 34 anni per gli uomini e tra i 25 e i 30 per le donne. (GIRAUDO, 2007, p.212)3
No interior da comunidade imigrante italiana transladada para a serra gaúcha,
observamos em suas práticas culturais estratégicas matrimoniais, um comportamento herdado
do velho mundo. Não que outras comunidades não tenham lançado mão deste dispositivo,
mas enfatiza-se que, a geração de imigrantes italianos, ao aportarem nas colônias gaúchas de
imigração, trataram de adaptar-se a um mercado matrimonial condizente aos seus anseios e
necessidades. Retomando assim, métodos históricos já praticados por outras comunidades
camponesas na Europa e, sobretudo, na própria Itália.
Os registros matrimoniais que se encontram nos arquivos da Paróquia Santo Antônio
da colônia de Guaporé, correspondentes ao período de 1907 a 1917, apontam uma importante
transformação para a idade dos jovens italianos imigrados ao contraírem núpcias. A média
etária para as mulheres ficou em 19,2 anos e para os homens em 23,7 anos. Uma média etária
matrimonial consideravelmente inferior daquela praticada no continente e, sobretudo no país
de origem na mesma época da migração. Vale retomar os dados apontados por Giraudo, que
indicam a média etária matrimonial de 34 anos para os homens e 30 para as mulheres.
Considerando o percentual médio etário limite, os jovens italianos imigrantes, quando
comparados com as mesmas gerações que permaneceram na Itália, anteciparam as núpcias em
10 anos na nova pátria.
3 Os primeiros dados sobre Veneza, onde, em 1800, a idade média do casamento era oscilante entre 29,9 no
inicio do século e 31,7 dos anos 80 para os homens, enquanto para as mulheres a idade passou dos 28,8 aos 29,
para diminuir aos 28 no final do século. Por fim, a última coleta de dados relatados no estudo diz respeito a
Riana, na diocese de Parma, onde a média de idade no período de 1650 até o final de 1800 oscilava entre 32 e 34
anos para os homens e entre 25 e 30 para mulheres.
A historiadora italiana, Elena De Marchei, pesquisadora da Universidade de Milão, se
deteve ao tema relacionado a família, ao matrimônio e ao trabalho das comunidades
campesinas da Europa nos séculos XVII e XIX. De Marchi observou nos registros de
matrimônio a estratégia adotada pelas comunidades nas alterações das idades nupciais para
regulação dos nascimentos da unidade familiar. A autora aponta para a oscilação etária, com
casamentos mais tardios, ou, mais precoces, sempre conforme os interesses dos grupos.
Possiamo quindi affermare che l’età al matrimonio e la nuzialità sono, di norma,
due fattori determinanti per calcolare feconditá e natalitá. Con l’innalzamento
dell’età al matrimonio si assiste a un abbassamento della feconditá della donna che
non utilizza parte degli anni fertili. Una bassa età al matrimonio, viceversa ,
consente alla coppia di sfruttare più intensamente il potenziale riproduttivo. Per
studiare la diminuizione della natalità in Europa a fine Settecento i Ottocento, gli
storici hanno concentrato principalmente le indagini su tre fattori: l’utilizzo di
pratiche contraccettive, l’innalzamento dell’età al matrimonio e la sterilità dele
donne nei periodi di carestia. (DE MARCHI, p.39, 2009) 4
Tendo em vista essas questões, e considerando a cultura como um elemento
não estático, os jovens protagonizaram importantes transformações ao se fixarem nas colônias
de imigração. Ou seja, as práticas matrimoniais foram alteradas quando comparadas entre o
Norte Italiano e as Colônias da Serra Gaúcha. Os jovens seguiram a estratégia há muito usada
na Europa e Itália, em momentos de fome e falta de víveres, os casamentos em idade mais
tardia, em períodos de abundância, uniões em idade mais precoce.
Uma importante obra financiada pelo governo italiano e intitulada: L'Italia delle
migrazioni interne: donne, uomini, mobilità in età moderna e contemporanea, publicada em
2002, originou uma pesquisa detalhada, entre outros, do mercado matrimonial sobretudo dos
jovens migrantes italianos que se deslocaram pelas diferentes regiões do país no decorrer do
século XIX. Os historiadores Angiolina Arru e Franco Ramella observam que a proveniência,
ou seja, a região de origem, onde se difundem práticas, seja por fatores socioculturais ou
econômicos, influem de forma direta no mercado matrimonial.
4 Podemos, portanto, dizer que a idade do casamento e nupcialidade normalmente são dois fatores determinantes
para calcular fecundidade e natalidade. Ao elevar a idade de casamento ocorre uma redução da fecundidade da
mulher que não usa parte da idade fértil. A menor idade no casamento, por outro lado, permite que o casal
explore mais intensamente o potencial reprodutivo. Para estudar a diminuição da taxa de natalidade na Europa no
final do século XVIII e XIX, os historiadores têm-se centrado principalmente nas investigações de três fatores: o
uso de práticas anticoncepcionais, a elevação da idade de casamento e infertilidade das mulheres em tempos de
fome.
L’età d’accesso al matrimonio è un elemento fondamentale per comprendere a
fondo i meccanismi che regolano lo sviluppo e l’articolazione della dinamica
intrinseca dell’organizzazione sociale della popolazione. Anche a Napoli, come nel
resto dell’Italia, nell’Ottocento uomini e donne si sposano un po’ più vecchi. Ma è
necessario scomporre meglio questo dato in base alla provenienza geografica per
valutarne le eventuali diversità. L’immigrazione incide chiaramente sui
comportamenti matrimoniali. (ARRU & RAMELLA, 2003, p. 121)5
Arru e Ramella apontam para o fator da imigração como elemento a influenciar o
comportamento matrimonial. Ou seja, ao deslocarem-se de uma região ou país para um novo
ambiente, os grupos imigrantes italianos adotaram diferentes estratégias para o matrimônio,
ao que tudo indica, sempre no interesse de otimizar a organização familiar mediante ao
contexto. É neste sentido e herdeiros desta longa tradição europeia, que os italianos imigrantes
ao se estabelecerem nas colônias de imigração no Rio Grande do Sul, adotaram a postura em
contrair matrimônio em idade mais precoce. Prática já adotada, como vimos, há muito tempo
no seu país e de forma mais ampla em boa parte do continente europeu.
Há que se considerar o contexto e as condições socioeconômicos e estruturais em
geral, que a comunidade italiana se inseria no Novo Mundo. A considerável facilidade de
acesso a terra, com longo subsídio governamental associada a relativa abundância de viveres,
estimulou o jovem europeu recém chegado a constituir família em uma idade mais precoce.
Uma realidade que envolvia outros fatores, além da propriedade da terra. Para viabilizar a
propriedade no sentido da produção econômica, seria difícil, senão impossível para o jovem,
se não contasse com a formação da célula familiar. O matrimônio seria determinante para o
jovem casal nubente tornarem-se proprietários e garantir o sustentáculo econômico da
propriedade.
Em condições distintas daquelas do norte italiano, a nupcialidade precoce era adotada
com interesse de compor famílias com elevada natalidade. Um grande número de filhos
garantiria a mão de obra na propriedade de terreno que exigia total força de trabalho braçal.
Diferente das famílias que ingressaram com a imigração, onde os casais possuíam uma média
de 2 e 2,5 filhos, as uniões matrimoniais dos italianos imigrados na nova terra, constituíram
famílias com media de 8 ou 9 filhos. (MAESTRI, 2000). Esse modus operandi garantiu a
reprodução não só das famílias enquanto núcleos de vida, mas também a reprodução de um
5 A idade de acesso ao casamento é um elemento fundamental para compreender totalmente os mecanismos que
regulam o desenvolvimento e articulação das dinâmicas intrínsecas da organização social da população. Em
Nápoles, como no resto da Itália do século XIX, os homens e mulheres se casam um pouco mais velhos. Mas é
necessário analisar melhor esta figura em função da origem geográfica para avaliar eventuais diferenças. A
imigração afeta claramente o comportamento matrimonial.
ethos colonial que foi, por sua vez, perdulário da expansão e da sobrevivência de elementos
da cultura italiana que se metamorfoseou num complexo processo identitário, dando origem a
um grupo que compõe hoje os chamados ítalo-brasileiros.
Considerações Finais
Entendendo a cultura como um conjunto de práticas que englobam os mais variados
elementos da sociedade, onde se concentram os princípios das ações humanas para sustentar
e/ou alterar estes mesmos princípios e ações, encontramos aqui a experiência vivida pelos
jovens imigrantes italianos que aportaram nas colônias de imigração da Serra Gaúcha em fins
do século XIX e início do XX.
Fugindo das duras condições do norte italiano, os jovens que buscavam a propriedade
da terra e melhores condições de vida, vivenciaram uma condição completamente adversa
daquela deixada do outro lado do Atlântico. A conjuntura das colônias de imigração e, de
certa forma, do país em geral, ensejava o aumento populacional e a rápida ocupação de
espaços devolutos. Associado a isso, as autoridades subsidiavam consideravelmente, além da
transladação, o acesso a propriedade da terra.
Fazendo a leitura do contexto das colônias, os jovens italianos entenderam que o
mercado matrimonial precisava ser otimizado, estrategicamente pensado para a formação do
núcleo familiar. Os matrimônios tornaram-se em média 10 anos mais precoces e a natalidade
tornara-se imprescindível para a economia de base familiar pois as terras abruptas ensejavam
muitos braços fortes para gerar os víveres.
Por fim, e retomando a ideia central de nossa análise, observamos que os jovens
italianos romperam com uma cultura de matrimônios tardios praticada na Itália, e na Europa
em geral, que se estendia desde o início dos tempos modernos. Naquela dinâmica que se
processa nas experiências humanas, ao que tudo indica desde de tempos mais remotos, o
grupo em questão, promoveu importante transformação estrutural matrimonial e familiar em
suas vivências, se tratando do fenômeno migratório do Velho para o Novo Mundo.
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