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ESTTICA DA
CRIAO VERBAL
Mikhail Bakhtin
Traduo feita a partir do francs
MARIA ERMANTINA GALVO G. PEREIRA
MARTINS FONTES
SO PAULO, 1997
1
Os gneros do discurso1
I
Problemtica e definio
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, esto sempre
relacionadas com a utilizao da lngua. No de surpreender que o carter e os modos dessa
utilizao sejam to variados como as prprias esferas da atividade humana, o que no contradiz a
unidade nacional de uma lngua. A utilizao da lngua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos), concretos e nicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade
humana. O enunciado reflete as condies especficas e as finalidades de cada uma dessas esferas,
no s por seu contedo (temtico) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleo operada nos
recursos da lngua recursos lexicais, fraseolgicos e gramaticais , mas tambm, e sobretudo,
por sua construo composicional. Estes trs elementos (contedo temtico, estilo e construo
composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles so marcados pela
especificidade de uma esfera de comunicao. Qualquer enunciado considerado isoladamente ,
claro, individual, mas cada esfera de utilizao da lngua elabora seus tipos relativamente estveis
de enunciados, sendo isso que denominamos gneros do discurso.
A riqueza e a variedade dos gneros do discurso so infinitas, pois a variedade virtual da
atividade humana inesgotvel, e cada esfera dessa atividade comporta um repertrio de gneros do
discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se medida que a prpria esfera se desenvolve e fica
mais complexa. Cumpre salientar de um modo especial a heterogeneidade dos gneros do discurso
(orais e escritos), que incluem indiferentemente: a curta rplica do dilogo cotidiano (com a
diversidade que este pode apresentar conforme os temas, as situaes e a composio de seus
protagonistas), o relato familiar, a carta (com suas variadas formas), a ordem militar padronizada,
em sua forma lacnica e em sua forma de ordem circunstanciada, o repertrio bastante diversificado
dos documentos oficiais (em sua maioria padronizados), o universo das declaraes pblicas (num
sentido amplo, as sociais, as polticas). E tambm com os gneros do discurso que relacionaremos
as variadas formas de exposio cientfica e todos os modos literrios (desde o ditado at o romance
volumoso). Ficaramos tentados a pensar que a diversidade dos gneros do discurso tamanha que
1 Ttulo da edio original: O problema dos gneros do discurso.
Texto de arquivos (1952-1953), no revisto pelo autor.
Fragmento de um estudo mais abrangente que se intitulava Os gneros do discurso, cujo projeto no foi realizado.
2
no h e no poderia haver um terreno comum para seu estudo: com efeito, como colocar no mesmo
terreno de estudo fenmenos to dspares como a rplica cotidiana (que pode reduzir-se a uma nica
palavra) e o romance (em vrios tomos), a ordem padronizada que imperativa j por sua
entonao e a obra lrica profundamente individual, etc.? A diversidade funcional parece tornar os
traos comuns a todos os gneros do discurso abstratos e inoperantes. Provavelmente seja esta a
explicao para que o problema geral dos gneros do discurso nunca tenha sido colocado.
Estudaram-se, mais do que tudo, os gneros literrios. Mas estes, tanto na Antiguidade como na
poca contempornea, sempre foram estudados pelo ngulo artstico-literrio de sua especificidade,
das distines diferenciais intergenricas (nos limites da literatura), e no enquanto tipos
particulares de enunciados que se diferenciam de outros tipos de enunciados, com os quais
contudo tm em comum a natureza verbal (lingustica). O problema de lingustica geral colocado
pelo enunciado, e tambm pelos diferentes tipos de enunciados, quase nunca foi levado em conta.
Estudaram-se tambm a comear pelos da Antiguidade os gneros retricos (e as pocas
posteriores no acrescentaram nada de relevante teoria antiga). Ento dava-se pelo menos maior
ateno natureza verbal do enunciado, a seus princpios constitutivos tais como: a relao com o
ouvinte e a influncia deste sobre o enunciado, a concluso verbal peculiar ao enunciado (diferente
da concluso do pensamento), etc. A especificidade dos gneros retricos (jurdicos, polticos)
encobria porm a natureza lingustica do enunciado. E, por fim, estudaram-se os gneros do
discurso cotidiano (principalmente a rplica do dilogo cotidiano), e o fazia-se justamente do ponto
de vista da lingustica geral (a escola de Saussure e seus continuadores mais recentes os
estruturalistas, os behavioristas americanos, os discpulos de Vossler que, alis, tinham uma base
totalmente diferente). Mas, tambm nesse caso, o estudo no podia conduzir definio correta da
natureza lingustica do enunciado, na medida em que se limitava a pr em evidncia a
especificidade do discurso cotidiano oral, operando no mais das vezes com enunciados
deliberadamente primitivos (os behavioristas americanos).
No h razo para minimizar a extrema heterogeneidade dos gneros do discurso e a
consequente dificuldade quando se trata de definir o carter genrico do enunciado. Importa, nesse
ponto, levar em considerao a diferena essencial existente entre o gnero de discurso primrio
(simples) e o gnero de discurso secundrio (complexo). Os gneros secundrios do discurso o
romance, o teatro, o discurso cientfico, o discurso ideolgico, etc. aparecem em circunstncias de
uma comunicao cultural, mais complexa e relativamente mais evoluda, principalmente escrita:
artstica, cientfica, sociopoltica. Durante o processo de sua formao, esses gneros secundrios
absorvem e transmutam os gneros primrios (simples) de todas as espcies, que se constituram em
circunstncias de uma comunicao verbal espontnea. Os gneros primrios, ao se tornarem
componentes dos gneros secundrios, transformam-se dentro destes e adquirem uma caracterstica
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particular: perdem sua relao imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados
alheios - por exemplo, inseridas no romance, a rplica do dilogo cotidiano ou a carta, conservando
sua forma e seu significado cotidiano apenas no plano do contedo do romance, s se integram
realidade existente atravs do romance considerado como um todo, ou seja, do romance concebido
como fenmeno da vida literrio-artstica e no da vida cotidiana. O romance em seu todo um
enunciado, da mesma forma que a rplica do dilogo cotidiano ou a carta pessoal (so fenmenos
da mesma natureza); o que diferencia o romance ser um enunciado secundrio (complexo).
A distino entre gneros primrios e gneros secundrios tem grande importncia terica,
sendo esta a razo pela qual a natureza do enunciado deve ser elucidada e definida por uma anlise
de ambos os gneros. S com esta condio a anlise se adequaria natureza complexa e sutil do
enunciado e abrangeria seus aspectos essenciais. Tomar como ponto de referncia apenas os
gneros primrios leva irremediavelmente a trivializ-los (a trivializao extrema representada pela
lingustica behaviorista). A inter-relao entre os gneros primrios e secundrios de um lado, o
processo histrico de formao dos gneros secundrios do outro, eis o que esclarece a natureza do
enunciado (e, acima de tudo, o difcil problema da correlao entre lngua, ideologias e vises do
mundo).
O estudo da natureza do enunciado e da diversidade dos gneros de enunciados nas
diferentes esferas da atividade humana tem importncia capital para todas as reas da lingustica e
da filologia. Isto porque um trabalho de pesquisa acerca de um material lingustico concreto a
histria da lngua, a gramtica normativa, a elaborao de um tipo de dicionrio, a estilstica da
lngua etc. lida inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais), que se relacionam
com as diferentes esferas da atividade e da comunicao: crnicas, contratos, textos legislativos,
documentos oficiais e outros, escritos literrios, cientficos e ideolgicos, cartas oficiais ou pessoais,
rplicas do dilogo cotidiano em toda a sua diversidade formal, etc. deles que os pesquisadores
extraem os fatos lingusticos de que necessitam. Uma concepo clara da natureza do enunciado em
geral e dos vrios tipos de enunciados em particular (primrios e secundrios), ou seja dos diversos
gneros do discurso, indispensvel para qualquer estudo, seja qual for a sua orientao especfica.
Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gnero que assinalam a variedade do
discurso em qualquer rea do estudo lingustico leva ao formalismo e abstrao, desvirtua a
historicidade do estudo, enfraquece o vnculo existente entre a lngua e a vida. A lngua penetra na
vida atravs dos enunciados concretos que a realizam, e tambm atravs dos enunciados concretos
que a vida penetra na lngua. O enunciado situa-se no cruzamento excepcionalmente importante de
uma problemtica. deste ngulo que vamos agora abordar algumas reas e alguns problemas da
lingustica.
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Em primeiro lugar, vejamos a estilstica. O estilo est indissoluvelmente ligado ao
enunciado e a formas tpicas de enunciados, isto , aos gneros do discurso. O enunciado oral e
escrito, primrio e secundrio, em qualquer esfera da comunicao verbal individual, e por isso
pode refletir a individualidade de quem fala (ou escreve). Em outras palavras, possui um estilo
individual. Mas nem todos os gneros so igualmente aptos para refletir a individualidade na lngua
do enunciado, ou seja, nem todos so propcios ao estilo individual. Os gneros mais propcios so
os literrios neles o estilo individual faz parte do empreendimento enunciativo enquanto tal e
constitui uma das suas linhas diretrizes ; se bem que, no mbito da literatura, a diversidade dos
gneros oferea uma ampla gama de possibilidades variadas de expresso individualidade,
provendo diversidade de suas necessidades. As condies menos favorveis para refletir a
individualidade na lngua so as oferecidas pelos gneros do discurso que requerem uma forma
padronizada, tais como a formulao do documento oficial, da ordem militar, da nota de servio,
etc. Nesses gneros s podem refletir-se os aspectos superficiais, quase biolgicos, da
individualidade (e principalmente na realizao oral de enunciados pertencentes a esse tipo
padronizado). Na maioria dos gneros do discurso (com exceo dos gneros artstico-literrios), o
estilo individual no entra na inteno do enunciado, no serve exclusivamente s suas finalidades,
sendo, por assim dizer, seu epifenmeno, seu produto complementar. A variedade dos gneros do
discurso pode revelar a variedade dos estratos e dos aspectos da personalidade individual, e o estilo
individual pode relacionar-se de diferentes maneiras com a lngua comum. O problema de saber o
que na lngua cabe respectivamente ao uso corrente e ao indivduo justamente problema do
enunciado (apenas no enunciado a lngua comum se encarna numa forma individual). A definio
de um estilo em geral e de um estilo individual em particular requer um estudo aprofundado da
natureza do enunciado e da diversidade dos gneros do discurso.
O vnculo indissolvel, orgnico, entre o estilo e o gnero mostra-se com grande clareza
quando se trata do problema de um estilo lingustico ou funcional. De fato, o estilo lingustico ou
funcional nada mais seno o estilo de um gnero peculiar a uma dada esfera da atividade e da
comunicao humana. Cada esfera conhece seus gneros, apropriados sua especificidade, aos
quais correspondem determinados estilos. Uma dada funo (cientfica, tcnica, ideolgica, oficial,
cotidiana) e dadas condies, especficas para cada uma das esferas da comunicao verbal, geram
um dado gnero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estvel do ponto de vista
temtico, composicional e estilstico. O estilo indissociavelmente vinculado a unidades temticas
determinadas e, o que particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de estruturao
e de concluso de um todo, tipo de relao entre o locutor e os outros parceiros da comunicao
verbal (relao com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com o discurso do outro, etc.).
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O estilo entra como elemento na unidade de gnero de um enunciado. Isso no equivale a dizer,
claro, que o estilo lingustico no pode ser objeto de um estudo especfico, especializado. Tal
estudo, ou seja, uma estilstica da lngua, concebida como uma descrio autnoma, possvel e
necessrio. Porm, para ser correto e produtivo, este estudo sempre deve partir do fato de que os
estilos da lngua pertencem por natureza ao gnero e deve basear-se no estudo prvio dos gneros
em sua diversidade. At agora, a estilstica da lngua ignorou tais fundamentos, da sua debilidade.
No existe uma classificao comumente reconhecida dos estilos lingusticos. A falha dos autores
de classificaes esquecer a necessidade primordial de uma classificao: a necessidade de uma
unidade de base. As classificaes so surpreendentemente pobres e no apresentam o menor
critrio diferencial. A Gramtica da Academia recm-publicada enumera as seguintes variedades
estilsticas: linguagem livresca, popular, cientfico-abstrata, cientfico-oficial, falada, familiar,
vulgar, etc. Ao lado dessa nomenclatura dos estilos lingusticos, como variantes estilsticas,
encontram-se: palavras dialetais, palavras antiquadas, locues profissionais. Tal classificao dos
estilos totalmente fortuita e fundamenta-se em princpios (ou bases) dspares no inventrio dos
estilos (sem contar que uma classificao pobre e no diferencial)2. Tal estado de coisas resulta de
uma incompreenso da natureza dos gneros dos estilos da lngua e de uma ausncia de
classificao dos gneros do discurso por esferas de atividade humana, assim como de uma
ausncia de diferenciao entre os gneros primrios e os secundrios.
A separao entre o estilo e o gnero repercute de um modo muitssimo nefasto sobre a
elaborao de toda uma srie de problemas histricos. As mudanas histricas dos estilos da lngua
so indissociveis das mudanas que se efetuam nos gneros do discurso. A lngua escrita
corresponde ao conjunto dinmico e complexo constitudo pelos estilos da lngua, cujo peso
respectivo e a correlao, dentro do sistema da lngua escrita, se encontram num estado de contnua
mudana. a um sistema ainda mais complexo, e que obedece a outros princpios, que pertence a
lngua literria, cujos componentes incluem tambm os estilos da lngua no escrita. Para deslindar
a complexa dinmica histrica desses sistemas, para passar da simples (e em geral superficial)
descrio dos estilos que se sucedem, e chegar explicao histrica dessas mudanas,
indispensvel colocar o problema especfico dos gneros do discurso (e no s dos gneros
secundrios, mas tambm dos gneros primrios) que, de uma forma imediata, sensvel e gil,
refletem a menor mudana na vida social. Os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os
gneros do discurso, so as correias de transmisso que levam da histria da sociedade histria da
2 E uma classificao igualmente pobre, confusa e mal fundamentada dos estilos da lngua que se encontra no livro de A. N. Gvozdev, Ensaios de
estilstica da lngua russa (Moscou, 1952). As classificaes se baseiam em noes tradicionais, adotadas sem o menor esprito crtico.
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lngua. Nenhum fenmeno novo (fontico, lexical, gramatical) pode entrar no sistema da lngua sem
ter sido longamente testado e ter passado pelo acabamento do estilo-gnero3.
Em cada poca de seu desenvolvimento, a lngua escrita marcada pelos gneros do
discurso e no s pelos gneros secundrios (literrios, cientficos, ideolgicos), mas tambm pelos
gneros primrios (os tipos do dilogo oral: linguagem das reunies sociais, dos crculos, linguagem
familiar, cotidiana, linguagem sociopoltica, filosfica, etc.). A ampliao da lngua escrita que
incorpora diversas camadas da lngua popular acarreta em todos os gneros (literrios, cientficos,
ideolgicos, familiares, etc.) a aplicao de um novo procedimento na organizao e na concluso
do todo verbal e uma modificao do lugar que ser reservado ao ouvinte ou ao parceiro, etc., o que
leva a uma maior ou menor reestruturao e renovao dos gneros do discurso. Quando a
literatura, conforme suas necessidades, recorre s camadas correspondentes (no literrias) da
literatura popular, recorre obrigatoriamente aos gneros do discurso atravs dos quais essas
camadas se atualizaram. Trata-se, em sua maioria, de tipos pertencentes ao gnero falado-dialogado.
Da a dialogizao mais ou menos marcada dos gneros secundrios, o enfraquecimento do
princpio monolgico de sua composio, a nova sensibilidade ao ouvinte, as novas formas de
concluso do todo, etc. Quando h estilo, h gnero. Quando passamos o estilo de um gnero para
outro, no nos limitamos a modificar a ressonncia deste estilo graas sua insero num gnero
que no lhe prprio, destrumos e renovamos o prprio gnero.
Assim, portanto, tanto os estilos individuais como os que pertencem lngua tendem para
os gneros do discurso. Um estudo mais ou menos profundo e extenso dos gneros do discurso
absolutamente indispensvel para uma elaborao produtiva de todos os problemas da estilstica.
O problema geral dos princpios metodolgicos aplicveis ao estudo das correlaes
existentes entre o lxico e a gramtica de um lado, e entre o lxico e a estilstica do outro, baseia-se
nesse mesmo problema do enunciado e dos gneros do discurso.
A gramtica (e o lxico) se distingue radicalmente da estilstica (alguns chegam a op-las),
e, ao mesmo tempo, no h um nico estudo de gramtica (ainda mais a gramtica normativa) que
no incorpore a estilstica. Em toda uma srie de casos, a fronteira entre a gramtica e a estilstica
parece apagar-se totalmente. H fenmenos que, para uns, esto relacionados com a gramtica, para
outros, com a estilstica. E o caso do sintagma, por exemplo.
Pode-se dizer que a gramtica e a estilstica se juntam e se separam em qualquer fato
lingustico concreto que, encarado do ponto de vista da lngua, um fato gramatical, encarado do
ponto de vista do enunciado individual, um fato estilstico. Mesmo a seleo que o locutor efetua
3 Esta tese que defendemos nada tem em comum com os princpios defendidos pela escola de Vossler, que coloca a estilstica antes da gramtica.
A continuao de nossa exposio o demonstrar com toda clareza.
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de uma forma gramatical j um ato estilstico. Esses dois pontos de vista sobre um nico e
mesmo fenmeno concreto da lngua no devem porm excluir-se mutuamente, substituir-se
mecanicamente um ao outro, devem combinar-se organicamente (com a manuteno metodolgica
de sua diferena) sobre a base da unidade real do fato lingustico. Apenas uma compreenso
profunda da natureza do enunciado e da particularidade dos gneros do discurso pode permitir a
soluo desse complexo problema de metodologia.
O estudo da natureza do enunciado e dos gneros do discurso tem uma importncia
fundamental para superar as noes simplificadas acerca da vida verbal, a que chamam o fluxo
verbal, a comunicao, etc., noes estas que ainda persistem em nossa cincia da linguagem. Irei
mais longe: o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicao verbal,
tambm deve permitir compreender melhor a natureza das unidades da lngua (da lngua como
sistema): as palavras e as oraes.
precisamente para este problema, que o mais geral, que vamos passar agora.
II
O enunciado, unidade da comunicao verbal
A lingustica do sculo XIX a comear por W. Humboldt , sem negar a funo
comunicativa da linguagem, empenhou- se em releg-la ao segundo plano, como algo acessrio;
passava-se para o primeiro plano a funo formadora sobre o pensamento, independente da
comunicao. Eis a clebre frmula de Humboldt: Abstraindo-se a necessidade de comunicao do
homem, a lngua lhe indispensvel para pensar, mesmo que tivesse de estar sempre sozinho. A
escola de Vossler passa a funo dita expressiva para o primeiro plano. Apesar das diferenas que
os tericos introduzem nessa funo, ela, no essencial, resume-se expresso do universo
individual do locutor. A lngua se deduz da necessidade do homem de expressar-se, de exteriorizar-
se. A essncia da lngua, de uma forma ou de outra, resume-se criatividade espiritual do indivduo.
Aventaram-se, e continuam-se a aventar, outras variantes das funes da linguagem, mas o que
permanece caracterstico no uma ignorncia absoluta, por certo, mas uma estimativa errada das
funes comunicativas da linguagem; a linguagem considerada do ponto de vista do locutor como
se este estivesse sozinho, sem uma forosa relao com os outros parceiros da comunicao verbal.
E, quando o papel do outro levado em considerao, como um destinatrio passivo que se limita
a compreender o locutor. O enunciado satisfaz ao seu prprio objeto (ou seja, ao contedo do
pensamento enunciado) e ao prprio enunciador. A lngua s requer o locutor - apenas o locutor - e
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o objeto de seu discurso, e se, com isso, ela tambm pode servir de meio de comunicao, esta
apenas uma funo acessria, que no toca sua essncia. bvio que a coletividade lingustica, a
multiplicidade dos locutores so fatos que no podem ser ignorados quando se trata da lngua, mas
esse aspecto no necessrio ou determinante quando se trata de definir a natureza da lngua em
sua essncia. s vezes a coletividade lingustica encarada como uma espcie de personalidade
coletiva o esprito de um povo, etc. e -lhe atribuda uma importncia capital (na psicologia
dos povos), mas a verdade que, mesmo nesses casos, a multiplicidade dos locutores os outros
para cada determinado locutor perde sua substncia.
Na lingustica, at agora, persistem funes tais como o ouvinte e o receptor (os
parceiros do locutor). Tais funes do uma imagem totalmente distorcida do processo complexo
da comunicao verbal. Nos cursos de lingustica geral (at nos cursos srios como os de Saussure),
os estudiosos comprazem-se em representar os dois parceiros da comunicao verbal, o locutor e o
ouvinte (quem recebe a fala), por meio de um esquema dos processos ativos da fala no locutor e dos
processos passivos de percepo e de compreenso da fala no ouvinte. No se pode dizer que esses
esquemas so errados e no correspondem a certos aspectos reais, mas quando estes esquemas
pretendem representar o todo real da comunicao verbal se transformam em fico cientfica. De
fato, o ouvinte que recebe e compreende a significao (lingustica) de um discurso adota
simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda
(total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte
est em elaborao constante durante todo o processo de audio e de compreenso desde o incio
do discurso, s vezes j nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. A compreenso de uma fala
viva, de um enunciado vivo sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o
grau dessa atividade seja muito varivel); toda compreenso prenhe de resposta e, de uma forma
ou de outra, forosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor. A compreenso passiva das
significaes do discurso ouvido apenas o elemento abstrato de um fato real que o todo
constitudo pela compreenso responsiva ativa e que se materializa no ato real da resposta fnica
subsequente. Uma resposta fnica, claro, no sucede infalivelmente ao enunciado fnico que a
suscita: a compreenso responsiva ativa do que foi ouvido (por exemplo, no caso de uma ordem
dada) pode realizar-se diretamente como um ato (a execuo da ordem compreendida e acatada),
pode permanecer, por certo lapso de tempo, compreenso responsiva muda (certos gneros do
discurso fundamentam-se apenas nesse tipo de compreenso, como, por exemplo, os gneros
lricos), mas neste caso trata-se, poderamos dizer, de uma compreenso responsiva de ao
retardada: cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrar um eco no
discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte. Os gneros secundrios da comunicao
verbal, em sua maior parte, contam precisamente com esse tipo de compreenso responsiva de ao
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retardada. O que acabamos de expor vale tambm, mutatis mutandis, para o discurso lido ou escrito.
A compreenso responsiva nada mais seno a fase inicial e preparatria para uma resposta (seja
qual for a forma de sua realizao). O locutor postula esta compreenso responsiva ativa: o que ele
espera, no uma compreenso passiva que, por assim dizer, apenas duplicaria seu pensamento no
esprito do outro, o que espera uma resposta, uma concordncia, uma adeso, uma objeo, uma
execuo, etc. A variedade dos gneros do discurso pressupe a variedade dos escopos intencionais
daquele que fala ou escreve. O desejo de tornar seu discurso inteligvel apenas um elemento
abstrato da inteno discursiva em seu todo. O prprio locutor como tal , em certo grau, um
respondente, pois no o primeiro locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silncio de um
mundo mudo, e pressupe no s a existncia do sistema da lngua que utiliza, mas tambm a
existncia dos enunciados anteriores emanantes dele mesmo ou do outro aos quais seu prprio
enunciado est vinculado por algum tipo de relao (fundamenta-se neles, polemiza com eles), pura
e simplesmente ele j os supe conhecidos do ouvinte. Cada enunciado um elo da cadeia muito
complexa de outros enunciados. O ouvinte dotado de uma compreenso passiva, tal como
representado como parceiro do locutor nas figuras esquemticas da lingustica geral, no
corresponde ao protagonista real da comunicao verbal. O que representado o elemento
abstrato do fato real da compreenso responsiva ativa em seu todo, geradora de uma resposta
(resposta com que conta o locutor). Esse tipo de abstrao cientfica justificado, mas com a
condio expressa de ser concebido como uma abstrao e de no ser tomado por um fenmeno real
e concreto, com o risco de cair na fico. Ora, no isso que se passa na lingustica, na medida em
que tais esquemas abstratos, embora no sejam apresentados como o reflexo da comunicao
verbal, no deixam de omitir a referncia complexidade maior do fenmeno real. O resultado
que o esquema distorce o quadro real da comunicao verbal cujos princpios essenciais so
eliminados. O papel ativo do outro no processo da comunicao verbal fica minimizado ao extremo.
A utilizao incerta e ambgua de termos tais como fala ou fluxo verbal revela o mesmo
menosprezo pelo papel ativo do outro no processo de comunicao verbal e a tendncia de passar ao
largo desse processo. Esses termos deliberadamente vagos costumam designar aquilo que est
submetido a uma segmentao em unidades de lngua concebidas como fraes da lngua: fnicas
(o fonema, a slaba, o grupo acentuado) e significantes (a orao e a palavra). O fluxo verbal se
subdivide..., Nosso discurso se divide em..., eis como costumam, nos cursos de lingustica geral
e de gramtica, e tambm nos estudos especializados de fontica, de lexicologia, introduzir as
sees de gramtica consagradas anlise das unidades lingusticas correspondentes. E uma pena
que a Gramtica da Academia, publicada h to pouco tempo, tambm utilize esta mesma
formulao ambgua. E o que ento nosso discurso? Eis como introduzida a seo que
corresponde fontica: Nosso discurso se divide acima de tudo em oraes que, por sua vez,
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podem dividir-se em combinaes de palavras e em palavras. As palavras se decompem em
unidades fnicas menores, as slabas. As slabas em sons distintos ou fonemas...
O que ento esse fluxo verbal, o que ento o nosso discurso? Qual seu campo de
ao? Tero eles um princpio e um fim? Se esses fenmenos possuem uma durao indeterminada,
qual a frao que usamos para dividi-la em unidades? Todos esses problemas esto imersos numa
completa indeterminao e num conhecimento fragmentrio. A vaga palavra discurso que se
refere indiferentemente lngua, ao processo da fala, ao enunciado, a uma sequncia (de
comprimento varivel) de enunciados, a um gnero preciso do discurso, etc., esta palavra, at agora,
no foi transformada pelos linguistas num termo rigorosamente definido e de significao restrita
(fenmenos anlogos ocorrem tambm em outras lnguas). Esse estado de coisas explica-se pelo
fato de que os problemas do enunciado e dos gneros do discurso (e, por conseguinte, os da
comunicao verbal) ficaram quase intocados. Em quase toda parte, os estudiosos divertem-se em
jogar com o enredamento de todas essas significaes. Geralmente, aplica-se a expresso nosso
discurso a qualquer enunciado de qualquer locutor; mas tal acepo jamais sustentada at o fim.4
Ora, se aquilo que se divide e subdivide em unidades de lngua indeterminado e vago, a
indeterminao e a confuso se transmitem igualmente s unidades assim obtidas. A indeterminao
e a confuso terminolgicas acerca de um ponto metodolgico to central no pensamento
lingustico resultam de um menosprezo total pelo que a unidade real da comunicao verbal: o
enunciado. A fala s existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivduo: do
sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre forma do enunciado que pertence a um
sujeito falante e no pode existir fora dessa forma. Quaisquer que sejam o volume, o contedo, a
composio, os enunciados sempre possuem, como unidades da comunicao verbal, caractersticas
estruturais que lhes so comuns, e, acima de tudo, fronteiras claramente delimitadas. E neste
problema das fronteiras, cujo princpio essencial, que convm deter-se com vagar.
As fronteiras do enunciado concreto, compreendido como uma unidade da comunicao
verbal, so determinadas pela alternncia dos sujeitos falantes, ou seja, pela alternncia dos
locutores. Todo enunciado desde a breve rplica (monolexemtica) at o romance ou o tratado
cientfico comporta um comeo absoluto e um fim absoluto: antes de seu incio, h os enunciados
dos outros, depois de seu fim, h os enunciados-respostas dos outros (ainda que seja como uma
compreenso responsiva ativa muda ou como um ato-resposta baseado em determinada
compreenso). O locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar
4 E, alis, como se poderia sustent-la at o fim? Um enunciado do tipo Ah! (rplica de dilogo) no divisvel em oraes, em combinaes de palavras, em slabas. Portanto, fica evidente que nem todo enunciado um discurso. Depois disso, os estudiosos dividem o enunciado (o discurso) e
obtm unidades da lngua. Em seguida, definem a orao como o enunciado mais simples que, consequentemente, j no pode mais ser uma unidade
do enunciado. Tacitamente, pressupem a fala de um locutor s, sendo descartados os matizes dialgicos.
Comparadas com as fronteiras do enunciado, todas as outras fronteiras (as que delimitam as oraes, as combinaes de palavras) so apenas relativas
e convencionais.
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compreenso responsiva ativa do outro. O enunciado no uma unidade convencional, mas uma
unidade real, estritamente delimitada pela alternncia dos sujeitos falantes, e que termina por uma
transferncia da palavra ao outro, por algo como um mudo dixi percebido pelo ouvinte, como
sinal de que o locutor terminou.
Essa alternncia dos sujeitos falantes que traa fronteiras estritas entre os enunciados nas
diversas esferas da atividade e da existncia humana, conforme as diferentes atribuies da lngua e
as condies e situaes variadas da comunicao, diversamente caracterizada e adota formas
variadas. no dilogo real que esta alternncia dos sujeitos falantes observada de modo mais
direto e evidente; os enunciados dos interlocutores (parceiros do dilogo), a que chamamos de
rplicas, alternam-se regularmente nele. O dilogo, por sua clareza e simplicidade, a forma
clssica da comunicao verbal. Cada rplica, por mais breve e fragmentria que seja, possui um
acabamento especfico que expressa a posio do locutor, sendo possvel responder, sendo possvel
tomar, com relao a essa rplica, uma posio responsiva. Este acabamento especfico do
enunciado ser objeto de anlises posteriores, pois um dos traos fundamentais do enunciado. Ao
mesmo tempo, as rplicas so ligadas umas s outras. Ora, a relao que se estabelece entre as
rplicas do dilogo relaes de pergunta-resposta, assero-objeo, afirmao-consentimento,
oferecimento-aceitao, ordem-execuo, etc. impossvel entre as unidades da lngua (entre as
palavras e as oraes), tanto no sistema da lngua (no eixo vertical), quanto no interior do enunciado
(no eixo horizontal). Esta relao especfica que liga as rplicas do dilogo apenas uma variante
da relao especfica que liga enunciados completos durante o processo da comunicao verbal.
Esta relao s possvel entre enunciados provenientes de diferentes sujeitos falantes. Pressupe o
outro (em relao ao locutor) membro da comunicao verbal. Esta relao entre enunciados
completos no se presta a uma gramaticalizao porque, como j dissemos, ela no existe entre as
unidades da lngua no s no interior do sistema da lngua, mas tambm no interior do enunciado.
Nos gneros secundrios do discurso, sobretudo nos gneros retricos, encontramos
fenmenos que parecem contradizer o princpio que colocamos. Observa-se de fato que, nos limites
de um enunciado, o locutor (ou o escritor) formula perguntas, responde-as, ope objees que ele
mesmo refuta, etc. Porm esses fenmenos no so mais que a simulao convencional da
comunicao verbal e dos gneros primrios do discurso. E um jogo caracterstico dos gneros
retricos (que incluem certos modos de vulgarizao cientfica); alis, todos os gneros secundrios
(nas artes e nas cincias) incorporam diversamente os gneros primrios do discurso na construo
do enunciado, assim como a relao existente entre estes (os quais se transformam, em maior ou
menor grau, devido ausncia de uma alternncia dos sujeitos falantes). Tal a natureza dos
gneros secundrios. Mas todos esses fenmenos em que reproduzida a relao especfica com os
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gneros primrios, ainda que se realizem nos limites de um nico enunciado, no se prestam a uma
gramaticalizao: sua natureza especfica difere por princpio da natureza das relaes existentes
entre as palavras e as oraes (e as outras unidades da lngua: a combinao das palavras, etc.) e se
preserva dentro do enunciado.
Tendo chegado a este ponto, e baseando-nos no material do dilogo e das rplicas, devemos
analisar o problema da orao entendida como uma unidade da lngua e ver o que a distingue do
enunciado entendido como uma unidade da comunicao verbal.
(O problema acerca da natureza da orao o problema mais complexo e difcil para a
lingustica. No faz parte de nosso intuito tratar deste problema em toda sua complexidade,
propomo-nos somente tratar de um dos seus aspectos que, ao que nos parece, essencial para a
totalidade do problema. O que nos importa determinar a relao existente entre a orao e o
enunciado. Tal elucidao dever contribuir para esclarecer tanto o enunciado quanto a orao.)
Voltaremos a este problema mais tarde. Por ora, basta-nos observar que as fronteiras da
orao (unidade da lngua) nunca so marcadas pela alternncia dos sujeitos falantes que, se
enquadrassem a orao em suas duas extremidades, a converteriam num enunciado. De fato, a
orao adquiriria novas propriedades e seria percebida de uma maneira absolutamente diferente,
que a distinguiria de uma orao idntica, enquadrada por outras oraes, no contexto de um nico
enunciado proveniente de um nico e mesmo locutor. A orao representa um pensamento
relativamente acabado, diretamente relacionado com outros pensamentos do mesmo locutor, dentro
do todo do enunciado; uma vez terminada a orao, o locutor faz uma pausa, antes de passar para o
pensamento que d seguimento ao seu prprio pensamento, que continua, completa, fundamenta o
pensamento anterior. O contexto da orao o contexto do discurso de um nico e mesmo sujeito
falante (do locutor); a relao existente entre a orao e o contexto transverbal da realidade (a
situao, as circunstncias, a pr-histria), e os enunciados de outros locutores no uma relao
direta ou pessoal, intermediada por todo o contexto que a rodeia, ou seja, pelo enunciado em seu
todo. Mas, se a orao no se insere no contexto da fala de um nico e mesmo locutor, em outras
palavras, se representa um enunciado completo e acabado (uma rplica de dilogo), ento se
encontra numa relao direta (e pessoal) com a realidade (com o contexto transverbal da fala) e com
os outros enunciados alheios; o que lhe sucede, portanto, j no a pausa decidida pelo prprio
locutor (as pausas, enquanto fatos gramaticais, calculadas e deliberadas, s so possveis no interior
do discurso de um nico locutor, ou seja, dentro de um nico enunciado; a pausa entre os
enunciados um fato real e no um fato gramatical, e este tipo de pausa que se prende
psicologia ou a alguma circunstncia externa pode introduzir uma ruptura no todo do enunciado;
uma pausa que, nos gneros secundrios, provm de um clculo do artista, do diretor, do ator, e
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distingue-se, por princpio, tanto da pausa gramatical como da pausa estilstica, tal como ocorre, por
exemplo, entre os sintagmas, dentro de um enunciado), o que lhe sucede a resposta ou a
compreenso responsiva de outro locutor. A orao passa ento categoria de enunciado completo,
implica uma atitude responsiva: pode-se concordar com ele ou discordar dele, pode-se executar,
julgar, etc. A orao enquanto tal, em seu contexto, no tem capacidade de determinar uma
resposta; adquire essa propriedade (mais exatamente: participa dela) apenas no todo de um
enunciado.
A orao que se torna enunciado completo adquire novas qualidades e particularidades que
no pertencem orao, mas ao enunciado, que no expressam a natureza da orao mas do
enunciado e que, achando-se associadas orao, completam-na at torn-la um enunciado
completo. A orao, como unidade da lngua, desprovida dessas propriedades; no delimitada
em suas duas extremidades pela alternncia dos sujeitos falantes, no est em contato imediato com
a realidade (com a situao transverbal) e tampouco est em relao imediata com os enunciados do
outro, no possui uma significao plena nem uma capacidade de suscitar a atitude responsiva do
outro locutor, ou seja, de determinar uma resposta. A orao, como unidade da lngua, de natureza
gramatical e tem fronteiras, um acabamento, uma unidade que se prendem gramtica ( no interior
do todo do enunciado e do ponto de vista desse todo que a orao alcana propriedades estilsticas).
Onde a orao figura a ttulo de enunciado completo, parece encravada num material de natureza
totalmente estranha. Ao se ignorar esses fatos na anlise da orao, deforma-se a natureza da orao
(e, portanto, do enunciado que se gramaticaliza). Muitos linguistas (no campo da sintaxe) so
prisioneiros dessa confuso: o que estudam como orao , na verdade, uma espcie de hbrido da
orao (unidade da lngua) e do enunciado (unidade da comunicao verbal). As pessoas no
trocam oraes, assim como no trocam palavras (numa acepo rigorosamente lingustica), ou
combinaes de palavras, trocam enunciados constitudos com a ajuda de unidades da lngua
palavras, combinaes de palavras, oraes; mesmo assim, nada impede que o enunciado seja
constitudo de uma nica orao, ou de uma nica palavra, por assim dizer, de uma nica unidade
da fala (o que acontece sobretudo na rplica do dilogo), mas no isso que converter uma
unidade da lngua numa unidade da comunicao verbal.
Na falta de uma teoria baseada no enunciado entendido como unidade da comunicao
verbal, permanece incerta a distino entre a orao e o enunciado, que geralmente so
confundidos.
Voltemos ao dilogo real. Como j dissemos, a forma mais simples e mais clssica da
comunicao verbal. A alternncia dos sujeitos falantes (dos locutores) que determina a fronteira
entre os enunciados apresenta-se no dilogo com excepcional clareza. Ora, o mesmo sucede nas
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outras esferas da comunicao verbal, mesmo nas reas com organizao complexa da comunicao
cultural (nas cincias e nas artes). As fronteiras do enunciado so sempre da mesma natureza.
As obras de construo complexa e as obras especializadas pertencentes aos vrios gneros
das cincias e das artes, apesar de tudo o que as distingue da rplica do dilogo, so, por sua
natureza, unidades da comunicao verbal: so identicamente delimitadas pela alternncia dos
sujeitos falantes e as fronteiras, mesmo guardando sua nitidez externa, adquirem uma caracterstica
interna particular pelo fato de que o sujeito falante o autor da obra manifesta sua
individualidade, sua viso do mundo, em cada um dos elementos estilsticos do desgnio que
presidia sua obra. Esse cunho de individualidade aposto obra justamente o que cria as
fronteiras internas especficas que, no processo da comunicao verbal, a distinguem das outras
obras com as quais se relaciona dentro de uma dada esfera cultural as obras dos antecessores, nas
quais o autor se apoia, as obras de igual tendncia, as obras de tendncia oposta, com as quais o
autor luta, etc.
A obra, assim como a rplica do dilogo, visa a resposta do outro (dos outros), uma
compreenso responsiva ativa, e para tanto adota todas as espcies de formas: busca exercer uma
influncia didtica sobre o leitor, convenc-lo, suscitar sua apreciao crtica, influir sobre mulos e
continuadores, etc. A obra predetermina as posies responsivas do outro nas complexas condies
da comunicao verbal de uma dada esfera cultural. A obra um elo na cadeia da comunicao
verbal; do mesmo modo que a rplica do dilogo, ela se relaciona com as outras obras-enunciados:
com aquelas a que ela responde e com aquelas que lhe respondem, e, ao mesmo tempo, nisso
semelhante rplica do dilogo, a obra est separada das outras pela fronteira absoluta da
alternncia dos sujeitos falantes.
A alternncia dos sujeitos falantes que compe o contexto do enunciado, transformando-o
numa massa compacta rigorosamente circunscrita em relao aos outros enunciados vinculados a
ele, constitui a primeira particularidade do enunciado concebido como unidade da comunicao
verbal e que distingue esta da unidade da lngua. Passemos agora segunda particularidade,
indissocivel da primeira, a saber: o acabamento especfico do enunciado. O acabamento do
enunciado de certo modo a alternncia dos sujeitos falantes vista do interior; essa alternncia
ocorre precisamente porque o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso
momento e em condies precisas. Ao ouvir ou ao ler, sentimos claramente o fim de um enunciado,
como se ouvssemos o dixi conclusivo do locutor. um acabamento totalmente especfico e que
pode ser determinado por meio de critrios particulares. O primeiro e mais importante dos critrios
de acabamento do enunciado a possibilidade de responder mais exatamente, de adotar uma
atitude responsiva para com ele (por exemplo, executar uma ordem). Esse critrio vale tanto para a
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curta pergunta banal, por exemplo: Que horas so? (pode-se respond-la) ou para o pedido banal
ao qual se pode aceder ou no aceder, quanto para a exposio cientfica, com a qual se pode
concordar ou discordar (total ou parcialmente), e para o romance (no mbito artstico), sobre o qual
se pode formular um juzo de conjunto. necessrio o acabamento para tornar possvel uma reao
ao enunciado. No basta que o enunciado seja inteligvel no nvel da lngua. Uma orao totalmente
inteligvel e acabada, se for uma orao e no um enunciado constitudo de uma nica orao
no poder suscitar uma reao de resposta: inteligvel, est certo, mas ainda no um todo. Este
todo indcio da totalidade de um enunciado no se presta a uma definio de ordem gramatical
ou pertencente a uma entidade do sentido.
A totalidade acabada do enunciado que proporciona a possibilidade de responder (de
compreender de modo responsivo) determinada por trs fatores indissociavelmente ligados no
todo orgnico do enunciado: 1) o tratamento exaustivo do objeto do sentido; 2) o intuito, o querer-
dizer do locutor; 3) as formas tpicas de estruturao do gnero do acabamento.
O primeiro fator o tratamento exaustivo do tema do enunciado varia profundamente
conforme as esferas da comunicao verbal. O tratamento exaustivo pode ser quase total em certas
esferas: na vida cotidiana (as perguntas de ordem puramente factual e as respostas igualmente
factuais que elas suscitam), na vida prtica, na vida militar (os comandos e as ordens), na vida
profissional, em suma, nas esferas em que os gneros do discurso so padronizados ao mximo e a
criatividade quase inexistente. Nas esferas criativas (em particular, claro, nas cincias), em
compensao, o tratamento exaustivo ser muito relativo exatamente um mnimo de acabamento
capaz de suscitar uma atitude responsiva. Teoricamente, o objeto inesgotvel, porm, quando se
torna tema de um enunciado (de uma obra cientfica, por exemplo), recebe um acabamento relativo,
em condies determinadas, em funo de uma dada abordagem do problema, do material, dos
objetivos por atingir, ou seja, desde o incio ele estar dentro dos limites de um intuito definido pelo
autor. Eis-nos assim diante do segundo fator indissoluvelmente ligado ao primeiro.
Em qualquer enunciado, desde a rplica cotidiana monolexemtica at as grandes obras
complexas cientficas ou literrias, captamos, compreendemos, sentimos o intuito discursivo ou o
querer-dizer do locutor que determina o todo do enunciado: sua amplitude, suas fronteiras.
Percebemos o que o locutor quer dizer e em comparao a esse intuito discursivo, a esse querer-
dizer (como o tivermos captado) que mediremos o acabamento do enunciado. Esse intuito
determina a escolha, enquanto tal, do objeto, com suas fronteiras (nas circunstncias precisas da
comunicao verbal e necessariamente em relao aos enunciados anteriores) e o tratamento
exaustivo do objeto do sentido que lhe prprio. Tal intuito vai determinar tambm, claro, a
escolha da forma do gnero em que o enunciado ser estruturado (mas este o terceiro fator de que
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trataremos mais adiante). O intuito, o elemento subjetivo do enunciado, entra em combinao com o
objeto do sentido objetivo para formar uma unidade indissolvel, que ele limita, vincula
situao concreta (nica) da comunicao verbal, marcada pelas circunstncias individuais, pelos
parceiros individualizados e suas intervenes anteriores: seus enunciados. por isso que os
parceiros diretamente implicados numa comunicao, conhecedores da situao e dos enunciados
anteriores, captam com facilidade e prontido o intuito discursivo, o querer-dizer do locutor, e,
s primeiras palavras do discurso, percebem o todo de um enunciado em processo de
desenvolvimento.
Passemos agora ao terceiro fator, que o mais importante para ns, a saber: as formas
estveis do gnero do enunciado. O querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de
um gnero do discurso. Essa escolha determinada em funo da especificidade de uma dada esfera
da comunicao verbal, das necessidades de uma temtica (do objeto do sentido), do conjunto
constitudo dos parceiros, etc. Depois disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este renuncie
sua individualidade e sua subjetividade, adapta-se e ajusta-se ao gnero escolhido, compe-se e
desenvolve-se na forma do gnero determinado. Esse tipo de gnero existe sobretudo nas esferas
muito diversificadas da comunicao verbal oral da vida cotidiana (inclusive em suas reas
familiares e ntimas).
Para falar, utilizamo-nos sempre dos gneros do discurso, em outras palavras, todos os
nossos enunciados dispem de uma forma padro e relativamente estvel de estruturao de um
todo. Possumos um rico repertrio dos gneros do discurso orais (e escritos). Na prtica, usamo-
los com segurana e destreza, mas podemos ignorar totalmente a sua existncia terica. Como
Jourdain de Molire, que falava em prosa sem suspeitar disso, falamos em vrios gneros sem
suspeitar de sua existncia. Na conversa mais desenvolta, moldamos nossa fala s formas precisas
de gneros, s vezes padronizados e estereotipados, s vezes mais maleveis, mais plsticos e mais
criativos. A comunicao verbal na vida cotidiana no deixa de dispor de gneros criativos. Esses
gneros do discurso nos so dados quase como nos dada a lngua materna, que dominamos com
facilidade antes mesmo que lhe estudemos a gramtica. A lngua materna a composio de seu
lxico e sua estrutura gramatical , no a aprendemos nos dicionrios e nas gramticas, ns a
adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicao
verbal viva que se efetua com os indivduos que nos rodeiam. Assimilamos as formas da lngua
somente nas formas assumidas pelo enunciado e juntamente com essas formas. As formas da lngua
e as formas tpicas de enunciados, isto , os gneros do discurso, introduzem-se em nossa
experincia e em nossa conscincia conjuntamente e sem que sua estreita correlao seja rompida.
Aprender a falar aprender a estruturar enunciados (porque falamos por enunciados e no por
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oraes isoladas e, menos ainda, bvio, por palavras isoladas). Os gneros do discurso organizam
nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintticas). Aprendemos a
moldar nossa fala s formas do gnero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas
primeiras palavras, pressentir-lhe o gnero, adivinhar-lhe o volume (a extenso aproximada do todo
discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o incio, somos
sensveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciar suas diferenciaes.
Se no existissem os gneros do discurso e se no os dominssemos, se tivssemos de cri-los pela
primeira vez no processo da fala, se tivssemos de construir cada um de nossos enunciados, a
comunicao verbal seria quase impossvel.
As formas do gnero s quais modelamos nossa fala se distinguem substancialmente das
formas da lngua, do ponto de vista de sua estabilidade e de suas leis normativas para o locutor. De
um modo geral, elas so mais maleveis, mais plsticas e mais livres do que as formas da lngua.
Tambm nesse caso, a variedade dos gneros do discurso muito grande. H toda uma gama dos
gneros mais difundidos na vida cotidiana que apresenta formas to padronizadas que o querer-
dizer individual do locutor quase que s pode manifestar-se na escolha do gnero, cuja
expressividade de entonao no deixa de influir na escolha. E o caso, por exemplo, dos diversos
gneros fticos, das felicitaes, dos votos, das trocas de novidades sobre a sade, os negcios,
etc. A diversidade desses gneros deve-se ao fato de eles variarem conforme as circunstncias, a
posio social e o relacionamento pessoal dos parceiros: h o estilo elevado, estritamente oficial,
deferente, como h o estilo familiar que comporta vrios graus de familiaridade e de intimidade
(distinguindo-se esta da familiaridade)5. Trata-se de gneros que implicam tambm um tom
determinado, ou seja, comportam em sua estrutura uma dada entonao expressiva. Estes gneros,
em particular os gneros elevados, oficiais, so muito estveis e muito prescritivos (normativos).
O querer-dizer deve limitar-se escolha de um determinado gnero e apenas ligeiros matizes na
entonao expressiva (pode-se adotar um tom mais deferente, mais frio ou ento mais caloroso,
introduzir uma entonao prazerosa, etc.) podem expressar a individualidade do locutor (o aspecto
emocional de seu intuito discursivo). Mas aqui tambm, no nvel dos gneros, pode intervir o jogo
das inflexes, caracterstico da comunicao verbal: por exemplo, a forma do gnero do
cumprimento pode ser transferida da esfera oficial para a esfera familiar da comunicao, que ser
ento utilizada com uma inflexo irnico-pardica; com finalidades anlogas, podem-se confundir
deliberadamente os gneros pertencentes a esferas diferentes.
5 Esse tipo de fenmenos e tipos anlogos chamaram a ateno dos linguistas (sobretudo dos historiadores da lngua) de um ngulo puramente
estilstico, na medida em que a lngua refletia as formas histricas variveis da etiqueta, da cortesia, do decoro. (Cf. F Brunot, Histoire de la langue
franaise des origines 1900, Paris, 1905-1943.)
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Ao lado dos gneros padronizados, existiram, e continuam a existir, claro, gneros mais
livres e mais criativos da comunicao verbal oral: os gneros das reunies sociais, da intimidade
amigvel, da intimidade familiar, etc. (At agora nenhuma nomenclatura dos gneros do discurso
oral foi criada e mesmo o princpio dessa nomenclatura no claro.) A maior parte desses gneros
se presta a uma reestruturao criativa (de um modo semelhante aos gneros literrios e, alguns
deles, num grau ainda mais acentuado), mas um uso criativo livre no significa ainda a recriao de
um gnero: para us-los livremente, preciso um bom domnio dos gneros.
So muitas as pessoas que, dominando magnificamente a lngua, sentem-se logo
desamparadas em certas esferas da comunicao verbal, precisamente pelo fato de no dominarem,
na prtica, as formas do gnero de uma dada esfera. No raro o homem que domina perfeitamente
a fala numa esfera da comunicao cultural, sabe fazer uma explanao, travar uma discusso
cientfica, intervir a respeito de problemas sociais, calar-se ou ento intervir de uma maneira muito
desajeitada numa conversa social. No por causa de uma pobreza de vocabulrio ou de estilo
(numa acepo abstrata), mas de uma inexperincia de dominar o repertrio dos gneros da
conversa social, de uma falta de conhecimento a respeito do que o todo do enunciado, que o
indivduo fica inapto para moldar com facilidade e prontido sua fala e determinadas formas
estilsticas e composicionais; por causa de uma inexperincia de tomar a palavra no momento
certo, de comear e terminar no tempo correto (nesses gneros, a composio muito simples).
de acordo com nosso domnio dos gneros que usamos com desembarao, que
descobrimos mais depressa e melhor nossa individualidade neles (quando isso nos possvel e til),
que refletimos, com maior agilidade, a situao irreproduzvel da comunicao verbal, que
realizamos, com o mximo de perfeio, o intuito discursivo que livremente concebemos.
Portanto, o locutor recebe, alm das formas prescritivas da lngua comum (os componentes e
as estruturas gramaticais), as formas no menos prescritivas do enunciado, ou seja, os gneros do
discurso, que so to indispensveis quanto as formas da lngua para um entendimento recproco
entre locutores. Os gneros do discurso so, em comparao com as formas da lngua, muito mais
fceis de combinar, mais geis, porm, para o indivduo falante, no deixam de ter um valor
normativo: eles lhe so dados, no ele que os cria. E por isso que o enunciado, em sua
singularidade, apesar de sua individualidade e de sua criatividade, no pode ser considerado como
uma combinao absolutamente livre das formas da lngua, do modo concebido, por exemplo, por
Saussure (e, na sua esteira, por muitos linguistas), que ope o enunciado (a fala), como um ato
puramente individual, ao sistema da lngua como fenmeno puramente social e prescritivo para o
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indivduo6. A grande maioria dos linguistas compartilha a mesma posio, se no na teoria, na
prtica: no enunciado, veem apenas a combinao individual de formas puramente lingusticas
(lexicais e gramaticais) e, na prtica, no veem nem estudam nenhuma outra forma normativa.
O menosprezo dos gneros do discurso como formas de enunciados relativamente estveis e
normativos devia irremediavelmente levar os linguistas a confundirem, como j mencionamos
acima, o enunciado e a orao, a afirmarem (sem que, verdade, isso jamais tenha sido defendido
de modo consequente) que nossa fala se molda a formas estveis da orao; mas no se
perguntaram qual o nmero de oraes inter-relacionadas emitidas consecutivamente por ns e em
que momento nos detemos; tudo isso deixado arbitrariedade absoluta do querer-dizer do locutor
ou ao capricho de um fluxo verbal mtico.
Quando escolhemos um determinado tipo de orao, no escolhemos somente uma
determinada orao em funo do que queremos expressar com a ajuda dessa orao, selecionamos
um tipo de orao em funo do todo do enunciado completo que se apresenta nossa imaginao
verbal e determina nossa opo. A idia que temos da forma do nosso enunciado, isto , de um
gnero preciso do discurso, dirige-nos em nosso processo discursivo. O intuito de nosso enunciado,
em seu todo, pode no necessitar, para sua realizao, seno de uma orao, mas pode tambm
necessitar de um grande nmero delas e o gnero escolhido dita-nos o seu tipo com suas
articulaes composicionais.
Uma das razes para que a lingustica ignore as formas de enunciados deve-se extrema
heterogeneidade da estrutura composicional delas e s particularidades de seu volume (a extenso
do discurso): que vai da rplica monolexemtica ao romance em vrios tomos. A grande
variabilidade do volume vlida tambm para os gneros discursivos orais. Por isso, os gneros do
discurso parecem incomensurveis e inoperantes enquanto unidades do discurso.
por isso que muitos linguistas (sobretudo no campo da sintaxe) empenham-se em
encontrar formas particulares que sejam um meio-termo entre a orao e o enunciado e que se
assinalem pelo carter acabado, do mesmo modo que o enunciado, e continuem comensurveis, do
mesmo modo que a orao. o caso da frase (em Karcevski, por exemplo), da comunicao
(em Chakhmatov e outros). Entre os pesquisadores que utilizam essas unidades, no h um conceito
em comum, pois na vida da lngua, no h nenhum fato real, determinado e circunscrito que lhes
corresponda. Todas essas unidades artificiais e convencionais no levam em conta a alternncia dos
sujeitos falantes que se d durante qualquer comunicao verbal real e viva. Isso provoca, em todas
6 Saussure definiu o enunciado (a fala) como ato individual de vontade e de inteligncia, no qual convm distinguir: 1) as combinaes pelas quais o sujeito falante utiliza o cdigo da lngua a fim de expressar seu pensamento pessoal; 2) o mecanismo psicofsico que lhe permite exteriorizar essas
combinaes (Saussure, Cours de linguistique gnrale, cap. 111-2). Saussure ignora portanto o fato de que, alm das formas da lngua, h tambm as formas de combinao dessas formas da lngua, ou seja, ignora os gneros do discurso.
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as esferas de atividade da lngua, um esmaecimento das fronteiras mais importantes: as fronteiras
entre enunciados. Da se segue (da resulta) que a noo de acabamento, critrio principal do
enunciado, entendido como unidade efetiva da comunicao verbal, perdida ou seja, a noo da
aptido do enunciado para condicionar uma atitude responsiva ativa nos outros parceiros da
comunicao.
Para concluir esta parte, acrescentarei algumas observaes sobre a orao (deixando para
voltar com detalhes ao problema na parte final deste trabalho).
A orao, como unidade da lngua, no consegue condicionar diretamente uma atitude
responsiva ativa. s ao tornar-se enunciado completo que adquire tal capacidade. Uma orao
pode substituir um enunciado acabado, mas nesse caso, como j vimos, encontra-se completada por
uma importante srie de fatos no gramaticais que lhe modificam a natureza. isso que acarreta
uma aberrao sinttica de um tipo especial: ao analisar uma orao isoladamente, fora de seu
contexto, esta conceitualizada at tornar-se um enunciado completo; em consequncia desse fato,
a orao atinge o grau de acabamento que a torna apta para suscitar uma resposta.
A orao, assim como a palavra, uma unidade significante da lngua; por isso, considerada
isoladamente por exemplo, Saiu o sol , totalmente inteligvel, ou seja, compreendemo-lhe
a significao lingustica, a eventual funo num enunciado. No obstante, impossvel adotar, a
respeito dessa orao isolada, uma atitude responsiva ativa, a no ser que saibamos que o locutor,
mediante essa orao, disse tudo o que queria dizer, que essa orao no precedida nem seguida
de outras oraes provenientes do mesmo locutor. Mas assim, j no uma orao e sim um
enunciado com todos os seus direitos, composto de uma nica orao ele est enquadrado e
delimitado pela alternncia dos sujeitos, sendo o reflexo imediato da realidade (situao)
transverbal. Tal enunciado pode receber uma resposta.
Ao contrrio, se a orao est dentro de um contexto, alcana sua plenitude de sentido
unicamente no interior desse contexto, ou seja, unicamente dentro do todo do enunciado, e ser
possvel responder a esse enunciado completo cujo elemento significante a dada orao.
Tomemos, por exemplo, o seguinte enunciado: J saiu o sol. Vamos! Levante-se! Est na hora,
cuja compreenso responsiva (ou a resposta fnica) poderia ser: , realmente, est na hora,
embora tambm possa ser: O sol j saiu, mais ainda cedo, vou dormir de novo. Aqui h outro
sentido do enunciado e outra resposta. Essa mesma orao pode, igualmente, entrar na composio
de uma obra literria, na qualidade de elemento de paisagem. Haver ento uma reao de resposta
apreciao e impresso de ordem esttica que se referir somente paisagem em seu todo.
Dentro de outra obra, essa orao pode receber um significado simblico. Em todos esses casos,
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a orao elemento significante do enunciado em seu todo e adquire sentido definitivo somente
dentro desse todo.
Se nossa orao serve de enunciado completo, dota-se ento de um sentido global, nas
condies concretas, delimitadas da comunicao verbal. Ela pode ser a resposta pergunta: Ser
que o sol j saiu? (em virtude, claro, de circunstncias determinadas). Temos um enunciado que
a assero de um fato preciso assero que pode ser verdadeira ou falsa, com a qual se pode estar
ou no de acordo. Uma orao assertiva por sua forma no se torna assero da realidade seno no
contexto de um enunciado determinado.
Ao analisar uma orao assim, isoladamente, costuma-se consider-la como um enunciado
completo, referente a uma situao simplificada ao extremo: o sol realmente saiu, e o locutor
constata: J saiu o sol; o locutor v que a grama esta verde, e ei-lo declarando: A grama est
verde. Tais comunicaes, sem sentido, so em geral consideradas como puras ocorrncias
clssicas da orao. Ora, na realidade, uma informao desse tipo se dirige a algum, provocada
por algo, persegue uma finalidade qualquer, ou seja, um elo real na cadeia da comunicao verbal,
no interior de uma dada esfera da realidade humana ou da vida cotidiana.
A orao, assim como a palavra, possui completitude em sua significao, completitude na
sua forma gramatical, mas a completitude de sua significao de natureza abstrata, sendo
precisamente isso que a deixa to clara; a completitude caracterstica do elemento e no o
acabamento do todo. A orao, enquanto unidade da lngua, assim como a palavra, no tem autor;
no de ningum (como a palavra), sendo somente quando funciona como enunciado completo que
se torna expresso individualizada da instncia locutora, numa situao concreta da comunicao
verbal. Chegamos assim terceira particularidade constitutiva do enunciado, concernente relao
do enunciado com o prprio locutor (com o autor do enunciado), e com os outros parceiros da
comunicao verbal.
O enunciado um elo na cadeia da comunicao verbal. Representa a instncia ativa do
locutor numa ou noutra esfera do objeto do sentido. Por isso, o enunciado se caracteriza acima de
tudo pelo contedo preciso do objeto do sentido. A escolha dos recursos lingusticos e do gnero do
discurso determinada principalmente pelos problemas de execuo que o objeto do sentido
implica para o locutor (o autor). E a fase inicial do enunciado, a qual lhe determina as
particularidades de estilo e composio.
A segunda fase do enunciado, que lhe determina a composio e o estilo, corresponde
necessidade de expressividade do locutor ante o objeto de seu enunciado. A importncia e a
intensidade dessa fase expressiva variam de acordo com as esferas da comunicao verbal, mas
existe em toda parte: um enunciado absolutamente neutro impossvel. A relao valorativa com o
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objeto do discurso (seja qual for esse objeto) tambm determina a escolha dos recursos lexicais,
gramaticais e composicionais do enunciado. O estilo individual do enunciado se define acima de
tudo por seus aspectos expressivos. Isto comumente admitido no domnio da estilstica chega-se,
alis, a reduzir o estilo aos aspectos emotivo-valorativos do discurso.
Pode-se considerar que o princpio expressivo do discurso um fenmeno da lngua
enquanto sistema? Pode-se falar de aspectos expressivos quando se trata de unidades da lngua, ou
seja, de palavras e de oraes? A resposta a tais perguntas categoricamente negativa. A lngua
enquanto sistema dispe, claro, de um rico arsenal de recursos lingusticos lexicais, morfolgicos
e sintticos para expressar a posio emotivo-valorativa do locutor, mas todos esses recursos,
na qualidade de recursos lingusticos, so absolutamente neutros no plano dos valores da realidade.
Uma palavra como pequerrucho um diminutivo hipocorstico, tanto pela significao de seu
radical quanto por sua estrutura morfolgica, no entanto, como unidade da lngua, to neutra como
a palavra longe. Trata-se apenas de um recurso lingustico virtual suscetvel de expressar uma
atitude emotivo-valorativa ante a realidade e no se refere a nenhuma realidade determinada; apenas
um locutor pode estabelecer essa espcie de relao, ou seja, um juzo de valor a respeito da
realidade, que ele realizar mediante um enunciado concreto. As palavras no so de ningum e no
comportam um juzo de valor. Esto a servio de qualquer locutor e de qualquer juzo de valor, que
podem mesmo ser totalmente diferentes, at mesmo contrrios.
A orao, como unidade da lngua, tambm neutra, e no comporta aspectos expressivos:
ela os recebe (mais exatamente, participa deles) somente dentro do enunciado concreto. E
encontramo-nos sempre perante a mesma aberrao: uma orao como Ele morreu implica, com
toda evidncia, uma expresso definida, e, a fortiori, uma orao como: Que alegria! A verdade
que percebemos essas oraes como enunciados, e, ademais, como enunciados de uma situao
tpica, ou seja, pertencentes a um gnero do discurso marcado por sua expresso tpica. A orao
enquanto tal carece de expresso tpica, neutra. Conforme o contexto do enunciado, a orao Ele
morreu pode tambm corresponder a uma expresso positiva, feliz, at jubilosa. E a orao Que
alegria! no contexto de um enunciado pode assumir um tom irnico ou sarcstico.
A entonao expressiva, que se entende distintamente na execuo oral7, um dos recursos
para expressar a relao emotivo-valorativa do locutor com o objeto do seu discurso. No sistema da
lngua, ou seja, fora do enunciado, essa entonao no existe. A orao e a palavra, enquanto
unidades da lngua, no tm entonao expressiva. Se uma palavra isolada proferida com uma
entonao expressiva, j no uma palavra, mas um enunciado completo, realizado por uma nica
7 E bvio que percebemos a entonao, e ela existe como fator estilstico na leitura silenciosa do discurso escrito.
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palavra (no h razo alguma de convert-la numa orao). Na comunicao verbal, h muitssimos
tipos de enunciados avaliatrios, bastante padronizados, ou seja, um gnero do discurso valorativo
que expressa o elogio, o encorajamento, o entusiasmo, a reprovao, a injria: timo!, nimo!,
Bravssimo!, Que horror!, Burro!, etc. A palavra que adquire, em dadas circunstncias da
vida sociopoltica, uma importncia especial, torna-se enunciado exclamativo-expressivo: Paz!,
Liberdade!, etc. (este um gnero especfico do discurso, referente vida pblico-poltica).
Numa determinada situao, a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo em
forma de enunciado exclamativo (Mar!, exclamam dez mil gregos em Xenofonte).
Em todos esses casos, no lidamos com a palavra isolada funcionando como unidade da
lngua, nem com a significao dessa palavra, mas com o enunciado acabado e com um sentido
concreto: o contedo desse enunciado. A significao da palavra se refere realidade efetiva nas
condies reais da comunicao verbal. por esta razo que no s compreendemos a significao
da palavra enquanto palavra da lngua, mas tambm adotamos para com ela uma atitude responsiva
ativa (simpatia, concordncia, discordncia, estmulo ao). A entonao expressiva no pertence
palavra, mas ao enunciado. Mesmo assim difcil descartar a idia de que a palavra da lngua
comporta (ou pode comportar) um tom emocional, um juzo de valor, uma aura estilstica,
etc., e que, por conseguinte, comporta tambm a entonao expressiva que lhe seria inerente em sua
qualidade de palavra. Ficamos tentados a acreditar que, ao escolher as palavras de um enunciado,
deixamos-nos justamente guiar pelo tom emocional inerente palavra considerada isoladamente:
adotaramos aquelas que, por seu tom, correspondem expresso do nosso enunciado, rejeitando as
outras palavras. assim que os prprios poetas concebem seu trabalho com a palavra, e assim que
tambm a estilstica interpreta esse processo (a experimentao estilstica de Pechkovski, por
exemplo).
Ora, no nada disso. sempre a mesma aberrao que j detectamos. Ao escolher a
palavra, partimos das intenes que presidem ao todo do nosso enunciado8, e esse todo intencional,
construdo por ns, sempre expressivo. E esse todo que irradia sua expressividade (ou melhor,
nossa expressividade) para cada uma das palavras que escolhemos e que, de certo modo, inocula
nessa palavra a expressividade do todo. Escolhemos a palavra de acordo com sua significao que,
por si s, no expressiva e pode ou no corresponder ao nosso objetivo expressivo em relao com
as outras palavras, isto , em relao com o todo de nosso enunciado. A significao neutra de uma
palavra, relacionada com uma realidade efetiva, nas condies reais de uma comunicao verbal,
sempre provoca o lampejo da expressividade. E precisamente isso que se d no processo de criao
8 Quando construmos nosso discurso, sempre conservamos na mente o todo do nosso enunciado, tanto em forma de um esquema correspondente a
um gnero definido como em forma de uma inteno discursiva individual.
No alinhavamos as palavras, passando de uma para outra. Pelo contrrio, como se preenchssemos um todo com as palavras teis. Alinhavam-se
palavras na primeira fase do estudo de uma lngua estrangeira, e isso sempre se deve a um mtodo errado na direo do trabalho.
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de um enunciado. Repetimos: apenas o contato entre a significao lingustica e a realidade
concreta, apenas o contato entre a lngua e a realidade que se d no enunciado provoca o
lampejo da expressividade. Esta no est no sistema da lngua e tampouco na realidade objetiva que
existiria fora de ns.
A emoo, o juzo de valor, a expresso so coisas alheias palavra dentro da lngua, e s
nascem graas ao processo de sua utilizao ativa no enunciado concreto. A significao da palavra,
por si s (quando no est relacionada com a realidade), como j dissemos, extra-emocional. H
palavras que designam especificamente a emoo, o juzo de valor: alegria, aflio, belo,
alegre, triste, etc. Mas essas significaes so to neutras como qualquer outra significao.
O colorido expressivo lhes vem unicamente do enunciado, e tal colorido no depende da
significao delas considerada isoladamente. Teremos, por exemplo: Toda alegria neste momento
amarga para mim, onde a palavra alegria, a bem dizer, ignorada do ponto de vista da
expresso, apesar de sua significao.
O que acabamos de expor est longe de esgotar um problema que muito mais complexo.
Quando escolhemos uma palavra, durante o processo de elaborao de um enunciado, nem sempre a
tiramos, pelo contrrio, do sistema da lngua, da neutralidade lexicogrfica. Costumamos tir-la de
outros enunciados, e, acima de tudo, de enunciados que so aparentados ao nosso pelo gnero, isto
, pelo tema, composio e estilo: selecionamos as palavras segundo as especificidades de um
gnero. O gnero do discurso no uma forma da lngua, mas uma forma do enunciado que, como
tal, recebe do gnero uma expressividade determinada, tpica, prpria do gnero dado. No gnero, a
palavra comporta certa expresso tpica. Os gneros correspondem a circunstncias e a temas
tpicos da comunicao verbal e, por conseguinte, a certos pontos de contato tpicos entre as
significaes da palavra e a realidade concreta. Da se segue que as possibilidades de expresses
tpicas formam como que uma supraestrutura da palavra. Essa expressividade tpica do gnero,
claro, no pertence palavra como unidade da lngua e no entra na composio de sua
significao, mas apenas reflete a relao que a palavra e sua significao mantm com o gnero,
isto , com os enunciados tpicos. A expressividade e a entonao tpicas que lhe correspondem no
possuem a fora normativa prpria das formas da lngua.
a fora normativa do gnero, mais livre, que exercida aqui. Em nosso exemplo Toda
alegria neste momento amarga para mim, o tom expressivo da palavra alegria, determinado
pelo contexto, no tpico da palavra. Os gneros do discurso, de uma maneira geral, prestam-se
facilmente a uma modificao da inflexo o triste passa a ser alegre mas da resulta algo novo
(por exemplo, o gnero de epitfio engraado). possvel assimilar essa expressividade tpica do
gnero a aura estilstica da palavra, mas nem por isso esta pertence palavra da lngua e sim ao
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gnero em que a palavra costuma funcionar. O que se ouve soar na palavra o eco do gnero em
sua totalidade.
A expressividade do gnero na palavra (e a entonao expressiva do gnero) de ordem
impessoal, da mesma maneira que os gneros do discurso, como tais, so impessoais. (Temos aqui
formas tpicas de enunciado individual, mas no o prprio enunciado.) Posto o qu, a palavra que
participa de nosso discurso e que nos vem dos enunciados individuais dos outros pode ter
preservado, em maior ou menor grau, o tom e a ressonncia desses enunciados individuais.
As palavras da lngua no so de ningum, porm, ao mesmo tempo, s as ouvimos em
forma de enunciados individuais, s as lemos em obras individuais, e elas possuem uma
expressividade que deixou de ser apenas tpica e tornou-se tambm individualizada (segundo o
gnero a que pertence), em funo do contexto individual, irreproduzvel, do enunciado.
As significaes lexicogrficas das palavras da lngua garantem sua utilizao comum e a
compreenso mtua de todos os usurios da lngua, mas a utilizao da palavra na comunicao
verbal ativa sempre marcada pela individualidade e pelo contexto. Pode-se colocar que a palavra
existe para o locutor sob trs aspectos: como palavra neutra da lngua e que no pertence a
ningum; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados
alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa
determinada situao, com uma inteno discursiva, ela j se impregnou de minha expressividade.
Sob estes dois ltimos aspectos, a palavra expressiva, mas esta expressividade, repetimos, no
pertence prpria palavra: nasce no ponto de contato entre a palavra e a realidade efetiva, nas
circunstncias de uma situao real, que se atualiza atravs do enunciado individual. Neste caso,
a palavra expressa o juzo de valor de um homem individual (aquele cuja palavra serve de norma:
o homem de ao, o escritor, o cientista, o pai, a me, o amigo, o mestre, etc.) e apresenta-se como
um aglomerado de enunciados.
A poca, o meio social, o micromundo o da famlia, dos amigos e conhecidos, dos colegas
que v o homem crescer e viver, sempre possui seus enunciados que servem de norma, do o tom;
so obras cientficas, literrias, ideolgicas, nas quais as pessoas se apoiam e s quais se referem,
que so citadas, imitadas, servem de inspirao. Toda poca, em cada uma das esferas da vida e da
realidade, tem tradies acatadas que se expressam e se preservam sob o invlucro das palavras, das
obras, dos enunciados, das locues, etc. H sempre certo nmero de ideias diretrizes que emanam
dos luminares da poca, certo nmero de objetivos que se perseguem, certo nmero de palavras
de ordem, etc. Sem falar do modelo das antologias escolares que servem de base para o estudo da
lngua materna e que, decerto, so sempre expressivas.
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E por isso que a experincia verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito
da interao contnua e permanente com os enunciados individuais do outro. uma experincia que
se pode, em certa medida, definir como um processo de assimilao, mais ou menos criativo, das
palavras do outro (e no das palavras da lngua). Nossa fala, isto , nossos enunciados (que
incluem as obras literrias), esto repletos de palavras dos outros, caracterizadas, em graus
variveis, pela alteridade ou pela assimilao, caracterizadas, tambm em graus variveis, por um
emprego consciente e decalcado. As palavras dos outros introduzem sua prpria expressividade, seu
tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos.
A expressividade da palavra isolada no pois propriedade da prpria palavra, enquanto
unidade da lngua, e no decorre diretamente de sua significao. Ela se prende quer
expressividade padro de um gnero, quer expressividade individual do outro que converte a
palavra numa espcie de representante do enunciado do outro em seu todo um todo por ser
instncia determinada de um juzo de valor.
O que acabamos de dizer aplica-se tambm orao que uma unidade da lngua e que,
enquanto tal, desprovida de expressividade. Falamos disso no incio de nossa explanao. Falta
completar o que j foi dito. Existem tipos de oraes que costumam funcionar como enunciados
completos e pertencem a um gnero determinado. o caso das oraes interrogativas, exclamativas
e exortativas. Existem muitssimos gneros referentes vida cotidiana ou a funes (por exemplo,
os comandos e as ordens na vida militar ou na vida profissional) que, via de regra, so expressos por
uma orao de tipo apropriado. Por outro lado, esse tipo de orao pouco encontrado no contexto
de uma consecuo organizada de enunciados. Quando, contudo, oraes desse tipo se acham
inseridas num contexto coerente de enunciados, sobressaem sensivelmente na composio, e, por
isso, em princpio, tendem a ser orao inicial ou final do enunciado (ou ento a constituir uma
parte relativamente autnoma do enunciado)9. Este tipo de orao apresenta um interesse especial
para a tica em que colocamos os problemas, e voltaremos a ele mais adiante. Por ora, o que nos
importa assinalar que as oraes desse tipo aderem estreitamente expressividade do gnero que
lhes prprio e que absorvem, com grande facilidade, a expressividade individual. Este tipo de
orao contribuiu muito para consolidar as iluses sobre a natureza expressiva da orao.
Acrescentarei mais uma observao. A orao, enquanto unidade da lngua, possui uma
entonao gramatical particular que no tem nada a ver com a expressividade. A entonao
gramatical especfica a que marca a concluso, a explicao, a demarcao, a enumerao, etc.
Reserva-se um lugar especial entonao narrativa, interrogativa, exclamativa e exortativa: nesse
9 As oraes iniciais e finais de um enunciado so, em geral, de uma natureza especial e comportam um princpio de complementaridade. So, de fato,
oraes de vanguarda, a bem dizer, situadas em cheio na linha de demarcao onde se realiza a alternncia (o revezamento) dos sujeitos falantes.
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ponto que se cruzam a entonao gramatical e a entonao do gnero (mas no a entonao
expressiva no sentido estrito da palavra). Uma orao s atinge a entonao expressiva no todo do
enunciado. Quando se d um exemplo de orao para ser analisado, costuma-se atribuir-lhe certo
tipo de entonao que transforma a orao num enunciado (se ela tirada de um dado texto,
conserva, claro, a entonao correspondente expressividade do texto).
Portanto, a expressividade aparece como uma particularidade constitutiva do enunciado.
O sistema da lngua possui as formas necessrias (isto , os recursos lingusticos) para manifestar a
expressividade, mas na prpria lngua as unidades significantes (palavras e oraes) carecem, por
sua natureza, de expressividade, so neutras. E isso que possibilita que elas sirvam de modo
igualmente satisfatrio a todos os valores, os mais variados e opostos e a todas as instncias do
juzo de valor.
O enunciado, seu estilo e sua composio so determinados pelo objeto do sentido e pela
expressividade, ou seja, pela relao valorativa que o locutor estabelece com o enunciado.
A estilstica ignora este terceiro ponto e, para determinar o estilo de um enunciado, leva em conta
unicamente os seguintes fatores: o sistema da lngua, o objeto do sentido e a pessoa do locutor com
seu juzo de valor a respeito desse objeto. A escolha dos recursos lingusticos, de acordo com a
concepo estilstica habitual, efetua-se a partir de consideraes acerca do objeto do sentido e da
expressividade. com base nesses aspectos que se determina um estilo, tanto um estilo da lngua,
quanto o estilo de um movimento ou o estilo individual. Assim temos, de um lado, o locutor com
sua viso do mundo, seu juzo de valor e suas emoes, e, do outro, o objeto do seu discurso e o
sistema da lngua (os recursos lingusticos) a partir da se definiro o enunciado, seu estilo e sua
composio. Tal a concepo que reina absoluta.
Na realidade, o problema muito mais complexo. Um enunciado concreto um elo na
cadeia da comunicao verbal de uma dada esfera. As fronteiras desse enunciado determinam-se
pela alternncia dos sujeitos falantes. Os enunciados no so indiferentes uns aos outros nem so
auto-suficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. So precisamente esses
reflexos recprocos que lhes determinam o carter. O enunciado est repleto dos ecos e lembranas
de outros enunciados, aos quais est vinculado no interior de uma esfera comum da comunicao
verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados
anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra resposta empregada aqui no sentido lato):
refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supe-nos conhecidos e, de um modo ou de
outro, conta com eles. No se pode esquecer que o enunciado ocupa uma posio definida numa
dada esfera da comunicao verbal relativa a um dado problema, a uma dada questo, etc. No
podemos determinar nossa posio sem correlacion-la com outras posies. E por esta razo que o
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enunciado repleto de reaes-respostas a outros enunciados numa dada esfera da comunicao
verbal. Estas reaes assumem formas variveis: podemos introduzir diretamente o enunciado
alheio no contexto do nosso prprio enunciado, podemos introduzir-lhe apenas palavras isoladas ou
oraes que ento figuram nele a ttulo de representantes de enunciados completos. Nesses casos, o
enunciado completo ou a palavra, tomados isoladamente, podem conservar sua alteridade na
expresso, ou ento ser modificados (se imburem de ironia, de indignao, de admirao, etc.);
tambm possvel, num grau varivel, parafrasear o enunciado do outro depois de repens-lo, ou
simplesmente referir-se a ele como a opinies bem conhecidas de um parceiro discursivo; possvel
pressup-lo explicitamente; nossa reao-resposta tambm pode refletir-se unicamente na expresso
de nossa prpria fala na seleo dos recursos lingusticos e de entonaes, determinados no pelo
objeto de nosso discurso e sim pelo enunciado do outro acerca do mesmo objeto. Este um caso
tpico e importante: com muita frequncia, a expressividade do nosso enunciado determinada s
vezes nem tanto no s pelo teor do objeto do nosso enunciado, mas tambm pelos enunciados do
outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos, com os quais polemizamos; so estes ltimos
que determinam igualmente a insistncia sobre certos pontos, a reiterao, a escolha de expresses
mais contu
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