View
0
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
1
I. A FILOSOFIA NO PERÍODO ROMÂNICO DA IDADE MÉDIA
LATINA
PROF. MARCOS AURÉLIO FERNANDES
O século X foi um século de consolidação do projeto de Estado e de civilização,
começado com Carlos Magno. A França é o centro da Europa. Do ponto de vista religioso,
um fato que marca a história é a fundação da Abadia de Cluny. As reformas monásticas
vão se seguindo, no século XI, com uma renovação feita pelos beneditinos, com o
apogeu de Cluny e com o surgimento de novas ordens, como os cartuxos (1084) e os
cistercienses (1098).
Os anos 1000 são para a cristandade medieval o auge do regime feudal, baseado
fundamentalmente nos laços de vassalagem. Do ponto de vista político, emerge o
protagonismo da França, liderada por reis da dinastia capetíngia: Henrique I (1031-
1060) e Filipe I (1060-1108). Neste tempo, Paris se torna a capital da França; antes, a
capital dos francos era Aquisgrana. Também se assiste a uma expansão da dominação
normanda na Itália e na Inglaterra. O século XI é o século das maiores confrontações
violentas entre a cristandade e o Islã, com a reconquista espanhola promovida por
Afonso VI (tomadas de Valência e Toledo) e com a Primeira Cruzada ao oriente, que
levou à tomadas de Antioquia (1098), de Edessa e de Jerusalém (1099). Ainda no plano
político, acontece a “guerra das investiduras” episcopais, travada entre o papa (Nicolau
II e Gregório VII) e o imperador da Alemanha (Henrique IV). Este conflito, porém, só vai
terminar com a concordata de Worms (1122), ficando decidido que a investidura
temporal – pelos quais os bispos são investidos como senhores dos feudos episcopais –
é feita pelo Imperador e a investidura espiritual – pelos quais os bispos são nomeados
como autoridades eclesiásticas nas dioceses – é feita pelo Papa. No campo cultural, o
século XI é o auge da arte românica.
2
Para compreender o pensamento medieval, é preciso intuir o espírito do tempo que
constitui o seu “medium”, o seu elemento e atmosfera. Por sua vez, para intuir este
espírito, nada melhor do que considerar a arte, pois esta dá materialidade plástica e
visibilidade a todo um modo de ser histórico, ou seja, a toda uma ideia de civilização e
cultura. Por isso, vamos partir da consideração da arte românica, para entender o
pensamento dos séculos XI e XII.
III.1. O ROMÂNICO
O românico é um estilo artístico de arte, reconhecível especialmente nas artes
figurativas – arquitetura, escultura e pintura –, cuja vigência pode ser datada dos
primeiros dois séculos do segundo milênio (séculos XI e XII). É irrupção, na história, de
algo original em arte, que espelha algo de original também na cultura e no espírito do
tempo. Poder-se-ia dizer que este algo de original emerge do encontro de dois mundos:
o romano e o germânico, daí o nome “românico” (usado pela primeira vez em 1824 pelo
arqueólogo francês De Caumont). Contudo, esta arte integra também elementos
bizantinos, armênios e islâmicos. Mas, enquanto algo de original, ela não é a simples
soma ou mescla destes elementos, mas é algo mais. Poder-se-ia identificar este estilo
pelas suas características, mas as características por si só não fazem um estilo. Elas
precisam de uma ideia central que as vivifique num todo único e original. Se tomarmos
a arquitetura como exemplo privilegiado, talvez possamos intuir os contornos deste
estilo, seus traços essenciais e a ideia central que vivifica este todo. Em primeiro lugar,
a igreja é o edifício onde este estilo se deixa mostrar mais caracteristicamente. Ela é uma
evolução e uma transformação da basílica romana, só que configurada em forma de
cruz. Ela é a concreção da ideia de “Cidade de Deus” (Civitas Dei). Trata-se de uma ideia
universalizada e espiritualidade de “civitas” (cidade, Estado), um arquétipo ideal, que a
Igreja e o Estado medievais tentam reproduzir no real. Em segundo lugar, a cobertura
do edifício se faz mediante a construção de abóbadas, isto é, de estruturas curvilíneas
de pedra; sendo que os arcos se constituem em elementos característicos. Em terceiro
lugar, são construções articuladas e maciças, com fortes efeitos de claro-escuro e luzes
radiantes que penetram a partir de escassas e estreitas aberturas. Em quarto lugar, a
subordinação das outras artes à arquitetura: pintura, escultura e mosaico.
3
Do ponto de vista estilístico, o edifício é uma síntese de arcos. A superfície curva recebe
um peso na sua parte mais alta e o transmite à sua parte mais baixa. Pequenas partes
de pedra estão em equilíbrio, cada uma recebendo um impulso daquela que lhe é
superior e transmitindo este mesmo impulso àquela que lhe é inferior. O impulso que
vem do alto, porém, finalmente se descarrega sobre os apoios, que recebem, por sua
vez, um impulso lateral, que tende a voltar-se para fora. Portanto, o que caracteriza o
todo é precisamente o mútuo e férreo jogo de impulsos e contra-impulsos gerado pela
abóbada, isto é, pela força que vem do alto.
A igreja românica, na verdade, dá expressão figurativa ao espírito de seu tempo (séculos
XI e XII). A ideia central que move tudo é a da “Civitas Dei”: a cidade de Deus. A igreja
românica não é somente um templo, ela é a imagem do mundo, do universo estruturado
a partir da cruz. Toma-se a basílica romana e se o reconstrói segundo a forma da cruz.
Trata-se de uma imagem paradoxal, uma conjunção de opostos: cidade e cruz. O
crucificado é alguém que morre fora da cidade, expulso, excluído como malfeitor. É
imagem da impotência. A cidade é uma imagem de poder. A basílica é um edifício
imperial (basileia = reino, império). Mas, agora, a cruz é o que lhe estrutura e configura.
A Cidade de Deus é a ideia de uma ordem civilizatória, constituída a partir da cruz, isto
é, da fé cristã, a mesma fé que era dos excluídos, dos escravos, dos marginalizados do
império romano. A Igreja e o Estado, na Idade Média, tentam construir esta ordem
civilizatória. A Igreja Romana e o Império Carolíngio se unem em vista deste projeto.
A cultura românica é uma expressão de sua construção. A igreja românica não é
somente um templo, a morada de Deus, mas é também expressão ideal de um mundo,
de uma ordem que aspira à universalidade. Na fachada da Igreja Românica, em forma
de escultura, pode-se ver o Cristo que domina desde o alto, como o “Senhor” e “Juiz”
universal. Os Apóstolos são seus ministros, os evangelhos, sua lei. O seu Reino é do alto.
Os justos são os cidadãos desta cidade, que é denominada de “Jerusalém”, que, segundo
uma etimologia medieval, significa “visão de paz”. Os cidadãos desta construção, que
compõem a “comunhão dos santos”, estão unidos uns aos outros como pedras vivas,
que se sustentam mutuamente, recebendo e transmitindo o impulso que recebem do
alto. A construção espiritual que resulta daí é maciça, tem o peso, a densidade e a
consistência da pedra.
4
Algumas abóbadas típicas das igrejas românicas são formadas como arcos que se
cruzam. É a conjunção de opostos: o círculo e a cruz. O círculo significa plenitude da vida,
unidade, eternidade; a cruz, quebra, divisão, tempo: vida que vem da morte, unidade
que se conquista a partir da decisão (corte, ruptura, quebra), eternidade que se decide
a partir do tempo. Dentro da igreja românica vigora o claro-escuro: a penumbra da fé,
que é iluminação e obscuridade, ao mesmo tempo. A luz penetra a partir do alto, através
de estreitas aberturas, cujos vitrais são de acabamento rústico. A luz da verdade vem do
alto, da revelação divina, e entra no mundo humano através de estreitas aberturas, as
do intelecto, cuja transparência é sempre rústica, diante da luminosidade sutil e
esplendorosa do divino. Esta é a imagem ideal que a cristandade medieval procura
reproduzir no real da história.
Se a arquitetura românica, que recolhe em si a escultura e a pintura, dão concreção
plástica e visibilidade ao espírito do tempo na pedra, a literatura faz o mesmo na palavra
poética. É neste século que surge a mais famosa canção de gesta da Idade Média: a
“Canção de Rolando”. Escrita por um anônimo, em francês antigo, a canção celebra de
modo poético e lendário, os feitos heroicos de Rolando, ou Orlando, apresentado como
sobrinho de Carlos Magno. A história tem um fim trágico, pois Rolando, que liderava a
retaguarda do exército de Carlos Magno, é morto pelos sarracenos, graças à traição de
seu genro, Ganelão, perto de Roncesvales (Navarra, Espanha). Carlos Magno, então,
vinga a morte de Rolando vencendo, junto ao rio Ebro, a luta contra os sarracenos,
liderados pelo emir da Babilônia. Embora o poema épico tenha um núcleo histórico,
relacionado com uma batalha de Carlos Magno contra bascos cristãos, em Roncesvales,
no ano de 778, ele reflete muito mais o espírito cavalheiresco daquele tempo e o
confronto com o Islã. O poema era recitado para os cavaleiros que partiam para as
cruzadas e também para os peregrinos que faziam o Caminho de Santiago de
Compostela, os quais tinham que passar por regiões próximas aos domínios dos
muçulmanos.
O pensamento dos séculos XI e XII só pode ser compreendido a partir deste horizonte,
que é configurado pelo espírito do tempo.
5
III.2. A FILOSOFIA NO SÉCULO XI
O século X é um século obscuro na história da filosofia. Após Eriúgena, o pensamento se
cala. Eriúgena parece ter sido a última ressonância da antiguidade na Idade Média. A
filosofia antiga, que tinha começado com os poemas sobre a “Physis” termina com um
tratado sobre a “divisão” da physis (Natureza). Há uma certa continuidade, de
Parmênides a Eriúgena. Entre Eriúgena e Anselmo, o maior representante do
pensamento no século XI, há o silêncio, um hiato que separa dois mundos. Eriúgena é a
consumação do pensamento antigo na Idade Média, Anselmo, a abertura de um novo
pensamento, de um pensar original, que vai ganhando forma e densidade no século XII
e que rebenta no século XIII.
III.2.1. A QUESTÃO DA DIALÉTICA E DE SUA RELAÇÃO COM A TEOLOGIA. O
PROBLEMA DA ONIPOTÊNCIA DIVINA E DE SUA RELAÇÃO COM O PRINCÍPIO DE
NÃO CONTRADIÇÃO
O contexto filosófico-teológico dos séculos X e XI é dominado pela questão do estatuto
da dialética, de sua relação com a teologia e da sua aplicabilidade nas controvérsias
teológicas, como as da eucaristia, da predestinação e da onipotência divina. Ora, já
Agostinho tinha considerado a dialética a arte das artes, a disciplina das disciplinas,
porque ensinava a ensinar e a aprender, isto é, ela não somente quer tornar o homem
ciente como também o torna. Alguns, porém, exaltaram tanto a dialética que a
colocaram acima da própria fé.
No século X, dois nomes se destacam: Gerberto de Aurillac e Fulberto de Chartres.
Gerberto de Aurillac, que se tornara o papa Silvestre II (1003), procurou aplicar a arte da
dialética à teologia, especialmente nas discussões sobre a eucaristia. Ele tinha uma
concepção realística da dialética, semelhante à concepção de Eriúgena. A dialética é arte
da “divisio” e da “resolutio”: ela divide os gêneros em espécies e reconduz as espécies à
unidade do gênero (dividit genera in species et species in genera resolvit). Ela não tem
sua origem em construções fictícias (machinationes) da mente humana, mas sua origem
é o próprio Deus, o autor de todas as coisas, em cuja mente estão as leis da natureza
6
das coisas e as leis de todas as artes. Os sábios não produzem a dialética como uma
ficção pura e simples da mente humana. Eles a “inventam”, no sentido medieval do
verbo “inventar”, que significa encontrar, achar algo que já estava ali, mas que estava
despercebido (invenire). Fulberto de Chartres (960-1028) aplicou a dialética na teologia,
mas salientou também os seus limites. A altíssima sabedoria dos desígnios divinos não
pode ser compreendida com os recursos da razão humana. Os mistérios divinos se
abrem aos olhos da fé e não às humanas disputas da razão. A estes dois nomes podemos
acrescentar um terceiro: Abão de Fleury (945-1004), que redescobriu os textos lógicos
de Boécio e providenciou para que o conhecimento aí veiculado pudesse ser transmitido
de maneira didática.
No século XI, os grandes entusiastas da dialética eram chamados de philosophi
(filósofos), sophistae (sofistas), peripatetici (peripatéticos). Anselmo de Besate, também
chamado de Anselmo Peripatético, foi um mestre que procurou cultivar a dialética pela
dialética, sem conexão com a teologia. Outros, porém, postularam uma aplicação
decisiva da dialética ao campo teológico. Acreditavam que a razão podia tudo e que
estaria acima da autoridade da Bíblia e dos Padres da Igreja. Queriam, pois, submeter a
teologia à dialética. Berengário de Tours (1005-1088) é o principal representante desta
tendência racionalista. No contexto das controvérsias sobre a eucaristia, afirmou que o
pão e o vinho não mudavam de essência ou natureza, mas que a presença de Cristo se
dava apenas por um sentido espiritual (intelectual), constituído pelos fiéis. Do lado
contrário, ouve uma reação de tipo fideísta, advinda sobretudo dos círculos dos
mosteiros reformados. Assim, Geraldo de Czanád (+ 1046), que tinha sido grande mestre
da dialética, se converteu, se tornou monge camaldulense, e a partir de então afirmava:
Pedro, João, Tiago e Paulo são mais do que Aristóteles e Platão. Sua oposição, porém,
não era tão forte como a de Pedro Damião (1007-1072). Dedicou grande parte de sua
vida à ascese monástica e à reforma eclesiástica. Participou das controvérsias sobre a
onipotência divina em relação ao princípio de não contradição. A pergunta que se
colocava nesta controvérsia era se Deus pode fazer que o que aconteceu não tenha
acontecido. Por exemplo, a fundação da cidade de Roma. Deus pode fazer que, uma vez
fundada Roma, Roma não tenha sido fundada? Segundo seu parecer, Deus não se
submete a nenhuma regra, pois está acima de tudo. Logo, não se submete nem mesmo
7
ao princípio de não contradição. Também o princípio de não contradição não constitui
um limite para a onipotência divina. Ele vale para a lógica e para o que está submetido
às leis da natureza (na natureza nem tudo está submetido a leis). A dialética não está
acima da teologia, mas é sua serva (ancilla).
O problema da onipotência divina e do princípio de não contradição prosseguiu nos
séculos futuros da Idade Média. Gilberto Porretano, Pedro Lombardo e Guilherme de
Auxerre se colocaram do lado de Pedro Damião. Anselmo da Cantuária e Honório
Augustodunense, porém, ficaram contra ele. O princípio de não contradição não pode
ser abolido: nem mesmo Deus poderia fazer que o que aconteceu não tivesse
acontecido. No entanto, para Anselmo, a razão disso está na própria vontade de Deus,
em sua vontade de verdade. Hugo de São Vitor, por sua vez, diz claramente que Deus
não pode fazer o que é logicamente impossível. Do mesmo parecer são Boaventura e
Tomás de Aquino. Este último diz: sub omnipotentia dei non cadit aliquid, quod
contradictionem implicat (sob a onipotência de Deus não cai aquilo que implica
contradição) (Suma Teológica I, q. 25 a. 4).
Numa posição intermédia, entre Berengário e Pedro Damião, está Lanfranco de Pádua
(c. 1010-1089). Lanfranco foi um célebre mestre da dialética que também entrou para a
vida monástica. No mosteiro, trocou a dialética pela teologia. Lutou energicamente com
Berengário na controvérsia sobre a eucaristia. Para ele, a teologia não se fundava sobre
a arte da razão, mas sobre as autoridades da fé: a Escritura e os Padres da Igreja. Quando
se trata dos mistérios da fé, como é o caso da eucaristia, a investigação da razão é
impotente. Entretanto, Lanfranco não combatia o uso da dialética em si mesma, mas o
seu abuso. Não existe um abismo entre a dialética e a teologia. Aluno e herdeiro de
Lanfranco foi, então, o mais célebre pensador do século XI: Anselmo de Cantuária.
III.2.2. ANSELMO DE CANTUÁRIA (1033/34? -1109)
Anselmo nasceu em Aosta, no Piemonte (Itália), entrou para o mosteiro de Bec, na
Normandia (França), onde foi aluno de Lanfranco, e se tornou, desde 1093 até a sua
morte, arcebispo de Cantuária (Canterbury, Inglaterra).
8
Um feito importante de Anselmo foi a união de lógica e gramática, em sua obra De
Grammatico (Do gramático). Nesta obra, Anselmo une a semântica de Aristóteles com
a gramática de Prisciano, elaborando uma teoria da significação e da denominação. Esta
teoria parte do problema da paronímia. Paronímia (Parônymía) é a característica de uma
palavra que deriva de outra, ou seja, que recebe de outro a sua denominação, como
gramático vem de gramática, e corajoso de coragem, segundo os exemplos dados por
Aristóteles no primeiro capítulo das Categorias. O problema que Anselmo se põe é como
“gramático” pode ser, ao mesmo tempo, uma qualidade e uma substância. A palavra
“gramático” é um nome que recebe sua denominação de “gramática”. Portanto, a ela
se atribui a paronímia. Trata-se de um nome ambíguo. “Gramático” significa,
propriamente, isto é, “per se”, um acidente, mais claramente, uma qualidade, a saber,
“conhecedor da gramática”. Mas, de uma maneira indeterminada, esta expressão
remete a uma substância, isto é, a um indivíduo que tem esta qualidade: a de ser
conhecedor de gramática. “Gramático”, portanto, significa “per aliud” (por outro), isto
é, de maneira indireta, uma substância: este homem, que tem a qualidade de ser
conhecedor de gramática. O termo “homem” denomina e significa direta, principal e
propriamente a substância: este indivíduo. Já o termo “gramático” é ambíguo: por um
lado, denomina a substância significando-a de modo indireto e indeterminado (per
aliud): designa um indivíduo, que é conhecedor de gramática; por outro lado, o termo
“gramático” recebe a sua denominação de “gramática” e significa “per se”, isto é, por si
mesmo, um acidente, isto é, uma qualidade: conhecedor de gramática.
A partir desta teoria da denominação e significação, Anselmo aplica à gramática as
categorias da ontologia aristotélica. Parte do seguinte estado de coisas: o conhecimento
da gramática não é essencial ao homem, embora seja essencial ao gramático. Todo
homem pode entender a linguagem sem precisar da gramática; mas nenhum gramático
pode expor uma compreensão da linguagem sem a formação própria da gramática. Os
conceitos de “gramático” e de “homem” são diferentes. “Homem” nomeia um “quid”,
um determinado “quê”, uma substância. Designa uma substância primeira (substantia
prima) enquanto significa este homem, este indivíduo. Designa uma substância segunda
(substantia secunda) enquanto significa a espécie chamada “homem”, a espécie
humana. O nome “homem” é, por isso, chamado de substantivo. “Gramático” nomeia,
9
diretamente, um “quale”, uma qualidade. O nome “gramático” é, por isso, um adjetivo.
Ele só significa um “quid” (substância) por meio de um “quale” (qualidade). O dialético
se ocupa diretamente com as palavras (voces: vozes) e só mediatamente, por meio das
palavras, com as coisas (res). Neste sentido, ele deve levar em consideração o que as
palavras significam direta e imediatamente (per se). Por isso, à pergunta – quid est
grammaticus? (o que é “gramático”?) – deve responder: vox significans qualitatem
(uma palavra que significa uma qualidade), um adjetivo. “Grammaticus” designa, pois,
diretamente uma “res” (coisa/algo de real), que é um acidente, um “quale” (uma
qualidade) e equivale a “habens grammaticam” (tendo conhecimento da gramática).
“Grammaticus” designa, então, de modo indireto (per aliud) e de modo denominativo
(per apellationem) o homem.
Pode-se ver, pois, que, na obra “De grammatico”, Anselmo molda a gramática segundo
a lógica e a metafísica, mais precisamente, segundo a ontologia da substância. Esta
iniciativa possibilitou, por sua vez, o surgimento de uma lógica da linguagem, no século
XII, com Gilberto Porretano e Pedro Abelardo, e, no século XIII, de uma gramática
especulativa, que tratava dos modos de significar (De modis significandi) das palavras.
Assim, as categorias aristotélicas foram aplicadas à morfologia e à sintaxe. As
abordagens da linguagem de Roger Bacon, Martinho e João de Dácia e Tomás de Erfurt
vão nesta direção. Deste último é a obra “Grammatica Speculativa” (Gramática
Especulativa), que, no século XX, foi objeto de estudo do doutorado de Martin
Heidegger, ainda quando o texto era atribuído a Duns Scotus.
O mote de Anselmo é: “fides quaerens intellectum” (fé buscando entendimento). Trata-
se de uma retomada do mote de Agostinho: “credo ut intelligam” (creio para
compreender). Assim se dá o método especulativo de Anselmo: A “ratio” (razão), como
pensamento que se exerce pela “meditatio” (meditação), busca, no horizonte da “fides”
(fé), o “intellectus” (a compreensão, o entendimento, o “insight”). Como, porém,
entender melhor a relação entre “fides” e “ratio” (razão) em Anselmo? Não se trata de
chegar à fé a partir da razão, como queriam os entusiastas da dialética. Isso é impossível
e danoso. Mas, trata-se de chegar a uma compreensão da fé a partir do exercício da
razão, um exercício que não põe em questão a própria fé, mas a supõe, como horizonte
irrenunciável. Pois, o que está em jogo na fé, é mais do que uma crença ou opinião, ou
10
mesmo a adesão a uma doutrina, é, acima de tudo, a fidelidade a alguém: ao Deus fiel e
à sua auto-revelação. A fé, aqui, é entendida em duplo modo: como “fides qua”, o ato
de crer, e como “fides quae”, o crido, o conteúdo do que se crê. A teologia é “intellectus
fidei”: empenho de intelecção que se dá a partir da fé (do ato de crer, fides qua) e que
se volta para a compreensão do crido (do conteúdo da fé, fides quae). A “fides” (fé) é
dom de Deus. O “intellectus” (intelecto), empenho do homem. Por isso, “fides quaerens
intellectum” pode significar também, em nível mais originário: o dom de Deus que, a
priori, ama, busca e quer, no homem, o empenho de compreender, que é empenho de
receber. Teologia é, assim, o saber de um encontro que se dá entre o Deus que se dá a
revelar e o homem que se dispõe a acolher e a compreender tal auto-revelação de Deus.
Do mesmo modo que o conceito de “fides” (fé), também o conceito de “ratio” (razão) é
duplo. Por um lado, “ratio” denomina a razão como capacidade do homem de processar
a compreensão e apreensão de sentido das coisas (intellectus). Por outro, “ratio” é
entendido como o fundamento e o fundo essencial de alguma coisa (ratio rei). A teologia
consiste em ser a investigação das “rationes necessariae” (razões necessárias) daquilo
que é crido (fides quae). Ela procura encontrar e expor as razões da fé, ou seja, o
fundamento essencial e racional daquilo que é crido. É neste sentido que Anselmo busca
realizar algumas investigações teológicas “sola ratione” (somente com a razão), isto é,
expondo unicamente argumentos de razão, sem recorrer a argumentos de autoridade
(da Escritura ou dos Padres da Igreja).
A busca do “intellectus” (compreensão) ou das “rationes necessariae” (razões
necessárias) no horizonte da fé pressupõe, contudo, a verdade como possível. Mas, o
que é a verdade? Anselmo dedica uma obra em forma de diálogo a esta questão (De
Veritate). Trata-se de uma questão essencial. Ela pergunta pela essência da verdade –
quid sit veritas? (o que é a verdade?). Anselmo parte da experiência: dizemos que há
verdade está ali onde se dá o verdadeiro. Há a verdade de uma indicação (significatio) e
a verdade de uma enunciação (enunciatio); a verdade de uma opinião (opinio), por um
lado, e a verdade de uma vontade (voluntas) ou de uma ação (actio), por outro; há ainda
uma verdade dos sentidos (sensus) e uma verdade da essência das coisas (essentiae
rerum). Muitas são, pois, as formas de verdade: há uma verdade do conhecer, a verdade
lógica; uma verdade do agir, a verdade ética; e uma verdade do ser, a verdade
11
ontológica. A verdade ontológica é o fundamento da verdade lógica. Com efeito, causa
da verdade do juízo ou enunciado está no ser ou não ser da coisa enunciada (res
enunciata). Mas, o que faz com que todas estas formas de verdade sejam verdade? A
resposta de Anselmo é: a “rectitudo” (retidão), ou seja, que algo seja como ele deve ser.
Verdade é, portanto, a coincidência ou identidade entre o ser e o dever-ser da coisa.
Mas, de onde a coisa haure o seu dever-ser? O que é normativo para o real é o ideal,
normativo para a coisa é a ideia da coisa. Conhecimento e ação estão sempre
mensurando o fático (o ser real) a partir da essência, ideia ou norma (o ser ideal, o dever-
ser). Isto quer dizer: a verdade lógica e a verdade ética pressupõem a verdade
ontológica. Mas a ideia da coisa se funda e se fundamenta, originariamente, na mente
de Deus. A verdade das coisas (verdade ontológica) consiste em elas serem aquilo que
eram na mente de Deus, ou seja, em corresponder ao projeto criador divino. As coisas
são imagens concretizadas dos pensamentos de Deus. A “ratio necessaria” (razão
necessária) de uma coisa é justamente a exposição desta verdade essencial das coisas,
a verdade da essência da coisa. Deus é a verdade originária, suprema e infinita, a partir
da qual as coisas recebem o seu ser verdadeiro e as formas de verdade se concretizam.
Com efeito, a “rectitudo” da Verdade, que é Deus, é diferente da “rectitudo” das formas
de verdade derivadas desta verdade originária. A verdade das coisas recebe sua medida
da “summa veritas per se subsistens” (verdade suprema que subsiste por si mesma), que
é Deus mesmo. A verdade de Deus não recebe medida de nenhuma outra, pois ela
mesma é o parâmetro, a partir donde se mede a verdade das coisas (ontológica), e, por
conseguinte a verdade do conhecimento (lógica) e a verdade da ação (ética). Esta
verdade, por conseguinte, não pode se dar de modo plural. Ela é singular: única em si
mesma, e una em todas aquelas outras formas de verdade.
Mas, voltando à pergunta pela essência da verdade, como caracterizar um conceito
formal de verdade, que vale tanto para as formas de verdade derivadas quanto para a
verdade absoluta, una, infinita e suprema? Para Anselmo, a essência da verdade se deixa
dizer nesta indicação: “Veritas est rectitudo mente sola perceptibilis” (verdade é a
retidão perceptível só com a mente). A retidão segundo a qual a coisa é o que deve ser,
ou seja, é o que ela é no pensamento ou no projeto criador de Deus, constitui a verdade
ontológica. Tanto a retidão predicativa, de uma significação ou de um enunciado, bem
12
como a retidão de um conhecimento dado pela experiência ou pela razão, que
caracteriza a verdade lógica; quanto a retidão de uma opinião, vontade ou ação, que
caracteriza a verdade ética; quanto, ainda a retidão segundo a qual uma coisa é o que
ela deve ser, isto é, correspondendo ao pensamento dela no desígnio criador de Deus;
todas estas formas de retidão recebem sua medida da verdade originária, infinita,
absoluta e incriada: Deus. Verdade é a percepção da retidão, percepção que se dá “sola
mente” (com a mente somente), isto é, numa apreensão puramente inteligível.
A investigação sobre a verdade remeteu à verdade absoluta e originária, Deus. Mas,
como demonstrar “sola ratione”, isto é, só com a razão, as “rationes necessariae”, ou
seja, os fundamentos racionais da fé na existência de Deus? Numa primeira obra, o
“Monologion”, Anselmo tenta demonstrar a existência de Deus por meio de dois
argumentos a posteriori, isto é, partindo da experiência. Ele o faz seguindo a via
platônico-agostiniana. Num primeiro argumento, Anselmo toma em consideração
conceitos transcendentais: bonum (bom), ens (ente), unum (uno). Anselmo parte da
existência de bens no mundo, que são mais ou menos bons. Alguns bens nós
consideramos bons pela utilidade (propter utilitatem); outros, pela sua beleza (propter
honestatem). Estes bens são medidos e valorados como mais ou menos bons. Deve
haver, então, uma medida pelas quais se medem os bens. Esta medida deve ser um bem
absoluto e não um bem relativo, algo que é um bem por si mesmo (bonum per se ipsum)
e não um bem por participação, algo que não é um bem, mas o bem. Trata-se, portanto,
do “summum bonum” (sumo bem), que nós chamamos Deus. Este mesmo raciocínio
vale para a grandeza e para a dignidade. Vale, por fim, para o ser. Tudo o que é parece
ser através e a partir de algo que ele não é. Deve haver algo, através do que e a partir
do que tudo o que é, é: o ente que é a partir de si mesmo, o sumo ente. E este sumo
ente não pode ser senão um só: uma vez que a própria verdade exclui que sejam muitos,
aquilo por meio do que tudo é, é necessário que seja um, aquilo pelo que tudo o que é,
é. O segundo argumento toma em consideração uma ordem gradativa no ser de tudo o
que é: a natureza da árvore é menos digna do que a natureza do cavalo, que é menos
digna do que a natureza do homem. Numa há somente o ser, noutra o ser, o viver e o
sentir, noutra, por fim, o ser, o viver, o sentir e o pensar. Esta gradualidade de naturezas
aponta para uma única natureza suprema. Esta é o que ela é, por si mesma, e tudo o
13
que é, é o que é por ela. Melhor: trata-se de uma natureza, que é por si mesma boa e
grande; que é por si mesma aquilo que ela é; que é por si mesma o que é sempre
verdadeiro, bom e grande; e que é o sumo bem, a suma grandeza, o sumo ente ou a
suma substância, ou seja, que é o Altíssimo, de tudo aquilo que é. Esta argumentação
pressupõe, pois, o ser por participação (participatio), que é sempre relativo, a saber, o
ser da criatura; e o ser em sentido absoluto, que é o ser de Deus. O relativo é por outro
(ens ab alio). Já o absoluto é por si mesmo (ens a se). Os muitos relativos pressupõem,
contudo, um único absoluto.
Já no Proslogion (alocução), Anselmo busca um argumento único (unum argumentum),
que possa demonstrar de modo a priori a existência de Deus. Trata-se de um argumento
que não precise de outros argumentos para demonstrar, mas que seja suficiente para
demonstrar por si mesmo que Deus em verdade existe. Este “argumento único” de
Anselmo foi chamado por Kant de “argumento ontológico”. No capítulo II, a partir do
espírito do “credo ut intelligam” (creio para compreender) ou do “fides quaerens
intellectum” (a fé buscando a compreensão) – que, aliás, é o subtítulo da obra –,
Anselmo diz: “et quidem credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari possit” (o certo
é que cremos que tu és algo, acima do qual não se pode pensar nada de maior). Esta
denominação assinala a transcendência de Deus. Que ela fale do Deus da fé e da
revelação torna-se claro pelo fato de Anselmo orar a este Deus, cuja existência ele quer
provar (!). Mas, será mesmo que se trata de uma prova, em sentido apologético? Ou se
trata mais de demonstrar, melhor, de mostrar a racionalidade daquilo que se crê? Neste
caso, seria a penumbra da fé buscando a clareza da compreensão. Em todo o caso, a
expressão “aliquid quo nihil maius cogitari possit” (algo, acima do qual não se pode
pensar nada de maior) não é nova: está enraizada na tradição latina (Sêneca, Cícero,
Agostinho, Boécio). Nova é a explicação que se segue. O insipiente diz em seu coração:
não há Deus, Deus não existe (cfr. Salmo 13, 1). A proposição “Deus existe”, como
enunciado de algo crido, ou seja, de um conteúdo da fé, não é evidente por si mesma. É
preciso, pois, que intervenha a razão. Pois bem: o insipiente entende o que significa a
expressão “aliquid quo nihil maius cogitari possit” (algo, acima do qual não se pode
pensar nada de maior). Enquanto esta expressão é entendida, ela está em seu intelecto:
“intelligit quod audit, et quod intelligit, in intellectu eius est, etiam si non intelligat illud
14
esse” (entende o que ouve, e aquilo que entende está em seu intelecto, mesmo se não
entende aquele ser). Uma coisa, porém, é ser no intelecto (esse in intellectu), outra é ser
real (esse rem). Por exemplo, o pintor tem em mente uma obra. Esta obra, enquanto
simplesmente pensada e intencionada pelo pintor, só tem o ser no intelecto do pintor.
Agora, se esta obra é produzida e levada a cabo, ela passa a ser realmente, a ter um ser
real, um ser na realidade efetiva (esse in re). Assim, o que existe somente no intelecto é
menor do que aquilo que existe efetivamente na realidade. Ora, é certo que aquilo acima
do qual não se pode pensar nada de maior não pode ser somente no intelecto: “si enim
vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re, quod maius est” (de fato, se existe
só no intelecto, se pode pensa-lo existente também na realidade e este é ainda maior).
Negar que Deus exista na realidade, portanto, conduz a uma contradição: “por
conseguinte, se aquilo acima do qual não se pode pensar nada de maior, existe só no
intelecto, aquilo acima do qual não se pode pensar nada de maior é aquilo acima do qual
se pode pensar uma coisa maior”. Isso feriria o princípio de não-contradição: seria
afirmar e negar ao mesmo tempo o mesmo predicado do mesmo sujeito: “Deus é aquilo
acima do qual não se pode pensar nada de maior e Deus é aquilo acima do qual se pode
pensar algo de maior”. A negação da existência de Deus é racionalmente absurda. A
afirmação da existência de Deus é racionalmente evidente. A conclusão é, pois: “sem
dúvida, portanto, algo acima do qual não se pode pensar nada de maior existe, quer no
intelecto, quer na realidade”. Mas, porque então o insipiente diz em seu coração que
Deus não existe? Anselmo distingue entre o simples pensar (cogitare) uma palavra, que
é uma voz significativa (vox significans) e o entender o que é significado com ela, ou seja,
entender a coisa mesma, aquilo que ela é (intelligere id ipsum, quod res est) (Capítulo
IV). Se se entende aquilo que se pensa, quando se nomeia “aquilo acima do qual não se
pode pensar nada de maior”, não se pode pensa-lo como não existente (Capítulo III).
Um monge contemporâneo de Anselmo, de nome Gaunilo, porém, não ficou convencido
com a demonstração. Por isso, escreveu um livro intitulado “Liber pro insipiente” (Livro
em favor do insipiente). Para ele, a passagem do “esse in intellectu” (ser no intelecto)
para o “esse in re” (ser na realidade) não é evidente. Há uma diferença entre o ser
pensado e o ser real. Eu posso pensar uma ilha no oceano que ultrapasse a todas as
outras em seus atributos e essa ilha não existir realidade. A resposta de Anselmo é que
15
Deus não é uma ilha. Isto quer dizer que Gaunilo não observou a singularidade deste
ente cuja existência está em questão nesta demonstração. O argumento de Gaunilo
poderia valer para um ente qualquer, mas não para o ente supremo. Entretanto, a
objeção de Gaunilo abre a perspectiva de uma objeção que sempre de novo se repetiu
contra o argumento único do Proslogion: o argumento de Anselmo faria um salto
indevido da ordem do pensar para a ordem do ser, pois afirma que, pelo fato de não se
poder pensar Deus como não existente, deve-se concluir que ele existe realmente.
Entretanto, Anselmo distingue, sim, estas duas ordens e afirma que a ordem do ser é
maior do que a ordem do puro pensar. É justamente tendo isso como pressuposto, que
ele afirma que não se pode dizer que Deus existe só no pensamento e não na realidade
e que se deve dizer que Deus existe, quer no pensamento, quer na realidade.
O argumento de Anselmo provoca uma reflexão relevante sobre pensar e ser. Parece
pressupor uma identidade entre pensar e ser: as leis do pensar seriam também as leis
do ser. Não se pode pensar Deus como não existente, logo, Deus existe. Uma tese assim
teria sentido se fosse pressuposta a identidade de pensar e ser. Entretanto, Anselmo
supõe uma diferença entre o ser-pensado (esse in intellectu) e o ser realmente (esse in
re). O que ele afirma que Deus não pode ser pensado como algo que existe apenas no
pensamento. Quem entende aquilo que está dizendo, quando fala de Deus, não pode
pensa-lo como não existente. Essa impossibilidade não é somente psicológica; nem
somente lógica; mas é ontológica; ou seja, ela não é fundamentada somente na “ratio”
(razão) do homem, mas também na “ratio rei” (no sentido da coisa mesma) e trata-se
de uma “ratio necessaria” (razão necessária). Com este argumento, será que Anselmo
pretende encerrar Deus no limite de um conceito e da razão humana? A resposta é: não.
A própria expressão usada para designar Deus – aquilo acima do qual não se pode pensar
nada de maior – aponta para a grandeza transcendente do sujeito em questão. Anselmo
sabe que Deus é maior do que aquilo que o homem pode pensar dele: quod maior sit
quam cogitari possit (que é maior do que aquilo que se pode pensar). Deus não é um
primeiro ente no universo dos muitos entes. Entre o ente supremo e o fundamento pelo
qual tudo o que é, é, há uma diferença abissal. Dizer que Deus é o ente supremo,
entendendo esta excelência em sentido relativo e ôntico, é ainda pouco. É preciso dizer
muito mais, isto é, é preciso apontar para a sua excelência no ser, enquanto aquilo pelo
16
que tudo o que tem o ser, ou melhor, enquanto “vere esse”, ser em sentido verdadeiro,
ou seja, o ente que tem a singularidade de ser a pura, simples e absoluta perfeição do
ser. Quem pensa Deus não pode somente chegar ao limite do pensável, deve também,
em pensando-o, ultrapassar esse próprio limite. A expressão “aquilo acima do qual não
se pode pensar nada maior” é um convite a pôr-se no limite do pensável e a ali intuir o
que ultrapassa todo o pensável: a plenitude pura e simples, absoluta do “ens a se” (ente
que é a partir de si), melhor, do “vere esse” (ser em sentido verdadeiro e próprio).
O modo como Anselmo abordou a relação entre fé e razão se tornou paradigmático para
a teologia escolástica. Sua teoria da significação e da denominação influiu na elaboração
de uma doutrina da “analogia entis” (analogia do ente), que iremos estudar em Tomás
de Aquino. Sua abordagem lógica da gramática influiu na lógica linguística do século XII
(Gilberto de Poitiers e Pedro Abelardo) e sua abordagem ontológico-categorial da
gramática influiu na elaboração de uma gramática especulativa no século XIII (Roger
Bacon, Tomás de Erfurt). Mas, o que fez história mesmo ao longo dos séculos foi o
“argumento único” do Proslogion. Na Idade Média, estão a seu favor Guilherme de
Auxerre, Boaventura, Mateus de Aquasparta, Egídio Romano e Duns Scotus. Já Tomás
de Aquino e Guilherme de Ockham não o aceitam. Descartes o assume, desligado do seu
contexto. Kant o critica e rejeita. Hegel o apoia. Cada um, a partir de sua perspectiva de
pensamento. O que não se pode negar é que Anselmo foi uma autoridade para os
medievais e constitui também um pensador respeitado também pelos pensadores
modernos. E, se os continentais hoje o consideram devido aos seus temas, os analíticos
o retomam devido ao rigor formal lógico de suas exposições e devido à sua teoria lógico-
semântica.
III.3. O SÉCULO XII
Os homens do século XII respiram ares de modernidade: já não se acham simplesmente
como herdeiros dos antigos, mas também como iniciadores de algo novo. Coisas novas
vão acontecendo em todos os campos da vida destes homens. Por toda a parte sopram
novos ares. Para entendermos bem o contexto da filosofia no século XII, vamos tentar
17
descrever as principais correntes de renovação e as confluências culturais, intelectuais
e espirituais que estas correntes, não sem tensões e conflitos, sofrem no dinamismo que
marca a vitalidade do espírito deste tempo.
III.3.1. CORRENTES DE RENOVAÇÃO HISTÓRICA NO SÉCULO XII
Politicamente, o século XII assiste ao nascimento da rivalidade franco-inglesa e à
continuação dos confrontos entre cristandade e islã (II e III cruzadas). A aristocracia,
composta pelos cidadãos nobres ou cavaleiros, são ainda a classe dominante. As cortes
dão origem a toda uma cultura dos relacionamentos de vassalagem entre vassalos e
suseranos, entre cortesãos e reis. A cultura cortesã assiste ao surgimento dos romances
de cavalaria, que exaltam o “fin’amour” (fino amor) dos franceses ou a “hohe Minne”
(alto amor) dos alemães. Ficção poética ou não, trata-se de uma concepção muito
própria do amor. O “amor cortês” (amor curialis) se distingue do amor conjugal. Dá-se
no relacionamento de um cavaleiro com uma dama, que não é sua esposa. Era
apresentado um exercício de nobreza, pois implicava um relacionamento
desinteressado, que não estava em vista de uma sociedade conjugal e familiar, nem de
descendência. Não obstante, tal amor era visto como perigoso por muitos, pois era
nitidamente erótico e parecia induzir ao adultério. Nos romances de cavalaria, as regras
de devotamento e devoção do vassalo para com o seu senhor se transferem para a dama
ou senhora (cortesia).
Já no fim do século XII aparecem na coorte de Aquitânia poemas destinados a cavaleiros,
que desenvolvem uma nova concepção da relação homem-mulher, ao menos no plano
poético, se não no plano real. A fonte de inspiração é tirada no De amicia, de Cícero. O
maior poeta e trovador francês do século XII foi Chrétien de Troyes, entre outras coisas,
foi autor de um ciclo de histórias relacionadas com o Santo Graal, com o rei Artur e os
cavaleiros da távola redonda, como Lancelote e Percival. Emergem, assim, romances
como o de Erec e Enida, Lancelote e Guinevere, Tristão e Isolda. No século XIII, o “Roman
de la Rose” (Romance da Rosa), de Guilherme de Lorris, completado por João de Meun,
vai representar as vicissitudes e peripécias, as venturas e desventuras da “ars amandi”
(arte de amar) em forma de poema alegórico.
18
O século XII é também o tempo do renascimento das cidades: é a hora da revolução
comunal. Com as comunas, aparecem também as escolas urbanas: as escolas de
dialética, com a de Abelardo, e as escolas catedrais. Se nas escolas monásticas, os
estudos estavam voltados para a contemplação, e o pensamento trabalhava no silêncio
do claustro, nas escolas urbanas, estão voltados pra a comunicação, para a “doce e
frutífera conexão entre a razão e a palavra”, isto é, para a linguagem, que funda e
fundamenta o convívio entre os homens das cidades. As artes liberais revigoram-se. No
campo do trivium, a gramática e a dialética são cultivadas apaixonadamente. No campo
do quadrivium, o estudo da natureza, cultivado numa perspectiva platônica, sugerida
pelo Timeu, recebe novo impulso. Erguem-se, assim, as escolas de São Vitor e de
Chartres, como representantes, respectivamente, de uma e outra tendência.
Nesse tempo, a própria vida monástica se renova, com a fundação de numerosas
abadias cistercienses. O representante mais insigne desta espiritualidade é Bernardo de
Claraval. Ele renovou os estudos monásticos, assumidos na linha da tradição de Anselmo
e Agostinho. Promoveu o estudo das letras latinas. Com ardor cavalheiresco, levantou
as armas da eloquência em favor da “Scola Christi” (Escola de Cristo) contra a Babilônia
cultural de seu tempo, sob cuja ótica via os mestres da dialética, como Abelardo.
Mas a mística deste tempo é também feminina. Desponta em primeiro plano a figura de
Hildegarda de Bingen (1098-1179). A abadessa de Bingen (Renânia, Alemanha) foi uma
mulher culta, que conhecia as letras latinas, e, além disso, foi compositora, poetisa e
grande observadora da natureza: das pedras, das plantas e dos animais. Numa época
em que os mosteiros femininos dependiam dos masculinos, ela rompeu com o costume
e fundou o seu próprio mosteiro. Manteve correspondência com papas, imperadores,
bispos, abades e reclamava veementemente uma reforma dos costumes, dominados
pela corrupção e pela simonia. Sua obra prima, intitulada “Scivias” (Conhece os
caminhos), apresenta entre visões e especulações, as vias da união mística entre o
humano e o divino. Ela abrirá um caminho que será trilhado por outras mulheres
extraordinárias da Idade Média: Hadewich de Amberes, Clara de Assis, Ângela de
Foligno, Catarina de Siena, Matilde de Magdeburgo, Juliana de Norwich, entre outras.
Através delas, o fin’amour se transpõe e se expressa com voz feminina para o campo da
mística.
19
Enquanto isso, são envidados esforços para sistematizar o saber deste tempo. Nascem,
a partir do método dialético do sic et non (sim e não) de Abelardo, os livros das
Sentenças, que tem em Pedro Lombardo, o principal autor. Nasce também a literatura
das Sumas, que irá ter tanta importância no século seguinte.
É na segunda metade do século, porém, que outro movimento de renovação cultural se
despontará. Trata-se da apropriação dos escritos árabes e aristotélicos. O epicentro
deste movimento, levado a cabo por cristãos moçárabes e por cristãos do norte, estava
em Toledo, que tinha sido retomada na empreitada da reconquista no ano de 1085. Um
século depois desta retomada põe-se em movimento toda uma atividade de tradução
do corpus filosófico greco-árabe. Os principais tradutores eram: Gerardo de Cremona,
João Hispano e Domingo Gundissalino. Outra corrente de tradução vem da Itália,
especialmente da Sicília. Trata-se da atividade de helenistas que tinham contato com
Bizâncio e que traduziram textos de Aristóteles diretamente do grego. Destes,
destacam-se Tiago de Veneza e Henrique Aristipo. Foi a partir da atividade destes
homens que, no século seguinte, foi possível uma imensa e decisiva renovação do
pensamento medieval, em cuja vanguarda estiveram Alberto Magno e Tomás de
Aquino.
III.3.2. HERMENÊUTICA DA HISTÓRIA NO SÉCULO XII
O primeiro milênio do cristianismo foi marcado por uma consciência histórica vivida às
portas do Juízo final. O sentido escatológico da história dava à vivência do tempo um
caráter de decisão eterna. Era tempo de vigilância e discernimento contínuo, pois, a
qualquer momento, o Anticristo podia iludir os homens sobre o bem e o mal e seduzi-
los. Em todo o momento se vivia a experiência da decadência e do declínio. “Cadit
mundus” (o mundo cai), já dizia Jerônimo, em plena época da decadência do Império
Romano (séc. V). No século XII, Hugo de São Vitor ainda fazia uma leitura da história,
percebendo no Ocidente o lugar do declínio, não só do sol, mas também da humanidade
terrena. A história caminha do oriente para o ocidente, como o sol. No oriente estava o
primeiro homem. Dos grandes impérios orientais, que inclui Assírios, Caldeus e Medos,
20
o movimento da história chega ao ocidente, primeiro com os Gregos e por fim com os
Romanos.
Na leitura do Apocalipse de Hildegarda de Bingen, porém, a aterrorizante imagem do
Juiz que está às portas cede lugar para a revigoradora imagem do Esposo que retorna e
que traz a primavera, após longo inverno. Hildegarda lê o tempo da Igreja como um
tempo de viuvez, em que a Esposa (a Igreja) e o Espírito anseiam pelo retorno do Esposo
(Cristo). Ela lê o Apocalipse à luz do Cântico dos Cânticos de Salomão, o poema de amor
do Antigo Testamento. A história já não é vista como a marcha dos tempos para o fim
glorioso, isto é, para o triunfo do Reino de Deus, mas muito mais como as vicissitudes e
peripécias do encontro, desencontro e reencontro de amor entre Deus e a humanidade.
O mistério tremendo da história esconde no seu bojo o mistério fascinante do amor
divino que busca o amor humano.
Toda vitalidade espiritual e o sentido de renovação do século XII irrompe, enfim, na
consciência histórica do controvertido monge calabrês Joaquim de Fiori (c. 1132-1202).
Nele a consciência da história se transforma em profetismo. Como ele mesmo
reconhece, em seu caráter e estilo há algo de “rusticus et impolitus”, isto é, algo de
tosco, áspero, solitário, quase selvagem. Foi monge cisterciense, mas quis fundar o seu
próprio mosteiro e conseguiu a aprovação do papa Celestino III. Encontrou apoio Junto
do papa Clemente III, que o incentivou em seu projeto de escrever comentários
exegéticos à Bíblia. Contudo, no pontificado de Inocêncio terceiro seus escritos
começaram a ser alvo de suspeitas, sobretudo no tocante à teologia trinitária. Quando
ocorreu a condenação de algumas de suas opiniões, no Concílio Lateranense IV (1215),
Joaquim já estava morto (morreu em 1202).
Depois da “Cidade de Deus” de Agostinho, a obra de Joaquim de Fiori representa a
segunda grande teologia da história. Tendo peregrinado à Jerusalém terrena,
reconquistada pelos cristãos, Joaquim era um homem que considerava iminente a
descida dos céus da Jerusalém Celeste, ou seja, o fim apocalíptico da história. Não por
acaso que uma de suas obras principais tenha sido a sua Expositio in Apocalipsim
(Exposição sobre o Apocalipse). Outra importante obra de Joaquim intitula-se Liber
concordiae Novi et Veteris Testamenti (Livro da Concordância entre o Novo e o Velho
21
Testamento). Nesta obra, Joaquim desenvolve o seu método exegético, o método da
“concórdia”, que, calcado sobre o sentido literal do texto bíblico, procura descobrir
concordâncias entre três tempos da história, lida teologicamente como “história da
salvação”, a saber, o tempo do Velho Testamento (Antiga Aliança), do Novo Testamento
(Nova Aliança) e da Igreja. Nas interpretações bíblicas de Joaquim, a história de Cristo
reproduz a história de Israel e a história da Igreja, a história de Cristo. E ele procura
descobrir paralelismos entre estas três histórias de uma única história. No passado há
uma força de futuro, exposta pelos profetas, que são os hermeneutas do presente e os
guardiões da iminência. Por isso, o passado retorna sempre de novo. Contudo, aos
poucos, a perspectiva cristológica vai cedendo lugar a uma chave de interpretação
trinitária. A história se transforma numa teofania da Trindade. À era do Pai, o Antigo
Testamento, sobreveio a era do Filho, que é o Novo Testamento. Por sua vez, à era do
Filho deve advir a do Espírito Santo. Nesta nova era (aion/aevum), a Igreja deveria passar
por um processo de espiritualização, de um retorno ao evangelho, à humildade e
pobreza do início. A voz de Joaquim se erguia, assim, como uma entre outras que, nos
séculos XII e XIII vão apresentar ideias evangelistas e pauperistas de renovação do
cristianismo. Não à toa, muitos dos homens do século XIII vão ler à luz da esperança
joaquinista o aparecimento, no século XIII, de Francisco de Assis e sua proposta de um
retorno radical à pobreza evangélica. Este seria o anjo da paz que vem anunciar a nova
era, a do Espírito. Esta será, por exemplo, a leitura de Pedro de João Olivi e dos
chamados “espirituais” franciscanos, como Ubertino de Casale e Ângelo Clareno,
grandes propugnadores de uma conversão da Igreja para o evangelho e a pobreza
evangélica.
Há ainda um vínculo entre esta concepção da história e aquela do idealismo alemão, em
plena modernidade. Schelling cita expressamente o abade calabrês Joaquim de Fiori. Em
“Filosofia da Revelação”, toma o tríptico Pedro-Paul-João como imagem da Trindade na
história. O Pai reina no passado, o Filho no presente e o Espírito Santo no futuro. Assim
como o Antigo Testamento foi dominado pela figura de Moisés, Elias e João Batista,
também o Novo Testamento é dominado pelas figuras de Pedro-Paulo-João Evangelista.
Moisés e Pedro representam a Lei e a estabilidade da Tradição (Tese); Elias e Paulo, a
antítese, ou seja, a liberdade e o dinamismo criativo; João Batista e João Evangelista, a
22
síntese, quer dizer, a superação e reconciliação entre os opostos, a consumação no amor
plenamente espiritual. Hegel não cita Joaquim de Fiori, mas é sabido que haure o
método dialético das leituras teológicas e teosóficas especialmente de Jacob Böhme,
cujas influências medievais são notórias. Na juventude, Hegel mostra preferência pelos
escritos de João. Este representaria a síntese da religião do espírito e do amor. A história
não é outra coisa que o desenvolvimento do reino do Espírito, ela é fenomenologia do
Espírito, assim como era para Joaquim de Fiori uma teofania da Trindade. Para Hegel, a
fenomenologia é a marcha do Espírito que caminha para o conceito de si mesmo. O
Reino do Pai seria, assim, a Idéia indeterminada; o reino do Filho, a Idéia estranhada; e
o reino do Espírito, a Idéia que retorna a si mesma no conhecimento de si (conceito).
III.3.3. BERNARDO DE CLARAVAL
Enquanto especulativa, a teologia mística do século XII guarda vínculos íntimos com a
filosofia. Como contraponto ao empenho de uma teologia dialética, ela acentua o
caráter afetivo do conhecimento de Deus, ou seja, que, em relação a Deus, conhecer e
amar são o mesmo. O conhecimento é, assim, interpretado em termos de um espiritual
experiri (experimentar), sentire (sentir) e videri (ver). Esta impostação afetiva e
introspectiva, por sua vez, produziu finas observações psicológicas e antropológicas,
além de consistentes reflexões teológicas.
Bernardo de Claraval (1090-1153) foi um abade cisterciense de grande influência na vida
política e eclesiástica de seu tempo. Opôs-se à suavidade da reforma monástica de
Cluny. Teve um papel importante no incentivo à Segunda Cruzada (1146). Para o seu
primo Hugo de Payns, mestre da Ordem militar dos Templários, escreveu um elogio da
nova cavalaria. Foi ferrenho opositor dos dialéticos, especialmente de Pedro Abelardo e
de Gilberto de Poitiers. Com a ajuda de seu discípulo Guilherme de Saint Tierry,
Bernardo escreveu um Tratado sobre alguns erros de Abelardo. Com o apoio do
arcebispo de Reims, Joscelino, conseguiu a condenação de Abelardo (1141). Pedro o
Venerável, porém, abade de Cluny acolherá Abelardo até a sua morte em seu mosteiro.
23
Entretanto, para além de suas lutas e polêmicas, Bernardo é um teólogo da mística e um
fino conhecedor da psicologia e da antropologia. O homem foi criado à imagem e
semelhança de Deus, apto a participar de sua glória e felicidade e da abundância de seus
bens. Ele é “capax Dei” (capaz de Deus). O que torna o homem capaz é, porém, a sua
vontade livre. A liberdade é a nota distintiva da imagem e semelhança de Deus no
homem. Mas, em que consiste a liberdade da vontade? Antes de tudo, é liberdade da
necessidade (libertas a necessitate) e liberdade da coação (libertas a coactione). Esta
liberdade-de é a condição de possibilidade do poder de consentir ou dissentir. Enquanto
livre arbítrio, porém, o exercício da liberdade requer conhecimento e julgamento. Neste
sentido, o ato volitivo vem sempre acompanhado de um ato cognoscitivo. O livre arbítrio
não é somente autodeterminação, mas também autojulgamento. Esta liberdade do livre
arbítrio não pode ser cancelada por nada, nem pelo pecado. Contudo, embora condição
necessária para a liberdade, o livre arbítrio não é suficiente. É preciso outras duas formas
de liberdade: a “libertas consilii” (liberdade de conselho), que consiste na faculdade de
ponderar os motivos da própria decisão; e a “libertas complaciti” (liberdade de
comprazer), que consiste em ponderar aquilo que agrada e aquilo que desagrada. Estas
duas formas, porém, o homem pode perder. O pecado, com efeito, leva o homem a
perder ambas estas formas de liberdade. Só a posse destas três formas de liberdade
torna o homem livre. Por isso, para ser livre, o homem precisa usar de seu livre arbítrio
para alcançar a sua libertação do pecado.
O primeiro passo na libertação é a renúncia à “vontade própria” (vontade egoísta). Em
segundo lugar, o homem precisa submeter sua vontade à verdade e elevá-la nos degraus
do amor espiritual. Somente assim a “anima magna” (alma grande) do homem deixa de
ser uma “anima curva” (alma curva) para ser uma “anima recta” (alma reta). Quando o
homem se encontra encurvado sob o peso do pecado, o amor que ele conhece é
somente o amor carnal, que é o amor egoísta. É este amor que se degenera em
concupiscência (cobiça), que é o amor egoísta a extravagar os limites da necessidade.
Para que o homem alcance, pois, a libertação e se erga a si mesmo, ele precisa superar
o amor egoísta e se pôr no movimento do amor desinteressado, a caridade, abdicando
à “vontade própria” e abraçando a “vontade comum”. A caridade é, enfim, a força que
eleva o homem restaurando nele a semelhança divina. O caminho de retorno do homem
24
para Deus passa, segundo Bernardo, por três estágios. Ele começa com a humildade, ou
seja, o reconhecimento da própria miséria. O segundo estágio consiste em o homem se
compadecer com as misérias dos outros homens. O terceiro estágio acontece quando o
homem, purificado, volta o seu olhar para a contemplação das coisas invisíveis.
Bernardo fala também de quatro degraus do amor. No primeiro degrau, o homem ama
a si mesmo sob o império da necessidade (amor carnal). No segundo, o homem ama a
Deus, mas não por Ele mesmo e sim por seu próprio interesse. No terceiro, o homem
ama a Deus por Ele mesmo, mas também tem em vista o seu próprio interesse. Raros
são os que, nesta vida, ultrapassam este degrau e alcançam o quarto e último, onde o
homem ama-se a si mesmo única e exclusivamente por causa de Deus. Aqui o homem
se torna uma perfeita semelhança a Deus. Nesta perfeita assemelhação ou deificação o
amor de Deus e o amor do homem não se excluem, mas se identificam, tornando-se
uma só coisa.
Importante notar, nesta teologia mística de Bernardo, a concepção que ele tem da
humildade. Na sua abordagem a clássica definição da humildade como “desprezo de si
mesmo” é reinterpretada ontologicamente como “aniquilação do criado”. No século XIII,
a questão De humilitate (Da humildade), disputada por Boaventura (1255) e o tratado
de um anônimo franciscano intitulado “Compendium de virtute humilitatis” (Compêndio
da virtude da humildade) dão prosseguimento à perspectiva aberta por Bernardo. Há
dois tipos de ser: o da natureza e o da graça. Na ordem da natureza, a humildade é
conhecimento da verdade de nós mesmos, que vem da consideração de nossa niilidade
(do nosso nada criatural). Na ordem da graça, a humildade é o reconhecimento severo
da consciência, que nasce do conhecimento de nossa própria niilidade como pecado. A
humildade da verdade é a raiz de outras virtudes, como a paciência, a magnanimidade
e a constância. Considera como um nada tudo aquilo de que o homem se gaba em sua
soberba. Esta elevação que a humildade traz consigo é a fonte da verdadeira
magnanimidade, tão louvada na ética aristotélica e estoica. Neste escrito franciscano,
pela primeira vez na história da língua latina, aparece o termo “nihileitas”, niilidade, cuja
ideia será retomada mais tarde também nos escritos de outro grande místico
especulativo medieval: Mestre Eckhart. Bernardo de Claraval, portanto, deixará marcas
25
profundas na mística medieval, nos vitorinos, nos franciscanos e em Eckhart. Dante o
escolherá como guia, na Divina Comédia, para o caminho da união mística.
III.3.4. A ESCOLA DE SÃO VITOR
A escola claustral de São Vitor foi fundada junto de uma capelinha nos arredores de
Paris, por Guilherme de Champeaux, ex-mestre de Abelardo, que, após ter sido
derrotado pelo discípulo, ali se refugiou. Dentre os grandes nomes que despontaram
naquela escola, sobressaem os vitorinos: Hugo de São Vitor (+ 1114) e Ricardo de São
Vitor (+ 1173).
Hugo, saxão, é o maior representante da escola de São Vítor. Suas obras mais
importantes são: o Didascalikon de studio legendi (Instrução a cerca do empenho de ler),
traduzido em português como “Da arte de ler”, uma exposição sobre o estudo das
ciências (artes, disciplinas), bem como sobre a leitura da Sagrada Escritura; e o De
Sacramentis fidei christianae (Dos mistérios da fé cristã), uma das primeiras sumas
teológicas da Idade Média ocidental. Hugo também comentou a obra Hierarquia Celeste,
do Pseudo-Dionísio Areopagita, e seu comentário serviu de referência para toda a
escolástica. Do Didascalikon podemos ressaltar sua compreensão da filosofia e de todas
as artes (disciplinas ou ciências) que ela abrange.
Hugo denomina de “ars” (arte) aquilo que é objeto de aprendizagem (disciplina) ou de
ensinamento (doctrina, institutio, didascalikon). “Ars” traduz a palavra grega “techne”.
“Techne”, em grego, ou “ars”, em latim, é, originariamente, um saber, que é um saber
fazer, um saber produzir. Trata-se de um saber que é poder: habilidade, competência.
Junto com a “techne” costuma aparecer a “episteme”, que os latinos traduziram por
“scientia”, “disciplina”. “Episteme” significa, porém, originariamente, habilidade e
denota também conhecimento. A palavra vem do verbo “epistamai”, que significa ser
capaz, ser hábil; e, daí: saber, no sentido de poder, ou seja, de dominar um assunto, de
entender de algo, de ser perito em um determinado campo de conhecimento. Ambos
os sentidos de “techne” e “episteme” convergem para a palavra latina “ars”, que é da
26
mesma raiz das palavras gregas “areté” (competência, excelência, virtude) e “aristós” (o
melhor, o excelente). Enfim, “ars” significa um saber excelente, que tem a característica
de poder, ou seja, de competência ou domínio de um determinado âmbito de
conhecimento. Arte é, enfim, técnica e ciência, saber fazer e poder compreender alguma
coisa. Era assim que os medievais denominavam tudo aquilo que o homem podia
aprender e ensinar. No Didascalikon Hugo apresenta uma exposição das artes que
compõem a filosofia.
A origem de todas as artes é a Sapiência, na qual reside a forma do bem perfeito. Trata-
se da Mente de Deus, de seu Pensamento, melhor ainda, do Logos, que é a segunda
pessoa da Trindade: o Filho. A Sapiência, portanto, não é algo, mas alguém, o filho de
Deus, o Logo ou Verbo em que todas as coisas foram pensadas e ditas, de antemão, na
eternidade; em que reside o saber criador divino, pois é por meio desta Sapiência que
todas as coisas foram, de antemão, projetadas. Ela é a própria Arte eterna de Deus. Nela
estão os arquétipos de todas as coisas que foram, são ou serão no universo. A Sapiência,
por sua vez, ilumina o homem para o conhecimento de si mesmo. Hugo recorre, no
princípio, ao imperativo apolíneo, retomado por Sócrates, do “gnoti seauton” (conhece-
te a ti mesmo). Para o homem, porém, conhecer-se a si mesmo é conhecer a todas as
coisas. De fato, a mente do homem traz impressa em si mesma a semelhança de todas
as coisas. O semelhante conhece o semelhante, diz um antigo princípio grego. A mente
pode conhecer todas as coisas, pois ela traz em si a semelhança de todas as coisas. Mais:
ela é, de certa maneira, todas as coisas, como dizia Aristóteles. Hugo diz que a mente
contém virtualmente ou potencialmente todas as coisas. Ela pode convir com tudo e
conhecer tudo. Ela é uma abertura ao Todo. Este é o fundamento de toda aprendizagem
e de todo o conhecimento, enfim, de toda arte.
A filosofia é o amor da Sapiência. Este amor é, antes de tudo, procura. O filósofo é
alguém que busca, procura, investiga a Sapiência. Depois, este amor é também amizade,
afinidade, acordo, harmonia com a Sapiência, que é a Mente Divina. Filosofia é, assim,
amizade com a divindade e com a sua mente pura. Esta amizade conduz o homem à
assemelhação com a divindade. O amante torna-se semelhante ao amado, identifica-se
com ele. A semelhança ou identidade com Deus, ressaltada por Platão e pelo
27
neoplatonismo, é a consumação da busca filosófica. Graças a esta assemelhação ou
identificação, a mente humana é iluminada e retorna à sua fonte.
A filosofia tem a sua raiz na transcendência do espírito humano, ou seja, na sua
capacidade de, pelo conhecimento, ultrapassar todas as coisas sensíveis e apreender
todas as coisas em sua inteligibilidade. Ela realiza a potencialidade da mente humana de
abranger todas as coisas intelectualmente. “Philosophia est disciplina omnium rerum
humanarum atque divinarum rationes plene investigans” (filosofia é a aprendizagem
que investiga de modo pleno as razões de todas as coisas, das coisas humanas e das
coisas divinas). Ela é, portanto, uma ciência universal. Nenhum saber ou arte está
excluído dela. O que decide se um saber é filosófico não é, portanto, o conteúdo do que
é estudado, mas a forma. À medida que se interroga pelas razões das coisas, tudo
pertence à filosofia. Por exemplo, a agricultura, enquanto o exercício da arte de cultivar
o solo é um saber que pertence ao agricultor, já a investigação racional sobre esta arte
e seus princípios ou razões pertence ao filósofo. Desta maneira, a filosofia abrange todos
os atos do homem: ela é a “moderatrix actionum”, a moderadora das ações dos homens.
As ações dos homens têm, por sua vez, dois escopos: prover às necessidades da vida e
reparar a imagem divina na própria alma. As ações que visam reparar a imagem divina
no homem são chamadas de atos divinos e sua forma de compreensão se chama
inteligência. As ações que visam prover às necessidades da vida são chamadas de atos
humanos e sua forma de compreensão se chama ciência. Portanto, a Sapiência abrange
tanto a inteligência, voltada para o divino, quanto a ciência, voltada para as
necessidades da vida. A filosofia investiga, pois, as razões das coisas divinas pela
inteligência e das coisas humanas pela ciência. A inteligência trabalha na investigação
da verdade e na reflexão dos costumes. O primeiro trabalho corresponde à dimensão
teórica ou especulativa da filosofia; o segundo, à dimensão prática ou ética da filosofia.
A ciência, por sua vez, trabalha nas obras humanas, que têm por escopo prover às
necessidades da vida.
Os saberes da ciência, que são um determinado saber fazer e saber produzir, chamam-
se artes. Toda arte é uma forma de produção (em grego, poiesis), mas nem toda
produção é arte. A produção consiste em fazer passar algo da não vigência (não-ser)
para a vigência (ser). Em toda a produção, o que está em jogo é a atuação e consumação
28
de uma obra. Há três obras: a obra de Deus (opus Dei), a obra da natureza (opus naturae)
e a obra do artífice, que imita a natureza (opus artificis imitantis naturam). A obra de
Deus consiste em criar o que não existia. A obra da natureza, em trazer para a realidade
(ad actum) aquilo que estava escondido. A obra do artífice consiste em unir as coisas
separadas (disgregata coniungere) e separar as coisas unidas (coniuncta disgregare). A
obra do homem imita a da natureza. A natureza provê àqueles que não podem prover a
si mesmos os recursos para satisfazer às suas necessidades. O homem, porém, que pode
prover a si mesmo as condições da satisfação de suas necessidades naturais, nasce
desprovido pela natureza. Por isso, o homem precisa inventar, isto é, encontrar com a
razão as formas de satisfazer às suas necessidades. Desta capacidade inventiva ou
engenhosidade do espírito humano é que nascem as artes que proveem às necessidades
da vida humana, que são o tributo que o homem paga à sua mortalidade corporal. Elas
visam, pois, administrar o que nutre a vida, o que fortalece contra as moléstias que
podem sobrevir à vida, ou ainda oferecer remédio contra as moléstias já sofridas. Estas
artes que socorrem a indigência corporal do homem são chamadas de “mecânicas”.
Hugo enumera sete artes mecânicas: lanificium, armatura, agricultura, venatio,
navigatio, medicina, theatrica, ou seja, as artes de produzir o vestuário, seja para o uso
civil seja para o militar, nomeadas como lanifício e armadura; as artes de produzir o
alimento, seja vegetal seja animal, nomeadas como agricultura e caça; a arte mercantil
de providenciar, através do comércio, aquilo que não se tem à mão para o uso cotidiano,
nomeado como navegação; a arte de prevenir e de curar as doenças, de vir em socorro
da enfermidade do corpo, nomeado como medicina; e, por fim, a arte do divertimento,
de produzir espetáculos que venham de encontro à indigência da alma, à tristeza,
nomeada como arte do teatro. No século XIII, em lugar do teatro vai-se colocar a
alquimia (Vicente de Beauvais) ou a arte da adivinhação (Arnaldo da Provença). Estas
artes mecânicas visam, portanto, o útil, o agradável e o cômodo. O nome “mecânico”
vem do verbo grego mekhanaomai, que significa ser engenhoso, isto é, ter esperteza
para bolar um plano, saber preparar e executar bem uma obra, manufaturar com
habilidade e competência alguma coisa. É a habilidade de maquinar, tanto no sentido
da esperteza de projetar um artifício, quanto no sentido de tramar com astúcia um ardil.
Daí a aproximação que alguns medievais fizeram com o verbo latino “moechari”, que
significa ser adúltero. Hugo denomina as artes mecânicas de adulterinas. Ele diz que a
29
obra do homem é adulterina em relação à obra da natureza da mesma maneira como é
chamada de “mecânica” uma chave furtiva, isto é, aquela cópia que o adúltero tem para
entrar na casa de sua amante. Adulterar tem, aqui, em primeiro lugar, o sentido de
imitar furtivamente uma coisa, como quando se adultera um produto, imitando o
original e fazendo passar a falsificação por algo de verdadeiro. Ora, Hugo observa que
inventividade ou engenhosidade humana, presente e atuante nas artes mecânicas,
consiste na imitação da criatividade da natureza. Além disso, ela traz um risco consigo,
pois ela pode encantar o homem, de modo que o homem passe a procurar e amar as
coisas que estão fora dele e a buscar fora a felicidade que ele só pode encontrar dentro
de si mesmo. Assim, se por um lado, as artes mecânicas são necessárias, por outro, elas
são também sedutoras e podem prender o homem com o seu encantamento, fazendo-
o esquecer-se do autoconhecimento e do conhecimento de Deus. Assim, por causa da
ciência, o homem esquece e abandona a inteligência e, assim, não alcança a Sapiência e
a felicidade que nela se encontra. Ele trai, assim, o amor nupcial da Sapiência pelo amor
adúltero da ciência.
Três dimensões de saber, portanto, compõem a filosofia: a teórica, a prática e a
mecânica. A estas três acrescenta-se uma quarta, que é a lógica. Ela é a última a ser
descoberta pelo espírito humano, que, primeiro investiga a natureza das coisas (filosofia
teórica) e os costumes dos homens (filosofia prática) e só depois se dá conta da
necessidade de se investigar também o modo de falar correta e verdadeiramente sobre
tudo isso (filosofia lógica). A lógica é a disciplina que investiga o logos. Este, por sua vez,
pode ser entendido tanto no sentido da ratio (razão: pensamento discursivo), quanto
no sentido do sermo (discurso, linguagem). A lógica é, assim, composta de “logica
rationalis”, estudo do pensamento discursivo ou raciocínio, e “logica sermocinalis”,
estudo do discurso ou da linguagem. Na lógica está, enfim, presente o trivium: a
gramática pertence à “logica sermocinalis”; e a dialética com a retórica pertencem à
“logica rationalis”. Embora seja a última forma de saber a ser descoberta, a lógica,
entretanto, deve ser a primeira a ser aprendida, pois nela é ensinada a natureza das
palavras e dos conceitos, sem as quais nenhum saber racional (que indaga as razões das
coisas) é possível.
30
As artes ou saberes que possibilitam ao homem transcender o horizonte da necessidade,
no qual se movem as artes mecânicas, e se pôr no horizonte da liberdade, prática e
teórica, foram chamadas de artes liberais (artes liberales) ou artes livres. Como sete
eram as artes mecânicas, também sete são as artes liberais: o trivium (ciências da
linguagem: gramática, dialética e retórica) e o quadrivium (ciências matemáticas:
geometria, música, aritmética e astronomia). Hugo coloca o trivium na quarta forma de
saber filosófico: a lógica. E o quadrivium ele faz situar na filosofia teórica.
As duas primeiras formas de saber filosófico são a filosofia prática e a filosofia teórica.
A filosofia prática é também chamada de filosofia moral. Ela visa formar o homem justo
e tem por objeto o exercício da virtude. Ela se articula em três dimensões: a ethica (ética)
concerne ao indivíduo e ensina ao homem ordenar a própria vida pela honestidade dos
costumes e pelo ornato da virtude; a oeconomica (econômica) concerne à casa e aos
domésticos (oikos + nomos = lei da casa, administração da casa) e ensina ao homem
ordenar a vida da família, dos consanguíneos e daqueles que compõem juntos uma
instituição privada; a politica (política) enfim concerne ao povo ou ao reino e ensina a
reger a coisa pública (Estado). A primeira é da responsabilidade do indivíduo como tal e
por isso é também chamada de solitaria (solitária); a segunda é da responsabilidade dos
pais de família; enfim, a terceira é da responsabilidade dos chefes de Estado.
A filosofia teórica ou especulativa começa contém a física, a matemática e a teologia. A
physica (física) investiga as causas em seus efeitos e os efeitos a partir das causas. Hugo
observa que às vezes é denominada de physica toda a filosofia teórica, à medida que
estuda a natureza (physis) das coisas; e, então, a filosofia se divide em física, ética e
lógica, não se incluindo aí a mecânica.
A mathematica (matemática) é chamada de doctrinalis scientia (o saber doutrinal). Em
latim, doctrina (doutrina) vem docere (ensinar); assim como disciplina (disciplina) vem
de discere (aprender). Em grego, matemática remete a mathesis (aprendizagem). O
matemático (elemento ou objeto da matemática) é, neste sentido, aquilo que o homem
por primeiro aprende ou apreende de inteligível no sensível. Ela é o ensino (doctrina)
que se ocupa da quantidade abstrata. Abstrair é, aqui, separar pelo intelecto o que na
natureza está unido. É apreender a forma invisível das coisas visíveis. Segundo a
31
linguagem de Boécio, ela é uma atividade inteligível e um meio entre o sensível e o
intelectível. O inteligível é a dimensão suprassensível em contato com o sensível, como
a alma em contato com o corpo. Já o intelectível é o suprassensível puro, sem contato
com o corpo, como os espíritos ou Deus. O suprassensível, por sua vez, é o metafísico. A
matemática é, pois, uma passagem para e uma introdução na metafísica. Por isso que
Platão mandou colocar no frontispício de sua academia uma advertência, que dizia que
quem não fosse “geómetra”, ou seja, quem não fosse capaz de apreender a forma
invisível das coisas visíveis, não deveria entrar ali. A matemática se divide, por sua vez,
nas quatro disciplinas do quadrivium: a aritmética, a música, a geometria e a
astronomia. Hugo diz que a aritmética estuda a quantidade que é tal por si mesma (o
número); a música estuda a quantidade relativa a alguma coisa, ou seja, em relação à
sonoridade; a geometria estuda a grandeza imóvel, ou seja, aquela que se dá na
mensuração das coisas da terra; por fim, a astronomia estuda a grandeza móvel, quer
dizer, aquela que se dá na mensuração dos movimentos dos corpos do céu. Hugo
salienta a força (virtus) do número, pois todas as coisas foram formadas à sua
semelhança. Dentre os números, ele ressalta a importância do número quatro, o
quaternário, pois ele é o retorno à unidade e simplicidade do um, a mônada. Por isso, a
alma e o corpo são regidos pela quaternidade.
Hugo entende, enfim, a theologia (teologia) no sentido que Boécio empresta ao termo,
ou seja, como o estudo do intelectível, quer dizer, de Deus e das substâncias espirituais.
Ele cita Boécio: “o intelectível é aquilo que, permanecendo sempre um e o mesmo por si
em sua divindade, nunca é alcançado por algum dos sentidos, mas somente pela mente
e pelo intelecto. Esta atividade comporta indagação sobre a especulação de Deus, sobre
a imortalidade do espírito e sobre a consideração da verdadeira filosofia, e os gregos –
diz Boécio – denominam isso de teologia” (Didascalicon II 2). Portanto, aqui não se trata
da teologia da fé, mas da teologia como metafísica. A teologia como saber da fé provém
da leitura da Sagrada Escritura.
Após expor as diversas partes da filosofia, Hugo fala da importância de se ter método
no estudo. Segundo ele, três coisas são necessárias aos estudantes: 1) as qualidades
naturais; 2) o exercício; 3) a disciplina. Uma coisa se torna sobremaneira importante na
arte de estudar: a leitura. Há a leitura do docente, a do discente e a do autodidata. Cada
32
disciplina deve ter a sua ordem de leitura, dependendo daquilo que se estuda. Quanto
à exposição de um texto, ela deve abranger três níveis: a frase (litteram), o sentido
(sensum), o pensamento (sententia). A frase corresponde à literalidade do texto; o
sentido, ao significado mais acessível e fácil do texto à primeira vista; o pensamento ou
sentença é o entendimento mais profundo, adquirido pela interpretação. No seu
caminho intelectual, o homem deve galgar três níveis: o da cogitatio (cogitação), o da
meditatio (meditação) e o da contemplatio (contemplação). A cogitação consiste na
apreensão intelectual das realidades do mundo. A meditação é um pensar frequente
com discernimento, que investiga prudentemente a causa e a origem, o gênero e a
utilidade de cada coisa. Por fim, a contemplação é a visão do divino. A meditação se faz
especialmente pela leitura. A leitura que por excelência deve ser procurada é a dos
escritos que falam do divino. Há escritos divinos na literatura filosófica, mas, acima
destes escritos estão os textos da Sagrada Escritura. É para o estudo da Sagrada Escritura
que culmina todo o empenho investigativo da “ratio studiorum” (ordem dos estudos) de
Hugo no Didascalicon.
Os estudos culminam na fé, isto é, acima do que a razão por si mesma pode apreender
e compreender. Em relação à razão, o que o homem pode estudar pode ser assim
classificado: há o que é “ex ratione” (a partir da razão), ou seja, as verdades necessárias
(necessaria); há o que é “secundum ratione” (segundo a razão) e isto são os
conhecimentos prováveis (probabilia); há o que é “contra rationem” (contra a razão), ou
seja, aquelas coisas que não são dignas de serem acreditadas (incredibilia); e há, por fim,
o que é “supra rationem” (o que é acima da ou o que transcende a razão), e isto é o
maravilhoso (mirabilia). O maravilhoso, porém, só pode ser apreendido com os olhos
da fé. A fé não é uma falta de visão, mas a visão do que ultrapassa toda a visão da razão.
As coisas da fé, porém, não são irracionais ou antirracionais. Elas são suprarracionais.
Ao homem, com efeito, foram dados três olhos da mente: o oculus carnis (olho da
carne), que é a capacidade de apreensão do sensível; o oculus rationes (olho da razão),
que é a apreensão do inteligível e do intelectível; e o oculus contemplationis, que é a
apreensão do que é secundum rationem (segundo a razão) e supra rationem (sobre a
razão), isto é, do maravilhoso. É aqui que se move o ato da fé.
33
Os vitorinos, especialmente Hugo e Ricardo, foram muito bem considerados em seu
século. No século XIII, a teologia e a mística de ambos irá influenciar especialmente o
pensamento franciscano, mormente a São Boaventura que o considerou o maior doutor
dos últimos tempos. Segundo ele, Agostinho foi excelente na ciência da fé; Gregório
Magno, na moral da fé; Dionísio, na mística da fé. Anselmo seguiu a Agostinho; Bernardo
a Gregório; e Ricardo de São Vitor a Dionísio. A autoridade de Hugo, porém, abrange as
três esferas (ciência, moral e mística) e supera o saber dos três grandes mestres do
século XI e XII: Anselmo, Bernardo e Ricardo.
III.3.5. A ESCOLA DE CHARTRES
A escola de Chartres foi fundada já no século XI por Fulberto (+1092), que foi aluno de
de Gerberto de Aurillac (o papa Silvestre II), que teve particular predileção pelo estudo
da matemática e da medicina. O estudo das ciências naturais, da medicina e da
matemática já tinha experimentado um impulso novo na primeira metade do século XII.
O que os latinófonos sabiam de ciências naturais se recolhera na obra de Honório
Augustodunense, que pode ter sido um pseudônimo de um monge que viveu em
Regensburg, na primeira metade do século XII. Este enigmático personagem é autor de
uma obra intitulada “Clavis Physicae” (A chave da física), inspirada em João Escoto
Eriúgena, e de uma outra intitulada “De Imagine Mundi” (Da imagem do mundo) que
expõe a cosmologia de seu tempo. O mundo está em perpétuo movimento. “Mundus”
(mundo) e “motus” (movimento) se identificam. O mundo é redondo e é comparável
com um ovo. A casca seria o céu. Semelhante à clara seria o éter ou fogo. A gema seria
a terra. No centro da terra está o inferno. A terra está no centro por ser o mais pesado
dos elementos. Circundando a terra está a água, que é mais leve, pois escorre sobre a
terra ou, em forma de vapor, sobre para o ar. O ar é um elemento ainda mais leve e se
estende da terra à lua. Da Lua até o firmamento, estende-se o fogo ou éter, que é um
34
elemento ainda mais leve e tênue. Dentro do envoltório criado pelo fogo ou éter estão
os sete planetas. A Lua é o primeiro deles. Depois vêm Mercúrio e Vênus. Em quarto
lugar vem o Sol, aquele que sozinho (solus) reina sobre a terra, luzindo sobre todas as
coisas. Depois do Sol vêm mais três esferas celestes: as de Marte, Júpiter e Saturno. A
oitava esfera, depois das sete dos planetas, que se movem no elemento do fogo ou éter,
é a do Céu das estrelas fixas, que é chamado de firmamentum (firmamento) por dar
firmeza a tudo. A nona e última esfera é o céu dos espíritos, inacessível aos homens, o
lugar onde habitam os anjos e os espíritos humanos bem-aventurados. Este é o primeiro
céu, o primeiro móvel (primum mobile), que move todos os outros céus. A revolução das
esferas celestes produz sons maravilhosos, cuja harmoniosa consonância resulta na
mais admirável melodia: a música do universo. Esta música, no entanto, é inaudível aos
ouvidos humanos, pois os sons que ela produz se propaga além do ar e o ouvido humano
só escuta os sons que se propagam no elemento do ar.
Já na primeira metade do século XII, Constantino o Africano prestou um grande serviço
a novos impulsos aos estudos, traduzindo do árabe, escritos de ciências naturais e de
medicina. Constantino nasceu em Cartago e viveu no Egito e no oriente, mas se
estabeleceu em Salerno, na Itália. Depois foi monge em Monte Cassino (mosteiro
fundado por Bento de Núrsia). Adelardo de Bath (+ 1142) também tinha viajado à Sicília,
à Grécia e por terras árabes e traduzira diversos escritos sobre matemática e escrevera
sobre ciências naturais (Quaestiones naturales). Outro tradutor da ciência dos árabes foi
Hermann da Dalmácia, que chegou a traduzir, em 1143, o Alcorão para o latim, tendo
dedicado a sua tradução a Pedro o Venerável, abade de Cluny.
A escola de Chartres absorveu os saberes antigos e os mais recentes em seus estudos.
Grande ímpeto de investigação ela recebeu com Bernardo de Chartres (+ c. 1126). Este
dá grande importância à doutrina platônica das ideias. As ideias são eternas e imutáveis,
são as essências eternas das coisas e se encontram como pensamentos na mente divina.
As ideias são os exemplares segundo os quais tudo ganha forma no mundo do devir.
Imagens destes exemplares são as formae nativae (formas nativas), que atuam na
configuração dos entes naturais como princípios concriativos ou formas imanentes das
coisas materiais e sensíveis.
35
O irmão de Bernardo, Tierry (ou Teodorico) (+ c. 1150), tentou explicar o livro do
Gênesis, segundo não pela via tradicional da interpretação alegórico-mística, mas pela
via da interpretação literal, aplicando ali os conhecimentos de física ou cosmologia
(secundum physicam et litteram: segundo a física e o sentido literal do texto). Na sua
cosmologia, entram elementos neoplatônicos e neopitagóricos. Elabora uma teoria
cinética dos elementos. A leveza do fogo e do ar é a causa do seu movimento; este, por
sua vez, é a causa da dureza e espessura, isto é, do peso da água e da terra. Tierry
também elabora uma visão matemática do universo seguindo uma metafísica do
número, de tradição platônico-pitagórica. Ele distingue entre a Unidade (unitas) e o
número. A unidade não é número, mas princípio do número. Ela é o domínio do que é
sempre o mesmo, do idêntico e do imutável, enfim, de Deus. O número, por sua vez, é
o domínio da alteridade (alteritas), do que é sempre diverso e mutável, enfim, da
criatura. Deus, a Unidade, é a forma de ser (forma essendi) de tudo, isto é, todas as
múltiplas coisas que compõem o mundo só são, à medida que recebem o ser da
Unidade, que é Deus. Em Deus, o Pai é a Unidade, o Filho é a Igualdade da Unidade
consigo mesma, e o Espírito é a Verdade, pois uma coisa é verdadeira à medida que ela
é igual à sua unidade. Clarenbaldo de Arras (+ 1170) foi aluno de Tierry e dividiu a
speculatio physica (o estudo especulativo da natureza) em três partes: o estudo das
coisas terrestres (terrestris), o estudo das coisas que estão no ar (sublimis), e o das coisas
que estão nos céus (celestis). Acima da speculatio physica (o estudo da natureza móvel)
vem o a speculatio mathematica (o estudo da quantidade abstrata e imóvel) e, por fim,
a theologia (especulação teológica), ou seja, o estudo dos seres espirituais e de Deus. A
teologia é a parte suprema da filosofia. Theologizare est philosophari (teologizar é
filosofar). Bernardo Silvestre escreveu uma obra, em Tours, entre os anos 1145 e 1153,
que dedicou a Tierry, e que se intitulava De mundi universitate sive Megacosmus et
Microcosmus (Da universidade do mundo ou megacosmo e microcosmo). No Nous ou
Intelecto divino estão, desde a eternidade, as ideias ou formae exemplares (formas
exemplares) de todas as coisas. Do Nous nasce a natureza e, por ela, o “mundus
intelligibilis” (mundo inteligível) se torna “mundus sensibilis” (mundo sensível), onde as
coisas que surgem e perecem são imagens dos exemplares ou ideias que estão na mente
divina, melhor, no Filho de Deus.
36
Aluno de Bernardo de Chartres foi Guilherme de Conches (+ 1154). Escreveu uma obra
intitulada “Philosophia” (filosofia). Na sua filosofia da natureza decide, contra o
platonismo e sob influência árabe, pela teoria atômica de Demócrito. Os quatro
elementos, a partir dos quais tudo surge no mundo visível, são compostos de partículas
simples e mínimas, os átomos. Como Bernardo Silvestre e Thierry, identificava a anima
mundi (Alma do mundo) dos neoplatônicos com o Espírito Santo dos cristãos. Guilherme
de Conches foi combatido ferrenhamente por Walter de São Vitor e, por isso,
encarcerado.
Aluno e sucessor de Bernardo de Chartres foi também Gilberto (bispo) de Poitiers
(Gilberto Porretano ou ainda Gilberto Porreta) (+ 1154). Em 1141, ensinou dialética e
teologia em Paris. Assim como Abelardo, foi perseguido por Bernardo de Claraval. No
concílio de Reims, Gilberto e Bernardo travaram um combate acirrado. Difícil foi saber
quem foi vencedor e quem foi o vencido. Sua posição é importante no tocante ao
problema dos universais, levantado por Porfírio e transmitido por Boécio. Na sua
posição, tenta conciliar Platão e Aristóteles. Deus é o artífice e a forma essendi, isto é,
forma que dá o ser a tudo o que é. O que quer que seja, dele recebe o ser e o ser tal
coisa, o ser alguma coisa (aliquid). Na mente de Deus estão as ideias, que são os
exemplares ou arquétipos de todas as coisas. Imagens destes exemplares ou ideias são
as formae nativae (formas nativas). Estas não estão na mente de Deus, mas nas coisas
criadas. Elas se relacionam com as ideias como o exemplo com o exemplar, ou seja,
como a cópia com o modelo, quer dizer, elas guardam uma relação de conformidade
(conformitas) com as ideias. A forma nativa é chamada de eidos e é o princípio
determinante e configurador da coisa sensível. Ela é, portanto, imanente à coisa;
encontra-se nela de forma não abstrata (inabstractae), pois con-cresce com a coisa, quer
dizer, é concrescida, concreta (concretae). Este con-crescimento, por sua vez, se dá junto
com outro princípio: a matéria (hyle). A matéria primeira, informe, é a pura disposição
de receber uma forma. No mundo sensível, toda matéria é formada, isto é, configurada
segundo a força da forma que a modela. Todos os corpos provêm de quatro substâncias
materiais simples, que são os quatro elementos: o fogo, o ar, a água e a terra. Daí vem
os minerais, os vegetais e os animais.
37
Como, porém, os universais, isto é, os conceitos de gênero e espécie, são se relacionam
com as formas? Voltando às perguntas de Porfírio: gêneros e espécies subsistem em si
mesmos, isto é, são substâncias? São separados das coisas sensíveis ou se dão nelas e
com elas? Gilberto distingue dois sentidos da palavra substância: 1. Quod est sive
subsistens (que é ou subsistente); 2. Quod est sive subsistentia (que é ou subsistência).
Os gêneros e espécies são subsistências gerais e especiais, mas não coisas subsistentes.
Eles não subsistem de verdade (non substant vere). Nem todas as subsistências, porém,
são universais. Há subsistências universais, como as gerais e especiais, e há subsistências
individuais também, ou seja, aquelas que se encontram somente nos indivíduos. Os
indivíduos se diferenciam uns dos outros não de modo acidental, mas a partir de
propriedades da sua forma. Entretanto, são as coisas subsistentes que dão o ser às
subsistências (res subsistentes sunt esse subsistentiarum). Os conceitos de gênero e
espécie são o produto da abstração que o nosso intelecto realiza. A abstração consiste
em prestar atenção (attendere) à forma, prescindindo do que é material. O intelecto
recolhe, ajunta (colligit) as semelhanças formais entre as coisas e das coisas com os seus
arquétipos. Os conceitos universais são coleções de notas formais distintivas e comuns
entre as coisas. Assim, as formas que são concretas e imanentes às coisas, passam a ter
um ser no intelecto, como universais e abstratas. As coisas são (sunt) e subsistem
(substant). Elas se dão como verdadeiras substâncias, entendendo substância como o
que se dá como res per se subsistens (coisa subsistente por si mesma) e como substrato
ou sujeito (subiectum) dos acidentes. O universal, porém, é (est), mas não subsiste por
si mesmo nem é substrato de acidentes (non substat). Ele é um produto da abstração,
que apreende e recolhe a substantialis similitudo (semelhança substancial) ou a
conformitas (conformidade) entre as coisas individuais.
Um discípulo de Gilberto Porretano, Otto de Freising (+ 1158), dedicou-se especialmente
ao estudo da história. Inspirando-se em Agostinho e em Orósio, Otto escreve uma
Chronica sive historia de duabus civitatibus (Crônica ou história das duas cidades). Esta
obra abraça toda a história da humanidade até o século XII. Traz toda uma história da
filosofia. A história da filosofia recente de seu tempo é contemplada, ao invés, em outra
obra: Gesta Friderici Imperatoris (Feitos do Imperador Frederico), onde o autor vê
acontecer uma “translatio imperii” (translação do império) para os germânicos, na
38
dinastia dos Hohenstaufen. Na segunda parte de sua obra aparecem as principais
personagens de seu tempo: Bernardo de Claraval, Abelardo, Roscelino, Guilherme de
Champeaux, Anselmo de Laon, Bernardo e Tierry de Chartres. O mais celebrado de
todos, porém, é Gilberto Porretano.
Outro nome ligado a Gilberto Porretano é o de João de Salisbury (+ 1180). Nasceu em
Sarum, no sul da Inglaterra, mas deixou sua terra e foi para Paris, onde estudou uns doze
anos, inclusive com Abelardo. Depois de escutar vários mestres da dialética, voltou à
Inglaterra, onde participou ativamente da vida política. Foi secretário de Tomas Becket.
Foi feito, enfim, bispo de Chartres. Escreveu um obra política, intitulada “Polycraticus”.
Inspira-se no capítulo XIII da Epístola aos Romanos. Há uma ordem estabelecida que
vem de Deus e se impõe a todos, fracos e poderosos. É preciso obedecer ao princípio,
pois a sua autoridade vem de Deus. Mas o príncipe precisa servir ao povo. A diferença
entre um tirano e o príncipe está em que este se submete à lei e, por meio do seu
julgamento, governa o povo, do qual se estima servidor. O príncipe, detentor do poder,
deve também ser o fiador da equidade. O príncipe é o servidor do bem público e o
guardião da equidade, e é nesse sentido que ele tem um papel público, reparando os
erros e danos e punindo com justiça imparcial e com serenidade os crimes. É em
decorrência dessa função de punir que a ele é dado o “poder do gládio” (espada).
Entretanto, o príncipe é detentor de um poder temporal e, por isso, deve se submeter à
classe sacerdotal, detentora do “poder espiritual”. João de Salisbury escreveu também
uma obra intitulada “Metalogicus”, sobre o valor e a utilidade da lógica. Esta obra traz
diversas notícias sobre questões lógicas de seu tempo, especialmente as posições no
debate sobre os universais. Fala de Roscelino e Abelardo, primeiramente. Roscelino
considera os universais como meras vozes. Abelardo, como termos significativos
(sermones). Além destas posições nominalistas temos também uma terceira posição,
conceptualista. Os que têm esta posição consideram os universais como noções ou
conceitos da mente. Já os realistas afirmam que os universais são reais. Dentre as
variantes, a preferência de João de Salisbury tende para a posição de Gilberto Porretano.
Para este a universalidade baseia-se na semelhança ou conformidade entre as formas
imanentes às coisas individuais (formae nativae) e seus respectivos arquétipos (as
ideias) na mente divina. Para João também, a universalidade decorre das semelhanças
39
das coisas entre si e das coisas com os seus arquétipos em Deus. Deus, porém, não cria,
concretamente, coisas universais. Em si mesmas, as coisas são individuais. Elas só são
universais enquanto pensadas. A semelhança entre diversos indivíduos se chama
espécie; a semelhança entre diversas espécies se chama, por sua vez, gênero. Os
universais são ficções (figmenta) do pensamento, mas não são criações arbitrárias, pois
possuem um fundamento nas coisas individuais e em suas formas. João de Salisbury foi
contra o cultivo unilateral e formalista da dialética. Para ele, a dialética era a ciência do
provável e, como tal, mediava entre a sofística e a ciência demonstrativa. Ele propôs
também o estudo das letras clássicas como importante na formação do teólogo.
Alano de Lille (Alanus ab Insulis) (+ 1203) também foi ligado à Escola de Chartres,
especialmente a Tierry, a Bernardo Silvestre e a Gilberto Porretano. Deste último, Alano
levou adiante a proposta de desenvolver um método matemático-dedutivo na teologia.
Esta tentativa já tinha sido tentada por Orígenes e por Boécio. Alano experimenta esta
possibilidade na sua obra De arte catholicae fidei (Da arte da fé católica). A proposta é
partir de axiomas, ou seja, de proposições supremas, máximas ou regras sobre os
mistérios da fé e deduzir daí o conteúdo da ciência teológica. Outro que seguiu Alano
nesta empreitada foi Nicolau de Amiens. Partindo de definições (descriptiones),
postulados (petitiones) e axiomas (communes conceptiones), ele deduz os teoremas
(theoremata) da teologia enquanto ciência da fé. Assim, no fim do século XII, a escola
de Chartres, tão voltada para o estudo da física e da matemática contribui para o
surgimento de uma teologia more geometrico demonstrata (demonstrada ao modo
geométrico). Mais tarde, Spinoza vai seguir este mesmo método para a sua Ética. Assim,
também a teologia se tornou uma ars, um saber racional todo próprio, que articula
razões necessárias, razões prováveis e que se ancora no ensinamento das autoridades:
a Sagrada Escritura e os Padres da Igreja.
III.3.6. PEDRO ABELARDO
Pedro Abelardo (1079-1142) é aquele homem em que a modernidade do século XII, isto
é, a irrupção de um novo modo de ser histórico, se faz visível. Pedro o Venerável o
40
saudou como o Aristóteles de seu tempo. Por outro lado, foi ferrenhamente combatido
por Bernardo de Claraval e condenado por dois concílios por causa deste embate.
Abelardo nasceu no Burgo Les Pallet, perto de Nantes, filho do cavaleiro Berengário e
de sua esposa Lucia. Foi aluno de Roscelino de Compiègne, o grande representante do
nominalismo do século XII e de Guilherme de Champeaux, que representava uma
posição de extremo realismo na querela dos universais.
Uma concepção nominalista dos universais já aparece no século XI. Hermann de Tournai,
na primeira metade do século XII, cita alguns nomes de mestres, que ensinavam a
dialética juxta quosdam modernos (segundo o modo dos modernos), ou seja, não
segundo Boécio. Estes consideravam que o estatuto dos universais – qual o tipo de ser
se deva atribuir a eles - se encontrava in voce (na palavra) e não in re (na coisa). Anselmo
afirma que estes “heréticos da dialética” consideravam que os universais não fossem
nada mais do que flatus vocis (sopro da voz). A estes modernos e heréticos da dialética
pertence, sem dúvida, Roscelino de Compiègne, que foi mestre de Abelardo. João de
Salisbury, em seu Metalogicus, diz que a posição segundo a qual os universais, isto é, o
gênero e a espécie, se dão na voz, ou melhor, que as palavras mesmas, em sua sonância
física, é que são universais, surgiu e desapareceu com o próprio Roscelino. O próprio
Abelardo, com efeito, rejeitou a posição extrema do seu mestre. Em vez da tese
“universale est vox” (universal é a voz), Abelardo apresentou outra tese: “universale est
sermo” (universal é o discurso, a linguagem).
Abelardo não aceitou também a posição contrária, a do realismo de seu outro mestre,
Guilherme de Champeaux, o amigo de Bernardo, que, mais tarde, após ter sido
derrotado na disputa com Abelardo, abandonou a dialética e fundou a Escola de São
Vitor. Guilherme ensinava que uma e mesma coisa (res), essencialmente universal,
encontrava-se ao mesmo tempo nos vários indivíduos da mesma espécie, de sorte que
estes não se distinguem quanto à essência, mas apenas pelo conjunto de acidentes.
Depois da disputa com Abelardo, porém, mudou a formulação de sua tese e, em vez de
dizer que a mesma e única coisa (res) existir essencialmente (essentialiter) nos vários
indivíduos, diz que esta mesma e única coisa (res) existe indiferentemente
(indifferenter) nas coisas individuais. Em todo o caso, para ele, o universal era uma coisa
(essencial ou indiferente) que existia nas coisas individuais. Numa perspectiva tão
41
realista (realis = aquilo que diz respeito à res, coisa), a dimensão do conceito e do
pensamento se retira completamente.
Abelardo reformula o problema de Porfírio. Este formulou o problema dos universais
com três perguntas. Abelardo apresenta uma quarta pergunta. Na perspectiva de
Abelardo, o problema se apresenta assim: 1. Se os universais (gênero e espécie) têm
verdadeiro ser ou se eles consistem somente em algo pensado e dito (in opinione). 2.
Caso se admita que os universais tenham verdadeiro ser, isto é, existência real, são eles
de natureza corporal ou incorporal? 3. Eles existem separados das coisas sensíveis ou
são imanentes a elas? 4. É necessário que exista alguma coisa correspondente à
denominação dos gêneros e espécies, ou o universal continua a existir “ex significatione
intellectus”, ou seja, a partir da significação do conceito, mesmo se não houvesse mais
nenhum indivíduo que correspondesse àquela denominação? Ex.: se não houvesse mais
nenhuma rosa, a palavra rosa continuaria a ter significado?
Abelardo rejeita a posição realista segundo a qual o universal é uma coisa
essencialmente idêntica na diversidade dos indivíduos. Argumenta ele: se nos indivíduos
existe uma coisa essencialmente idêntica e se eles se distinguem apenas pelas formas,
segue que uma e mesma coisa toma formas opostas. Por exemplo: a “animalidade”,
essencialmente idêntica no homem e no bicho, apresenta as formas opostas da
racionalidade e da irracionalidade. O que é impossível. Abelardo rejeita também a
posição ainda realista segundo a qual o universal é uma coisa indiferentemente idêntica
na diversidade dos indivíduos. Esta tese entende que uma mesma coisa é universal e
individual. A singularidade se funda numa diferenciação (discretio), já a universalidade
consiste numa indiferenciação (indifferentia), ou seja, numa convergência de
semelhanças (convenientia similitudinis). A objeção principal de Abelardo se volta
contra a pressuposição desta tese, de que universalidade e individualidade poderiam
ser compreendidas de maneira puramente acidental. Isto acarretaria a consequência de
que a individualidade pudesse ser definida por si mesma, o que é contraditório.
Abelardo rejeita também a tese de que o universal é uma coleção (colletio) ou soma de
objetos individuais que caem sob um conceito. Assim, todos os homens constituem o
universal “homem”. Esta tese tem o inconveniente de exigir que o universal como todo
devesse estar em cada indivíduo.
42
Entretanto, qual a resposta que Abelardo dá à questão dos universais? Já dissemos que
há uma diferença entre a posição de Roscelino e a de Abelardo. A do primeiro diz:
“universale est vox” (universal é voz). Voz é a palavra como ocorrência física de um som,
de um ruído, como algo natural. A posição de Abelardo diz: “universale est sermo”
(universal é discurso, linguagem). O discurso, ao contrário, é uma “institutio hominum”,
uma instituição dos homens. A voz é algo de natural, a palavra ou o discurso é algo de
humano, cultural. Embora a palavra seja também voz, ela é mais do que voz, ela é uma
voz significativa. O ato de significar, porém, é sempre um ato humano, que se funda na
convivência dos homens entre si e no seu mundo cultural. Além disso, Abelardo define
assim o universal: “est autem universale vocabulum quod de pluribus singillatim habile
est ex inventione sua praedicari” – universal é um vocábulo que, com base numa
instituição ou invenção humana, é apto a ser predicado individualmente de muitos
(Lógica para iniciantes 16). O universal é, pois, algo que diz respeito à linguagem e não
a coisas. O universal, porém, não é simples “vox”, som da boca humana, mas é um
“vocabulum”, vocábulo, isto é, uma “vox significativa”, uma voz que significa alguma
coisa. Mais ainda: o universal é “sermo”, algo que se dá no exercício concreto do
discurso, no falar uns com os outros. Neste sentido, o universal já foi sempre encontrado
pelo homem no exercício histórico, social e cultural do discurso. O homem o encontra
(invenit) e à medida que o encontra no exercício concreto do discurso (sermo), quer
dizer, do falar humano no mundo da convivência, o universal é uma invenção (inventio)
ou uma instituição, isto é, uma fixação ou estipulação, sócio-cultural-histórica
(institutio).
Na verdade, Abelardo apreende uma dupla função do universal. A primeira é a da
“apellatio” (denominação), entendida como a capacidade de indicar objetos
perceptíveis sensivelmente. A segunda é a da “significatio”, quando se trata de se referir
a objeto que não é perceptível sensivelmente. Assim, quando uso o nome “Pedro” para
este homem aqui, o que está acontecendo é uma denominação. Mas, quando uso o
nome “homem” como conceito de uma espécie, o que está acontecendo é uma
significação. É que “Pedro” é uma res (coisa), mas “homem”, não. “Homem” é um
conceito (intellectus). A coisa é singular, individual. O conceito é universal. A palavra
43
pode designar uma coisa, mas pode também designar um conceito. O erro do realismo
está em entender o conceito como coisa universal.
Entretanto, como se dá a gênese do conceito? Resposta: através da abstração. O
conceito é um produto da capacidade abstrativa do intelecto humano. A sensibilidade
(sensus) oferece a coisa em sua individualidade; o intelecto (intellectus), ou seja, a razão
(ratio) ou a mente (animus) produz o conceito em sua universalidade. Abstrair é ater-se
unicamente à semelhança formal entre as coisas. Abstrair é uma questão de atenção: é
levar em consideração somente a semelhança entre coisas diferentes individualmente.
Esta semelhança é expressa no conceito. O conceito é uma “res imaginaria quaedam et
ficta”, uma coisa imaginária e fictícia, uma imagem ou representação do real. O universal
é uma imagem comum e indistinta de muitas coisas. Como quando eu digo “casa” não
tenho em vista esta ou aquela casa na sua singularidade e com suas qualidades
particulares, mas eu tenho em vista algo de comum e de indiferenciado que pode ser
dito de todas as casas individuais. O conceito “casa” expressa aquilo que é comum e
semelhante em relação a todas as casas individuais, realmente existentes. O conceito,
portanto, enquanto universal, tem em vista a “forma communis”, a forma comum das
coisas individualmente diversas. A representação imaginária que é produzida pela razão
(figmentum) serve de intermediação entre o real e o conceito. Aquilo que o intelecto
intenciona no conceito universal não é algo realmente existente, mas a forma comum.
Por isso, mesmo quando não existe a coisa individualmente dada, realmente existente,
o conceito permanece capaz de significar alguma coisa. Por exemplo, se não existe mais
nenhuma rosa neste mundo, o conceito de rosa continuaria significativo, pois ele se
referiria não a rosas existentes, mas à forma comum, abstrata, de todas as rosas, que já
existiram ou que poderiam existir. A posição de Abelardo, pois, está entre o
nominalismo puro e simples de Roscelino e o realismo extremo de Guilherme de
Champeaux. Em busca de um nome para esta posição, ela poderia ser chamada de
conceptualismo.
Outra contribuição importante de Abelardo para a história do pensamento medieval é
o método dialético do “Sic et non” (Sim e não), nome de uma de suas obras. Este
método, que consiste em contrapor dialeticamente as opiniões das “auctoritates”
(autoridades, autores significativos da tradição), foi doravante amplamente aplicado na
44
teologia medieval. Trata-se de uma nova forma de investigação, que consiste
fundamentalmente na colocação de questões (quaestio, interrogatio) e na busca da
resposta por meio da confrontação entre tese e antítese. Trata-se também de uma nova
concepção sobre a relação entre “auctoritas” (autoridade) e “ratio” (razão), pois confia
a esta a incumbência de dar a resolução às contradições entre os ditos das autoridades
da tradição.
Não obstante, Abelardo é favorável ao uso da dialética e não ao seu abuso no campo
teológico. A “ratiuncula humana” (razãozinha humana) não pode compreender nem
dizer o mistério divino. Ele distingue entre intelligere seu credere (entender e crer), por
um lado, e o cognoscere e comprehendere (conhecer e compreender), por outro. Aqui
na terra o homem não pode conhecer e compreender o mistério divino, pode somente
entender e crer algo dele. Por isso, o poder da dialética é limitado nesta esfera. O
homem deve sempre se recordar do que Platão dizia a respeito do Sumo Bem, quando
o comparava com o Sol, que não pode ser fitado por muito tempo pelo olhar do homem.
Com efeito, o homem não pode fitar diretamente o mistério divino. Deus é, aqui,
incompreensível para o homem e este pode somente entender algo dele por meio de
imagens e semelhanças (similitudines).
Abelardo aplicou-se, no campo teológico, sobretudo ao estudo da Trindade. O Pai se dá
a conhecer, segundo ele, como potentia (potência), o Filho como sapientia (sapiência) e
o Espírito Santo como benignitas (benignidade) de Deus. a princípio, Abelardo
considerou que os filósofos conhecessem algo da Trindade, pois entre os platônicos,
falava-se de três hipóstases constituidoras de todas as coisas: o Uno (hen), o Intelecto
(Nous) e a Alma do Mundo (Psyche). Depois, sob a invectiva de Bernardo de Claraval,
Abelardo retrocedeu nesta opinião, que era comum entre os pensadores da Escola de
Chartres também. Entretanto, não abdicou de identificar a Anima Mundi (alma do
mundo) com o Espírito Santo. O ensinamento trinitário de Abelardo, porém, foi
condenado como modalismo, graças à impugnação de Bernardo, em 1140 no Sínodo de
Sens. Depois disso, Abelardo teve que se retirar no claustro de Cluny, acolhido por Pedro
o Venerável. Característico é também o entendimento teológico da encarnação de
Abelardo, que foge ao de Anselmo e de Agostinho. Segundo estes, o Filho de Deus se
tinha feito homem para libertar o homem do poder do diabo e tinha sofrido para dar
45
satisfação à justiça divina. Para Abelardo, não é este o motivo central da encarnação.
Deus se faz homem no Cristo por amor. Sua encarnação e paixão são para o homem um
exemplo de amor e o homem é salvo à medida que adere a este amor e o pratica em
relação a Deus e ao próximo.
Abelardo deu uma conotação menos objetivista e mais pessoal também à sua ética. A
obra intitulada “Scito te ipsum” (Conhece-te a ti mesmo) é uma monografia incompleta
sobre os princípios éticos do cristianismo, que retoma o princípio délfico ou socrático do
autoconhecimento. Na ética, o que vem em primeiro plano não são valores objetivos
nem normas, não é nem mesmo obras ou feitos exteriores, mas as intenções e as
atitudes do homem. Somente a intenção é o decisivo para a moralidade dos atos
humanos. Deus julga o homem não segundo suas obras exteriores, mas segundo suas
intenções interiores. As obras são indiferentes em seu valor ético. O que dá valor às
obras é a intenção. O pecado não é uma transgressão objetiva de uma norma moral,
mas é um agir contra a própria consciência.
Abelardo também deu uma contribuição importante para uma compreensão medieval
do diálogo intercultural. Sua obra intitulada “Dialogus inter Philosophum, Iudaem et
Christianum” (Diálogo entre um filósofo, um judeu e um cristão) é testemunho desta
postura aberta e dialogante de Abelardo. Os três são caracterizados como adoradores
do Deus único, mas cada qual à sua maneira. Eles dialogam e buscam a arbitragem do
autor, isto é, de Abelardo. Neste diálogo Abelardo retoma a concepção trazida por
Justino, segundo a qual o Logos é o mestre universal, aquele que ilumina toda a
humanidade em sua busca pela verdade. A abertura católica (universal) desta concepção
se expressa na convicção de que nenhum ensinamento é tão falso que não contenha
algo de verdadeiro, ainda que seja um pequeno vestígio da verdade. O filósofo de
Abelardo tem traços árabo-muçulmano. Ele é nascido em terras do Islã e criado na
tradição islâmica, mas procura a verdade por meio de argumentos e segue mais a razão
do que as opiniões dos homens. A partir dessa postura, ele estuda criticamente as
“seitas” (divisões religiosas) de seu mundo. Abelardo vê na investigação da razão por
um fundamento comum de verdade a base para um diálogo inter-religioso e
intercultural. Como se pode ver, a fisionomia do filósofo de Abelardo não corresponde
somente ao filósofo árabo-muçulmano, cujo perfil cai bem com o de Avempace (Abu
46
Bakr ibn al Saigh), contemporâneo de Abelardo, mas esta fisionomia cai bem também
com a do próprio Abelardo e dos filósofos que, a partir de então, vão apresentar traços
de modernidade em meio à Idade Média. O diálogo de Abelardo foi interrompido por
sua morte. Neste tempo, estavam chegando ao ocidente as primeiras influências dos
árabes na filosofia.
Abelardo assinala uma guinada na autocompreensão do homem ocidental em pleno
século XII. Entretanto, ele não deixou uma escola. Sua posição sobre o problema dos
universais vai repercutir no nominalismo e do conceptualismo do século XIV, que será
responsável pela autodestruição da grande síntese escolástica do século XIII e pela
irrupção de uma nova época, marcadamente pelo desenvolvimento da ciência moderna.
Seu método dialético, porém, foi decisivo para o desenvolvimento da escolástica no
século XIII.
No fim do século XII, sob o impulso dado por Abelardo e por Hugo de São Vitor, começam
as primeiras tentativas de colecionar os ditos das autoridades da tradição com o fim de
promover uma disputa dialética em torno deles. É a época da “Summa sententiarum”
(Suma das sentenças) e dos “Libri sententiarum” (Livros das Sentenças). A obra mais
famosa neste sentido ficou sendo a de Pedro Lombardo (+ 1160): “Libri quatuor
sententiarum” (Os quatro livros das sentenças). O primeiro livro trata da doutrina sobre
Deus; o segundo, sobre a criação; o terceiro, sobre a redenção; e o quarto, sobre os
sacramentos e a escatologia. Até o século XVI será costume entre os candidatos ao
doutorado em teologia, ler e comentar, durante dois anos, os quatro livros das
sentenças de Pedro Lombardo. De início os comentários produzidos serão mais
aderentes ao texto. Depois, o texto vai se tornando apenas o pretexto para a discussão
das questões (quaestiones), que vão sendo desenvolvidas com cada vez maior
autonomia por parte dos comentadores. O peso vai passando da autoridade da tradição
para a força autônoma da razão. E isso foi decisivo para o desenvolvimento do
pensamento medieval.
Recommended