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UNIVERSIDADE GAMA FILHO
IRENE ANGÉLICA FRANCO E SILVA
LEGISLAÇÃO PENAL
ECONÔMICA NACIONAL:
CRISE E LEGITIMIDADE
RIO DE JANEIRO2007
IRENE ANGÉLICA FRANCO E SILVA
LEGISLAÇÃO PENAL
ECONÔMICA NACIONAL: CRISE
E LEGITIMIDADE
Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação da Universidade Gama Filho, para a aprovação no Curso de Mestrado em Direito e Economia.Professor Orientador Doutor Juarez Tavares.
RIO DE JANEIRO2007
IRENE ANGÉLICA FRANCO E SILVA
LEGISLAÇÃO PENAL
ECONÔMICA NACIONAL: CRISE
E LEGITIMIDADE
Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação da Universidade Gama Filho, submetido à aprovação da seguinte banca examinadora:
________________________________Prof. Dr. Juarez Tavares
Orientador
________________________________Prof. Dr. José Ribas Vieira
________________________________Prof. Dr. Francisco Mauro Dias
Saudades de você, meu irmão, e no aguardo de um reencontro.
Saudades de você, Irene, que ainda vive, em meu coração.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Isa e Eustáquio, pelo suporte e por me fazerem quem sou,
e à minha mãe, pela promessa e,
por disfarçar, tão bem, a aflição pelos meses de ausência.
Ao Leonel, amor da minha vida, pelo incentivo e por ter suportado a pressão
melhor do que eu.
Compensarei vocês com o meu amor daqui por diante.
Ao professor Juarez Tavares por partilhar seu imenso saber.
Aos muitos colegas que contribuíram de alguma forma para este trabalho e aos
amigos que torcem pelo meu sucesso. Muito obrigada!
Os passos de um homem bom são confirmados pelo senhor,
e ele deleita-se no seu caminho.
Bíblia Sagrada, Salmos, 37, 23.
RESUMO
Esta pesquisa investiga a crise do Direito Penal Econômico, no tocante à falta de legitimidade de suas previsões incriminadoras. Busca-se sedimentar a constatação de que existem princípios fundamentais essenciais ao Direito Penal, cuja observância é obrigatória. Mais detidamente são analisados os Princípios da Exclusiva Proteção do Bem Jurídico e Idoneidade, que, entre outros, protegem o cidadão, garantindo uma limitação ao jus puniendi estatal. Dentro de um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal só é admissível como ultima ratio, e os princípios fundamentais, contidos implícita ou explicitamente na Constituição Federal, são, portanto, instrumentos de garantia ao ser humano. Pinçadas e analisadas legislações componentes do ordenamento penal econômico depara-se com uma construção legislativa imprópria, justamente pela inobservância de princípios constitucionais. Ainda assim, as incriminações vigoram e surtem efeitos no meio social. Apesar disso, os interventos punitivos, frutos de legislações equivocadas, não alcançam a necessária legitimidade social, devendo ser extirpados do ordenamento jurídico, seja por via legislativa ou judicial. Contudo, não é o que ocorre. As incriminações ilegítimas, além de permanecerem, frequentemente são complementadas por outras normas que reforçam a característica da utilização do Direito Penal como função, afastando-o de seu cariz constitucional.
Tema da pesquisa: Ilegitimidade das leis penais nacionais em tema de Direito Penal Econômico.
Palavras-chave: princípios; bens jurídicos;
ilegitimidade.
ABSTRACT
This research investigates the crisis of the Economics Penal Law, regarding the lack of legitimacy of its incriminating foresights. It searches to sediment the estatement that, there are fundamental principles essential to Penal Law whose observance is obligatory. More sharply are analyzed the Principles of Exclusiva Proteção do Bem Jurídico and Idoneidade, that, among others protect de citizen, guaranteeing a limitation of de punishing right of the state. In a Democratic Estate of Rights, the Penal Law is only admitted as an ultima ratio, and the fundamental principles, inserted, implicit or explicit, in a Federal Constitution, are, instruments of guarantee to the human being. Selected and analyzed laws of the economic penal ordainment, faces na inappropriate legislation construction, due to a non observing of the constitutional principles. In spite of that, the incriminations are valid and affects the social environment. Although they are valid, the punitive interventions, result of wrong legislation, don’t find the necessary social legitimacy, and so, should be excluded of the juridical ordainment, by legislative or judiciary ways. But that is not what happens, and the illegitimate incriminations remain and are frequently are completed by other laws that reinforce the characteristic of using Penal Law as function, keeping distance from its constitutional aspect.
Subject of research: national criminal law Ilegitimacy in theme of economics criminal Law.
Keywords: principles; bens jurídicos;
ilegitimacy.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 11
2 BEM JURÍDICO PENALMENTE PROTEGIDO ................................................ 15
2.1 Bem jurídico como limitador ou como fundamento da criminalização.. 17
2.2 Bem jurídico individual e supra-individual ........................................... 21
2.3 Bem jurídico mediato e imediato ......................................................... 26
2.4 Bem jurídico penal e função ................................................................ 28
2.5 Bem jurídico penal no Estado Democrático de Direito ........................ 32
2.6 Bem jurídico tutelado pelo Direito Penal Econômico ........................... 35
3 CRIMINALIZAÇÃO INADEQUADA NO DIREITO PENAL ECONÔMICO –
INOBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS ................ 39
3.1 Princípio da Exclusiva Proteção de Bens Jurídicos ........................... 42
3.2 Princípio da Idoneidade ....................................................................... 45
3.3 Ausência de legitimidade das leis penais ............................................ 50
4 DISCUSSÕES LEGISLATIVAS DAS LEIS NACIONAIS EM TEMA DE DIREITO
PENAL ECONÔMICO ......................................................................................... 55
4.1 Lei 7.492/86 ......................................................................................... 55
4.1.1 Dispositivos impróprios da Lei 7.492/86 ................................ 61
4.1.1.1 Artigo 4º da Lei 7.492/86 .......................................... 62
4.1.1.2 Artigo 4º, parágrafo único da Lei 7.492/86 ............... 62
4.1.1.3 Artigo 5º da Lei 7.492/86 .......................................... 64
4.1.1.4 Artigo 6º da Lei 7.492/86 .......................................... 65
4.1.1.5 Desproporcionalidade de penas ............................... 66
4.1.1.6 Artigo 7º da Lei 7.492/86 .......................................... 66
4.1.1.7 Artigo 15º da Lei 7.492/86 ........................................ 67
4.1.1.8 Artigo 17º da Lei 7.492/86 ........................................ 67
4.1.1.9 Artigo 22º da Lei 7.492/86 ........................................ 68
4.1.1.10 Excessos de normas penais em branco ................ 70
4.2 Lei 8.137/90 ......................................................................................... 71
4.2.1 Dispositivos impróprios da Lei 8.137/90 ................................ 79
4.2.1.1 Redação inadequada ............................................... 80
4.2.1.2 Excessos de normas penais em branco .................. 80
4.2.1.3 Artigo 1º da Lei 8.137/90 .......................................... 81
4.2.1.4 Artigo 2º da Lei 8.137/90 .......................................... 81
4.2.1.5 Artigo 3º da Lei 8.137/90 .......................................... 82
4.2.1.6 Artigo 4º da Lei 8.137/90 .......................................... 83
4.2.1.7 Artigo 5º da Lei 8.137/90 .......................................... 84
4.2.1.8 Artigo 7º da Lei 8.137/90 .......................................... 86
4.3 Lei 8.078/90 ......................................................................................... 87
4.3.1 Dispositivos impróprios da Lei 8.078/90 ................................ 93
4.3.1.1 Artigos revogados pela lei 8.137/90 ......................... 93
4.3.1.2 Artigo 63 da Lei 8.078/90 ......................................... 93
4.3.1.3 Artigo 63, § 1º da Lei 8.078/90 ................................ 94
4.3.1.4 Artigo 65 da Lei 8.078/90 ......................................... 94
4.3.1.5 Artigo 66 da Lei 8.078/90 ......................................... 95
4.3.1.6 Artigos 67 e 68 da Lei 8.078/90................................ 96
4.3.1.7 Artigo 70 da Lei 8.078/90 ......................................... 96
4.3.1.8 Artigo 71 da Lei 8.078/90 ......................................... 96
4.3.1.9 Artigo 73 da Lei 8.078/90 ......................................... 97
4.3.1.10 Artigo 74 da Lei 8.078/90 ....................................... 98
4.4 Lei 8.176/91 ......................................................................................... 99
4.4.1 Dispositivos impróprios da Lei 8.176/91 .............................. 103
4.4.1.1 Excessos de normas penais em branco ................ 103
4.4.1.2 Artigo 1º, I da Lei 8.176/91 ................ 104
4.4.1. 3 Artigo 1º, I da Lei 8.176/91 .................................... 105
5 INSTITUTOS COOPERADORES À FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL
ECONÔMICO ..................................................................................................... 106
5.1 Causa de extinção da punibilidade .................................................... 107
5.2 Causa de suspensão da punibilidade ................................................ 109
5.3 Acordo de Leniência .......................................................................... 111
6 CONCLUSÃO ................................................................................................. 114
REFERÊNCIAS ................................................................................................. 120
1 INTRODUÇÃO
Observa-se, nas últimas décadas, que o ordenamento jurídico
brasileiro, no atinente ao Direito Penal, especificamente quanto à classe dos
crimes econômicos, vem tomando rumos contrários aos ventos mundiais do
Direito Penal Constitucional e de seus princípios informadores.
O Direito Penal, por tradição, expressa a força imperiosa do Estado,
quando este necessita, diante de uma infração aos bens maiores de uma
sociedade, subjugar o ofensor aos seus ditames, quase sempre restritivos de
liberdade em algum aspecto.
Veja-se que são defendidos os bens maiores de uma sociedade, os
quais, facilmente se pode perceber, serem aqueles de nascença constitucional,
mormente os relativos às garantias fundamentais aos seres humanos.
Daí se falar que o Direito Penal serve para proteção de bens de
natureza individual: a vida, a liberdade, a honra, a integridade física, o patrimônio,
dentre outros.
Ocorre que, num contexto moderno, surgiram necessidades outras,
desta feita de natureza coletiva, que passaram a receber atenção legislativa, não
só nos âmbitos cível e administrativo, mas também – e até por conseqüência –
penal.
Desponta, então, a proteção penal de bens jurídicos supra-individuais.
Estes extrapolam a seara individual e passam ao campo coletivo, sendo tal
proteção concedida, sob a argumentação de que partindo de um perigo de ofensa
ao bem coletivo, fatalmente se ensejaria uma ofensa individual, mesmo que
indiretamente. Passou, assim, o Direito Penal a receber novos tipos penais com
características protetivas mais alargadas, fugindo aos bens jurídicos tradicionais,
abrangendo situações outras, mais amplas. Desafortunadamente, estas novas
possibilidades nem sempre são bem utilizadas pelo legislador.
Com isso, o Direito Penal que, por sua natureza grave e impositiva,
era entendido como de aplicação apenas em último caso, em derradeira
necessidade, ultima ratio portanto, se afigura modernamente, principalmente no
campo econômico, como prima ratio, ou seja, como primeira bateria de combate a
algumas condutas não desejadas pelo Estado.
Diante da tendência de intervenção mínima estatal, a utilização do
Direito Penal como primeira razão implica em sua negação, motivos pelos quais
surgem críticas ao Direito Penal Econômico brasileiro, o que, inclusive, enseja
vozes a dizer que este deve ser colocado a par do Direito Penal tradicional1. Não
se deve chegar a tanto, porém está claro que uma discussão mais acurada a
respeito das modificações se faz premente.
Analisando as legislações nacionais em tema econômico, nascidas a
partir dos anos oitenta, percebe-se a utilização do Direito Penal como instrumento
imperativo a serviço dos aspectos administrativos estatais. A criminalização de
condutas em tema de tributos, por exemplo, se mostra claramente como forma
eficiente de cobrança dos próprios tributos, muito mais do que garantidora de
qualquer bem jurídico, seja ele individual ou coletivo.2
Em estudo desvelado das justificativas legislativas para edições das
mais recentes leis penais econômicas, bem como da discussão legislativa
subsequente, se nota de forma evidente e preocupante, a desvirtuação do sentido
e finalidade do Direito Penal.
Princípios de índole constitucional penal, como o Princípio da
Intervenção Mínima, da Fragmentariedade e da Exclusiva Proteção aos Bens
Jurídicos, nem mesmo chegam a ser cogitados pelo legislador durante a
produção da lei incriminadora.
Como decorrência, passam a fazer parte do ordenamento jurídico
brasileiro, condutas típicas que não recebem por parte da comunidade jurídica, e
com maior gravidade, da sociedade em geral, a necessária validação, o
reconhecimento e a desaprovação de determinada conduta como criminosa.
Ocorre então, o negativo efeito da anomia.
Para evitar este mal, bastaria a observância do Princípio da
Idoneidade, pelo qual o Direito Penal deve sim, servir para proteção de bens
jurídicos. Contudo, a análise destes bens não se reduz a uma avaliação simplista.
1 Acerca da autonomia do Direito Penal Econômico, o arguto doutrinador Manoel Pedro Pimentel se posiciona fortemente contra, em sua obra Direito Penal Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 16, sustentando que os princípios basilares do Direito Penal são também o norte para o Direito Penal Econômico, do contrário a “autonomia do Direito Penal Econômico se converteria em intolerável arma de opressão estatal, um poderoso instrumento coercitivo capaz de esmagar as maiores conquistas da humanidade, no campo da liberdade”. 2 A respeito, confira-se a vetusta súmula do STF, verbete 70: “É inadmissível a interdição de estabelecimento, como meio coercitivo para cobrança de tributo.”
Pelo contrário, a proteção ao bem jurídico se dará desde que este necessite de
proteção e lhe seja merecedor, bem como esteja apto para receber tal guarida.
Sem o suprimento das referidas etapas, não se estará diante de uma proteção
que se legitime aos olhos da sociedade, e, por decorrência, o Direito Penal não
seria o meio idôneo para proteção de bens.
Tornando esse quadro ainda mais preocupante, o legislador, como
que para remediar a situação, após a criminalização inadequada, tenta abrandar
os rigores da lei penal, mediante a criação de institutos que não se coadunam
com o Direito Penal tradicional, como é o exemplo das causas da extinção da
punibilidade em tema de crimes contra a ordem tributária, em virtude de
arrependimento posterior do agente. Embora possa estar travestido de uma
nuance criminológica de estímulo para o criminoso atenuar os efeitos de seu
crime, não passa de uma verdadeira técnica de “pressão e barganha” estatal para
finalidades muito diversas das que justificam o Direito Penal.
Assim, pretende o presente estudo demonstrar a impropriedade das
leis penais de viés econômico, editadas nos últimos anos. Essas possuem defeito
de nascença, considerando que, no processo legislativo brasileiro, não são
observadas as questões constitucionais obrigatórias ao critério criminalizador de
qualquer Estado Democrático de Direito. O que se vê é uma criação desarraigada
e hiperbólica de tipos penais.
Visando a demonstrar o exposto, este trabalho se organiza tal como
apresentado a seguir.
Sucedendo-se à introdução, são percorridas as noções sobre o bem
jurídico penalmente protegido com a abordagem de seus aspectos mais
importantes. São tecidas considerações sobre a limitação do jus puniendi estatal
pela estrita observância do bem jurídico, como uma das propriedades do Estado
Democrático de Direito. Já de início, se lança crítica quanto à confusão entre bem
jurídico e função, o que deságua, inevitavelmente, no desvirtuamento do Direito
Penal. Encerrando o tema, são focalizadas todas essas questões sob o viés
econômico, já se apontando deficiências recentes do Direito Penal Econômico,
como subdivisão do Direito Penal.
Objetivando demonstrar as bases obrigatórias a qualquer
incriminação, passa-se ao próximo capítulo, no qual um exame sobre dois
princípios fundamentais é amadurecido. Pelos princípios da Idoneidade e da
Exclusiva Proteção dos Bens Jurídicos, são detectadas as premissas que não
podem faltar durante a criação de fatos típicos penais, sob pena de não serem
legítimos. Esse exame é o instrumental para a compreensão do que é ou não
conveniente quando da criação legislativa na seara penal. Trata-se do fio
condutor que possibilitará a análise do próximo capítulo, investigante da
ilegitimidade das leis de Direito Penal Econômico.
O ápice da relevância deste trabalho reside no quarto capítulo, que
autoriza concluir, por meio de pesquisa minuciosa da construção de algumas das
mais importantes leis penais econômicas nacionais, pela impropriedade legislativa
e conseqüente ilegitimidade de incriminações. Para isso, o capítulo será dividido
em quatro etapas, cada uma tratando de uma lei e respectivo trâmite legislativo.
Não bastasse o legislador falhar na elaboração dos crimes, ainda
edita normas que complementam os tipos penais, para lhes reforçar a
característica de função. É este o tema do quinto capítulo, inserido para reforçar a
afirmação a que, a esta altura, já se chegou, sobre a funcionalização e
conseqüente ilegitimidade do Direito Penal Econômico brasileiro.
As conclusões decorrentes das pesquisas empenhadas são
apresentadas no último capítulo, cujo objetivo, além de alcançar uma melhor
compreensão para o tema da ilegitimidade de previsões penais econômicas,
também é o de fornecimento de subsídios para uma possível reflexão acerca da
deteriorada atividade legislativa penal neste país.
2 BEM JURÍDICO PENALMENTE PROTEGIDO
Sem grandes reflexões se constata que o cerceamento à liberdade
do ser humano é medida extrema e deve ser evitada. Dentro de um Estado
Democrático de Direito, esta constatação alcança uma obviedade ainda maior, a
se considerar que baseia este modelo de sociedade na liberdade como regra,
sendo admitida a prisão apenas como exceção.
É o Direito Penal, o eleito para regular as hipóteses fáticas, que, se
praticadas, poderão levar o autor ao encarceramento ou restrição de direitos,
aplicados como penas a serem cumpridas pela infração aos preceitos legais3.
Por obediência a preceito constitucional pétreo, não se pode privar
alguém de sua liberdade sem que haja previamente sido destacada determinada
ocorrência do mundo real como fato criminoso. Assim, condutas e situações
existem, e embora provoquem repúdio público, ou se distanciem da moral, não
podem ser consideradas como crimes, já que não foram estipuladas como tal pelo
legislador. Veja-se o exemplo do incesto, que fora do contexto de violência
sexual, ou seja, uma união sexual desejada entre consanguíneos adultos, embora
condenável do ponto de vista da moralidade, não o é do ponto de vista criminal.
Deixou o legislador de fora do ordenamento jurídico penal esta e
outras situações, se constatando então, que este escolhe as condutas que quer
criminalizar. Aprofundando nestas considerações, percebe-se que o legislador
não se guia exclusivamente por motivação moral ou critérios perceptíveis do certo
e do errado ou do bem e do mal. Então, a pergunta é, por que o legislador
escolhe esta ou aquela conduta para tipificar como crime, e quais os critérios
utiliza, ou pelo menos, deveria lançar mão para tanto?
Respondendo a tais questionamentos, a dogmática, de um modo
geral, assume a noção do bem jurídico protegido, embora não sem esbarrar em
críticas em menor escala. Há certa concordância de que o legislador escolhe bens
– ou para alguns interesses – de viés constitucional, importantes ao
3 Delineado esse quadro, nunca é demais lembrar que também o Direito Processual Penal traz possibilidades de prisão, como a Prisão Preventiva e a Prisão em Flagrante, contudo estas advêm somente indiretamente do Direito Penal, sendo sua natureza de medida cautelar para assegurar o resultado do processo, e por isso, não interessam a este estudo.
desenvolvimento humano e devido a esta importância passam a lhe dar a
proteção penal.
Ainda que cediço que, os bens jurídicos protegidos penalmente
devem ser extraídos da Constituição Federal, há o problema de nossa ordem
constitucional não oferecer um rol de bens já previamente destacados, o que
acarreta que o legislador deve, através de um exercício de ponderações,
encontrá-los e pinçá-los dentro do texto constitucional. Isto porque nossa
Constituição Federal é do tipo aberta, devendo ser “avaliada a partir de um
processo político livre”4.
O artigo 144 da Constituição Federal da República, denota a
característica constitucional de proteção à pessoa e ao patrimônio quando
determina: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de
todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio [...]”.
Embora possa parecer, a questão não se esboça simples, sendo
inúmeras as noções e respectivos conceitos sobre o bem jurídico protegido, que
passaremos a melhor estudar nos próximos tópicos.
Contudo, não se pode fechar estas primeiras considerações sem
ressaltar que a noção do bem jurídico é rechaçada pelos adeptos do
funcionalismo chamado radical. Nesta concepção, o bem jurídico não se afigura
relevante na definição de normas penais, já que o legislador cria os tipos penais,
não para proteger bens importantes aos seres humanos, mas com a finalidade de
que através de tais tipos, a sociedade se mantenha em perfeito funcionamento,
demonstrando para todos que o sistema funciona punitivamente para aqueles
que praticam crimes.
Vejam-se as ponderações de Janaína Conceição Paschoal a
respeito do tema:
Partindo de uma concepção social do Direito Penal, os funcionalistas radicais (se é que se pode utilizar tal adjetivo) aduzem que a norma penal deve ser cumprida, não com o fim de proteger qualquer bem jurídico considerado caro à sociedade, mas sim para garantir seu
4 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 97.
funcionamento, evidenciando para todos seus integrantes que a norma tem validade5.
Por óbvio que a noção funcionalista radical vem há muito sofrendo
veementes críticas, não se concebendo fora de um regime ditatorial, um Direito
Penal com a finalidade única de confirmar as leis para que o Estado funcione
bem. Esta constatação é a negação dos princípios da Mínima Intervenção,
Fragmentariedade, Lesividade e Subsidiariedade.
Ainda sob a lição de Janaína Conceição Paschoal:
A tal constatação, soma-se a de que essa funcionalização ou instrumentalização do indivíduo fere o pressuposto básico de todo ordenamento que se pretende democrático, qual seja a dignidade humana, que, por sua vez, exige ser a pessoa sempre tomada como fim e não como meio, na busca de qualquer outra finalidade, por mais nobre que possa parecer6.
No mesmo sentido é a crítica de Zaffaroni e Pierangeli, quando
lançam a questão: pode-se prescindir do bem jurídico?
Toda manifestação irracionalista no campo do direito penal tem tentado arrasar com o conceito de bem jurídico. Não é estranho que, de uma maneira geral, todas as manifestações do direito penal autoritário tenham desacreditado este conceito. O tipo implica o dever de abster-se da realização da conduta que a norma proíbe. Quando não se pergunta para que a norma proíbe essa conduta, só nos resta dizer que o dever se impõe por si mesmo, porque é o capricho, o preconceito, o empenho arbitrário de um legislador irracional7.
Assim, o que melhor se afigura é a vinculação da criminalização
legislativa atrelada a um bem jurídico. Como já se observou, são vários os
ângulos de visão sobre o bem jurídico a ser protegido, bem como acerca de sua
relação com o jus puniendi estatal, sendo o que se passa a estudar mais
especificamente.
5 PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 37.6 PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 39.7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 466.
2.1 Bem jurídico como limitador ou fundamento da criminalização
Embora ao longo da história a noção de bem jurídico tenha se
apresentado diversamente e várias sejam as teorias a respeito, o certo é que,
atualmente, o Direito Penal se traduz pelo bem jurídico como fator a ser protegido
de lesões ou ameaça de lesões, sendo tal definição abarcada pela doutrina de
modo geral.
Assim é a lição de Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique
Pierangeli:
Não se concebe a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico, posto que os tipos não passam de particulares manifestações de tutela jurídica destes bens.
Embora seja certo que o delito é algo mais – ou muito mais – que a lesão a um bem jurídico, esta lesão é indispensável para configurar a tipicidade8.
No mesmo sentido, constata-se, atualmente, “quase um verdadeiro
axioma” 9 inquestionado de que o delito constitui lesão ou perigo de lesão a um
bem jurídico.
Porém, como identificar quando um bem merece o status de bem
jurídico protegido? Esta é uma questão a ser vencida, podendo ocorrer errôneas
interpretações sobre a qualidade ou natureza do bem a merecer tutela estatal. O
conceito de bem jurídico não oferece uma concordância tão absoluta entre os
estudiosos.
Ainda que se adote este ou aquele conceito para o bem jurídico, não
se chega ao entendimento adequado e convincente definitivo sobre o porquê de
um Estado criminalizar algumas condutas e outras não. Veja-se como a dúvida é
lançada pelo professor Luiz Régis Prado:
Todavia, o ponto conclusivo que se vislumbra já foi antevisto: somente os bens jurídicos fundamentais devem ser objeto de atenção do legislador penal. Uma vez mais, vale a pergunta: quais são os bens jurídicos fundamentais? E como devem ser escolhidos ou selecionados10?
8 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2. ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 462.9 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 31. 10 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 23.
É possível considerar que até mesmo o contexto político de cada
país em determinada época pode influenciar significativamente na criminalização
de condutas, ensejando um entendimento correspondente ao bem jurídico
protegido. Assim, cada Estado, através do devido processo legislativo, entende a
questão do bem jurídico como lhe convém, de acordo com a intensidade do jus
puniendi que julga necessária. Neste sentido chama a atenção Juarez Tavares:
A exposição das diversas alterações que se produzem na noção de bem jurídico, a partir do positivismo até o funcionalismo vem demonstrar que seu conceito depende do rumo tomado pelo poder punitivo, em face das modificações estruturais havidas na sociedade e no Estado11.
Observe-se que, para se respeitarem os ditames democráticos de
direito, torna-se inevitável que o legislador esteja preso a um fator norteador no
momento de criminalizar (e até descriminalizar) certas atuações fáticas, sob pena
da criação de crimes se tornar meio de política nas mãos parlamentares, e pior,
não ser reconhecido pela população, gerando a indesejada anomia.
O bem jurídico serve a estes propósitos. Admite-se a criminalização
de condutas e, incluindo a possibilidade de restrição de direitos ou prisão, quando
se está diante de uma agressão a bens jurídicos valorosos para a vida humana.
Diante disso, todo crime deve estar atrelado a um bem jurídico assim
considerável como de proteção a título de ultima ratio pelo Direito Penal. É o bem
jurídico que se apresenta como o norte a dirigir a função legislativa penal, e por
que não dizer, delimitá-la. Porém, nem sempre a noção aponta para o bem
jurídico como limitador da função legislativa.
Alguns estudiosos conceituam o bem jurídico culturalmente, como
produto do sentir social, merecendo destaque legislativo em razão de sua
importância no desenvolver do ser humano; outros, como sendo um conjunto de
situações necessárias para o homem se realizar no seio social e, por isso,
merecedoras de proteção. Nota-se um ponto de contato entre os diversos
conceitos, no pertinente a serem bens necessários à existência comum ou social
do ser humano, justificando que alguns passem à qualidade de especiais o
11 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 197.
suficiente para serem protegidos. O foco principal se dá em termos de
sobrevivência do ser humano em seu meio social.
Nesta linha de pensamento conclui Luiz Régis Prado ao conceituar o
bem jurídico penalmente protegido:
[...] vem a ser um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem em sociedade, e por isso, jurídico-penalmente protegido. E, segundo a concepção aqui acolhida, deve estar sempre em compasso com o quadro axiológico (Wertbild) vazado na Constituição e com o princípio do Estado Democrático e Social de Direito [...] A idéia de bem jurídico fundamenta a ilicitude material, ao mesmo tempo em que legitima a intervenção penal legalizada12.
Segundo as postulações do citado autor, o bem jurídico penal
fundamenta a incriminação concomitante à limitação do legislador. Ainda na obra
Bem Jurídico Penal e Constituição, Luiz Regis Prado atribui ao bem jurídico a
função de limitar o direito de punir do Estado, juntamente às funções teleológicas,
individualizadoras e sistemáticas, afirmando que a “função limitadora opera uma
restrição na tarefa própria do legislador”13.
Críticas a tal pensamento existem no sentido de que o bem jurídico,
posto dessa forma, acaba sendo visualizado por um caráter de dever e não por
sua finalidade. Daí a divergência em entendê-lo como dever e, portanto,
fundamento da criminalização e não por sua finalidade de limitador da legislação
penal, como querem alguns.
Juarez Tavares apresenta discordância com a visão do bem jurídico
como interesse juridicamente protegido, quando aduz:
Bem jurídico é um elemento da própria condição do sujeito e de sua projeção social, e nesse sentido pode ser entendido como um valor que se incorpora à norma como seu objeto de preferência real e constitui, portanto, o elemento primário da estrutura do tipo, ao qual se devem referir a ação típica e todos os seus demais componentes. Sendo um valor e, portanto, um objeto de preferência real e não simplesmente ideal ou funcional do sujeito, o bem jurídico condiciona a validade da norma e, ao mesmo tempo, subordina sua eficácia à demonstração de que tenha sido lesado ou posto em perigo14.
12 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 52.13 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 61.14 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 198.
Deve-se concluir, então, que a noção de bem jurídico não pode ser posta como legitimação da incriminação, mas como sua delimitação, daí seguindo, no dizer de DOHNA, a necessidade de que seja determinado com precisão para que possa servir de barreira diante da intencionalidade e da vacuidade15.
Após longa análise das correntes acerca do bem jurídico penalmente
protegido, Janaína Conceição Paschoal, chega à conclusão de que a tarefa
limitadora é a que melhor se apresenta. Veja-se o ensinamento da autora:
Percebe-se, da análise das contribuições nacionais e estrangeiras mencionadas que, apesar das controvérsias relativas ao bem jurídico penal, desde os primórdios, tal instituto traz, em seu bojo, uma idéia de limitação, ou, pelo menos, de busca de limitação ao poder de punir do Estado16.
Parece que a função de limitação às criminalizações, dentro de uma
tomada do bem jurídico como sendo um valor condicionante da intervenção
estatal no campo penal, é a que melhor se adequa ao Estado Democrático de
Direito. Entender o bem jurídico simplesmente como interesses a serem
protegidos por questões culturais preexistentes, ou mesmo por mera escolha
legislativa, ou ainda como garantia do sistema social, permite uma vastidão de
motivações para incriminações sem propósito e afasta o bem jurídico de seu cariz
de proteção ao indivíduo. Essa é a concepção que se acolhe neste trabalho, e
que irá servir de norte ao desenvolver da pesquisa.
2.2 Bem jurídico individual e supra-individual
Vislumbra-se, com certa facilidade, uma qualidade de bem jurídico
natural, ou por que não dizer clássico, que são aqueles de nascença
constitucional, intimamente correspondentes aos direitos fundamentais do ser
humano. O respeito aos direitos do ser humano, certamente, merece proteção
penal, face à sua importância facilmente aquilatável, principalmente dentro de um
15 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 201.16 PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 48.
Estado Democrático de Direito, que sem aqueles, simplesmente não se
estabelece e, por isso, suas violações ensejam a repressão do Direito Penal.
Entender a noção de bem jurídico, quando exposta atrelada à
proteção dos bens relevantes ao ser humano enquanto indivíduo, é tarefa fácil.
Qual seria a dificuldade de se entender como necessária a proteção ao indivíduo,
ao lhe dar um reforço extra nas garantias quanto à vida, à saúde ou até mesmo
ao patrimônio? Percebe-se, fluidamente, que alguns bens são tão inerentes ao
próprio indivíduo, que este não pode mesmo subsistir sem aqueles, sendo, então,
considerados bens jurídicos do ponto de vista criminal.
Veja-se no conceito abaixo como os doutrinadores evidenciam a
relação bem jurídico/indivíduo, sob um enfoque de disponibilidade, quando
aduzem que o “bem jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade
de um indivíduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse
mediante a tipificação penal de condutas que o afetem”17.
Mas, as dificuldades se apresentam, quando também bens de
importância não diretamente relacionados ao indivíduo, senão à coletividade se
mostram carecedores da guarida do Direito Penal, situação esta não abrangida
pelo conceito acima.
A necessidade de se elencar bens considerados coletivos como
passíveis de proteção penal, é decorrência da própria evolução da sociedade, em
todos os seus aspectos, não só os sociais propriamente ditos, mas também
tecnológicos, culturais e econômicos. Inegável que a vida moderna apresenta
ataques aos seus participantes, não imaginados há cinquenta anos. Ressalte-se
que meio século embora seja suficiente para servir de exemplo para tantas
mudanças nos aspectos acima citados, não chega a ser tão significativo diante da
existência humana milenar. Ainda assim, é assustadora a modificação social
recente e, mais ainda, se tomados os séculos passados.
Sobre o assunto se manifesta com a usual acuidade o jurista Luiz
Regis Prado:
Na atualidade, o Estado social supõe uma maior intervenção estatal, que
assume, através do Direito, uma função promocional para criar
condições de igualdade e liberdade, que não pode ser obtida pelo
indivíduo isoladamente, sendo os processos econômico, industrial e
comercial disciplinados por lei, e novos direitos fundamentais de caráter
econômico e social são agregados aos tradicionais direitos do
indivíduo18.
Nesta visão, como fruto próprio da mutação da sociedade, surgem
novos ataques à sociedade. Nem sempre tais ataques se darão diretamente
contra um indivíduo, sendo mais comumente à coletividade. Não se está agora
diante de bens individuais, mas sim de bens coletivos ou supra-individuais, que se
posicionam acima daqueles individualmente considerados. Possuem tal cariz, os
bens relativos ao meio ambiente, à ordem econômica, à saúde pública e outros.
Encontram-se, na doutrina, algumas classificações de bens jurídicos,
entre elas, uma de viés coletivo. Àqueles bens coletivos, abrangidos por pessoa
jurídica de direito público, chamam-se bens jurídicos institucionais (administração
da justiça, ordem econômica). Por outro ângulo, os bens se dividem em coletivos
e difusos, conforme respectivamente afetem um número determinável de pessoas
ou digam respeito à comunidade como um todo19.
Entretanto, a diferenciação que autoriza a classificação acima e
outras existentes na doutrina não chega a afetar de forma substancial o
tratamento do bem jurídico como conceito e, assim, não serão tais classificações
objeto de um estudo mais detido. Fica a ressalva de que as classificações
encontradas têm cunho metodológico e sua finalidade serve mais para evidenciar
o bem lesado ou ameaçado de lesão20.
Ainda sob a lição de Luiz Regis Prado, acerca do tema, com
oportuno tratamento de como a sociedade de risco influencia a adoção de bens
jurídicos penais coletivos, vale o destaque do ensinamento:
Essa nova ou ampliada dimensão de tutela é resultado do processo
evolutivo do Estado liberal para o Estado social e a afirmação deste
17 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 462.18 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 80.19 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 109.
último, que engendra a assunção de novos deveres (v.g., assistência e
promoção), novos encaminhamentos, tal como o de salvaguarda de
direitos que transcendem à esfera individual, e se projetam em grupos ou
na sociedade globalmente considerada. Emergem como bens jurídicos
relacionados com o desenvolvimento técnico e científico, frutos em
grande parte da sociedade pós-industrial, na qual novos riscos são
criados ou incrementados pelos processos de alta tecnologia. Esse perfil
assumido pela sociedade atual, em que o risco é visto como algo que lhe
é imanente, como verdadeiro consectário do progresso, engendra por
sua vez a necessidade de intervenção normativa penal com o desiderato
de enfrentar, na proteção dos bens jurídicos, essas novas e complexas
situações de perigo21.
Todo bem jurídico ensejador da proteção através de dispositivo
penal, deverá, ainda que de forma indireta, se relacionar com o homem, isto é,
com a proteção de alguma inerência do ser humano. Ainda que se esteja diante
de um bem jurídico coletivo, como por exemplo o meio ambiente, deve-se
implicitamente encontrar a proteção do ser humano, que no exemplo é facilmente
percebido, pois um ecossistema deteriorado ameaça a saúde do homem e, a
longo prazo, resta em risco à sobrevivência da própria espécie humana. Todavia,
nem todos os eleitos pelo legislador se traduzem em bens a serem protegidos,
sendo comum à função estatal aparecer disfarçada de bem jurídico.
São bens supra-individuais aqueles que extrapolam a individualidade
e se mostram importantes pela possibilidade de lesividade coletiva que fatalmente
produzirá danos sobre as pessoas individualmente consideradas. Somente nesta
perspectiva é que deverá ser aceito o bem jurídico supra-individual, apontando
neste sentido a importante lição de Hassemer, citada por Juarez Tavares:
[...] bens jurídicos universais somente requerem proteção como condição da possibilidade de proteção dos bens jurídicos individuais, os quais, por isso, possuem uma função orientadora. Deste modo, o fim da proteção dos bens jurídicos é a realização da pessoa individual, sendo o interesse geral apenas uma etapa deste rumo”22.
20 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 203.21 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 106.22 HASSEMER, apud TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 199.
Ainda sobre o tema é o que se extrai da obra de Renato Mello Jorge
Silveira, quando comenta sobre os bens jurídicos supra-individuais:
A legitimidade da proteção desses bens jurídicos sempre é de ser mantida, desde que eles se lastrem nos interesses fundamentais da vida social da pessoa. Bem entendido, a ampliação do horizonte penal, abandonando a conceituação iluminista quanto a uma consideração relativa à pessoa enquanto elemento individual, tomando-se em conta bens metaindividuais e sociais, não pode, nunca, perder o referencial de seus elementos autônomos23.
Também não passou despercebido o tema, abordado por Luiz Régis
Prado, que comunga com as expostas opiniões, e adota a idéia de
complementariedade entre os bens individuais e supra-individuais:
[...] entre os
bens jurídicos
individuais e
metaindividua
is há, em
sentido
material, uma
relação de
complementa
riedade (v.g.,
23 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual. São Paulo: Editora Revista
marco
individual
mais ou
menos
acentuado24.
Assim, admitir bens jurídicos de natureza supra-individual não
significa perder o contato com os interesses fundamentais da vida do indivíduo
em sociedade. Mesmo dentro de um grupo indefinível de pessoas, alguns
indivíduos devem ser determinados como suscetíveis a sofrerem lesão ou
24 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos
ameaça de lesão, sob pena de se desconfigurar o escopo do Direito Penal. É a
lição de Mariângela Gama de Magalhães Gomes:
Isso significa que os bens capazes de serem ofendidos e, portanto, suscetíveis à tutela por meio do instrumento penal, não são apenas os clássicos bens individuais, mas também a integridade do território do Estado, o exercício das funções próprias dos órgãos constitucionais, o exercício das funções de controle dos órgãos governamentais em relação à economia, a confiança dos investidores na veracidade dos balanços societários, a pureza da água, do ar etc. O importante a ser considerado, em qualquer incriminação, é que a avaliação acerca de sua necessidade há de ser feita, sempre, tendo-se como ponto de partida a posição prioritária do ser humano, dentro do sistema penal25.
Acolhe-se que a admissão dos bens jurídicos supra-individuais é
necessária ao nosso atual estágio social, muito embora preocupações existam
acerca da tendência a uma criminalização inadequada, quando se afasta das
seguras bases fornecidas pelos bens jurídicos individuais. Para tanto, é
importante uma atenção aguçada do legislador quando caminha por tal seara,
visando a evitar a “hipertrofia do Direito Penal”26. Aliás, é propícia a afirmativa de
Juarez Tavares quando aduz que “para os efeitos delimitativos, os bens jurídicos
prescindem de qualquer classificação, porque todos devem ter origem na pessoa
humana”27.
2.3 Bem jurídico imediato e mediato
Seguindo na tentativa de compreensão do fenômeno do bem jurídico
penalmente protegido, em busca da resposta que é um dos fios condutores desta
pesquisa sobre o que justifica a criminalização de condutas, é encontrada na
doutrina a divisão dos bens jurídicos em mediatos e imediatos.
Tribunais, 2003, p. 107/108.25 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 107.
26 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 110.
Para Carlos Martínez Buján Pérez existem duas qualidades de bem
jurídicos do ponto de vista penal. Por bem jurídico mediato o citado autor entende
se tratar da manifestação da ratio legis, dizendo respeito aos motivos que levam o
legislador à escolha de determinadas condutas para tipificar. Já por um prisma
mais específico, os bens jurídicos imediatos são aqueles diretamente tutelados
pela legislação e que perfazem o elemento básico dos delitos28.
Para aqueles que concordam com a dicotomia em estudo – bens
mediatos e imediatos – o bem jurídico específico de um delito não tem que,
necessariamente, equivaler às razões autorizadoras da norma e conseqüente
finalidade almejada pelo legislador, já que essas podem se encontrar em patamar
superior ao bem jurídico. O bem jurídico mediato, relacionado à ratio legis, se
mostra muito mais amplo que o bem jurídico imediato, específico, inclusive por
sua intimidade com os anseios de política criminal.
O pensamento em questão não se afasta das concepções até aqui
defendidas. No campo do bem jurídico imediato, postula-se que para perfazer o
tipo penal, necessariamente, deve-se estar diante de uma lesão ou ameaça de
lesão a um bem jurídico (imediato). No caso, o bem jurídico mediato ficará para
trás, numa etapa anterior, já servindo aos propósitos de finalidade do legislador
no momento da criação dos delitos.
Torna-se, então, possível concluir sobre a noção vista, que é o bem
jurídico mediato que limita o jus puniendi estatal, bem como se apresenta com a
função de sistematizar os delitos para uma melhor aplicação.
Ocorre que a noção defendida por Buján Pérez, mais se adequa à
separação entre as noções de bem jurídico e o objeto da conduta, equivalendo a
primeira ao conceito de bem jurídico mediato, e a segunda ao bem jurídico
imediato. Aliás, autores vários, a exemplo de Luiz Regis Prado, advertem em suas
obras que, embora as noções de bem jurídico e de objeto da conduta não se
confundam, nem sempre é fácil detectar sua distinção.
Por objeto da conduta, entende-se justamente “o elemento típico
sobre o qual incide o comportamento punível do sujeito ativo da infração penal.
27 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 202.28 PÉREZ, Carlos Martínez Buján. Derecho Penal Económico, Parte Geral. Valência, Espanha: Tirant Lo Blanch, 1999, p. 91.
Trata-se do objeto real (da experiência) atingido diretamente pelo atuar do
agente”29. Já o bem jurídico simplesmente dito diz respeito ao fator social
axiológico valorado como essencial ao desenvolvimento humano em sociedade
(seja individual ou supraindividual) e por isso ensejador de proteção penal.
Aduz o renomado autor:
[...] o objeto da conduta (ou do fato) é o referido pela ação típica, enquanto o bem jurídico é obtido por via interpretativa, referente à função de tutela da norma penal. Nessa nova perspectiva, a distinção não consiste no fato de os dois conceitos pertencerem a mundos diversos (empírico e normativo). Ao contrário, ambos os conceitos pertencem tanto ao mundo da norma como ao da realidade (ou da experiência), sendo que a distinção entre eles reside na diversa função exercida. O objeto da conduta exaure seu papel no plano estrutural do tipo, é elemento do fato. Já o bem jurídico se evidencia no plano axiológico, isto é, representa o peculiar ente social de tutela normativa penal. Não são conceitos absolutamente independentes um do outro, mas que se inter-relacionam, numa mútua imbricação30.
E a lição de Juarez Tavares sugere ao mesmo sentido:
O bem jurídico por seu turno, não se confunde com o objeto da ação, pois não pode ser entendido no sentido puramente material, como se fosse uma pessoa ou uma coisa, mas no sentido de característica dessa pessoa e de suas relações, isto é, como valor decorrente da vida individual e social, indispensável à sua manutenção e ao seu desenvolvimento31.
Assim, é possível questionar a distinção entre bem jurídico mediato
e imediato, visto que essa dicotomia se mostra inadequada, frente aos conceitos
de bem jurídico e objeto da ação ou conduta, que se afiguram mais técnicos.
2.4 Bem jurídico penal e função
29 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 51.30 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 51.
31 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 202.
Outra preocupação é a da tomada da função estatal por bem jurídico
protegido. Não raro, se encontra no ordenamento jurídico a função estatal
disfarçada de bem jurídico ensejando a proteção criminal. Tal ocorrência deve ser
combatida. O Direito Penal, como já enfatizado, deve servir para proteger bens
caros ao ser humano, e não simplesmente as funções do Estado, pois essas
devem incidir “tão somente como marco de referência, sob pena de incorrer-se na
erosão das demarcações obtidas através do princípio da exclusiva proteção de
bens jurídicos como pauta mínima para ingerência penal”32.
É o que se destaca da lição de Juarez Tavares:
Independentemente das variadas acepções acerca de seu conteúdo ou de sua extensão, o bem jurídico constitui um dado significativo em um direito penal de garantia, porque uma conduta só pode ser caracterizada como penalmente relevante e, por isso, sensível a uma valoração jurídica como justa ou injusta, quando implicar lesão concreta ou perigo concreto de lesão a bem jurídico determinado. A determinação do bem jurídico e sua diferenciação do conceito de função, que com ele costuma ser confundido, mas que deve ser diferenciado, porque a função diz respeito unicamente a tarefas e objetivos e não a estratos sociais concretizáveis e estáveis, é condição essencial para que se evitem incriminações genéricas e abusivas, na maioria das vezes sob a perspectiva de um dever geral de obediência, como ocorre em alguns delitos omissivos33.
A confusão entre bem jurídico e função em parte se dá no âmbito do
caso concreto, já que o Estado em sua atividade de controle prevê situações a
serem observadas pela sociedade em seu benefício próprio, transmitindo uma
idéia de importância ao ser humano. Por vezes a função tem aparência de bem
jurídico e o legislador menos atento se precipita a uma criminalização que reforce
a função estatal falha. Apesar de uma aparência de bem jurídico, estar-se-á
diante de uma típica função, com todas as suas características, sendo a principal
delas a sua dependência a certas variáveis.
Veja-se nos casos a seguir como deve ser o entendimento entre
função e bem jurídico em alguns temas da vida em sociedade: função de controle
ambiental e meio ambiente como bem jurídico; função de controle de arrecadação
32 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 60.33 CERVINI, Raúl; TAVARES, Juarez. Princípios da Cooperação Judicial Penal Internacional no Protocolo do Mercosul. Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 186.
e erário público como bem jurídico; função de controle do sistema financeiro e
higidez financeira do país como bem jurídico.
Juarez Tavares em sua obra Teoria do Injusto Penal, faz uma
concisa explanação do que é o bem jurídico e como se diferencia da função. O
Estado desempenha funções de controle, que se configuram como atividades
sempre relacionadas a critérios externos, residindo aí a importante diferenciação
em relação ao bem jurídico. Esse existe, pura e simplesmente, sem relação de
dependência a outros fatores. Se manifesta de forma elucidativa sobre o tema, o
mencionado autor:
A distinção básica reside em que a função não existe por si mesma, depende de uma relação e de suas variáveis, possibilitando unicamente cálculos de predicados, que não podem ser confundidos com valores. Não importa, assim, ao conceito de função que essa ou aquela atividade de controle possa ser útil ou inútil, adequada ou inadequada [...] Já o bem jurídico – por exemplo a vida humana – deve ser tomado como valor por si mesmo, quer se refira a uma pessoa virtuosa, quer a uma pessoa moralmente execrável. Não há possibilidade de se medir, quantitativamente, o grau de intensidade de valor da vida, porque isso implicaria a edificação de uma ordem jurídica puramente utilitarista, de todo modo inadmissível34.
Ressalte-se, entretanto, que por vezes a função pode encampar
também aspectos que perfaçam o bem jurídico imbricando, em suas
características, valores inerentes ao ser humano. Assim, não se faz impossível
que algumas funções possam, em algum contexto, se converterem em bem
jurídicos, como indica Juarez Tavares:
Ademais, está claro que, em face da complexidade da vida, algumas funções vão se materializando, de tal modo que suas variáveis possamconstituir uma realidade, ainda que puramente normativa, mas irredutível a simples grandezas, fato que as torna indispensáveis à existência do Estado ou do próprio indivíduo. Isso ocorre, por exemplo, com a administração da justiça, que é hoje uma função indeclinável do Estado democrático. A característica dessa função de servir, indistintamente, a todos, no sentido de uma universalidade e sua vinculação à própria estrutura do Estado, dá-lhe estabilidade e a converte em bem jurídico, porque se constitui valor da pessoa humana35.
O que não se deve permitir é o argumento de que toda função de
controle estatal possa ser vista (em outro ângulo) sob a feição de um bem jurídico
34 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 212/213.
valoroso ao homem social, ainda que de forma indireta. Percebe-se como
desmedido tal alargamento para encontrar, a qualquer custo, na ponta de um
novelo puramente funcional, muito indiretamente, um ataque ao indivíduo.
A classificação de bens jurídicos em individuais e supra-individuais é
um fator que pode levar à confusão entre bem jurídico e função. Isso porque a
tendência é que, sob a justificativa de bem coletivo, acabe se abarcando funções
em razão de serem interesses do Estado com reflexos na comunidade. Esta
atitude reforça o indesejado tratamento ao Direito Penal como sistema de
proteção e não como instrumento de garantia ao ser humano, como é a crítica de
Juarez Tavares na passagem que segue:
Se o objetivo do direito penal, porém, não é o de simplesmente proteger bens jurídicos, mas o de traçar, nitidamente, os contornos das zonas do lícito e do ilícito, do proibido e do permitido, no sentido de só justificar a intervenção do Estado sobre a liberdade da pessoa humana, em casos de extrema e demonstrada necessidade, a primeira condição de seu implemento é a de descartar, desde logo, essa classificação entre bens individuais e coletivos e trabalhar com a noção de bem jurídico como bem jurídico pessoal. Esse é o primeiro e indeclinável pressuposto para se proceder, com segurança, à identificação do bem jurídico e diferenciá-lo da função36.
O mesmo autor aponta indicativos a serem avaliados na
identificação do bem jurídico de natureza coletiva, sendo o primeiro deles a
necessidade de se reduzir ao indivíduo, a ligação com o bem jurídico. Em outras
palavras, o bem jurídico deve tocar o ser humano em sua individualidade, ainda
que, generalizando, pertença a uma coletividade de pessoas. O autor exemplifica
que o meio ambiente, classificado como bem supra-individual, ainda assim deve
afetar o ser humano direta ou indiretamente, em seu interesse individual. Em
relação a sua importância para o Estado e como bem de controle estatal,
estaremos diante de uma função.
Sob outro ângulo, a criminalização deve se afigurar em relação a
condutas lesivas ao ser humano em sua individualidade, mesmo que
indiretamente, e não simplesmente em virtude de condutas que maculem o poder
de controle estatal de proibir condutas antiambientais37.
35 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 212.36 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 216.37 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 217.
Uma segunda preocupação na indicação de bens jurídicos ditos
coletivos, seria a “sua subsistência como valor, independente de uma relação”.
Dentro de um Estado Democrático de Direito para fixação do bem jurídico, faz-se
necessário que o mesmo seja fruto de um juízo de valor expressivo à vivência
social, não se prendendo exclusivamente ao seu caráter normativo. Assim é que
“a vida humana tem existência real, independentemente de sua consideração
normativa”. Não descuidando da avaliação do bem jurídico como valor, e por
desdobramento que esse valor seja apto a ensejar que o bem seja efetivamente
lesado ou ameaçado de lesão, então, estará impossibilitada o entendimento de
funções como bens jurídicos38.
2.5 Bem jurídico penal no Estado Democrático de Direito
Estar inserido num Estado Democrático de Direito significa ter
direitos fundamentais e garantias fixados em lei oriunda de legisladores
representantes dos cidadãos, em um sistema social no qual estes mesmos
cidadãos são jurisdicionados. Significa, em outro enfoque, o afastamento do
absolutismo e das prescrições imperativas do Estado. Isto porque a pessoa
humana é priorizada, e é a partir dela que se estabelecem as diretrizes sociais.
No âmbito do Direito Penal, o Estado Democrático de Direito traz
fortes implicações, estando o Estado na dependência de lei específica que
preveja condutas criminosas, e somente a partir daí, tem a possibilidade de
punição aos indivíduos. Como decorrência deste modelo, são impostos princípios
indeclináveis, sendo alguns deles determinantes ao Direito Penal, por formarem
uma barreira delimitadora. Para citar alguns: o Princípio da Legalidade, da
Intervenção Mínima, Fragmentariedade e o da Lesividade ou Exclusiva Proteção
a Bens Jurídicos.
38 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 220.
Embora existam mínimas divergências, a doutrina admite a
incriminação apenas quanto a condutas que ofendam bens jurídicos relevantes ao
ser humano, sendo que é a própria lei maior que dará o contorno de viabilidade
na definição de tais bens:
Em um Estado de Direito democrático, a determinação dos valores elementares da comunidade deve estar, em princípio, delineada na Constituição. [...]Nesse contexto, a noção de bem jurídico emerge dentro de certos parâmetros gerais de natureza constitucional, capazes de impor uma certa e necessária direção restritiva ao legislador ordinário, quando da criação do injusto penal. A tarefa legislativa há de estar sempre que possível vinculada a determinados critérios reitores positivados na Lei Maior que operam como marco de referência geral ou de previsão específica – expressa ou implícita – de bens jurídicos e a forma de sua garantia. Há, por assim dizer, uma limitação nomológica em relação à matéria. A linha reguladora constitucional de ordem hierarquicamente superior deve servir para impor contornos inequívocos ao direito de punir39.
É no mesmo mesmo sentido a passagem da obra de Santiago Mir
Puig:
Un Estado social y democrático de Derecho sólo deberá amparar como bienes jurídicos condiciones de la vida social, en la medida en la que afecten a las posibilidades de participación de individuos en el sistema social. Y para que dichos bienes jurídicos merezcan ser protegidos penalmente y considerarse bienes jurídico-penales, será preciso que tengan uma importancia fundamental. Todo ello puede verse como uma exigencia del Estado social. El Derecho penal de tal Estado no há de ocuparse em respaldar mandatos puramente formales, valorespuramente morales, ni intereses no fundamentales que no comprometen seriamente el funcionamiento del sistema social. El postulado de que las condiciones sociales a proteger deban servir de base a la posibilidad de participación de individuos en el sistema social, puede fundarse en el Estado democrático40.
Não menos importante é a lição de Mariângela Gama de Magalhães
Gomes:
A função garantista da Constituição, que é expressada pelo seu caráter de Magna Carta frente à relação autoridade/liberdade, impõe um significado vinculante, limitativo do arbítrio legislativo, onde os valores constitucionais deixam de representar apenas limites e passam a significar o fundamento obrigatório da repressão penal41.
39 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 90/91.40 PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal. Parte General. 3. ed. Barcelona, Espanha: PPU, 1995. P.102.41 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 98.
Contudo, a doutrina adverte que a escolha dos bens jurídicos
dentro do Estado Democrático de Direito, deve sim, ser lastreada na constituição,
porém sem o abandono da noção de agente limitador. Veja-se:
A questão da criminalização de condutas não pode ser confundida com as finalidades políticas de segurança pública, porque se insere como uma condição do Estado democrático, baseado no respeito aos direitos fundamentais e na proteção da pessoa humana. Isto quer significar que, em um Estado democrático, o bem jurídico deve constituir um limite ao exercício da política de segurança pública, reforçado pela atuação do Judiciário, como órgão fiscalizador e controlador e não como agência seletiva de agentes merecedores de pena [...] A decisão jurídica [...] só terá legitimidade se for pronunciada sob a perspectiva de uma política de garantia individual, tomada sobre a base de argumentos racionais, que têm como pressuposto a imparcialidade do órgão jurisdicional e todos aqueles critérios que fundamentam o discurso ideal, dentro do qual se devem incluir, necessariamente, todos os argumentos em favor da proteção de direitos humanos42.
Como já enfatizado, o bem jurídico serve em seu aspecto do que é
valoroso ao ser humano e, a vinculação da criminalização a tal valor de
preferência, acaba por limitar a função legislativa, salvaguardando o cidadão de
ingerências indevidas pelo Estado. O Estado de Direito, com seu Princípio da
Legalidade, impede que o cidadão responda criminalmente por aquilo que não foi
anteriormente estipulado através de lei. Esta estipulação, por sua vez, recebe a
influência limitativa do bem jurídico, como objeto de preferência do ser humano.
Em um segundo momento, o bem jurídico serve como referência
para análise da existência ou não de um fato típico penal, conforme a
demonstração de lesividade ou, ao menos, ameaça de lesividade. É nessa
direção a valorosa lição de Juarez Tavares:
O bem jurídico constitui, ao mesmo tempo, objeto de preferência, como valor vinculado à finalidade da ordem jurídica em torno da proteção da pessoa humana, e objeto de referência, como pressuposto de validade da norma, bem como de sua própria eficácia. Neste último caso, ao subordiná-la à demonstração de lesão ou colocação em perigo do bem jurídico. A doutrina tem normalmente trabalhado, indistintamente, com essas duas categorias, ou modos de expressão do bem jurídico, sem atentar para o fato de que a segunda (objeto de referência) constitui um objeto dependente da primeira (objeto de preferência)43.
42 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 200/201.43 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 205.
Aníbal Bruno, aborda a questão nos seguintes termos:
O Direito Penal é um sistema jurídico de dupla face, que protege a sociedade contra a agressão do indivíduo e protege o indivíduo contra os possíveis excessos de poder da sociedade na prevenção e repressão dos fatos puníveis. Toda a sua atuação se faz sob o critério regulador da justiça44.
Além dos destacados entendimentos, o bem jurídico, para ser
penalmente protegido, deverá ser socialmente merecedor de sê-lo. Não adianta
puramente aparecer como valor inerente ao sujeito, mas também deve trazer em
sua bagagem social uma importância tal que justifique sua criminalização, pois
num contexto de direito sócio-democrático, o “valor social do bem merecedor de
garantia penal deve estar em consonância com a gravidade das consequências
próprias do Direito Penal”45.
A respeito do tema se encerra com exemplo elucidativo da obra de
Juarez Tavares:
[...]ainda que a honra constitua um bem jurídico, a incriminação de atentados à honra não pode valer exclusivamente sob este aspecto da lesão deste bem jurídico e nada mais; é preciso que a incriminação desses atentados não implique uma dessocialização das pessoas, no sentido de proibir-lhes todos os comentários sobre os demais, o que impossibilitaria a vida social e a sua convivência. Imagine-se como seria intolerável a vida social se se proibisse, simplesmente, qualquer comentário áspero ou até mesmo desairoso à conduta dos que exerçam autoridade, como os governantes, os parlamentares, os juízes, os membros do Ministério Público ou os funcionários46.
2.6 Bem jurídico tutelado pelo Direito Penal Econômico
Com a maximização da economia nos últimos tempos, ganhando
esta contornos globais, as ações delituosas no campo econômico ganharam mais
44 BRUNO, Aníbal. Direito Penal. 4. ed. São Paulo: Forense, 1984, p. 32.45 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 105.46 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 223.
visibilidade, e os efeitos se tornaram instantâneos em afetar negativamente a
imagem e economia do país, inclusive com repercussões internacionais.
Atualmente, um simples discurso infeliz pode trazer transtornos de grande monta
à economia.
Nasce a necessidade de amparo a bens jurídicos de cunho
econômico dentro da realidade desta nova sociedade. Pela própria natureza, as
atividades e situações de jaez econômico não se mostram íntimas e diretamente
ligadas aos direitos e garantias fundamentais do homem. Assim, no campo penal
econômico, é incidente a presença de proteção aos bens jurídicos supra-
individuais, sendo encampadas questões de cunho econômico, na maioria das
vezes impessoais, e que afetam apenas indiretamente o ser humano.
Valem aqui, todas as observações feitas em tópico anterior, quando
foram tratados os bens jurídicos supra-individuais, bem como o importante alerta
explicitado acerca do impecável cuidado legislativo cabível ao órgão legislativo na
criação de tipos penais ancorados em tais bens jurídicos.
Resta, contudo, uma breve incursão sobre os bens jurídicos supra-
individuais de cunho econômico, no pertinente a, de que maneira pretende o
legislador protegê-los depois de elegê-los? Por outro ângulo, como fica a questão
dos crimes de perigo tão presentes na legislação penal econômica? Já se
destacou que, pela obediência ao Princípio da Lesividade, é necessário haver
uma efetiva lesão a um bem jurídico ressaltado como merecedor da proteção
penal, e somente assim se tem “de fato, uma proteção racional de determinados
bens”47.
Não só os crimes que causam uma lesão efetiva ao bem jurídico,
crimes de dano, são permitidos em nosso ordenamento penal, mas também
aqueles crimes que conduzem a uma potencialidade de lesão ao bem jurídico, os
chamados crimes de perigo. Nestes últimos se busca a eliminação de um fator de
ofensa antes mesmo que ocorra ou leve a outra situação mais grave.
Porém, o crime de perigo aceita diferentes ângulos de visão.
Encontra-se, na doutrina pátria, a divisão dos crimes de perigo em crimes de
perigo abstrato e crimes de perigo concreto. Neste, o julgador deve aquilatar o
47 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 55.
caso concreto após a prática da ação ou omissão. Naquele, o perigo é ínsito à
própria conduta, ficando o julgador preso à adequação típica. O doutrinador
Francisco de Assis Toledo assim os define:
Estes – os de perigo – se subdividem em crimes de perigo concreto e em crimes de perigo abstrato ou presumido. Nos de perigo concreto, a realização do tipo exige constatação, caso a caso, de perigo real, palpável, mensurável. Nos de perigo abstrato, ao contrário, dispensa-se essa constatação, por se tratar de perigo presumido de lesão, como ocorre na formação de quadrilha ou bando (art. 288), punível ainda quando a associação de malfeitores não chega a cometer os crimes a que se propunha48.
Já Renato de Mello Jorge Silveira, assim explica o crime de perigo
abstrato:
Outro é o caso do perigo abstrato. Não se trata aqui de tecer considerações de quão lesivo seria o resultado imputável. Ele não é sequer imaginado pelo sujeito ativo. A punição, nesses casos, advirá apenas pela idoneidade do comportamento para a efetivação de uma lesão a um bem jurídico, no caso, difuso. Para a existência de dolo, basta que o agente conheça os elementos típicos do delito, sem que seja necessário que saiba da sua efetiva lesividade49.
Alberto Silva Franco critica a deterioração das garantias típicas ao
Direito Penal, através da criação de tipos penais de perigo abstrato, quando se
constata “por toda parte, um intervencionismo penal cada vez mais intenso e
abrangente. Criam-se novos delitos, em especial, na área sócio-econômica e
ambiental, e quase todos eles com a característica de crimes de perigo
abstrato”50.
Em face à necessidade de proteção pelo Direito Penal a bens
supra-individuais no campo econômico, pela própria natureza acaba-se optando
por criações de crimes de perigo abstrato.
Não se acolhe aqui que todos os crimes de perigo abstrato devem
ser abolidos do nosso ordenamento penal, mas apenas que devem merecer uma
48 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p.143.49 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 119.50 FRANCO, Alberto Silva em prefácio à ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Pena, Brasileiro, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 462.
atenção redobrada do legislador quando de sua criação, bem como do órgão
jurisdicional na análise de sua ocorrência fática. É tolerável que um crime se
afigure pela simples conduta prática ser considerada perigosa, porém a conduta
escolhida pelo legislador deve ser própria, adequada a atacar o bem jurídico.
Nesse sentido:
O legislador encontra, pois, limite insuperável na criação dos tipos de perigo. Trata-se de leis estatísticas. Não pode ele pretender punição a situações sabidamente inidôneas para a produção de lesão. Esta lógica é fruto de uma propriedade objetiva das coisas e não pode, sob pena de quebra sistêmica do Direito Penal, ser rompida. A isso ocorrer, ter-se-á verdadeiro efeito teratológico no campo repressivo, inviabilizando sua compreensão lógico-globalizada51.
O que se conclui é que os crimes de perigo abstrato somente
poderão ser admitidos se tiverem fundamento em um processo de imputação
invertido, isto é, só valem na medida em que a ação seja idônea a lesar ou por em
perigo o bem jurídico. Somente nessa medida estará autorizada a criminalização
das condutas, o que, lamentavelmente, nem sempre é observado em nosso
conjunto de leis penalizadoras.
3 CRIMINALIZAÇÃO INADEQUADA NO DIREITO PENAL ECONÔMICO –
INOBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS
Disse Lydio Machado Bandeira de Mello há décadas, que “punir sem
necessidade é um crime contra a humanidade”52. Pelo brilhante pensamento,
ainda muito atual, pode-se concluir que o Direito Penal só deve ser utilizado
quando houver uma razão imprescindível, carecendo de justificativa e
conseqüente legitimidade quando empregado fora da característica da extrema
necessidade. É do mesmo autor a passagem que segue:
51 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 114.
52 MELLO, Lydio Machado Bandeira de. Manual de Direito Penal, vol. I. Belo Horizonte. UFMG, 1953, p. 45.
[...] a consolidação ou codificação das leis penais em vigor É UMA CARTA DE NOSSOS DEVERES SOCIAIS INDECLINÁVEIS: - deveres para com cada um de nossos cidadãos; - deveres para com a coletividade nacional (encarada como um todo jurídico ou político, como um todo ordenado por leis). Tudo quanto fugir a esta regra (que denomino REGRA BÁSICA PARA SELEÇÃO OU DETERMINAÇÃO (ESPECIFICAÇÃO) DOS ATOS CRIMINOSOS) cai no domínio do arbitrário, que se bifurca em dois ramos igualmente abomináveis: o domínio do odioso (da prepotência danosa e injusta) e o domínio do ridículo (da prepotência vaidosa e tola)53.
Assim, todo o ordenamento jurídico se constrói sobre princípios,
postulados, que devem basear não só os processos de criação das leis, como
também devem nortear a atividade dos intérpretes do direito, em quaisquer de
seus ramos. Nesse sentido ensina Juarez Tavares:
É efetivamente difícil estabelecer uma sistematização desses princípios, porque não constituem unicamente preceitos de direito penal, senão fundamentos para uma ordem jurídica democrática. São, antes de tudo, preceitos político-jurídicos, de estruturação do Estado e da ordem jurídica, aos quais se devem subordinar tanto a criação ou elaboração legislativa quanto as atitudes dos poderes executivo e judiciário54.
Parece que em tema de Direito Penal, as amarras aos princípios se
mostram mais fortes, a começar pela necessária observância do Princípio da
Legalidade, concepção que se extrai do brocardo nullum crimen, nulla poena sine
praevia lege. Outros princípios já aclamados também são correntes na doutrina
penal. É o caso dos princípios da Intervenção Mínima, Subsidiariedade e
Fragmentariedade, segundo os quais, o Direito Penal só pode intervir nos casos
de real necessidade, não devendo ser utilizado quando outros ramos do direito
sejam suficientes para a intimidação ou combate ao ilícito, e ainda que nem todas
as nuances de uma determinada conduta devam ser protegidas pelo Direito
Penal, mas apenas as mais importantes, que somente serão satisfatoriamente
protegidas através da pena criminal.
É cediço, que o Direito Penal é instrumento de ultima ratio, sendo
um “direito que se distingue entre os outros pela gravidade das sanções que
impõe e a severidade de sua estrutura, bem definida e rigorosamente
53 MELLO, Lydio Machado Bandeira de. Manual de Direito Penal, vol. I. Belo Horizonte. UFMG, 1953, p. 43 e 44.54 CERVINI, Raúl; TAVARES, Juarez. Princípios da Cooperação Judicial Penal Internacional no Protocolo do Mercosul. Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 177.
delimitada”55, logo, sua aplicação deve ser objeto de cuidadoso trato pelo
legislativo, com intensa observância dos princípios que o norteiam.
O combativo Luiz Flávio Gomes pontua sabiamente o que se deve
esperar como resultado jurídico de uma criminalização:
O resultado jurídico para ser relevante requer: (a) resultado real ou
concreto (em virtude do princípio da ofensividade, está proibido no
Direito Penal o perigo abstrato [...]; (b) desvalioso (produzido no contexto
de um risco proibido relevante); (c) transcendental (afetação de
terceiros); (d) grave (resultado insignificante está regido pelo princípio da
insignificância); (e) intolerável (resultados tolerados não são
juridicamente relevantes) e (f) objetivamente imputável ao risco criado
(imputação objetiva do resultado)56.
Por vezes, na criação do Direito Penal, o legislador se afasta da
observância criteriosa dos princípios reitores, a despeito destes serem ponto
pacífico no ordenamento como um todo, o que por óbvio, resulta em
criminalizações equivocadas.
Os cultores do direito vêm, já há algum tempo, chamando a atenção
para a utilização desmedida do Direito Penal, não para a proteção a bens
jurídicos, mas para causar sensações sociais, tornando-o apenas simbólico, com
desprezo às questões de efetividade da norma. Não perdeu a oportunidade de
realizar tal crítica, Alberto Silva Franco, quando prefaciou a importante obra de
Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, aduzindo sobre o perigo de se
admitir um Direito Penal promocional ou simbólico, que ao fim, tem o condão de
esvaziar a norma, que passa a ser um “tiro no vácuo, mas com amplo referencial
acústico...”57.
É também de Alberto Silva Franco a arguta lição:
Faz-se, no Brasil dos tempos presentes, o discurso do Direito Penal de
intervenção mínima, mas não há nenhuma correspondência entre esse
55 BRUNO, Aníbal. Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 112.56 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal – Parte Geral – Introdução. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 103.
discurso e a realidade legislativa. Ao invés da renúncia formal ao
controle penal para solução de alguns conflitos sociais ou da adoção de
um processo mitigador de penas, com a criação de alternativas à pena
privativa de liberdade, ou mesmo da busca, no campo processual, de
expedientes idôneos a sustar o processo de forma a equacionar o
conflito de maneira não punitiva, parte-se para um destemperado
processo de criminalização no qual a primeira e única resposta estatal,
em face do surgimento de um conflito social, é o emprego da via penal.
Descriminalização, despenalização e diversificação são conceitos fora da
moda, em desuso. A palavra de ordem, agora, é criminalizar, ainda que a
feição punitiva tenha uma finalidade puramente simbólica58.
Na face econômica, lamentavelmente, não são raros os
distanciamentos legislativos das orientações tradicionais do Direito Penal. Isto se
percebe pela constatação de inúmeras criações típicas que ignoram (às vezes por
completo) os ditames principiológicos do Direito Penal, situações estas que serão
vistas mais detidamente, adiante, neste trabalho.
Por hora, cumpre observar, que o Direito Penal Econômico, ramo
que pode ser considerado ainda jovem em nosso país, apresenta falhas de
elaborações típicas graves. Antes de apontá-las, necessário se faz a análise de
dois princípios cruciais: o da Exclusiva Proteção a Bens Jurídicos e o da
Idoneidade, usualmente inobservados nas recentes legislações penais
econômicas.
3.1 Princípio da Exclusiva Proteção do Bem Jurídico
Como já se observou, nosso ordenamento encampa a noção do bem
jurídico penalmente protegido, embora encontre dificuldade nas razões de
57 FRANCO, Alberto Silva, em prefácio à obra de ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2. ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 12.58 FRANCO, Alberto Silva, em prefácio à obra de ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2. ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 12.
escolha de qual o bem jurídico a ser protegido pelo Direito Penal, uma vez que se
aceita que este deve perfazer uma nascença constitucional. Entretanto a
Constituição Federal não fornece um catálogo de tais bens, o que dificulta o
trabalho do legislador.
Hoje parece pacífico que a Constituição Federal deve ser a matéria-
prima, da qual serão retirados os bem jurídicos ensejadores da proteção penal59.
Porém, tal atividade não é fácil. Existem bens constitucionalmente protegidos que
não se mostram explicitamente, juntando tudo isto ao fato de que o próprio
regramento constitucional, ainda que permaneça intocado, é lido de forma
diferente pelas diversas gerações, face às inúmeras mudanças de
comportamento, sociais e tecnológicas60.
Já se ressaltou que em um Estado Democrático e Social de Direito,
só se concebe a aplicação do Direito Penal protegendo bens jurídicos, sendo
estes verdadeiros limitadores do jus puniendi estatal. Esse, está enfaixado,
primeiro pela limitação de somente criminalizar bens extremamente necessários
e, assim, valorizados pelo cidadão. Além disso, a conduta destacada deve
apresentar uma real ofensividade ao importante bem jurídico escolhido. Nisso
reside o Princípio da Exclusiva Proteção de Bens Jurídicos61.
Assim o explica Luiz Flávio Gomes:
Princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos: o Direito penal não serve para a tutela da moral, de funções governamentais, de uma ideologia, de uma religião etc.; sua missão é a de tutelar os bens jurídicos mais relevantes (vida, integridade física, patrimônio, liberdade individual, liberdade sexual etc.). É preciso que o bem jurídico-penal esteja contemplado na Constituição expressamente? Não. Fundamental é que o bem jurídico não conflite com o quadro axiológico constitucional, isto é, com os valores que a Constituição contempla...62.
59 Sobre a evolução doutrinária alemã e italiana acerca da aceitação do bem jurídico constitucional a ser admitido como penalmente relevante, veja-se: GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.60 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 96.61 Embora, de um modo geral, a doutrina pátria aborde a questão da ofensividade em separado do Princípio da Exclusiva Proteção do Bem Jurídico, como Princípio da Ofensividade, aqui se optou por entendê-los como sinônimos ou mesmo integrados no mesmo conceito, julgando mais adequado, em face dos sentidos fortemente embricados.62 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal – Parte Geral – Introdução. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 99.
O que se quer evitar é a criminalização de condutas que não
chegam a atingir ou, pelo menos, ameaçar atingir o bem jurídico relevante. Assim,
além de se eleger o bem jurídico merecedor de proteção, ainda se faz necessário
que a escolha de como se quer que tal bem seja protegido sob pena de se ferir o
princípio em estudo. Criticáveis, desse modo, fórmulas de incriminação genérica
como “prejuízo social” ou “perturbação da ordem social”, devendo os bens
jurídicos serem mais especificamente perceptíveis e diferenciados63.
Neste ponto, ergue-se o problema do crime de perigo abstrato que,
como visto em tópico anterior, é fruto de uma presunção da lei, dentro das regras
de experiência do que geralmente acontece. Considerando se tratar de uma
presunção juris et de jure, não há uma apreciação do real ataque ou perigo de
ataque ao bem jurídico protegido, e a incriminação se completa com a simples
ocorrência da ação ou omissão no mundo real. Conclui-se, nestes casos, pela
inobservância do Princípio da Exclusiva Proteção do Bem Jurídico, daí por que os
crimes de perigo abstrato são tão criticados pela doutrina pátria e estrangeira.
Veja-se a respeito a lição de Francisco Muñoz Conde, em sua obra
Teoria Geral do Delito, traduzida por Juarez Tavares e Luiz Regis Prado:
No Direito Penal tradicional, por influência da idéia da responsabilidade pelo resultado, fazia-se recair o centro de gravidade no desvalor do resultado, especialmente na lesão do bem jurídico, punindo mais gravemente o delito consumado que a tentativa, admitindo os delitos qualificados pelo resultado etc. Atualmente, pretende-se destacar o desvalor da ação, punindo-se com a mesma pena a tentativa e o delito consumado, antecipando-se à consumação do delito a simplescolocação em perigo do bem jurídico ou, inclusive, o que é recusável, sancionando a simples desobediência à norma, sem ofensa ao bem jurídico protegido...64.
Entende-se que para que a tutela penal se legitime frente aos
preceitos constitucionais imprescindíveis, é necessário que o fato típico
represente verdadeiro acometimento ou, no mínimo, uma exposição ao
acometimento a um bem jurídico.
Inegável que, por vezes, se apresenta necessária a utilização de
crimes de perigo abstrato, principalmente se justificados em critérios de
63 PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal. Parte General. 3. ed. Barcelona, Espanha: PPU, 1995, p.102.
prevenção geral. Daí porque se acolheu tal possibilidade em tópico anterior.
Contudo, é da mesma forma inegável se admitir que tal hipótese se posiciona
como uma exceção ao Princípio da Exclusiva Proteção do Bem Jurídico, por isso,
deve ser utilizada criteriosamente como raro recurso de incriminação. Não se
pode esquecer de que as críticas à prevenção geral como justificativa para o
Direito Penal e consequente pena são no sentido de que tais critérios não impõem
uma limitação ao jus puniendi estatal, justamente o que se celebra com o
Princípio da Exclusiva Proteção do Bem Jurídico.
Ainda que não se acolha tal possibilidade para mitigar a criação de
tipos penais de perigo abstrato com o princípio em estudo, num outro enfoque, se
admite o perigo abstrato, porém dentro de uma possibilidade de quebra da
presunção que o lastreia, suavizando assim sua aplicação.
Inobstante, é bastante expressivo o posicionamento de que os
crimes de perigo abstrato devem ser tidos como inconstitucionais, admitindo-se,
no máximo, os crimes de perigo concreto ladeando os crimes de dano. Nesse
sentido, conclui Mariângela Gama de Magalhães Gomes:
A partir dessas observações, torna-se possível identificar e caracterizar as duas técnicas constitucionalmente compatíveis com a tutela penal dos bens jurídicos, quais sejam, a proteção perante o dano ou, no máximo, ao efetivo perigo. Conforme anteriormente analisado, o fato de o direito penal confrontar-se sempre com novas modalidades de bens jurídicos e, também, novas modalidades de ataques, impõe que este ramo do direito faça uso, dentro dos limites constitucionais, de técnicas suficientemente eficazes – e muitas vezes bastante avançadas – para proteger o bem jurídico. No entanto, há de ser ressaltado que isso não significa que seja legítimo o alargamento das possibilidades de se tutelar o bem jurídico mesmo frente à inexistência de um perigo. O conceito de bem jurídico, ao contrário do que vem ocorrendo na prática legislativa, não pode assumir uma desmedida capacidade legitimadora, a ponto de prescindir de sua conformação ao princípio da ofensividade; não pode o seu conteúdo transformar-se de modo que, de principal fundamento da crítica aos delitos de perigo abstrato, converta-se em elemento justificante destes65.
3.2 Princípio da Idoneidade
64 CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. Tradução e notas de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 89.
Segundo o Dicionário Aurélio, idoneidade significa qualidade de
idôneo, aptidão, capacidade, competência. Na mesma esteira, por Princípio da
Idoneidade, entende-se que a escolha dos interventos punitivos deve ser feita sob
a análise acerca da aptidão do Direito Penal para alcançar a finalidade proposta,
dentro de uma relação de adequação entre meio e fim66.
Significa dizer: na escolha das condutas a serem criminalizadas, o
legislador deve observar, além do bem jurídico, o merecimento, a necessidade de
proteção e a capacidade de recebê-la. Em outras palavras, o Direito Penal será o
meio idôneo, capaz e eficaz na proteção do bem jurídico.
Não basta que o bem jurídico seja relevante, de forma a se mostrar
merecedor de uma proteção ultima ratio, para que pese sobre ele um fato típico
penal garantidor, faz-se também indispensável que a finalidade da norma, a
justificativa constitucional, possa ser atingida com a conseqüente legitimação
social.
Sabe-se que a criminalização opera como uma faca de dois gumes.
Por um lado, protege em última análise o ser humano. Porém isso se dá através
da cassação da liberdade de outro ser humano, mediante pena privativa de
liberdade. Para se conceber tal ingerência estatal, somente se estiver a tutela
penal embasada não só na proteção dos bens jurídicos, como também em
instrumentos que demonstram que a criminalização é idônea, ou seja, o bem
jurídico merece, necessita e está apto a receber proteção. Assim, a incriminação
de condutas só se justifica se for suficiente a alcançar a motivação da norma, e
somente aí estarão legitimadas as lesões aos direitos decorrentes da sanção
penal.
Aduz Mariângela Gama de Magalhães Gomes, tratando da questão:
Em outras palavras, impõe-se considerar o bem jurídico como um – e não o único – entre os elementos determinantes da tutela e da própria escolha de se adotar ou não o modo de disciplina penal. Não se trata de negar a idéia de bem jurídico, mas de inseri-la num contexto mais rico, onde haja espaço não para “objetos de tutela” postos e isolados, mas para conexões e balanceamentos de interesses diversos, além de
65 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 120 e 121.66 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 126.
específicas considerações quanto à funcionalidade e à justiça do intervento punitivo67.
Fica a pergunta de como o legislador avaliará a questão da
idoneidade do meio para a consecução dos fins? Como saber se a incriminação
será idônea? Se acredita que tal avaliação deve ser com base numa conjetura do
que ocorrerá, dentro das possibilidades que se indicam prováveis. Desse modo, o
legislador deverá realizar um prognóstico medindo, em toda a sua extensão, o
fato típico e suas probabilidades. Posteriormente à entrada em vigor da norma, é
que se terá a resposta exata acerca da sua idoneidade. Atualmente, é possível ao
legislador, até mesmo por sua vasta experiência anterior, antever os efeitos de
sua atividade incriminadora.
Até por esta razão, se patenteia louvável que se constatado, após o
vigor de uma norma incriminadora, que esta é equivocada e evidentemente
inidônea, seja prontamente retirada do ordenamento através da
descriminalização. Em nosso país, não sobrevém exatamente esta saudável
solução, preferindo-se a criação de subterfúgios, sobre os quais se tratará em
item próprio no desenvolver desta pesquisa.
Assim como no estudo sobre o Princípio da Exclusiva Proteção dos
Bens Jurídicos, também em tema de Principio da Idoneidade, esbarra-se na
questão do crime de perigo abstrato. Enfatizou-se que o crime de perigo abstrato
grava com o título de passíveis de punição algumas condutas, que por si só
(simples ação ou omissão) são consideradas típicas, independente de terem uma
chance real de atingir, ou mesmo ameaçar um bem jurídico.
Por tal característica, e sob tal classificação, acabam sendo criados
tipos penais punitivos de condutas de pouca importância ou mesmo de condutas
aleatórias. No caso da randomização, fica difícil aquilatar a idoneidade do crime,
já que o bem jurídico está fora do alcance da conduta combatida, não se
encontrando uma resposta sobre a necessidade do Direito Penal para o caso,
assim como está dificultada a verificação da aptidão do bem jurídico em receber a
proteção penal.
67 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 129.
É bastante elucidativa a lição da obra O Princípio da
Proporcionalidade no Direito Penal, que se transcreve:
A especial atenção que deve ser dada à finalidade do intervento punitivo do Estado encontra-se relacionada, então, com a necessidade de que sejam evitadas leis que se mostrem difíceis de serem aplicadas, ou que sejam aplicadas apenas aleatoriamente. Isso se dá uma vez que a aplicação aleatória de uma norma faz com que a sensação de segurança da comunidade não seja seriamente ameaçada pela conduta incriminada; o índice de aplicação da norma fornece, assim, a indicação de relativa prioridade entre as várias formas de condutas incriminadas68.
Decorre disso entender-se que normas incriminadoras não devem
ser utilizadas para condutas que apenas se apresentarão de forma aleatória ou
esporádica, pois estão fadadas à não aplicação, ainda porque, em razão da
pouca importância os imputáveis por sua violação ficarão impunes, e tal
impunidade, ao mesmo tempo, poderá justificar práticas arbitrárias por parte dos
encarregados da persecução penal, insatisfeitos pela sua falência. Mariângela
Gama de Magalhães Gomes, sob a lição de Herbert Packer, enumera os efeitos
prejudiciais da inidoneidade presente em tipos perigo abstrato, a saber: –
descrédito da lei quando se sabe que um fato é considerado criminoso, contudo é
praticado sem a pertinente punição; – possibilidade de abuso pelo órgão
executivo de arbitrariedades para aumento do índice de aplicação da lei; –
fomento de discricionariedade na escolha dos objetivos criminais; – e práticas
arbitrárias estimulantes da sensação de exclusão daqueles que se consideram
vítimas69.
A dificuldade de aplicação do crime de perigo abstrato é um fator de
problemas ao Direito Penal, já que esta deficiência coloca em xeque a pertinência
preventiva da norma.
A própria vaguidão dos referidos crimes, torna-os de difícil
percepção ou elucidação. Ilustra bem o exemplo do Arremesso de Projétil, crime
de perigo abstrato, previsto no artigo 264 do Código Penal, no qual a lei pune a
simples conduta que coloca em perigo a integridade das pessoas. O autor apenas
responderá pelo crime, se acidentalmente for surpreendido durante sua prática,
68 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 134 e 135.
podendo ter o hábito diário de o fazer sem conhecimento de outrem. A concretude
do perigo ou dano em si não se faz de demonstração necessária. É de se
perguntar: quantas pessoas o fazem diuturnamente sem contudo serem
responsabilizadas?
Trazendo a exemplificação para o campo do Direito Penal
Econômico, coloca-se em análise o crime do artigo 3º da Lei dos Crimes Contra o
Sistema Financeiro Nacional, n.º 7.492/86, que incrimina a conduta de: “Divulgar
informação falsa ou prejudicialmente incompleta sobre instituição financeira”,
punindo-a com reclusão de dois a seis anos e multa. Trata-se de crime de perigo
abstrato70, que se perfaz com a mera propagação de notícia inverídica ou
perigosamente incompleta, sem se exigir o real prejuízo à instituição ou investidor
ou sequer a aptidão para colocá-los financeiramente em perigo. Nota-se que não
só as notícias com suficiência para interferir na saúde financeira se amoldam ao
tipo em estudo, mas qualquer outra notícia (falsa ou prejudicialmente incompleta)
independente de sua robustez para desestabilizar a atividade econômica que,
diga-se de passagem, é o objeto jurídico do crime. Melhor teria andado o
legislador se exigisse para o tipo, no mínimo o perigo em concreto, abrangendo,
assim, somente as condutas com potencial negativo.
Na forma do perigo abstrato, o artigo 3º da Lei 7.492/86 se mostra
inadequado, inapto e desnecessário a oferecer proteção ao bem jurídico:
estabilidade financeira. Por certo, várias são as condutas que se amoldam ao tipo
em tela, e não chegam a sofrer qualquer efeito do jus puniendi estatal, vez
passarem desapercebidas em razão de não ter tido o condão sequer de ameaçar
em oscilar o Sistema Financeiro Nacional. Para que a criminalização então? A
conduta prevista em seu viés abstrato, aleatório, se mostra inidônea para a
proteção do bem jurídico. Nesse caso, o Direito Penal incidiu, porém não
alcançou a finalidade proposta, dentro de uma relação de adequação entre meio e
fim, justamente pela inidoneidade do meio.
69 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 135.70 Assim o classifica Luiz Regis Prado em sua obra Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, no que é corroborado por José Carlos Tortima, na obra Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional . Uma contribuição ao estudo da Lei 7.492/86. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
Outra nuance que merece destaque é que, pelo Princípio da
Idoneidade, procura-se evitar que criminalizações produzam efeitos negativos
indesejados ao mesmo ou outros bens jurídicos na sociedade. Deve haver uma
ponderação na escolha de condutas, de modo a se evitar que ao se proteger um
bem jurídico, indivíduos sejam impulsionados a situações contraproducentes a
outras qualidades de bens jurídicos ou até ao mesmo bem que inicialmente se
queria proteger. Ocorrendo o negativo efeito, o mecanismo punitivo mais uma vez
se tornou inidôneo, pois provoca danos ao indivíduo e à sociedade,
desproporcionalmente maiores do que os benefícios advindos da incriminação,
enfatizando que deve haver uma “ponderação entre a restrição à liberdade que
vai ser imposta (os custos disso decorrente) e o fim perseguido pela punição (os
benefícios que se pode obter). Os bens em conflito devem ser sopesados”71.
O exemplo clássico da criminalização do Aborto em nosso país
traduz bem o exposto. Ao invés de produzir uma real proteção do bem jurídico,
vida do nascituro, acaba por empurrar as gestantes à clandestinidade, deixando
perigosamente exposto o bem jurídico, vida e saúde da gestante. Assim, também
as implicações sociais de uma previsão incriminadora devem ser levadas em
conta na aplicação do valoroso Princípio da Idoneidade.
Num panorama, no qual a necessidade de proteção de bens
jurídicos choca-se com as garantias de liberdade do ser humano, o Princípio da
Idoneidade se mostra como instrumento de balizamento da justiça na criação e
aplicação da norma incriminadora.
3.3 Ausência de legitimidade das leis penais
71 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal – Parte Geral – Introdução. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 107.
A limitação ao jus puniendi, pelos princípios constitucionais, é
constatação que, atualmente, não mais pode ser afastada na elaboração e
operação do Direito Penal. Os princípios constitucionais acima destacados, assim
como os demais (Intervenção Mínima, Fragmentariedade, Subsidiariedade,
Legalidade, Dignidade Humana), são de observância obrigatória, tanto na
atividade legislativa, como na judiciária a posteriori.
Acredita-se que a legitimação do Direito Penal se pactua a seus fins.
Justamente os princípios evidenciam a ligação do real à aplicação da lei e estes
agem no âmbito concreto do Direito Penal, e, sua observância pressupõe a
adequada aplicação deste direito. A questão da legitimação se apoia nas bases
em que se fundamenta o Direito Penal. Assim manifestou-se Juarez Tavares ao
prefaciar a obra de José Carlos Tortima:
A legitimidade não é apenas assunto de governo, nem mesmo de forma ou do modo de confecção das leis, senão da sua racionalidade, em confronto com os preceitos da ordem jurídica. Uma lei pode ser votada corretamente pelo Parlamento, preenchido este segundo o modelo democrático e pluralista do processo eleitoral e assim mesmo ser ilegítima e, portanto, inválida. Basta que contrarie os princípios fundamentais que dão base e sustentação a esse mesmo Estado democrático. A questão da legitimidade, portanto, não é uma questão puramente de forma. É uma questão de fundamento72.
Pode-se constatar que a legitimação dos fatos criminosos pelos seus
destinatários passa, necessariamente, pela obediência aos postulados extraídos
dos princípios, lembrando que esses servem como instrumentos de compreensão
da norma, pois lhe dão a humanização necessária. A fixação da incidência dos
princípios no mecanismo jurídico-penal é meritória para garantir a limitação ao jus
puniendi e afiançar que a operação penal atue com regras pré-estabelecidas e
também com outras “regras” por vir, dentro de uma adequação às condições
específicas, verdadeiras e humanas.
É necessária uma “fundamentação antropológica”, consistente em
que o Direito Penal somente será efetivo, legitimado e reconhecido, se valorizar o
ser humano, servindo-o. Não é possível a compreensão do Direito Penal senão
pela resposta à “pergunta antropológica” sobre o sentido e o limite deste em
relação ao homem. Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli defendem
que o “o quê?” do Direito Penal não pode ser resolvido senão pelo “o quê?” do
homem em sociedade e acrescentam:
A resposta às perguntas fundamentadoras não pode estar na lei nem darem-se por respondidas com a lei, porque a lei penal não pode criar o homem, e sim reconhecê-lo como é, em maior ou menor medida. Se a lei penal quer regular ações do homem, não pode “inventar” o homem. Daí ser necessário, quando se trata da aplicação da lei penal, fundamentar o jurídico no antropológico na tarefa de explicitação para a aplicação – que é a dogmática -, mas carece de sentido buscar o antropológico a partir do texto legal73.
A lição leva ao entendimento de que a existência do Direito Penal se
justifica na medida em que serve ao homem, afiançando sua existência e
coexistência em relação aos demais membros da sociedade. Fora de tal
característica garantidora, o Direito Penal não se efetiva. Pode até vigorar e surtir
efeitos – às vezes negativos – mas não se efetiva. Empregada sem fundamento
antropológico, a lei penal passa à garantia de coisas, instrumento para resolver
deficiências sociais ou pura demonstração de poder estatal. É o ensinamento:
O pensamento penal que encobre o homem, que se afasta de sua imagem, acaba perdendo-se, porque este direito penal deixa de ser útil ao homem, procurando ser “para” as coisas. Quando isso acontece, o direito penal dá um giro para o pensamento primitivo, frequentemente confundindo o sinal com o assinalado. É assim que se pretendem resolver problemas sociais em casos particulares, proibir o que não se pode obter, aumentar irracionalmente as penas para compensar a impunidade etc74.
Pode existir disposição penal não amparada na fundamentação
antropológica, que não se efetiva como direito e não se torna legítima do ponto de
vista material. A falta de efetividade torna o Direito Penal desprovido de sentido,
gerando um efeito negativo na ordem pública e talvez, como resultado, se chegue
à destruição de sua vigência. A deslegitimação dá ao homem a sensação de estar
diante não de um dispositivo penal que protege um bem jurídico e, por
72 TAVARES, Juarez; em prefácio a TORTIMA, José Carlos. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional – Uma contribuição ao estudo da lei 7.492/86. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. xii.73 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2. ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 364 e 365.
conseguinte, serve ao homem, mas de uma imposição descabida, denotadora de
uma manifestação estatal de seu poder75.
A observância dos princípios fundamentadores não se faz
importante tão somente para nortear a atividade legislativa, no momento da
criação de tipos, mas serão imprescindíveis quando for ultrapassada
indevidamente esta fase, quando deverão servir para embasar as decisões
judiciais frente às leis positivadas inadequadamente. Assim, os princípios, nos
dois momentos, têm o condão de legitimar o sistema penal e afirmar a segurança
jurídica, evitando excessos na aplicação da lei.
A criminalização penal econômica, freqüentemente, inobserva os
princípios basilares vistos. É comum a criação de tipos penais econômicos com
abandono das orientações inerentes ao Direito Penal Constitucional, o que acaba
por deixá-los carentes de legitimação. A não atenção ao Princípio da Idoneidade,
ou por outro ângulo, a não justificação dos meios penalmente punitivos em termos
humanísticos e sociais, macula os tipos penais incidindo na falta de sua
legitimação. Nesse sentido é a acalorada lição de Heleno Cláudio Fragoso, citado
e acompanhado por Manoel Pedro Pimentel:
A precaríssima legislação penal dos últimos tempos proporciona, igualmente, material para análise crítica em outros setores, notadamente, em relação ao Direito penal tributário e econômico. Verifica-se que o governo vem lançando mão da ameaça penal indistintamente, num conjunto de leis altamente defeituosas que levam os juristas à perplexidade. Tem-se a impressão que as leis no Brasil são hoje feitas clandestinamente, e, no que tange ao Direito Penal, que são feitas por leigos76.
Essa ausência de legitimação é facilmente observada em tipos
penais de natureza econômica, até porque se vem optando por criminalizar
condutas que servem a propósitos estatais que vão muito além da proteção aos
bens jurídicos relevantes. Passa por bens jurídicos não merecedores, por figuras
74 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2. ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 376.75 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2. ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 366.76 FRAGOSO, apud PIMENTEL, Manoel Pedro. Direito Penal Econômico. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1973, p. 35.
juridicamente irrelevantes e chega, inclusive, a utilização do Direito Penal como
canal ameaçador de garantia a funções estatais (como é o caso da incriminação
“defendendo” a função arrecadatória do Estado).
Ainda que, de alguma forma, o Direito Penal desvirtuado possa
produzir alguma benesse em um ou outro sentido, não se justifica a sua utilização
fora de suas características imanentes, sob pena de se jogar por terra as
garantias granjeadas a muito custo.
É de uma clareza instigante a seguinte crítica de Eugenio Raúl
Zaffaroni e José Henrique Pierangeli:
O direito penal pode tornar-se frustrante porque não garante efetivamente os bens jurídicos, mas só formalmente, que é o que acontece no Estado “gendarme”77. Este direito penal fica sem utilidade, sem um “para quê”, não serve para coisa alguma e termina frustrando e provocando o desejo de “jogá-lo longe”78.
Por essa razão, observa-se um quadro superabundante de
incriminações penais de modo geral, das quais grande parte não é de
conhecimento comum. Especificamente quanto ao Direito Penal Econômico,
convive-se com um número nada aceitável de criminalizações, e o pior, em plena
ascensão. Ressalte-se a dificuldade de sustentar um dos pilares do Direito Penal,
segundo o qual, o desconhecimento da lei é inescusável, tamanha a prolixidade
do legislador.
Tome-se por exemplo a constatação de que, quanto mais preciso for
o bem jurídico, mais favorecida a criação de tipos de dano e quanto mais
indeterminado o bem jurídico, mais se originarão crimes de perigo. Até mesmo
pela característica supra-individual dos bens jurídicos protegidos pelo Direito
Penal Econômico, é freqüente a opção legislativa por tipos de perigo e, não raras
vezes, na modalidade da presunção em abstrato. Como já evidenciado, o crime
de perigo abstrato deve ser evitado, o que não ocorre na realidade, acabando por
se editar incriminações equivocadas, não amparadas nos princípios estudados.
77 Interessante lembrança dos autores aos gendarmes, soldados da força incumbida de garantir a segurança e a ordem pública na França, ao se referirem ao Estado negativamente interventor. 78 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2. ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 376.
Como já se alertou, a criação de tipos penais, desatentamente, pode
levar à impunidade na medida em que as condutas incriminadas não chegam a
causar o impacto social relevante para que as demais pessoas legitimem aquela
figura reconhecendo-a como crime. O Direito Penal, assim, corre o risco de ser
enxergado apenas simbolicamente pela ordem social. Para Renato de Mello
Jorge Silveira, a utilização de tipos casuísticos pode levar à falência da
legitimidade e eficácia real da incriminação, gerando com isso efeitos negativos
ao ordenamento penal como um todo79.
Embora se tenha ao final enfatizado a questão dos indevidos tipos
de perigo abstrato, não são apenas estes os defeitos de criminalização
equivocada em tema de Direito Penal Econômico. No tópico seguinte, serão
analisadas algumas legislações nacionais vigentes, nas quais serão observadas
outras falhas cometidas pelos legisladores quando insistem em afastar novas
incriminações dos princípios penais.
4 DISCUSSÕES LEGISLATIVAS DAS LEIS NACIONAIS EM TEMA DE DIREITO
PENAL ECONÔMICO
79 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 70.
O legislador pátrio, atendendo aos rumos do capitalismo, tem criado
leis em termos penais econômicos, em nome do bom andamento da ordem
econômica, sempre merecedora de proteção nesta atualidade globalizada e ao
mesmo tempo frágil.
Por certo, o Direito Penal deve acompanhar os novos rumos deste
contexto hodierno e atuar onde nunca esteve antes, o que já se evidenciou por
ocasião da análise dos bens jurídicos de qualidade supra-individual.
Contudo, percebe-se que o legislador e como ele o Direito Penal se
perderam em algum ponto deste novo caminhar e, infelizmente, este último
avançou sem a conservação de sua estrutura. Então, o que se tem visto é um
Direito Penal desvirtuado, tanto pelos meios inapropriados, como pelos fins
errôneos.
Assim é que se chega à deslegitimação do Direito Penal
amplamente discutida no tópico anterior, cuja repetição é aqui desnecessária.
Porém, entendeu-se, pela análise de algumas leis nacionais, que criminalizam
condutas penais econômicas objetivando demonstrar que o garantismo e a
legitimação do dispositivo penal que se cria, passam longe das preocupações de
nossos legisladores.
4.1 Lei 7.492/86
Inicialmente cabe esquadrinhar a conjuntura em que foi aprovada a
Lei 7.492/86, para o combate dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional80,
apelidada de Lei dos Crimes do Colarinho Branco. Embora se tenha originado de
um projeto de lei de 1983 – 273/1983 – somente alcançou aprovação e vigência
80 Sistema Financeiro Nacional é o conjunto de instituições monetárias, bancárias, sociedades porações, e do mercado financeiro de capitais e de valores mobiliários, que tem por objetivo gerar e intermediar créditos e empregos, estimular investimentos, aperfeiçoar mecanismos de financiamento empresarial, garantir a poupança popular e o patrimônio dos investidores, compatibilizar crescimento com estabilidade econômica e reduzir desigualdades; assegurando uma boa gestão da política econômica-financeira do país, com vistas ao seu desenvolvimento equilibrado.
após três anos de tramitação. O curioso é que antes do projeto de lei 273/1983,
houve outro, nos mesmos termos, que não conseguiu êxito sequer de apreciação
legislativa. O projeto 273/1983 talvez tivesse o mesmo destino da infrutuosidade,
se não fossem alguns escândalos envolvendo desfalques bancários de grandes
proporções que espocaram a partir de 1984. Daí já se nota a característica
publicista da lei.
Após quase dois anos de estagnação, o projeto de lei 273 de março
de 1983 passou a tramitar até alcançar aprovação em 16 de junho de 1986,
depois da cabível discussão legislativa. Isso já às vésperas do início dos trabalhos
legislativos para a construção de uma nova Constituição Federal. Ainda que sob a
égide da Constituição Federal anterior, a Lei 7.492/86 tinha dever de obrigação
para com os ditames constitucionais limitativos à penalização.
O apelido, “Lei dos Crimes de Colarinho Branco”, por si só merece
censura. A expressão surgiu nos estudos acerca da Criminologia, e
primeiramente utilizada por Edwin Sutherland, no final da década de 30, quando
analisava o crime organizado e a lei seca nos Estados Unidos81. Mais a frente,
serviu para definir aqueles crimes praticados, em determinado âmbito profissional,
por pessoa respeitável e de elevado status social. Por tal motivo, a expressão
somente deve ser adotada a título de apelido irônico82, posto que inadequada aos
princípios modernos de Direito Penal e Criminologia, que não admitem centrar a
criminalização e sua repressão em um determinado tipo de classe social. A
proteção deve ser a um bem jurídico e não por referência à qualidade do agente.
81 FERNANDES, Newton; FERNANDES Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 506.82 Como crítica à fantasia trazida pela lei 7.492/86, sobre a incriminação dos homens de “colarinho branco” se manifestou em apresentação de assaz lucidez o professor Nilo Batista: A lei dos crimes contra o sistema financeiro atua político-criminalmente no plano da alucinação (que muitos estudiosos de Vestido de Noiva chamavam de plano da fantasia) produzindo acusados brancos e ricos. É um serviço e tanto. Desde logo, promove – com os aplausos politicamente corretos da esquerda punitiva – um precioso encobrimento ideológico: negar a seletividade do sistema penal e reforçar, pelo prisma da pena, a igualdade “cidadã”. O branco-rico algemado da primeira página esconde os milhares de algemados negros-pobres de uma página política que tende, no empreendimento comunicacional neoliberal, a substituir a página política; o sistema penal é justo, ainda bem, já que é tudo que restou ao estado. Mas há também outra função, percebida com finura por Raúl Zaffaroni, que é confirmar pelo avesso a mobilidade social vertical: da mesma forma que este branco-rico caiu do topo para a cadeia, negros-pobres também podem ir da favela até o topo, basta acompanhar o Jornal Nacional e dedicar muita atenção aos episódios de Linha Direta”. BATISTA, Nilo. Apresentação à: TORTIMA, José Carlos. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional (Uma contribuição ao estudo da Lei 7.492/86). 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
Pode parecer que a censura exposta seja inútil, mas não o é. A
crítica lançada ao apelido da lei indica que a norma incriminadora deve ser feita
em obediência às razões do Direito Penal, visar a proteger um bem jurídico, como
ultima ratio, quando não reste alternativa, bem como ser imprescindível ao
desenvolvimento “saudável” do ser humano, ainda que por vias indiretas.
Muito se vem discutindo até que ponto o Estado deve intervir no
sistema econômico, tipificando penalmente determinadas condutas, bem como há
questionamentos se o Sistema Financeiro Nacional é bem ou função. Sob o
argumento do Princípio da Intervenção Mínima, grande parte dos estudiosos,
defendem uma reduzida intervenção penal no subsistema econômico. Apesar da
discussão, a Lei 7.492/86 continua vigorando com o propósito de tutelar o bem
jurídico: Sistema Financeiro Nacional.
Entrementes, a lei penal em questão encontra acolhida na doutrina
sob o argumento de que objetiva tutelar juridicamente a higidez e a estabilidade
do Sistema Financeiro Nacional. A criminalização inserida pela Lei 7.492/86 vem
sendo entendida como necessária, tendo em vista o sistema ser o alicerce para a
economia, que por sua vez sustenta todo o Estado e como consequência, sua
existência. Tudo isso ligado intimamente a questões, principalmente, relativas aos
investimentos externos.
Como dito, estes argumentos são encontrados na doutrina, porém
não povoaram as manifestações legislativas sobre a matéria. O projeto de lei
273/1983, apresentado pelo Deputado Federal Nilson Gibson, em 01 de março de
1983, apresentou justificação esvaziada quanto ao bem jurídico a ser protegido.
Também não demonstrou qualquer preocupação de ordem técnica e
constitucional na elaboração dos tipos penais, justificando a nova lei apenas por
motivos de política criminal. Seguem trechos da “Justificação”:
O presente projeto apresenta velha aspiração das autoridades e do povo no sentido de reprimir com energia as constantes fraudes observadas no sistema financeiro nacional, especificamente no mercado de títulos e valores mobiliários. [...] A grande dificuldade do enquadramento desses elementos inescrupulosos, que lidam, fraudulenta ou temerariamente, com valores do público, reside na inexistência de legislação penal específica para as irregularidades que surgiram com o advento de novas e múltiplas atividades no sistema financeiro especialmente após 196483.
83 Justificação do Deputado Nilson Gibson ao projeto de lei do Senado, n.º 273, de 01 de março de 2003. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 25 de março de 1983, p. 1018.
É sob esta justificativa que o projeto de lei passou a ser analisado,
inicialmente pela Câmara dos Deputados. A Comissão de Constituição e Justiça
da Câmara dos Deputados acolheu o projeto 273/1983 como constitucional,
jurídico, de boa técnica e acerto no mérito, sem qualquer ressalva de conteúdo e
apontando apenas pequenas impropriedades de redação.
No parecer da comissão, o máximo que se encontra como referência
ao cerne penal, são expressões tradutoras da preocupação da política criminal. É
o que se extrai dos trechos do parecer:
Trata-se de norma penal, protetora da decência do mercado financeiro e
do bem público. [...] O projeto aborda matéria de grande importância
num tempo de escândalos financeiros. Todo um conjunto de políticas
econômicas e de facilidades para certos tipos de negócios levou à
repetição de falências fraudulentas, de pesadas perdas para o
patrimônio público, sem a responsabilização dos titulares84.
No mesmo rumo, caminhou a Comissão de Economia, Indústria e
Comércio, relativamente ao projeto de lei 273/1983, embora seu relator tenha
lançado uma oportuna observação de prudência aos argumentos de que a nova
lei seria a panacéia contra os “crimes do colarinho branco”, que aqui se
estabelece:
Discordamos do nobre Autor, portanto, como esperamos já ter demonstrado, somente no tocante ao peso aparentemente exclusivo que dá à ausência de legislação específica como causa de tantos crimes financeiros. Cremos, na verdade, que as autoridades econômicas de inúmeros governos e o próprio meio empresarial também possuem parcela relevante de culpa, ao aceitarem sem contestação o mito de que a comoção causada pela quebra de uma instituição financeira é muito maior do que o custo dos recursos públicos destinados à cobertura dos “rombos” deixados por administradores inescrupulosos ou inexperientes85.
84 Parecer do Deputado João Gilberto, relator da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, sobre o Projeto de Lei 273/1983. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 16 de abril de 1985. p.3009.85 Parecer do Deputado Amaral Netto, relator da Comissão de Economia, Indústria e Comércio da Câmara dos Deputados, sobre o Projeto de Lei 273/1983. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 16 de abril de 1985. p.3010.
O Deputado Federal João Herculino ofereceu, em substituição à
Comissão de Fiscalização Financeira e Tomada de Contas, relatório ancorado,
como os demais, exclusivamente em razões de política criminal, perfazendo um
substitutivo ao projeto de lei 273/93, mais rigoroso em termos de penas, com
retirada de algumas tipificações – consideradas repetitivas do ordenamento
vigente – e inclusão de outras. Na justificação desse novo projeto – substitutivo –
se pôde observar uma rasa referência ao bem jurídico tutelado, sem o
aprofundamento necessário para afetar positivamente a motivação das
incriminações:
[...] o Substitutivo sugerido sistematiza as figuras típicas nele registradas,
levando em conta o critério do bem jurídico penalmente tutelado; e, em
função dele, fixa as penas, de modo a preservar a indispensável
coerência que deve existir não só entre a lei especial proposta e o
Código Penal e a legislação complementar em vigor, mas também no
seio da mesma lei. O Substitutivo proposto traduz, no essencial, essa
coerência e visa, corrigindo o paradoxo de que se ressentia o Projeto
original, assegurar a concretização dos objetivos diretores do mesmo,
em defesa do sistema financeiro nacional e da ordem econômico-
financeira86.
Apesar da pequena lembrança sobre o bem jurídico protegido, nada
se disse sobre os princípios do Direito Penal, sobretudo sobre sua idoneidade
para cada uma das condutas pinçadas pelo legislador. Com as mesmas
deficiências foram, o projeto de lei e seu substitutivo, apreciados em sessão
plenária da Câmara dos Deputados. Alguns parlamentares ressaltaram que o
ordenamento então vigente poderia punir os criminosos envolvidos nos
escândalos da época, e que tal não se dava por falta de vontade política e não
por falta de um nova lei penalizadora mais específica. É o que se aquilata de
fragmentos da manifestação oral do Deputado Tidei de Lima em plenário,
censurando o caráter publicista de uma lei socorrista dos escândalos então
recentes:
86 Parecer do Deputado João Herculino, relator em substituição da Comissão de Fiscalização Financeira e Tomada de Contas, sobre o Projeto de Lei 273/1983. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 26 de abril de 1985. p.3506.
Sr. Presidente, a urgência fez com que se sacasse do fundo do baú dos
projetos que temos nesta Casa o projeto do Deputado Nilson Gibson,
que foi apresentado aqui, quando as oposições começaram a criticar as
proposições do governo de então, em 1983. Por isso é um projeto
apressado, que carece de maior elaboração. Foi sacado agora para
tentar-se fazer uma cortina de fumaça junto ao caso Sulbrasileiro. Mas é
preciso que esta Casa tenha a responsabilidade e a seriedade de
realmente fazer uma lei que se possa, na verdade, punir os responsáveis
efetivamente – e não apenas punir com a pena de prisão – sem se
esquecer daqueles aspectos financeiros, ou seja, é necessário o
confisco de bens dos implicados e retroajam no tempo as penalidades,
sendo confiscados todos os bens dos descendentes e dos ascendentes
favorecidos com a falcatrua87.
A despeito desse aceno para uma melhor discussão, o projeto foi
aprovado na sessão seguinte da Câmara dos Deputados, na forma do
substitutivo. Foram apresentadas apenas 5 emendas na tramitação daquela casa,
nenhuma delas sobre os temas relevantes aqui em cotejo, sendo inclusive quatro
delas rejeitadas. Foi, então, à redação final para aprovação pelo Senado Federal.
Também o andamento legislativo teve regime de urgência e foi apresentado mais
um substitutivo ao projeto de lei 273/83, com correções de lacunas, inclusões de
modalidades culposas aos crimes, bem como conferindo nomem iuris aos tipos
criminais. Nada de substancial e ainda sem a devida abordagem de análise de
idoneidade de cada uma das condutas para alcançarem status de crimes. Com
uma aprovação rápida e desprovida de debates pelo Senado Federal, do
substitutivo do Senador José Lins, se passou à próxima etapa: a discussão final
na Câmara dos Deputados, que agora deveria decidir entre os dois substitutivos
aprovados nas duas casas, sem possibilidade de modificações de conteúdo.
Terminou-se por aprovar em definitivo o substitutivo do Senador
José Lins, que, indo a sanção do então Presidente da República José Sarney,
recebeu vetos em 10 dispositivos, sendo três deles muito pertinentes, levantando
impropriedades de técnica – dispositivos por demais abrangentes – e afrontas ao
87 Manifestação do Deputado Federal Tidei de Lima durante sessão plenária da Câmara dos Deputados, publicada em 30 de abril de 1985, no Diário do Congresso Nacional, seção I, p. 3632.
Princípio da Legalidade. Curioso partir do Poder Executivo a vigilância dos
Princípios Constitucionais, valendo a reprodução dos vetos:
No art.1º, a expressão “, próprios ou”, porque é demasiado abrangente,
atingindo o mero investidor individual, o que obviamente não é o
propósito do legislador. Na aplicação de recursos próprios, se prejuízo
houver, não será para a coletividade, nem para o sistema financeiro; no
caso de usura, a legislação vigente já apena de forma adequada quem a
praticar. Por outro lado, o art. 16 do projeto alcança as demais hipóteses
possíveis, ao punir quem operar instituição financeira sem a devida
autorização. [...] No art. 8º, a expressão “ou o mercado”, que atenta
contra os princípios constitucionais da liberdade de iniciativa e livre
competição, bem assim contra a norma segundo a qual ninguém é
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Além disso, a expressão vetada é demasiadamente vaga para constar
de norma penal, que deve ser clara e precisa na descrição da conduta
típica. [...] O art. 24, por conflitar com o princípio, consagrado no
parágrafo único do artigo 18 do Código Penal, de que só
excepcionalmente é possível ação praticada sem dolo. Está o dispositivo
em contradição lógica com grande parte dos tipos penais previstos no
projeto. Impossível é conceber a forma culposa na maioria das condutas
sancionadas penalmente88.
Todos os vetos presidenciais foram mantidos já que o Congresso
Nacional perdeu o prazo para apreciação e votação dos mesmos, o que os
confirmou. Encerrando o processo legislativo, mais uma vez, os parlamentares
não deram a justa atenção ao histórico legislativo do projeto de lei 273/1983, que
veio a ser a Lei n.º 7.492/1986, Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro
Nacional.
4.1.1 Dispositivos impróprios da Lei 7.492/86
88 Diário Oficial, Despachos do Presidente da República. Mensagem n.º 252. Publicado em 18/06/1986.
Não causam estranheza as imperfeições da Lei 7.492/86, partindo
do pressuposto do “mal iluminado caminho de sua elaboração”, que culminou em
defeitos de técnica na construção dos tipos penais, supervalorização das penas
privativas de liberdade, desproporcionalidade de penas, omissões relevantes
sobre condutas lesivas ao mercado de capitais e ainda a utilização de alguns
conceitos “exóticos” ao Direito Penal89. Disso se passa a ocupar.
4.1.1.1 Artigo 4º da Lei 7.492/86
Observam-se críticas sobre as expressões “gerir fraudulentamente”
e “gestão temerária”90, muito genéricas, o que se deve evitar ou não usar em
tema criminalizante. Tais expressões são indefinidas e por isso ensejam vigília em
relação a decisões judiciais arbitrárias, com menor inquietude quanto à “gestão
fraudulenta”, já que a modalidade de fraude, explicitada por “fraudulentamente”,
muito já foi discutida no Direito Penal em outro âmbito, o do estelionato. Por
fraude, a doutrina e jurisprudência já se sedimentaram no sentido de que implica
em ardil, enganação, ilusão a respeito de algo que se quer fazer parecer o que de
fato não é.
Embora o artigo 4° da Lei 7.492/86 não exija a ocorrência de
resultado ou especial fim de agir, a partir de uma gestão fraudulenta, não se pode
conceber fraude sem finalidade, e sendo assim, ausência de resultado não
implica em inexigibilidade de intenção na conduta. Deve, sim, estar presente na
conduta uma intenção residente na fraude, contudo, diferentemente do
estelionato, esta, não necessariamente, deve estar voltada para o indevido lucro
patrimonial.
89 TORTIMA, José Carlos. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional (Uma contribuição ao estudo da Lei 7.492/86). 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 1.90 Art. 4º da Lei 7.492/86: Gerir Fraudulentamente Instituição Financeira: Pena –Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa. Parágrafo único. Se a gestão é temerária: Pena –Reclusão, de 2 (dois ) a 08 (oito) anos, e multa.
4.1.1.2 Artigo 4º, parágrafo único da Lei 7.492/86
Em sede de gestão temerária, infelizmente não existem
antecedentes penais que forneçam um caminho seguro, já trilhado, a ser seguido.
Fica a questão na seara da insegurança, sendo que, até o momento, o
entendimento que melhor se apresenta é o que vislumbra temerária a ação do
gestor que arrisca irresponsavelmente em sua administração. Como bem
assevera José Carlos Tortima: “Por gestão temerária deve ser entendida a
atuação potencialmente ruinosa de gestores da instituição financeira, com a plena
assunção dos riscos de tal maneira de agir (dolo eventual)”91.
Vale ressaltar que não se justifica o trato da gestão temerária em
parágrafo inserido ao tipo principal da gestão fraudulenta. Observe-se que se trata
de modalidades de dolos diversos (genérico para a fraudulenta e eventual para a
temerária), bem como suas razões são completamente autônomas.
Ainda sobre as impropriedades do crime de gestão temerária, não se
pode fechar os olhos para o fato de que ao meio financeiro, em dias atuais, já é
inerente uma certa quantidade de riscos. Os mercados financeiro e de capitais
são por sua própria natureza arriscados. Um gestor de instituição financeira tem
implícita em sua atividade diária uma dose de risco. A análise sobre ser certa
conduta ou não arriscada de forma ruinosa e, consequentemente temerária,
reside em linha tênue, restando o campo do caso concreto para soluções, dentro
de uma carga excessivamente subjetiva do órgão jurisdicional.
No âmbito da Teoria da Imputação Objetiva, a questão pode cair em
tema de exclusão da imputação pela ação do agente ter-se realizado dentro da
moldura do risco permitido. Segundo o professor Juarez Tavares:
Devem ser entendidos por risco permitido aqueles perigos que resultem de condutas que, por sua importância social e em decorrência de sua
91 TORTIMA, José Carlos. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional (Uma contribuição ao estudo da Lei 7.492/86). 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 34.
costumeira aceitação por todos como inerentes à vida moderna, sejam social e juridicamente toleradas92.
Ademais, dentro de um contexto econômico e político, em que um
escândalo de corrupção eleva o famigerado “Risco Brasil” a ponto de despencar
bolsas e cessar investimentos, como medir o que é ou não arriscado na direção
de um banco ou outra instituição financeira? O que dizer de um investimento
isolado, altamente arriscado, que gere altos lucros para a instituição e seus
investidores? Poderia ou não ser considerado temerário?
Todas essas questões serão respondidas em julgamentos factuais já
que a lei é mal elaborada, ficando a cargo do julgador fazer a análise do risco
permitido, lembrando que ainda assim terá tarefa extremamente trabalhosa já que
os meandros financeiros, bancários e de valores mobiliários, estão em alta
rotação no acompanhamento das mudanças econômicas mundiais.
4.1.1.3 Artigo 5º da Lei 7.492/86
Este artigo parece ter a pretensão de reprimir um tipo de apropriação
indébita específica quanto a bens custodiados por instituições financeiras93.
Inversamente, pela redação, não se extrai tal intenção, já que não faz referência à
condição dos bens indevidamente apropriados, fazendo parecer que basta ser
agente de instituição financeira para tanto. Assim, pela redação do tipo, qualquer
agente de instituição financeira, que se apropriasse indevidamente de um bem
móvel, qual seja, por exemplo, um carro da instituição, deveria responder às iras
do artigo 5º. Acredita-se que esta não foi a razão da incriminação, pela qual, na
realidade, o legislador desejava reprimir aquele que se apropriasse indevidamente
de bens móveis entregues a instituição financeira para seu mister. Quanto ao
exemplo, o que o agente teria praticado se se apropriasse do carro, seria o crime
de Peculato previsto no Código Penal, ao qual estão sujeitos os funcionários
92 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 285.93 Art. 5º da Lei 7.492/86: Apropriar-se, quaisquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta Lei, de dinheiro, título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio: Pena –Reclusão, de 2 (dois) a 06 (seis) anos, e multa.
públicos de um modo geral. Esclarecedor é outro exemplo do qual lança mão
Guilherme de Souza Nucci:
Não se fala em apropriação ou desvio de bens da instituição financeira, mas de qualquer bem de que tem a posse. Ora, se o administrador tiver a posse de coisa pertencente a funcionário seria crime contra o sistema financeiro nacional? É evidente que não. Logo, deve-se interpretar restritivamente o alcance deste tipo penal. A negociação exige que o direito, título, valor ou outro bem móvel ou imóvel pertença à instituição financeira, a qual dirige de alguma forma. Do contrário, exemplificando, se o diretor vende objeto de quem tem a posse, pertencente a um funcionário, cuida-se de estelionato (art. 171, § 2º, I do CP)94.
Também andou mal o legislador quando se afastou da forma
tradicional da apropriação indébita que prevê a mera detenção para o
perfazimento do tipo, e ajustou no artigo 5º, apenas a prévia posse para a
incidência do mesmo. Valendo da conceituação de posse do Código Civil, e em
nome do Princípio da Legalidade, o melhor entendimento é de que a mera
detenção não induz à posse, sendo conceitos separados, seguindo lição de Luiz
Regis Prado sobre o tema:
De qualquer forma, é imperioso ressaltar que tais termos não podem ser considerados sinônimos, já que verdadeiramente não o são. Se a lei 7.492/1986, por equívoco ou não do legislador, excluiu a detenção, deve ser respeitada, para que não se viole o princípio da legalidade no aspecto taxatividade. Desse modo, não se deve proceder a uma interpretação extensiva, visto que só pode ser ela realizada em benefício do réu e não para estender a configuração típica de modo a incriminá-lo95.
4.1.1.4 Artigo 6º da Lei 7.492/86
Outro grave erro na técnica jurídica da Lei 7.492/86, encontra-se na
redação do tipo do artigo 6º: “Induzir ou manter em erro sócio, investidor ou
repartição pública competente, relativamente à operação ou situação financeira,
94 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 695.
95 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 239.
sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente”. Toma-se por equivocado
o termo “repartição pública”, posto que, considerando-a como local96, não pode
ser induzida ou mantida em erro. Melhor seria se o autor tivesse antecedido a
expressão pelo substantivo funcionários, pois estes sim, podem ser enganados
pelo autor do crime. Frise-se que o Direito Penal não permite uma elasticidade de
interpretação determinando que, na leitura deste artigo, a expressão
simplesmente deverá ser ignorada, pela sua impossibilidade fática.
4.1.1.5 Desproporcionalidade de penas
Os artigos 2º, 4º, 14, 15, 19 (na hipótese do parágrafo único) e 21,
têm previsão de pena por demais rigorosa, em burla ao Princípio da
Proporcionalidade, bastando para tal constatação a sua comparação com outros
institutos da própria Lei 7.492/86 e do Código Penal. Além disso, à exceção do
crime do artigo 21, todos os demais tipos da Lei 7.492/86 são escoimados pela
reclusão. Trata-se de rigor desmedido da lei, que se incompatibiliza com o
ordenamento jurídico vigente e com a moderna Criminologia. Como modelo, serve
o crime do artigo 15 da Lei 7.492/86, que prevê punição de reclusão de dois a oito
anos e multa para quem apresenta declaração falsa de crédito junto à falência ou
liquidação extrajudicial de Instituição Financeira. Trata-se de crime bem
assemelhado ao crime de Falsidade Ideológica, previsto no Código
Penal, e que tem pena de reclusão de um a cinco anos e multa.
Luiz Regis Prado exemplifica com base no próprio artigo 21 – único
punido com detenção – a severidade das penas da Lei 7.492/86:
A segunda delas diz respeito à severidade da pena em termos quantitativos. Enquanto no artigo 307 do Código Penal, figura semelhante à descrita no dispositivo sob análise, como foi visto, a pena é de três meses a um ano de detenção ou multa, no artigo 21 da lei comentada a pena é de detenção de um a quatro anos e multa.
96 Segundo definição encontrada no Dicionário Aurélio Eletrônico, é considerada repartição pública cada uma das seções em que está dividido um órgão do serviço público.
Visualiza-se, claramente, a transgressão ao princípio constitucional da proporcionalidade97.
4.1.1.6 Art. 7º da Lei 7.492/86
“Emitir, oferecer, ou negociar, de qualquer modo, títulos ou valores
mobiliários”, esta é a redação do caput do artigo 7º da Lei 7.492/86. Desde a
edição da lei, a doutrina vem tentado atingir a exata compreensão do termo “de
qualquer modo”, extremamente vago, impreciso, e, desnecessário dizer,
afrontador ao Princípio da Legalidade. A doutrina apresenta como solução para a
má elaboração – num exercício de sanatória exagerada das imperfeições
legislativas, ao invés de simplesmente entender o artigo como inválido por sua
inconstitucionalidade – a interpretação da expressão como norma penal em
branco. Para tanto, a expressão “de qualquer modo” se justifica porque os “títulos
e valores mobiliários, para serem emitidos, oferecidos e negociados, possuem leis
específicas regentes, razão pela qual há dependência do conhecimento dessas
regras para captar quais os modos pelos quais as condutas típicas têm condições
de realização”98.
4.1.1.7 Art. 15 da Lei 7.492/86
Luiz Regis Prado aponta irregularidade no crime previsto no artigo
15 da Lei 7.492/86, que adota a incriminação para manifestações falsas do
interventor, liquidante ou síndico, a respeito de assunto relativo à intervenção,
liquidação extrajudicial ou falência de instituição financeira, sendo irrelevante qual
97 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 328.98 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 699.
a finalidade do autor, “o que significa uma violação ao princípio da legalidade, na
sua vertente da taxatividade”99.
4.1.1.8 Art. 17 da Lei 7.492/86
A redação do tipo penal do artigo 17100, erra tecnicamente quando
utiliza redação prolixa, com desdobramentos de orações, que causam uma
dificuldade extra à interpretação de qual a conduta que se quer punir, correndo
um risco inútil de que a norma seja desviada de seu alcance. Além da
configuração de várias figuras imbricadas, apresenta flagrante erro no inciso II,
quando o legislador utiliza a expressão lucro em sentido vulgar, afastando-se das
noções de Direito Empresarial, quando tinha intenção de mencionar a expressão
dividendos. Assim, deve o operador do direito abster-se da interpretação
extensiva neste caso, e deixar de fora a incriminação da “distribuição disfarçada”
de dividendos, já que apenas a tipificou quanto aos lucros. É o entendimento de
Luiz Regis Prado:
Desse modo, havendo o legislador cometido erro de técnica de redação, ao utilizar o termo lucros, e não dividendos, este sim, o termo correto, propiciou a sua não aplicação, porque o operador do direito deve respeitar o princípio da legalidade, no seu aspecto da taxatividade. Dessa forma, não se pode dar interpretação diferenciada do que está escrito na lei. Os elementos normativos devem estar bem delineados para que se possa bem compreender o alcance da lei penal101.
99 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 291.100 Art. 17º da Lei 7.492/86: Tomar ou receber, qualquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta Lei, direta ou indiretamente, empréstimo ou adiantamento, ou deferi-lo a controlador, a administrador, a membro do conselho estatutário, aos respectivos cônjuges, aos ascendentes ou descendentes, a parentes na linha colateral até o 2º grau, consaguíneos ou afins, ou a sociedade cujo controle seja por ela exercido, direta ou indiretamente, ou por qualquer dessas pessoas: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único: Incorre na mesma pena quem: I – em nome próprio, como controlador ou na condição de administrador da sociedade, conceder ou receber adiantamento de honorários, remuneração, salário ou qualquer outro pagamento, nas condições referidas neste artigo; II – de forma disfarçada, promover a distribuição ou receber lucros de instituição financeira.
4.1.1.9 Art. 22 da Lei 7.492/86
Inaugurando a incriminação de “evasão de divisas” no ordenamento
jurídico nacional, traz o artigo 22102 a tutela das reservas cambiais nacionais, bem
como, num segundo plano, a proteção ao erário público. No parágrafo único, se
estipula a punição para aquele que “a qualquer título, promove, sem autorização
legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não
declarados à repartição federal competente”. O legislador quis abarcar situações
como o superfaturamento de mercadorias importadas, prática que permite ao
importador remeter ao exterior valor além do que realmente deveria pagar pela
mercadoria importada, servindo parte para o pagamento do real valor, mais baixo,
e a parte que sobejar será depositada para o importador nacional, no exterior.
Contudo, mais uma vez pela exegese mal formulada, o tipo não irá
abranger conduta muito assemelhada ao idêntico potencial de dano ao mesmo
bem jurídico protegido. Trata-se do subfaturamento de mercadorias exportadas,
pela qual o exportador nacional em conluio com o importador estrangeiro, simula
venda abaixo do valor real, recebendo o valor inverídico pelas vias legais, com
permanência no exterior, à sua disposição, dos verdadeiros valores que
sobejaram. Pelo Princípio da Legalidade, tal conduta, inversa ao tipo, de “frustrar
o ingresso de divisas no país”, ainda que equiparada à de “promover a saída de
recursos ao exterior”, não se amolda à figura do artigo 22 e seu parágrafo único,
sendo assim, fato atípico aos olhos da Lei 7.492/86. O presente artigo vêm
recebendo reprovação de nomes importantes da doutrina. Observe-se a
expressão de Juarez Tavares, em exame da obra de José Carlos Tortima:
Também é oportuna sua crítica à forma de incriminação contida no art.
22, salientando com propriedade não constituir crime a aquisição ou a
101 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 304.102 Art. 22 da Lei 7.492/86: Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do país: Pena –Reclusão, de 2 (dois) a 06 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.
venda de moeda estrangeira, desde que não o seja para promover-lhe a
saída do território nacional, com evasão de divisas. Este comentário
sedimenta entendimento jurisprudencial de que a simples posse ou o
transporte de moeda estrangeira no país não constitui crime,
caracterizando, portanto, como abuso de poder, todas as apreensões de
moeda estrangeira em poder de seus donos – inclusive em aeroportos
destinados a vôos domésticos – sem a demonstração inequívoca dessa
finalidade. Embora isto pareça claro, a redação legal sempre suscitou
esses abusos, porque não especifica, afinal, o que se deva entender por
evasão de divisas, instituindo um tipo aberto sobre um elemento, na
verdade, puramente simbólico103.
Luiz Regis Prado alerta para outra balda do artigo 22 da Lei
7.492/86:
É de se observar que a pena estipulada é severa, “porque pode alcançar
situações de escassa gravidade penal, como seria o caso do turista
brasileiro que deixa o país, para uma viagem ao exterior, levando
quantidade de moeda estrangeira maior do que a permitida por lei, tendo
entretanto sido lícita a aquisição da moeda. Mesmo a pena mínima,
acompanhada da multa compulsória, será punição exagerada para esse
comportamento, que, segundo pensamos, não deveria sequer ser
incriminado, já que a lei não estabeleceu repressão para a compra e
venda de moeda estrangeira, pelo menos nesta lei de caráter penal104.
4.1.1.10 Excessos de normas penais em branco
A lei sob comentário apresenta excesso de normas penais em
branco, sendo o intérprete remetido à consulta em outros regramentos pátrios o
que dificulta o seu entendimento à vista do esvaziamento de conteúdo. A
necessidade da utilização de normas penais em branco mostra que os temas
103 TAVARES, Juarez. Em prefácio a TORTIMA, José Carlos. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional – Uma contribuição ao estudo da lei 7.492/86. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. xvi.104 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 332 e 333.
abordados guardam laços estreitos com outros âmbitos que não os criminais,
corroborando aqueles defensores de que o Direito Penal não deveria ter sido
utilizado. A lei que se analisa traz normas penais a serem completadas nos
artigos 8,10, 11,12,13,16,20,22,23.
Como observado, alguns artigos da Lei 7.492/86 são eivados de
defeitos significativos, sendo talvez o artigo 4°, por sua imperfeição jurídica, o que
ofereça maior dificuldade de aplicação, com ruinosas ofensas aos princípios
garantidores e bases do Direito Penal. Porém, já se evidenciou que a lei como um
todo já oferece vasta discussão acerca do bem jurídico a ser protegido, com
efeitos relevantes nas decisões em casos concretos. Tal é a preocupação
demonstrada por Juarez Tavares:
Independentemente dos argumentos em favor da proteção das bases
econômicas e financeiras para a consolidação de um Estado
democrático, que parece constituir o fundamento comum, invocado por
todos aqueles que buscam esclarecer o alcance dos dispositivos da Lei
7.492/86, a questão que deve ser colocada é se, efetivamente, será
possível obter-se uma estabilidade dessa base econômico-financeira
mediante o uso de um instrumento repressivo, rotulador e, em princípio,
irracional, que é o sistema punitivo criminal. Parece que no fundo se
pretende compensar a injustiça da estrutura social e econômica com a
irracionalidade no âmbito jurídico105.
De outro lado, demonstrou-se que o esforço hermenêutico para a
melhor aplicação desta lei é intenso, dada a fertilidade de elementos normativos,
normas penais em branco e de termos vagos, condições nada louváveis
principalmente em leis penais. Houve ainda uma imprópria utilização de tipos de
perigo abstrato106, o que também não favorece a lei em tela.
Não se quer discordar que seja necessário algum tipo de mecanismo
de proteção à política econômica do governo, da qual um dos fatores
preponderantes é a saúde do Sistema Financeiro Nacional. A macrocriminalidade,
105 TAVARES, Juarez. Em prefácio a TORTIMA, José Carlos. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional – Uma contribuição ao estudo da lei 7.492/86. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. xi.
106 São tipos de perigo abstrato os crimes dos artigos 2º, 3º e 17 da Lei 7.492/86.
realizada pelos poderosos que têm nas mãos o nosso Sistema Financeiro, é
condenável e deve ser reprimida. Todavia não se pode dar as costas para o
garantismo da lei maior, bem como para os institutos basilares do Direito Penal
pátrio.
4.2 Lei 8.137/90
A Lei 8.137 de 27 de dezembro de 1990 traz previsões
incriminadoras de condutas contra a ordem tributária, econômica e relações de
consumo.
Por meio da mensagem n.º 340, em 28 de março de 1990, foi
apresentado pelo então Presidente da República, aos membros do Congresso
Nacional, o projeto de lei n.º 4.788/90 que deu origem à lei em estudo. A referida
mensagem continha o projeto de lei, bem como a exposição de motivos n.º 88, na
qual os então Ministros da Justiça e da Economia, Fazenda e Planejamento,
explicavam, em quinze parágrafos, os motivos pelos quais a lei se fazia
necessária ao nosso ordenamento jurídico107108.
De início, vale a ressalva de que a exposição de motivos se findou
em apenas quinze parágrafos, não em razão do grande poder de síntese de seus
subscritores – antes o fosse – senão por ausência de conteúdo. Por toda a
exposição de motivos não se vê, em qualquer momento, a menção das garantias
asseguradas ao ser humano. Pelo contrário, é justificada a “nova lei” em
parâmetros políticos sem qualquer referência a um bem jurídico idôneo a ser
protegido, ainda que implicitamente.
Assim, o problema da deslegitimação começa pela particular
proposta da nova lei, que nem começara a ser discutida legislativamente, mas já
apresentava defeitos em sua nascença, como se pode concluir da leitura dos
seguintes trechos extraídos da exposição de motivos:
107 À época o país tinha como Presidente da República, Fernando Collor de Melo, como Ministro da Justiça, Bernardo Cabral e como Ministra da Economia, Fazenda e Planejamento, Zélia Maria Cardoso de Mello.
Em verdade, o objetivo básico colimado, qual seja o de desestimular a
prática criminosa, não vem sendo alcançado, fato esse que tem causado
grandes e irreparáveis prejuízos à fazenda nacional. [...]
Concomitantemente, o projeto busca coibir a prática dos crimes de
abuso de poder econômico, que tanto têm sobressaltado a sociedade
brasileira, com notório agravamento nos últimos tempos, diante da crise
econômica, social e de exercício de legítima autoridade, que propicia,
mormente no campo da atividade econômica monopolizada e
oligopolizada, o florescimento da impunidade dos agentes de tais delitos
(grifos não estão presentes no texto original)109.
Ainda que se acredite que algumas condutas previstas na Lei
8.137/90 merecem, de fato, a repressão do Direito Penal, não se acolhe que as
mesmas possam passar de permitidas a proibidas (ou terem suas penas
agravadas) simplesmente em razão dos “prejuízos à fazenda pública” ou mesmo
em razão da “crise de exercício de legítima autoridade”, nos termos acima.
Onde estão as preocupações com a liberdade do ser humano e com
os princípios reitores do Direito Penal? Não há na exposição dos motivos – que
em tese apresenta a autorização da lei – a definição do bem jurídico merecedor
da proteção, mas apenas frases de efeitos como “...defesa do consumidor,
esmagado pela crescente audácia na prática de tais fatos anti-sociais...” ou “coibir
a prática dos crimes de abuso de poder econômico, que tanto têm sobressaltado
a sociedade brasileira”110.
Seria de se esperar que o legislador corrigisse tais imperfeições
quando da discussão sobre o projeto de lei, durante o longo processo legislativo,
mas não foi o ocorrido em relação à Lei 8.137/90, ou pelo menos não foi o
resultado adequado. Não fosse, aliás, o substitutivo apresentado pelo então
Deputado Federal Nelson Jobim, o resultado teria sido desastroso. É que o citado
108 Mensagem n.º 340, de 1990 do Poder Executivo. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 29 de março de 1990.109 Mensagem n.º 340, de 1990 do Poder Executivo. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 29 de março de 1990, p. 2227.110 Mensagem n.º 340, de 1990 do Poder Executivo. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 29 de março de 1990, p. 2227.
parlamentar foi o relator111 do projeto 4.788/89 apresentado pela Presidência e
realizou diversos reparos no defeituoso projeto de lei original, corrigindo muitas
das imperfeições destacadas por ele mesmo como defeitos de técnica penal e
técnica legislativa, a saber: “ilícitos de forma aberta, adentrando em definições
completamente imprecisas”; repetições desnecessárias de dispositivos já em
vigor; ausência do “necessário apontamento inequívoco do objeto jurídico
escolhido para se tutelar” e excessiva utilização de normas penais em branco112.
Tal substitutivo logrou corrigir muitas imperfeições113 da nova lei e
acabou sendo – após todo o trâmite legislativo – aprovado e se convertendo na
Lei 8.137/90. Porém, conquanto tenha o Deputado Nelson Jobim criticado a
imprecisão do bem jurídico a ser tutelado pela nova lei, não apontou solução
corretiva neste sentido, e ainda que tenha afirmado que “o correto apontamento
do bem protegido ou objeto jurídico penal orienta o legislador no aperfeiçoamento
dos tipos incriminadores; elucida-lhes a substância; e em consequência, ajuda o
aplicador, na interpretação do direito, no caso concreto”, conformou-se com a
tutela “da ordem tributária, no sentido de ordem jurídica pertinente aos tributos,
ordem econômica e as relações de consumo”. Apresenta a seguinte justificativa
para a nova lei: “O que visam às normas contra sonegação fiscal é a satisfação
do tesouro com o recolhimento do Tributo e não o puro apenamento do
infrator”114, afastando-se dos princípios garantidores que aqui se defendem.
Importante ressaltar que o projeto em questão recebeu 26 propostas
de emendas durante o processo legislativo na Câmara dos Deputados Federais
por parte de seus parlamentares. Embora algumas delas tenham versado sobre a
111 O Deputado Federal Nelson Jobim, foi designado pela Mesa da Câmara dos Deputados, em substituição à Comissão de Constituição e Justiça e Redação daquela casa, para ser o relator ao projeto de lei 4.788/89, que após aprovado deu origem à lei 8.137/90.112 Substitutivo ao projeto de lei 4.788/89. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 16 de maio de 1990. P.5012.113 Conquanto o substitutivo do Deputado Nelson Jobim, tenha aperfeiçoado a técnica da redação e imperfeições de ordem jurídica, deixou passar o artigo 18 da Lei 8.137/90, que renumerou artigos do Código Penal, o que foi objeto de incessantes reclamações da comunidade jurídica. Mais tarde, quando da discussão legislativa da Lei 8.176/91, o parlamentar se desculpou pelo erro que deveria ter evitado, e concordou com o reparo do mesmo através desta última, que restaurou a numeração original do Código Penal.114 Substitutivo ao projeto de lei 4.788/90. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 16 de maio de 1990. P.5015.
necessidade da observância dos princípios penais constitucionais115, não foram
suficientes para impedir algumas impropriedades da lei neste mesmo sentido. O
mais grave, é a constatação, nas propostas de emendas, de uma temerária
irreflexão do legislador quanto aos princípios e noções penais que legitimam as
incriminações, ficando as justificativas no campo das vaticinações, muito distantes
da técnica jurídica adequada. Abaixo alguns exemplos:
a) A emenda n.º 02 oferecida em plenário da Câmara dos
Deputados solicitava a inclusão de inciso ao artigo 1º do projeto de lei, com mais
uma hipótese criminalizadora nos seguintes termos: “debitar, na contabilidade
das pessoas jurídicas, despesas de caráter pessoal de seus controladores,
presidentes, gerentes, prepostos, mandatários, administradores ou funcionários.”
A justificativa – se é que poderia ser assim chamada – apresentada pelo
parlamentar- autor, resumia-se em dizer que o objetivo da emenda era a inclusão
da conduta acima, sem nem mesmo uma linha acerca de sua necessidade, ou
idoneidade116.
b) A emenda n.º 06 sugere a inclusão de condutas contra a ordem
econômica sob as seguintes justificativas: – “A simples definição constitucional de
um bem como pertencente à União já o torna de relevância considerável e
indiscutível”; – “Não basta a exibição de comprovante de guia de recolhimento de
impostos nas barreiras de fiscalização para se ter o controle desejado de todo o
ciclo de destinação de tais bens”; – “É com o objetivo de alargar o âmbito de
atuação das autoridades fiscalizadoras e de aprofundar as penalidades aos
infratores em qualquer das fases de sua atuação, que se pretende seja acatada a
emenda ora proposta”; Desnecessário dizer, frente a estas justificativas é que os
princípios da Intervenção Mínima, Exclusiva Proteção dos Bens Jurídicos e
Idoneidade não povoaram a mente do legislador117.
115 Das emendas apresentadas, apenas àquelas do Deputado Gerson Peres apresentaram alguma defesa aos princípios constitucionais e apreciação da técnica jurídica necessária. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 17 de maio de 1990. p.5071 a 5077.116 Emenda nº 2, do parlamentar Deputado Plínio Arruda Sampaio, oferecida em sessão plenária do Congresso Nacional em 20 de abril de 1990. Diário do Congresso Nacional, publicado em 17 de maio de 1990, p. 5071.117 Emenda nº 6, do parlamentar Deputado Marcelo Cordeiro, oferecida em sessão plenária do Congresso Nacional em 18 de abril de 1990. Diário do Congresso Nacional , publicado em 17 de maio de 1990, p. 5072.
c) As emendas de n.º 14, 15, 16 e 17 defendem a criminalização de
condutas de cunho estritamente negocial como cobrar juros altos, cobrar ágio
para vendas por pagamento em cartão de crédito e negar assistência técnica,
trazendo justificativas nos seguintes termos: – “...já ocorre em outros países onde
o consumidor é tratado com o respeito que efetivamente merece”; – “mais um
abuso do poder econômico em flagrante desrespeito aos mais elementares
direitos do cidadão consumidor...”; – “O comércio varejista tem-se utilizado de
artifícios que induzem o consumidor a enganos e sérios prejuízos na aquisição de
bens através de cartões-de-compra ou cartões-de-crédito.” O parlamentar deseja
uma criminalização como prima ratio, extremada, afastada das garantias
constitucionais ao ser humano, bem como desmedidamente interventora e até
inviabilizadora das relações naturais de consumo118.
d) Pela emenda 24, o parlamentar pretendeu que a reparação civil
dos danos causados pelos crimes previstos na lei extinguiria a punibilidade do
réu, caso se desse antes de instaurada a ação penal. Tal possibilidade indica
claramente a utilização do Direito Penal como prima ratio, ao se admitir que os
fatos criminosos nele previstos se resolveriam por completo, após a reparação
dos danos que porventura causassem. A questão em estudo se liga
exclusivamente à compensação dos danos, o que se adequa à esfera cível e não
à esfera criminal, indicando mais uma vez a impropriedade do legislador119.
Dentro da crítica aqui já citada, acerca da utilização do Direito Penal
para suprir função estatal deficiente, se observou, pelo parecer da Comissão de
Finanças e Tributação do Congresso Nacional, que o problema não se mostra
para nossos parlamentares, já que estes consignam no sentido da utilização do
Direito Penal suprindo deficiências de mecanismos governamentais, como denota
o trecho do citado parecer, emitido quando da discussão legislativa sobre a Lei
8.137/90:
A adequada repressão de sonegação fiscal, do contrabando, do descaminho, de corrupção ativa e passiva, da concussão e demais
118 Emendas n.º 14, 15, 16 e 17 do parlamentar Deputado José Carlos Sabóia, oferecidas em sessão plenária do Congresso Nacional em 18 de abril de 1990. Diário do Congresso Nacional , publicado em 17 de maio de 1990, p. 5074.119 Emenda n.º 22 do parlamentar Deputado Ricardo Fiuza, oferecida em sessão plenária do Congresso Nacional em 18 de abril de 1990. Diário do Congresso Nacional , publicado em 17 de maio de 1990, p. 5076.
crimes contra a administração tributária induzem os contribuintes a cumprirem, com maior presteza, as suas obrigações tributárias120.
:
Também a Comissão de Economia, Indústria e Comércio do
Congresso Nacional demonstrou descuido ao não se manifestar sobre as
questões de garantia ao homem, como se extrai das noções abaixo, que
traduzem todo o mérito do parecer:
O desmantelamento da organização da Fiscalização Federal nos últimos vinte e seis anos ocasionado pelo arbítrio e pelo desestímulo causado pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969, em seu art. 196, que vedava a participação de servidores públicos no montante das multas aplicadas, proporcionou, destarte, o meio ideal para que a prática da sonegação fiscal florescesse a tal ponto que, quem recolhia tributos era considerado menos inteligente que a maioria. [...] A proposição de se aumentar o grau de penalidade para os crimes contra a administração tributária, bem como uma ação de cobrança permanente tanto administrativa quanto judicial nivelará a todos nas suas obrigações e evitará eventuais abusos do poder econômico por parte de maus empresários121.
Não obstante, na comissão acima se apresentou um dissidente.
Membro da Comissão de Economia, Indústria e Comércio, o Deputado Afif
Domingos, que discordou do parecer favorável visto, posicionando-se com
veemência em contrário a diversos pontos da lei, muito embora não tenha
conseguido o intento de modificá-la. Ainda assim, valem dois destaques de seu
voto. Primeiramente, o Deputado Afif Domingos disse o óbvio quando apontou
para a impropriedade do projeto de lei 4.788/89, que trazia dispositivos que, em
tese, visavam à proteção do consumidor desnecessariamente, já que estava ao
mesmo tempo em trâmite a discussão legislativa do Código de Defesa do
Consumidor122.
O Deputado questionou também, a respeito da desnecessidade da
utilização do Direito Penal como mecanismo de intervenção da atividade
econômica, nos seguintes termos:
120 Parecer do Deputado Arnaldo Pietro, relator da Comissão de Finanças e Tributação do Congresso Nacional, sobre o Projeto de Lei 4.788/1990. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 30 de maio de 1990. p.5845.121 Parecer do Deputado Manoel Moreira, relator da Comissão de Economia, Indústria e Comércio, do Congresso Nacional, sobre o Projeto de Lei 4.788/1990. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 31 de maio de 1990. p.6072.122 Voto em separado do Deputado Afif Domingos, membro da Comissão de Economia, Indústria e Comércio, do Congresso Nacional, sobre o Projeto de Lei 4.788/1990. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 1º de junho de 1990. p.6154.
Ao invés, pois, de “proteger” o consumidor, o que se busca é amparo aos planos governamentais, cujo eventual insucesso vai, curiosamente, sempre debitado aos agentes econômicos, sobre os quais tais controles são impostos. [...] Daí a necessidade crescente de novas tipificações penais, para ampliar as sanções àqueles que reagem a tais imposições, constrangidos pelas forças do mercado e pelo instinto de sobrevivência123.
Na etapa legislativa seguinte, no Senado Federal, a questão
lamentavelmente não recebeu melhor trato. As discussões se quedaram nos
mesmos termos pouco técnicos da Câmara Federal, resultando em outras 22
emendas ao substitutivo do projeto de lei 4.788/89. A Comissão Permanente de
Constituição e Justiça, da mesma forma que as anteriores, apresentou relatório
que desprezou os princípios de observância necessária para a legitimação do
Direito Penal124. Uma constatação ainda mais grave é de que os Senadores da
República discutiram em sessão plenária não as previsões criminais do projeto,
seus motivos e correção jurídica, mas questões de ordem daquela casa, como
problemas de quorum necessário. Atemorizante a manifestação de um
parlamentar que pugnou pela votação rápida e não retorquida do substitutivo
apresentado pelo relator Cid Sabóia, para que pudessem, então, serem votadas
outras questões até então atravancadas pelo projeto de lei 4.788/89, julgadas
mais importantes, que se colocavam na Ordem do Dia125.
Pela análise das propostas e estudo minucioso das várias facetas da
discussão legislativa – algumas ressaltadas acima – está bem evidenciado que o
legislador, ao tratar da Lei 8.137/90 (PL 4.788/89), seja em seus aspectos de
conteúdo ou de forma, foi movido por apelos sócio-políticos, que não se apoiaram
nas bases sólidas do Direito Penal. Houve, de modo geral, grave descaso aos
princípios imprescindíveis aqui apreciados. Daí se entender que alguns crimes
previstos na Lei 8.137/90 não alcançam a legitimação necessária para sua
123 Voto em separado do Deputado Afif Domingos, membro da Comissão de Economia, Indústria e Comércio, do Congresso Nacional, sobre o Projeto de Lei 4.788/1990. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 1º de junho de 1990. p.6156 e 6157.124 Parecer do Senador Cid Sabóia de Carvalho, relator da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, sobre o substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei 4.788/89. Diário do Congresso Nacional, seção II, publicado em 24 de agosto de 1990. p.4601.125 Ata da sessão plenária da discussão legislativa para discussão em turno único pelo Senado Federal, sobre o substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei 4.788/89. Diário do Congresso Nacional, seção II, publicado em 24 de agosto de 1990. p.4601 a 4615.
aplicação em concreto, sendo dissonantes dos princípios de observação
indispensável.
Com a aprovação, a lei se soma ao ordenamento jurídico, restando
aos cultores e aplicadores encontrar-lhe a melhor hermenêutica. Como não foram
observados os princípios da Intervenção Mínima, da Exclusiva Proteção de Bens
Jurídicos, da Taxatividade e da Idoneidade, na criação dos interventos criminais,
o intérprete tenta localizá-los e/ou adequá-los a estes preceitos, ainda assim. Isso
acaba por determinar o estranho fenômeno de, primeiro, incriminar-se uma
conduta para somente depois, associá-la aos princípios basilares. Ao invés do
correto e inverso caminho, primeiro a justificação com base nos princípios para,
em seguida, chegar-se a um resultado plenamente justificado com a facilitação da
interpretação.
Aqui não se questiona que a ordem econômica, tributária, e as
relações de consumo mereçam o destaque de bens juridicamente protegidos.
Tem-se como certo de que, nesses campos, se apresentam alguns bens de
cunho supra individual, cuja proteção se faz premente. Lesões à ordem tributária
e econômica ensejam um enfraquecimento do Estado em suas ações sociais, que
são garantidas justamente pelas políticas tributárias e econômicas, que, quando
falham, deixam o cidadão em desvantagem social acabando por lhe retirar a
dignidade, lançando-o fora da sociedade livre, justa e solidária, como quer a
Constituição Federal.
Ilustrando a questão vale a apreciação do exemplo de Guilherme de
Souza Nucci:
[...] a invasão a uma tenda, armada debaixo de um viaduto, pode ser
realizada, na prática, por agentes do Estado ou por qualquer outra
pessoa de maneira informal, sem mandado judicial, não conseguindo o
morador impor a sua vontade de manter inviolável o seu precário
domicílio. Por outro lado, ingressar em uma casa, protegida por muros,
em bairro nobre, é atividade complexa, demandando ordem do juiz
competente, que somente será fornecida após a prova da materialidade
de um crime, com indícios suficientes de autoria e a demonstração da
necessidade da diligência. O direito fundamental da inviolabilidade do
domicílio ganha, nesse caso, contornos, verdadeiramente
constitucionais. Do exposto, percebe-se que a erradicação da pobreza e
da marginalização, com reeducação das qualidades sociais e regionais é
obra primordial do Estado, que, para tanto, necessita de recursos126.
A censura é quanto à incriminação de condutas sem a análise dos
princípios ensejadores do Direito Penal, principalmente no pertinente ao bem
jurídico ser idôneo para o recebimento da proteção penal. Esta deve incidir
unicamente como ultima ratio e a discussão legislativa deve obrigatoriamente
passar por tal tema, sob pena de inconstitucionalidade, sendo o que se
apresentou nesse tópico: a deficiência da discussão legislativa.
4.2.1 Dispositivos impróprios da Lei 8.137/90
A lei em questão vigora, proveniente de uma aprovação
tecnicamente inadequada, o que por si só deveria ensejar sua revogação.
Entretanto, a norma atinge seus fins em alguns aspectos, e daí, sua aceitação de
um modo geral. Isto ocorre essencialmente, porque se acaba por buscar uma
justificativa ulterior com base nos princípios que deveriam legitimá-las, ainda que
parcialmente. Assim, a par de dever ser expurgada do ordenamento, já que
nasceu por vias oblíquas, a lei vige e em parte atinge sua finalidade, que a
doutrina acabou por entender como de proteção à ordem econômica, tributária e
às relações de consumo.
Mas, como resultado do aflitivo processo legislativo da Lei 8.137/90,
algumas incriminações e dispositivos merecem críticas, que se passa a avultar.
4.2.1.1 Redação inadequada
Os artigos trazem condutas incriminadas em seus diversos incisos,
sendo precedidas no caput pelas expressões “constitui crime contra a ordem
tributária” ou “constitui crime contra ordem econômica”, demonstrando falta de
técnica de redação jurídica e até certa redundância, já que os artigos já se
126 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo:
encontram inseridos no capítulo “Dos Crimes Contra a Ordem Tributária” e assim
por diante127.
4.2.1.2 Excessos de normas penais em branco
O legislador excedeu-se na utilização de normas penais em branco,
necessitando de consulta a outras regras do ordenamento jurídico, o que esvazia
a lei e acaba por demonstrar que a mesma é intimamente relacionada a questões
principalmente de cunho administrativo, reforçando que o Direito Penal não seria
mesmo adequado aos casos. São exemplos de norma penal em branco na lei em
comento, o artigo 1º em seus incisos II e V; artigo 2º, em seus incisos II e IV;
artigo 6º nas modalidades de todos os seus incisos e artigo 7º, em seus incisos II,
V e IX128.
4.2.1.3 Art. 1º da Lei 8.137/90
Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 584.127 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 593.128 Lei 8.137/90: Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: [...] II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; [...] V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Art. 2º Constitui crime da mesma natureza: [...] II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; [...] IV – deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento; Art. 6º Constitui crime da mesma natureza: I – vender ou oferecer à venda mercadoria, ou contratar ou oferecer serviço, por preço superior ao oficialmente tabelado, ao regime legal de controle; II – aplicar fórmula de reajustamento de preços ou indexação de contrato proibida, ou diversa daquela que for legalmente estabelecida, ou fixada por autoridade competente; III – exigir, cobrar ou receber qualquer vantagem ou importância adicional de preço tabelado, congelado, administrado, fixado ou controlado pelo Poder Público, inclusive por meio da adoção ou de aumento de taxa ou outro percentual, incidente sobre qualquer contratação. Art. 7º Constitui crime da mesma natureza: [...] II – vender ou expor à venda mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as prescrições legais, ou que corresponda à respectiva classificação oficial; [...] V – elevar o valor cobrado nas vendas a prazo de bens ou serviços, mediante a exigência de comissão ou de taxa de juros ilegais; [...] vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo.
Pela redação do artigo 1º da Lei 8.137/90129, é alcançada a
compreensão de que, para perfazer o tipo, deverá haver o elemento subjetivo do
tipo fraudar o fisco, com obtenção de vantagem ilícita de forma permanente, não
sendo suficiente a conduta ocasional de fraudar o fisco, que, embora dolosa, não
seja específica de jamais recolher o tributo ou permanecer na fraude. Tal
interpretação se dá como resultado reparador da indiscutida construção legislativa
afetando à idoneidade do bem jurídico protegido, sendo que somente assim se
conseguirá “evitar que o Direito Penal seja transformado em apêndice inadequado
do Direito Tributário comum, buscando servir de instrumento do Estado para
cobrança de tributos”130.
4.2.1.4 Art. 2º da Lei 8.137/90
No inciso IV do artigo 2º da Lei 8.137/90, encontra-se a curiosa
redação: “deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo
fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de
desenvolvimento;”. Pois bem, o inciso apresenta um excesso de núcleos, já que a
expressão “aplicar em desacordo” já abrange a conduta de “deixar de aplicar”,
demonstrando a superfluidade legisladora, que acaba apenas por dificultar e
complexar a norma.
4.2.1.5 Art. 3º da Lei 8.137/90
129 Art. 1º da lei 8.137/90 Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, ou duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV – elaborar, distribuir, fornececer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
Este artigo prevê crimes próprios de funcionários públicos lesivos à
ordem tributária131. Sob a justificativa da especialidade o legislador resolveu
distinguir o funcionário público que delinquisse em matéria tributária, entendendo
serem suas condutas mais graves do que as dos demais, desejando reprimir
sonegação de tributos. Criticável a opção, vez que, neste caso, não há razão
suficiente a diferenciar as condutas, vez não serem diversas ou de menor grau,
ao desvio funcional em outra seara. Assim agindo, o legislador mais um vez inflou
o Direito Penal sem motivo justo para tanto, já que, em sendo funcionário público,
o agente fiscal já tem por inerência as obrigações qualificadas a todos os
funcionários públicos, estando entra elas, a de zelar pelo sistema de arrecadação
de tributos132. Ademais, as penas a que estão sujeitos os funcionários públicos no
Código Penal são proporcionais, diferentemente das previstas na Lei 8.137/90,
como, aliás, pinça o problema Guilherme de Souza Nucci, na seguinte passagem:
Pena desproporcional: comparando-se a figura do art. 3º, III, desta Lei,
com o art. 321 do Código Penal, que são praticamente idênticas,
observa-se o extremado rigor estabelecido no tipo penal especial.
Enquanto a advocacia administrativa em geral prevê a pena de detenção
de um a três meses, ou multa (infração de menor potencial ofensivo),
ainda quando o interesse privado for ilegítimo (detenção, de três meses
a um ano, e multa), o tipo da Lei 8.137/90 comina pena de reclusão, de
um a quatro anos, e multa. [...] Por acaso, a moralidade da administração
fazendária é superior à exigida dos demais órgãos públicos? Não vemos
sentido algum nisso. [...] Cremos que se pode sustentar até mesmo a
130 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 595.131 Art. 3º da Lei 8.137/90 Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal (Título XI, Capítulo I): I –extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer documento, de que tenha a guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou parcialmente, acarretando pagamento indevido ou inexato de tributo ou contribuição social; II – exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. Pena: – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. III – patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público. Pena: – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
inconstitucionalidade deste artigo, levando-se em conta o princípio penal
da proporcionalidade133.
4.2.1.6 Art. 4º da Lei 8.137/90
Visando a proteger a ordem econômica e inaugurando o tema na Lei
8.137/90, se apresenta o artigo 4º e uma sucessão de incisos – sete no total –
sendo o primeiro deles abarcante de todos os demais que se apresentam como
um sobejo legislativo desnecessário, mais uma vez ressaltando a falta de técnica
do legislador134. Basicamente, os dispositivos procuram o combate da dominação
de mercado e eliminação da concorrência.
Aqui é necessário se abrir uma explanação sobre o CADE –
Conselho Administrativo de Defesa Econômica – autarquia federal que tem a
incumbência de proteger e reprimir as infrações contra a ordem econômica. Ao
citado órgão são reservados inúmeros mecanismos administrativos135 para
combate da dominação de mercado e eliminação de concorrência, como multas,
proibições – de contratação pública, de parcelamento de tributos – cassações e
132 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 452.133 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 614.134 Art. 4º da Lei 8.137/90 Constitui crime contra a ordem econômica: I – abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante: a) ajuste ou acordo de empresas; b) aquisição de acervos de empresas ou cotas, ações, títulos ou direitos; c) coalizão, incorporação, fusão ou integração de empresas; d) concentrações de ações, títulos, cotas, ou direitos em poder de empresa, empresas coligadas ou controladas, ou pessoas físicas; e) cessação parcial ou total das atividades da empresa; f) impedimento à constituição, funcionamento ou desenvolvimento de empresa concorrente. II – formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando: a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas; b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas; c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores. III –discriminar preços de bens ou de prestação de serviços por ajustes ou acordo de grupo econômico, com o fim de estabelecer monopólio, ou de eliminar, total ou parcialmente, a concorrência; IV – açambarcar, sonegar, destruir ou inutilizar bens de produção ou de consumo, com o fim de estabelecer monopólio ou de eliminar, total ou parcialmente, a concorrência; V –provocar oscilação de preços em detrimento de empresa concorrente ou vendedor de matéria-prima, mediante ajuste ou acordo, ou por outro meio fraudulento; VI – vender mercadorias abaixo do preço de custo, com o fim de impedir a concorrência; VII – elevar sem justa causa o preço de bem ou serviço, valendo-se de posição dominante no mercado. Pena: – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.135 Vide Lei 8.884/94 acerca do CADE e penas administrativas.
inscrições de cunho negativo, que atingem a pessoa jurídica com efeito mais
devastador do que as penas criminais previstas na lei a serem aplicadas à pessoa
física responsável. Nenhuma lei penal terá tantos mecanismos repressivos,
eficazes, como os que estão disponíveis ao CADE. Razão pela qual, se conclui
pela desnecessidade do Direito Penal para o número de condutas do artigo 4º,
sendo que melhor seria se tivesse sido reservado apenas para importantes
condutas de significativo potencial ofensivo.
É encomiástica a lição de Guilherme de Souza Nucci, quando
constata a grave discrepância entre as previsões contra a ordem econômica da lei
8.137/90 e as possibilidades do CADE e seus poderes, tanto de punição quanto
de leniência, cujo teor se leva em seguida ao relevo:
Como já mencionamos, descoberto o empresário que, por exemplo,
abusa do poder econômico, promovendo uma das condutas descritas no
art. 4º da Lei 8.137/90, será apenado com dois anos, com sursis,
devendo prestar serviços à comunidade, no primeiro ano do período de
prova.[...]Imaginemos: condena-se o infrator à ordem econômica à
proibição de frequentar lugares, associada à prestação pecuniária
convertida em doação de algumas cestas básicas a um orfanato.
Chegamos ao descrédito do Direito Penal figurante ou fantoche do que
realmente interessa, isto é, engordar os cofres públicos do Poder
Executivo. Note-se o rigor da pena administrativa: no caso de empresa,
multa de um a trinta por cento do valor do faturamento bruto no seu
último exercício; no caso de administrador, direta ou indiretamente
responsável pela infração cometida por empresa, multa de dez a
cinquenta por cento do valor daquela aplicável à empresa, São
montantes nitidamente superiores à punição penal. Não bastasse tal
situação desproporcional, há que se considerar a criação de transações
efetivadas, diretamente, entre o Poder Executivo e o criminoso, longe
das vistas do Judiciário, que implicam em extinção da punibilidade.[...]
Salvemos a credibilidade do Direito Penal, evitando que se transforme
em coadjuvante das atividades do Poder Executivo. Das duas uma: ou
descriminalizamos os delitos contra a ordem econômica e deixamos a
efetiva e eficaz punição – com as transações correspondentes – ao
Poder Executivo ou elevamos as penas dos delitos previstos nos arts. 4º,
5º, e 6º da Lei 8.137/90...136.
4.2.1.7 Art. 5º da Lei 8.137/90
Os crimes previstos no artigo 5º também incriminam condutas que
ofendem a ordem econômica, através do abuso do poder econômico tendente a
dominação de mercado e eliminação da concorrência. A conduta do inciso I:
“exigir exclusividade de propaganda, transmissão ou difusão de publicidade, em
detrimento da concorrência;” poderia ser reprimida com eficiência pelos órgãos
administrativos que regulam a atividade, sendo desnecessária a utilização do
Direito Penal, já que outros ramos do direito poderiam resolver suficientemente a
questão. A mesma solução se aplica às condutas previstas no inciso II, que
tratam sobre variações da prática conhecida como “venda casada”, assim como
às demais previsões, valendo as mesmas digressões do item antecedente.
Debruçando sobre o artigo 5º, ainda se percebe falha no inciso IV,
que prevê clássica conduta de desobediência penal, já tratada pelo Código Penal
e que não deveria receber tratamento diverso do artigo 330 daquele diploma,
principalmente face à grande disparidade de gravidade de penas. Não há
justificativa plausível para a diferença de tratamento, já que ambos sujeitos ativos
descumprem ordem legal de autoridade, não podendo a diferenciação se justificar
apenas no âmbito da “especialidade” de condutas137. Tornando mais sério o
quadro problemático em torno do artigo 5º, se apresenta o parágrafo único138 –
136 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 618 e 620.137 Art. 5º da Lei 8.137/90 Constitui crime da mesma natureza: I – exigir exclusividade de propaganda, transmissão ou difusão de publicidade, em detrimento da concorrência; II –subordinar a venda de bem ou a utilização de serviço à aquisição de outro bem, ou ao uso de determinado serviço; III – sujeitar a venda de bem ou a utilização de serviço à aquisição de quantidade arbitrariamente determinada; IV – recusar-se, sem justa causa, o diretor, o administrador, ou o gerente de empresa a prestar à autoridade competente ou prestá-la de modo inexato, informação sobre o custo de produção ou preço de venda. Pena – detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa. 138 Art. 5º da Lei 8.137/90: [...] Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor
que tem o mesmo sentido do parágrafo único do artigo 1º da mesma lei – como o
dispositivo mais aberrante da lei, pois prevê incriminação para o agente que, não
apenas desobedece a autoridade, mas não o faz no prazo que, aliás, poderá ser
drasticamente reduzido ao alvedrio da mesma. Ofende o Princípio da
Taxatividade e da Legalidade pela imprecisão, sendo desnecessária sua previsão
legal, nos termos já vistos no item anterior. Ainda que o quisessem prever, que os
legisladores ao menos dissessem ”qual é a exigência (ou quais são as
exigências) da autoridade (qual é a autoridade ou quais são os agentes),
estipulando um prazo fixo ou, no mínimo, detalhando qual seria a redução
plausível e em que situações”139.
4.2.1.8 Art. 7º da Lei 8.137/90
Pelas incriminações do artigo 7º da Lei 8.137/90, pretende-se
proteger as relações de consumo, tendo em vista a fragilidade do consumidor,
frente à complexidade do mercado140. A lei em comento teve trâmite simultâneo
complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso IV.
139 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 602.140 Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo:I - favorecer ou preferir, sem justa causa, comprador ou freguês, ressalvados os sistemas de entrega ao consumo por intermédio de distribuidores ou revendedores; II - vender ou expor à venda mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as prescrições legais, ou que não corresponda à respectiva classificação oficial; III - misturar gêneros e mercadorias de espécies diferentes, para vendê-los ou expô-los à venda como puros; misturar gêneros e mercadorias de qualidades desiguais para vendê-los ou expô-los à venda por preço estabelecido para os demais mais alto custo; IV - fraudar preços por meio de: a) alteração, sem modificação essencial ou de qualidade, de elementos tais como denominação, sinal externo, marca, embalagem, especificação técnica, descrição, volume, peso, pintura ou acabamento de bem ou serviço; b) divisão em partes de bem ou serviço, habitualmente oferecido à venda em conjunto; c) junção de bens ou serviços, comumente oferecidos à venda em separado; d) aviso de inclusão de insumo não empregado na produção do bem ou na prestação dos serviços; V - elevar o valor cobrado nas vendas a prazo de bens ou serviços, mediante a exigência de comissão ou de taxa de juros ilegais; VI - sonegar insumos ou bens, recusando-se a vendê-los a quem pretenda comprá-los nas condições publicamente ofertadas, ou retê-los para o fim de especulação; VII - induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária; VIII - destruir, inutilizar ou danificar matéria-prima ou mercadoria, com o fim de provocar alta de preço, em proveito próprio ou de terceiros; IX - vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em
ao da Lei 8.078/90 (intitulada Código de Defesa do Consumidor) sendo vigentes
em datas próximas – a Lei 8.137 publicada e vigente em 27 de dezembro de 1990
e a Lei 8.078/90 publicada em 11 de setembro, mas vigente em 10 de março de
1991 – o que por si só já é reprovável, tendo em vista que o Código de Defesa do
Consumidor deveria encampar todas previsões necessárias em seu próprio texto,
não deixando dispositivos a serem tratados por outra lei, como é o caso do artigo
7º da Lei 8.137/90. Não bastasse, também é reprovável que este último traga
pena mais grave que a dos crimes previstos na Lei 8.078/90. Não obstante, no
pertinente à gravidade da pena, a questão encontra acolhida pela doutrina sob o
argumento de que as condutas relativas ao consumo da Lei 8.137/90, são mais
graves do que aquelas do CDC, porque são mais nocivas à sociedade141.
Apontadas estão as importantes falhas do diploma, que não teve o
merecido tratamento pelo legislador, levando uma gama de dificuldades à
aplicação da lei, merecendo as mesmas digressões amplamente explicitadas ao
fim do tópico anterior.
4.3 Lei 8.078/90
O intitulado Código de Defesa do Consumidor entrou no
ordenamento jurídico brasileiro, em 11 de setembro de 1990, com a publicação da
Lei 8.078/90, com vigência de 180 dias a partir daí. A lei traz previsões legais de
natureza civil, administrativa, processual e penal, sendo esta última a que será
abordada a seguir, em razão de nosso específico interesse.
O Senado Federal, por intermédio do projeto de lei n.º 97 de 1989,
apresentou, para apreciação legislativa, dispositivos protetivos do consumidor,
que posteriormente se concretizaram como disposições da lei em estudo,
sancionadas pelo Presidente da República. O referido projeto de lei, trouxe como
justificativa argumentos muito resumidos acerca da necessidade e importância de
condições impróprias ao consumo; Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa. Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II, III e IX pune-se a modalidade culposa, reduzindo-se a pena e a detenção de 1/3 (um terço) ou a de multa à quinta parte.
sua aprovação, não se distinguindo a preocupação dos legisladores com os
princípios garantistas e limitadores em contraposição às incriminações criadas.
Assim, nos mesmos moldes da Lei 8.137/90, mais uma vez está evidenciado pelo
projeto inicial um legislador que considera a lei, a partir de diagnósticos políticos
sem lastro ao bem jurídico idôneo, ou amarras aos princípios tradicionais do
Direito Penal.
Dessa forma, a deslegitimação da lei se apresenta ainda em sua
proposição nascedoura, que se omite de forma preocupante, ou traz imperfeições
como se perscruta nos trechos mais significativos extraídos da justificativa ao
projeto de lei que segue, em nada tangentes ao Direito Penal:
A Constituição promulgada em outubro de 1988 inscreveu entre os
direitos individuais e coletivos a garantia de que o Estado assegurará a
defesa do consumidor. [...] No entanto, as normas de direito material hoje
existentes são incompatíveis com as necessidades do momento.[...]A
presente iniciativa tem por escopo transformar em projeto de lei a
minuciosa proposta de regulamentação da matéria, lançando assim ao
debate congressual tema de capital importância e que, por imposição da
Lei Maior, está a demandar urgente disciplina normativa142.
Insiste-se que, pela leitura dos trechos apartados não se consegue
alcançar outros motivos que não os de autêntica política criminal para justificar a
ação do legislador. Não é que as relações de consumo não mereçam ser
protegidas em algumas de suas nuances, porém a criminalização prevista
inicialmente no projeto de lei do Senado, n.º 97, não teve qualquer espaço em
suas argumentações de justificação, sendo inadmissível que esta enseje a
possibilidade “legal” de perda de liberdade ou direitos do ser humano,
simplesmente porque “as normas de direito material hoje existentes são
incompatíveis com as necessidades do momento” ou mesmo em razão de ser um
“tema de capital importância” nos termos da citação precedente.
Não há na “justificação” do projeto uma sequer linha sobre a razão e
necessidade da utilização do Direito Penal. Tal motivação – esquecida pelo
141 Neste sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 640.
legislador – até pode habitar nosso raciocínio, as vezes sendo fácil entender por
que foi incriminada determinada conduta, porém, na realidade, deveria estar
demonstrada por expresso, indubitavelmente, nas justificações da legislação, fato
que não ocorreu no caso da presente lei.
De início, foi criada a Comissão Temporária do Código de Defesa do
Consumidor com a incumbência de examinar e emitir parecer quanto aos
aspectos de técnica e mérito sobre o projeto de lei do Senado, n.º 97 de 1989. A
comissão visava a discussão de toda a lei, incluindo os dispositivos
incriminadores, ficando a cargo do Senador Gerson Camata o relatório parcial do
tema “infrações penais”.
No relatório em questão, foram ignoradas por completo as questões
aqui investigadas em tema de princípios e garantias ao ser humano. Limitou-se o
mencionado relator a abordar questões óbvias ou aparentes do Direito Penal e de
política criminal, sem aprofundamento em sua essência, como demonstram os
trechos que seguem:
[...] optou-se pela tipificação das condutas consideradas mais graves no âmbito dos dispositivos de natureza civil e administrativa, de molde a resguardar-se o seu cumprimento. De fato, a norma penal incriminadora de determinadas condutas deve limitar-se a coibir o socialmente danoso, aquilo que, de fato, representa grave potencial lesivo para a sociedade. [...] Os chamados crimes de colarinho branco jamais chegam a ser devidamente punidos pela simples razão de que o legislador tem sido extremamente parcimonioso na definição dos tipos e das penas143.
Em análogo sentido, é a opinião do relator geral extraída do mesmo
parecer, o Senador Dirceu Carneiro, que padece da mesma superficialidade de
seu colega de parlamento, em sua única manifestação acerca das incriminações:
Segundo consenso dos depoentes que integraram a Comissão de Juristas do CNDC, a maior dificuldade para a viabilização dessa abordagem consistiu na inclusão de dispositivo sobre a matéria penal. Todavia, ao optar por tal solução, buscou-se dar sanção às infrações de Direito Civil e Administrativo que fossem mais graves ao consumidor, oportunizando a repressão como ilícito penal144.
142 MAGALHÃES, Jutahy. Justificação ao projeto de lei do Senado, n.º 97, de 02 de maio de 1989. Diário do Congresso Nacional, seção II, publicado em 03 de maio de 1989, p. 1655.143 Parecer n.º 143 de 1989, relatório parcial do relator Senador Gerson Camata, publicado em 10 de agosto de 1989 no Diário do Congresso Nacional, seção II, p. 47 e 48.
A despeito da discussão legislativa do projeto de lei do Senado, n.º
97, que deu progênie à lei 8.078/90, ter sido extensa, escassas foram as
discussões a respeito de seus crimes. Durante todo processo legislativo, foram
oferecidas: 62 emendas dos senadores ao texto original145, das quais 18
versavam sobre as incriminações; 86 emendas ao substitutivo da Câmara dos
Deputados, sendo 20 a respeito dos dispositivos punitivos penais e 267 emendas
ao texto da Comissão Mista do Congresso Nacional146, e destas apenas 53
tratavam dos crimes, demonstrando que o Direito Penal não foi, realmente, o
tema melhor apreciado pelos legisladores pátrios.
Tome-se, por exemplo, a discussão na Câmara dos Deputados. A
maioria das vinte emendas aos artigos incriminadores tratadas durante aquele
trâmite impugnava as penas aplicadas aos crimes, com grave despreocupação
com a legitimação do Direito Penal para as condutas escolhidas. O mais severo
caso era o da emenda de n.º 77, que agravava a pena prevista ao crime de
“deixar de entregar ao consumidor o termo de garantia adequadamente
preenchido...”, sem fundamentar a “justificação” da emenda, aumentando a
máxima de seis meses para dois anos. Pelos preceitos de intervenção mínima e
idoneidade, tal conduta nem mesmo mereceria a condição de crime, que dirá a de
previsão de penalidade tão desmedida.
Prosseguindo na análise das ditas emendas, em apenas duas delas
foram contestadas desnecessárias criminalizações de condutas. Uma combatia a
incriminação da conduta de realizar publicidade sobre produto, sabendo que não
podia sustentar a demanda147, e outra para impedir a amplidão do crime de
cobrança vexatória148. No mais dos casos, não foram percebidos os acurados
exames que, em tese, deveriam existir para a conquista de uma lei aprimorada.
144 Parecer n.º 143 de 1989, relatório parcial do relator Senador Gerson Camata, publicado em 10 de agosto de 1989 no Diário do Congresso Nacional, seção II, p. 07 e 08.145 Para íntegra das emendas, vide Diário do Congresso Nacional, seção II, publicado em 01 de janeiro de 1989, p. 3321 a 3328.146 Para íntegra das emendas, vide Diário do Congresso Nacional, publicado em 16 de maio de 1990, p. 2794 a 2814.147 Emenda n.º 70 oferecida ao projeto de lei do Senado, n.º 97/89, durante a tramitação na Câmara dos Deputados, pelos Deputados Adolfo Oliveira, Gastone Righi e José Lins. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 21 de junho de 1990, p. 7431.148 Emenda n.º 74 oferecida ao projeto de lei do Senado, n.º 97/89, durante a tramitação na Câmara dos Deputados, pelos Deputados Lurdinha Savignon, Lúcio Alcântara, Augusto Carvalho e Maria de Lourdes Abadia. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 21 de junho de 1990, p. 7431.
Certas passagens do processo legislativo chegam a causar espanto,
como a manifestação do Deputado Federal Paulo Delgado, quando em sessão
plenária salientou sua vontade de ver inserido um artigo no projeto que discutia o
“Código do Consumidor”, que trouxesse a proibição a que “o organismo policial
chame de “presunto” os seres humanos que encontram à beira das rodovias”,
vítimas de chacinas, já que tal denominação se dá ao “produto obtido com pernil
de suínos, coxa e sobre coxa de peru” 149. Chega a ser um escárnio à atividade
legislativa tão importante para a valência do Estado Democrático de Direito,
dedicar-se a uma questão diminuta, frente aos gigantescos interesses ainda
carentes de legislação nesta nação.
Igualmente criticável é o parecer do Deputado Federal Joaci Goes,
quando assevera no relatório da Comissão Mista, por ocasião da justificação à
rejeição da emenda de n.º 170, que “a regra básica para os delitos de consumo é
que sejam eles de perigo abstrato, dispensando qualquer dano concreto, seja à
pessoa do consumidor, seja ao seu patrimônio”150. Sobre o assunto, escolhe-se
não repetir todas as críticas já feitas à utilização indiscriminada dos crimes de
perigo abstrato.
Também causa espanto a pressa em algumas fases do caminhar
legislativo, quando legisladores passam por cima de questões que ainda
mereciam melhores discussões, a fim de se evitar imperfeições jurídicas de efeito
negativo ao ordenamento jurídico. É possível encontrar argumentos de
parlamentares, como o ocorrido durante a apreciação do projeto de lei em estudo,
quando um Senador da República apressava os demais, desejando a rápida
tramitação para que fosse desobstruída a votação de outro projeto que, a seu
julgamento, era de maior importância, não sem encontrar resistência entre os
demais. Vale aqui a transcrição do debate:
O SR. PRESIDENTE (Pompeu de Sousa) - Nobre Senador Cid Sabóia de Carvalho, muito a contragosto interrompo o discurso de V. Exª para informar que, sobre esse assunto, já há um acordo firmado e, como temos de votar justamente o Plano de Custeio da Previdência, está havendo um apelo no sentido de que abreviemos a tramitação desse projeto, pois temos de aprovar o Plano de Custeio. Sem ele nada
149 Manifestação do Deputado Federal Paulo Delgado durante sessão plenária da Câmara dos Deputados, publicada em 21 de junho de 1990, no Diário do Congresso Nacional, seção I, p. 7495.150 Parecer do Deputado Joaci Goes, relator da Comissão Mista do Congresso Nacional, publicado em 16 de maio de 1990, no Diário do Congresso Nacional, p. 2801.
podemos fazer. O SR. CID SABÓIA DE CARVALHO – Eu entendo todas essas aflições. Vou concordar com V. Exª e com meus companheiros. Lamento que não haja tempo e lamento também que aqui, no Senado, seja sempre assim. As coisas chegam de tal modo que somos obrigados a chancelar o que não deve se chancelado, a assinar o que não deve ser assinado, a concordar com o que não merece concordância e, pior ainda, deixar de analisar o que deve ser profundamente analisado151.
Mesmo sob críticas – embora poucas – o projeto de lei foi aprovado
neste clima de “urgência burra”, inclusive com a concordância resignada daqueles
que apontaram a impropriedade da precipitação legislativa. Não se quer defender
que não haja qualquer influência de política e interesses para a aprovação ou não
de uma legislação, visto que tais influências são inerentes ao próprio processo
democrático. Espera-se, porém, que as influências políticas se acautelem para
não desordenarem o sistema jurídico em vigor, principalmente em questões
afeiçoadas ao Direito Penal.
O Presidente da República não sancionou integralmente o projeto de
lei do Senado, com as modificações do processo legislativo, vetando 40
dispositivos, vetos estes que subsistiram. Dentre eles, apenas três versaram
sobre interventos punitivos, sendo de interesse o veto ao artigo 62152, por se tratar
151 Manifestações dos Senadores Pompeu de Sousa e Cid Sabóia de Carvalho, durante sessão plenária do Senado, publicada em 10 de agosto de 1990, no Diário do Congresso Nacional, seção II, p. 4153.152 Projeto de Lei do Senado n.º 97/89. Art. 62: Colocar no mercado, fornecer ou expor para fornecimento produtos ou serviços impróprios.
de um dos poucos lampejos de proteção aos direitos do homem, encontrados no
processo legislativo da Lei 8.078/90, muito embora não o tendo sido pelas mãos
do legislativo e sim do executivo, evidenciando que, “em se tratando de norma
penal, é necessário que a descrição da conduta vedada seja precisa e
determinada. O dispositivo afronta a garantia estabelecida no art. 5º, XXXIX, da
Constituição”153.
O que se apura é que, ainda que muito ampliada a discussão
legislativa que precedeu a lei 8.078/90, esta não teve, no âmbito da
criminalização, o devido cuidado com os preceitos penais de observância
imprescindível. É lamentável constatar que houve raríssimas linhas nas quais o
legislador contemplasse o Direito Penal em sua essência de ultima ratio. Não se
viu em qualquer plano a inquietação com a limitação ao Direito Penal, pelos
direitos e garantias do ser humano vivente no Estado Democrático de Direito.
Pena – detenção
de seis meses a
dois anos e multa.
§ 1º - Se o crime é culposo: Pena – Detenção de três meses a um ano ou multa.§ 2º - As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à lesão corporal e à morte.153 Diário Oficial, Despachos do Presidente da República. Mensagem n.º 664. p. 390.
4.3.1 Dispositivos impróprios da Lei 8.078/90
A lei em comento atinge, com certa propriedade, sua finalidade nos
aspectos administrativos, civis e processuais, o que lamentavelmente não se
pode afirmar de sua face criminal, que vige, é verdade, porém maculada por uma
aprovação errônea. O distanciamento de uma lei penal de seus atributos
principais, deveria ser suficiente para sua invalidação. Isto não é que ocorre, já
que assistimos diariamente à edição de normas por motivos distorcidos, e que,
ainda assim, se acomodam no ordenamento jurídico do país. Assim é a
problemática em torno das previsões penais incriminadoras da Lei 8.078/90.
Enquanto isso, resta aos operadores do direito acertar as arestas da
lei – pelo menos as possíveis – buscando uma harmonização tardia, bem como a
elaboração das críticas como aqui se faz.
4.3.1.1 Artigos revogados pela Lei 8.137/90.
Alguns tipos da Lei 8.078/90 foram revogados, total ou parcialmente,
pela Lei 8.137/90, que teve publicação posterior, porém trâmite simultâneo, numa
diferença de apenas dois meses entre elas. Isto demonstra o descuido do
legislador, ao qual já se referiu quando analisada as impropriedades da Lei
8.137/90 (item 4.2.1.8). São os casos dos crimes previstos nos artigos 63, 66, 67
e 68 da Lei 8.078/90.
4.3.1.2 Artigo 63 da lei 8.078/90.
Foi utilizada, para o crime do artigo 63 da Lei 8.078/90, a forma do
perigo abstrato, no qual não se exige a sua comprovação. A simples omissão já
perfaz o tipo. Nota-se pela redação: “Omitir dizeres ou sinais ostensivos sobre a
nocividade ou periculosidade de produtos, nas embalagens, nos invólucros,
recipientes ou publicidade”, que, nem todas as situações concretas terão a
idoneidade para serem consideradas como lesivas ou ameaçadoras ao bem
jurídico, qual seja o direito à informação do consumidor, ou secundariamente, à
saúde ou integridade física.
4.3.1.3 Artigo 63, § 1º da Lei 8.078/90.
Da mesma forma, apresenta inidoneidade o § 1º do artigo 63, que
assim dispõe: “Incorrerá nas mesmas penas quem deixar de alertar, mediante
recomendações escritas ostensivas, sobre a periculosidade do serviço a ser
prestado: Pena – detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses ou multa”. Não é a conduta
descrita alcançada pelo Princípio da Idoneidade, já que o bem jurídico não está
apto a receber a proteção penal. Para tal afirmação, basta a constatação de que a
conduta somente se mostra importante quando descoberta. Quantas situações de
inadvertências acerca de serviços que não chegam ao conhecimento das
autoridades devem ocorrer? Assim, não se pode criminalizar uma conduta que
somente terá reprovação social se descoberta.
4.3.1.4 Artigo 65 da Lei 8.078/90.
O artigo 65154 traz a previsão da conduta de: “executar serviço de
alta periculosidade”, traduzindo-se em expressão por demais vaga, ficando o
154 Art. 65. Executar serviço de alto grau de periculosidade, contrariando determinação de autoridade competente: Pena Detenção de seis meses a dois anos e multa. Parágrafo único. As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à lesão corporal e à morte.
conceito sobre o que é alta periculosidade a cargo do julgador, maculando o
princípio penal da Legalidade. Somando-se, a imprecisão apontada ainda
preceitua o mesmo tipo, uma norma penal em branco, quando adota a expressão
“contrariando determinação de autoridade competente”. Dispõe sobre o assunto o
ensinamento de Luiz Regis Prado:
O texto desse dispositivo é extremamente dúbio, uma vez que permite
extrair de sua redação várias interpretações. De conseguinte, transgride-
se o princípio da legalidade, em sua vertente da taxatividade, que exige
que as normas sejam claras e perfeitamente delimitadas. A infeliz
expressão “alto grau de periculosidade” não permite a identificação
imediata do seu significado, possibilitando, com isso, ampla margem de
especulação por parte do intérprete155.
4.3.1.5 Artigo 66 da Lei 8.078/90.
A imperfeição do artigo 66156 está na extensão das figuras
normativas abrangidas, entendendo por crime a afirmação falsa, enganosa ou
omissão relevante sobre a “natureza, característica, qualidade, quantidade,
segurança, desempenho, durabilidade, preço, ou garantia” de produtos e serviços,
devido á prolixidade e a “técnica legislativa não serem das melhores, com o
emprego excessivo de elementos normativos, prejudicando a clareza e a
determinação típica”157. Como decorrência de sua generalidade, o artigo em
questão pode ter o condão de inibir as técnicas de vendas, já que o vendedor
deverá ter o máximo de cuidado quando enaltecer as qualidades do produto ou
serviço que pretende comerciar, ou mesmo inserir na conduta típica os
155 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 117.156 Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa. § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena Detenção de um a seis meses ou multa.157 PRADO, Luiz Regis.. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 124.
restaurantes do tipo “comida a quilo” cujo alimento fica exposto sem qualquer
informação a respeito de sua natureza, característica e qualidade.
4.3.1.6 Artigos 67 e 68 da Lei 8.078/90
O legislador optou por tratar da publicidade enganosa ou abusiva em
dois artigos, 67 e 68 da Lei 8.078/90158. Há uma duplicidade de tipos penais, com
a mesma abrangência, sendo que um deles apresenta pena mais grave. Para
Miguel Reale Júnior159, existem duas incriminações para a mesma conduta com
penas diversas, entendendo ser um absurdo da lei em comento.
4.3.1.7 Artigo 70 da lei 8.078/90
O intervento punitivo do artigo 70 diz: “Empregar, na reparação de
produtos, peças ou componentes de reposição usados, sem autorização do
consumidor: Pena – detenção de 03 (três) meses a 1 (um) ano e multa”. Ainda
que de menor potencial ofensivo, a previsão parece desmedida, pelo menos no
formato escolhido. Ao se admitir o crime como de perigo abstrato, a incriminação
está esvaziada. Basta analisar um caso, no qual, o prestador de serviços
empregue uma peça usada, cobre o valor justo, e esta desempenhe com
segurança e eficácia seu papel. Qual o bem jurídico ofendido? Nenhum. O
dispositivo merece ser extirpado do ordenamento jurídico.
158 Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena Detenção de três meses a um ano e multa. Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança: Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa:159 REALE JUNIOR, apud PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 146.
4.3.1.8 Artigo 71 da lei 8.078/90
O crime previsto no “CDC”, conhecido como “Cobrança Vexatória”, é
indevidamente complicado e, em virtude de sua má elaboração, interfere de
forma inconveniente nas relações sociais, tornando quase sempre ilegal a
cobrança, instituto natural das relações de consumo160. Em determinados casos
concretos, a previsão criminal acaba por proteger o inadimplente de má fé. Melhor
seria se o tipo fosse mais específico e contivesse expressões como “ameaça
legal” e “coação injusta”, mais adequadas à técnica jurídica já adotada em nosso
Código Penal161. Além disso, a pena desta previsão é exasperada – detenção de
três meses a um ano e multa – principalmente se levadas em conta outras
incriminações muito assemelhadas do Código Penal, como é o caso do Exercício
Arbitrário das Próprias Razões, previsto no art. 345 do CP, que tem com pena
máxima um mês de detenção.
4.3.1.9 Artigo 73 da lei 8.078/90
A conduta de deixar de corrigir imediatamente informação inexata
constante em banco de dados sobre o consumidor, prevista no artigo 73, em
primeiro lugar traz com o termo imediatamente – elemento normativo do tipo –
uma dubiedade desnecessária ao tipo, que somente poderá se resolver no campo
do caso concreto. Não bastasse, o artigo ofende os Princípios da Intervenção
Mínima, Idoneidade e Taxatividade. Vale-se da objetiva, mas abrangente lição de
Guilherme de Souza Nucci, sobre tal deficiência normativa:
160 Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer: Pena Detenção de três meses a um ano e multa.161 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 71.
A situação é constrangedora, sem dúvida, mas não deveria ter-se
configurado em tipo penal incriminador, por ferir o princípio da
intervenção mínima. É mais do que viável a punição de quem não
regulariza o banco de dados do consumidor com medidas de ordem
administrativa, além de poder incidir o direito civil, com o pleito de
indenização por danos materiais e morais162.
4.3.1.10 Artigo 74 da lei 8.078/90
O tipo penal previsto no artigo 74 da lei 8.078/90
admite pena privativa de liberdade, para aquele empresário que deixa de entregar
ao consumidor o termo de garantia adequadamente preenchido e com
especificações claras. Trata-se de uma flagrante ofensa ao Princípio da
Intervenção Mínima, não se podendo conceber que uma simples imperfeição no
emitir de um documento seja suficiente para tornar o emitente em criminoso. Além
disso, a conduta não evidencia o bem jurídico que o legislador quis proteger
nesta lei, qual seja a relação de consumo face à hiposuficiência do consumidor, e
a conduta do artigo 74 certamente não se mostra como merecedora da proteção
penal. Também o Princípio da Taxatividade fora inobservado já que o ilícito
previsto na conduta poderia ser eficazmente remediado em outra esfera,
principalmente a administrativa. Sobre o tema, é a lição de Luiz Regis Prado:
Discute-se também se o artigo em tela deve ser objeto de tratamento
penal ou se basta sua regulamentação pelo Direito Civil ou pelo Direito
Administrativo. Para os adeptos da primeira tese, a conduta ora
analisada é de natureza penal, por se tratar de uma grave infração
contra a relação de consumo. Para aqueles que compartilham do
segundo entendimento, é de se repetir a política adotada pelo legislador
brasileiro, que vem inserindo no ordenamento jurídico medidas de
natureza penal na tentativa de solucionar problemas sociais, atentando
contra princípios fundamentais do Direito Penal, em especial o princípio
da intervenção mínima. De fato, não se pode olvidar jamais que se trata
de matéria penal, submetida de modo inarredável, portanto, aos ditames
162 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 73.
rígidos dos princípios constitucionais penais – legalidade dos delitos e
das penas, intervenção mínima, fragmentariedade, entre outros -, pilares
que são do Estado de Direito Democrático. A sanção penal é a ultima
ratio do ordenamento jurídico, devendo ser utilizada tão-somente para as
hipóteses de atentados graves ao bem jurídico163.
Concluindo, não se observou pelo estudo da discussão legislativa da
Lei 8.078/90, a preocupação dos legisladores, sequer com uma das situações
criticadas acima, fato este que demonstra a fraqueza da legislação sob o ponto de
vista dos direitos e garantias do homem.
4.4 Lei 8.176/91
Logo em seguida à aprovação e vigência da Lei 8.137/90, no início
do ano de 1991, começou a ser discutida a proposta que levaria à Lei 8.176/91,
também criminalizadora de condutas contra a ordem econômica. Segundo
justificativa do Presidente da República, essa se fazia necessária ao país, com
urgência, frente às dificuldades que poderiam advir do conflito no Iraque, a
chamada Guerra do Golfo. Versavam os crimes sobre condutas relativas a
combustíveis, que ,a princípio, deveriam ser inseridas no texto da Lei 8.137/90.
Pela mensagem n.º 36 da Presidência da República, foi submetido
ao Congresso Nacional o projeto de lei n.º 1 de 1991, prevendo algumas
condutas que passariam a ser consideradas crimes, inseridas no artigo 4º da Lei
8.137/90, um novo crime contra o patrimônio autônomo e ainda restaurava a
numeração original do Código Penal, que indevidamente havia sido modificado
pelo artigo 18 da Lei 8.137/90.
Acompanha a mensagem da Presidência da República uma
exposição de motivos, e em ambas as manifestações não se vê a menção de
bem jurídico idôneo a ser protegido, bem como dos princípios penais observados
na elaboração do projeto de lei. As justificativas pelos proponentes da lei se
limitaram a argumentos de que, face à conjuntura o Sistema Nacional de
Abastecimento, embora amparado por normas legais, regulamentares e
administrativas, tinha a necessidade de outras “adequadas à repressão efetiva do
uso indevido de combustíveis”. Segundo o parecer, o abastecimento nacional
estava “prejudicado em razão da ausência de normas legais” que assegurassem,
“com eficácia, a repressão ao uso ou comercialização indevida de combustíveis,
com graves prejuízos à ordem econômica”164.
Tais argumentos não poderiam convencer se encarados sob um
ângulo garantista, já que é cediço que não se pode criminalizar sob a fraca
pretensão de corrigir rumos administrativos que se perderam. E neste caso,
perdidos por uma situação conjuntural temporária, tornando ainda mais
gravemente equivocadas as novas incriminações. Mesmo sob esta reluzente
obviedade o projeto seguiu, até se tornar a lei sub examem.
Em 24 de janeiro de 1991, foi designado o Deputado Bonifácio de
Andrada para proferir parecer sobre o projeto de lei n.º 1/1991, em substituição à
Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, tendo o mesmo concluído
favoravelmente, modificando o teor apenas no tocante à redação dos tipos
incriminadores, que tratavam de norma penal em branco e remetiam a normas
administrativas. Segundo ele, deviam passar a ser remetidas à lei específica.
Resumiu-se nisso a manifestação do relator, que embora tenha abordado
princípios constitucionais, também não entranhou na pesquisa sobre a
necessidade da utilização do Direito Penal ao caso165.
Apresentado o parecer, o projeto de lei nº.1/1991 recebeu quatro
emendas enquanto na Câmara dos Deputados, não denotando qualquer
preocupação com a validade da norma sob o ponto de vista constitucional do
Direito Penal. As inquietações dos parlamentares a respeito do projeto se
restringiram a questões puramente políticas, sendo conveniente a apreciação em
separado daquelas excêntricas:
163 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 178.164 Mensagem n.º 36, de 1991 da Presidência da República. Diário do Congresso Nacional, publicado em 23 de janeiro de 1991, p. 332.165 Parecer do Deputado Bonifácio Andrada, designado em substituição à Comissão de Constituição e Justiça e Redação da Câmara dos Deputados, sobre o Projeto de Lei n.º 1/1991. Diário do Congresso Nacional, seção I, publicado em 25 de janeiro de 1991. p. 15225.
a) Pela emenda n.º 02, o Deputado Genebaldo Correa pretendeu
amenizar a incriminação da utilização indevida de gás liquefeito de petróleo
(GLP), para fins automotivos, previsto no artigo 1º, XIX, do projeto de lei, sob a
argumentação de que tal tipificação penal promoveria um problema social na zona
rural nordestina, onde era comum a utilização do gás como combustível para
veículos. Isto seria uma dificuldade extra para aqueles sofridos agricultores.
Melhor seria que o parlamentar discutisse a legitimidade da
incriminação diante de todos o personagens da vida brasileira, contestando a
incriminação sobre o ponto de vista de sua idoneidade para ser considerada
crime. Também deveria cogitar sobre o bem jurídico que se queria proteger. O
que talvez autorizasse uma intrusão estatal punitiva, seria a tutela da vida daquele
que movia seu veículo com combustível impróprio, se demonstrada sua
perigosidade. Mas não é o que pretendeu a lei, pois se justificou a pretexto de
proteger o bem jurídico, “ordem econômica”, ou mesmo “o abastecimento
nacional”, que estranhamente só passaram a importantes diante de uma guerra
distante e próxima ao mesmo tempo. Perdeu boa oportunidade o deputado.
b) Foi também proposta a emenda aditiva de autoria do Deputado
Federal Roberto Jeferson, justificada pelo Deputado Gastone Righi, com o pleito
de inserção de outro artigo, que tornaria a lei em discussão uma lei temporária,
com duração transitória, pelo período da Guerra do Golfo Pérsico. Desnecessário
argumentar quão temerária ao ordenamento jurídico pode ser um norma penal
temporária ou excepcional. O raciocínio da emenda só corrobora na
demonstração, mais uma vez, de que a criminalização que se pretendia era
desnecessária, podendo se resolver, com melhor eficácia, por outros campos do
direito.
Após discussão das emendas, o próprio relator, Deputado Bonifácio
Andrada, apresentou substitutivo ao projeto de lei n.º 1/1991, que passou a tratar
das incriminações não como dispositivos a serem acrescentados à Lei 8.137/90,
mas a serem tratados em lei autônoma, já que entendeu melhor, dar guarida à
emenda dos parlamentares, conferindo aos dispositivos a temporariedade
proposta.
No processo legislativo desta lei, felizmente, houve o que elogiar,
sendo as manifestações não acolhidas do Deputado Federal Antônio Mariz, que
ainda assim merecem destaque, até pelo ânimo que confere, após tantas
constatações negativas:
Sr. Presidente, votarei contra a aprovação deste projeto porque não se pode considerar crime qualquer fato que desagrade, que aborreça os tecnocratas. A conjuntura internacional, mais do que isto, a conjuntura nacional faz com que se penalizem de forma draconiana fatos que não merecem medidas senão de ordem administrativa. [...] me parece que não se justifica definir estes atos como crimes, atribuindo-lhes pena muito elevada. [...] São infrações de ordem administrativa que devem estar restritas ao campo administrativo. Registre-se ainda o fato de que o Governo pretende alterar uma lei publicada no dia 27 de dezembro de 1990. É um descaso, um menosprezo ao Congresso Nacional e às suas decisões. Como pode uma lei ser publicada e quinze dias depois ser alterada, para que no elenco dos crimes ali previstos se incluam novas modalidades criminais? É um desaforo. Por isso, o Congresso Nacional está no dever de rejeitar esta proposição. As modificações ao substitutivo propostas pelo redator estão cheias dessas intenções de resguardar, como disse, os princípios do Direito Penal. E, mais, as regras do bom senso. Não se justifica que aprovemos o substitutivo, porque nos termos propostos pelo relator essa lei terá vigência de seis meses. E dentro desse prazo, para citar uma hipótese, os veículos que circularem utilizando gás liquefeito no interior, na zona rural terão de regularizar sua situação perante a autoridade competente no prazo de dois meses. É uma exigência burocrática para uma lei que vai viger durante seis meses. Se a lei não tem objetivo, se não se justifica, se os fatos não caracterizam doutrinariamente um crime, que nós rejeitemos esse projeto liminarmente166.
Lamentavelmente o alerta do Deputado Antônio Mariz não alcançou
aos demais parlamentares que aprovaram, na Câmara dos Deputados, o
substitutivo ao projeto de lei n.º 1/1991, que seguiu para apreciação junto ao
Senado Federal, onde não teve melhor sorte, permanecendo as discussões em
termos político - criminais Embora tenha sido apresentado novo substitutivo no
Senado Federal, este não alterou de forma significante as incriminações, atendo-
se, principalmente, à redação das normas penais em branco, substituindo a
expressão “em desacordo com o estabelecido em lei específica” pela expressão
“em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei”. Um retrocesso,
frente ao alongamento do conteúdo da norma, incluindo atos administrativos do
Poder Executivo.
No mais, o trâmite no Senado recebeu apenas quatro propostas de
emendas, sem maior relevância ou argumentos quanto à necessidade da lei
166 Manifestação do Deputado Federal Antônio Mariz durante sessão plenária da Câmara dos Deputados, publicada em 26 de janeiro de 1991, no Diário do Congresso Nacional, seção I, p.15258.
penal, permanecendo as discussões em âmbito político e leigo, como se observa
neste trecho do relator do projeto, no Senado, que bem retrata a tônica do
caminho legislativo equivocado em suas justificativas:
Neste sentido, é inegável que um país como o nosso, que importa cerca
da metade de suas necessidades de petróleo, tem de se acautelar,
fazendo uso, no mínimo, de medidas de racionalização do consumo de
combustíveis, para não se ver, repentinamente, colhido por alterações
substanciais no mercado petrolífero167.
Aprovado o substitutivo do Senado e devolvido à Câmara dos
Deputados, este foi confirmado, indo à sanção pelo Presidente da República, que
vetou justamente a questão mais discutida pelos parlamentares, a transitoriedade
da lei. Posteriormente o veto foi mantido e, por isso, até a presente data, a lei
8.176/91 está em pleno vigor.
4.4.1 Dispositivos impróprios da Lei 8.176/91
O que dizer de uma lei que teve suas bases, a princípio, como
complemento à outra – escandalosamente recente – e em seguida passou a ser
tratada como lei autônoma, em face da necessidade de ser temporária, e assim
acabou se tornando independente, porém sem prazo de vigência. Uma breve
análise do trâmite certamente confere uma aparência de confusão legislativa, e
isto, com suficiência, conduz a uma válida noção de impropriedade da Lei
8.176/91. Porém outros defeitos corroboram sua censura como se vê mais
detidamente a seguir.
4.4.1.1 Excessos de normas penais em branco
A utilização de normas penais em branco, como se manifestou
anteriormente, não se mostra saudável em Direito Penal, em face da falta de
segurança que induz. Ao prever normas incriminadoras em aberto, os
responsáveis pela Lei 8.176/90 o fizeram da pior forma, pela expressão utilizada:
“em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei”. Significa que, para
perfeição do tipo penal, é necessária sua integração a outros dispositivos, extra-
penais, que não necessariamente sejam leis, podendo ser resultantes, inclusive,
de atos administrativos. Este tipo de permissão é temerária ao Direito Penal, que
está ferido em seu Princípio da Legalidade. No campo factual, ficam os julgadores
dentro de um subjetivismo incumbidos de filtrar qual a norma válida ou não para o
perfazimento do crime, o que não é trabalho fácil. Para ilustrar se atente para a
jurisprudência reproduzida:
Crime contra a ordem econômica – Gás liquefeito de petróleo – Gás de
cozinha – Revenda – Tabela de Preços – Lei 8.176/91 – Norma penal
em branco – Regulamentação – Departamento Nacional de Petróleo –
Portarias n. 04/92 e 176/91 – Absolvição – Enquanto não promulgados
provimentos legislativos que complementem o conteúdo da Lei 8.176/91,
o ato de revender gás liquefeito de petróleo ou gás de cozinha por
preços superiores aos de tabela não comportam condenação por
quaisquer das condutas típicas descritas no art. 1.º, I, do diploma citado,
uma vez eu este detém a natureza da norma penal em branco e está a
exigir regulamentação em forma de lei, afigurando-se temerário estribar
o decreto condenatório em meros decretos ou portarias expedidos pelos
Conselho Nacional de Política Energética, pela Agência Nacional do
Petróleo, pelo extinto Departamento Nacional de Combustíveis, ou pelos
demais órgãos do Poder Executivo. A lei 8.137/90 não se presta para
regular a matéria e, em face do princípio da especialidade, a Lei
8.176/91 afasta a aplicação daquela168.
4.4.1.2 Artigo 1º, I da Lei 8.176/91
167 Parecer do Senador José Fogaça, relator da Comissão Representativa do Congresso Nacional, sobre o Projeto de Lei 1º/1991. Diário do Congresso Nacional, seção II, publicado em 31 de janeiro de 1991. p. 90.168 TAMG – 1ª C. Crim. – Ap. 0330993-3 – Machado – rel. Juiz Sérgio Braga – j. 07.11.2001.
A figura típica do inciso I do artigo 1º da Lei 8.176/91169 consiste em
adquirir, distribuir e revender, produtos relacionados ao petróleo, em desacordo
com as normas vigentes. Assim, serve para punir aqueles que fazem mau uso de
tais produtos, sob o ponto de vista do Estado. A idoneidade do tipo pode ser
fortemente constatada pelo conhecimento notório de pequenas revendas de gás
inseridas em bairros de periferia das grandes cidades ou presentes em pequenas
vendas nos povoados das zonas rurais. A conduta não alcança a reprovação
comum. O crime não é necessário ou apto para proteger a um bem jurídico que
mereça tal proteção. As práticas exemplificadas não têm o condão de atingir à
ordem econômica, como quer afirmar a lei. Nem em dias de hoje, nem em dias de
“Guerra do Golfo”.
4.4.1.3 Artigo 1º, II da Lei 8.176/90
Quanto à figura do inciso II do artigo 1º, servem as mesmas
ponderações do item anterior à inidoneidade da conduta , de quem utiliza o gás
para propulsão dos equipamentos de saunas ou mesmo motores de veículos.
A Lei 8.176/1991 é um excelente exemplo da criminalização
publicista e conjuntural, sem lastro nos verdadeiros motivos que devem existir
para autorizar um mecanismo desta estirpe. Para agradar aos reclamos
momentâneos, ou mesmo para se encobrir problemas maiores, são editadas
novas leis, divulgadas como grandes feitos, talvez até prodigiosos. Assim é o
desenho histórico da Lei 8.176 de 1991.
169 Art. 1° Constitui crime contra a ordem econômica: I - adquirir, distribuir e revender derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico, hidratado carburante e demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei; II - usar gás liqüefeito de petróleo em motores de qualquer espécie, saunas, caldeiras e aquecimento de piscinas, ou para fins automotivos, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei. Pena: detenção de um a cinco anos.
Mesmo sem deficiências de estoque petrolífero à vista, decide o
Poder Executivo pela propositura de uma nova lei, mostrando-se atencioso ao
conflito distante. O Poder Legislativo – com raras exceções – compra a idéia sem
demonstrar o menor embaraço de admitir a criação de crimes para combater uma
deficiência de fiscalização e regulação administrativa estatal. O abandono
completo dos Princípios Constitucionais, durante a elaboração da lei, indica com
clareza, a sua imersão na ilegitimidade.
5 INSTITUTOS COOPERADORES À FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL
ECONÔMICO
Como resultado de normas penais mal esboçadas e alinhavadas às
pressas, a exemplo das analisadas no tópico anterior – que infelizmente não
esgotam o rol – surgem questões ou desdobramentos a serem solucionados no
campo prático. Algumas destas questões são resolvidas no próprio âmbito judicial
ou doutrinário pelos estudiosos, que acabam encontrando, após homérico
esforço, soluções de legitimidade para as imperfeições das normas, já que estas,
independentes de seus defeitos, vigoram.
Também o próprio legislador, em sua gana legiferante, produz
subterfúgios, ora através de novas leis para completar as impropriamente
editadas – sob os mais diversos argumentos que nem sempre são os explicitados
– ora por meio de criação ou modificação de institutos tradicionais do Direito
Penal, com a finalidade de potencializar ou abrandar as edições inadequadas.
Ocorrência deste tipo move o legislador, que não satisfeito em criar
mecanismos penais em desvio de finalidade, ainda os reforça, aflorando o caráter
de função do Direito Penal. Por meio de lei, são disponibilizados instrumentos de
barganha as mãos do Estado que passa a exercer, com poder extra, uma
intimidação àquele administrado que não se amolda às suas previsões de ordem
administrativa. É a lição de Rodrigo Sánchez Ríos:
Entretanto, é inegável que os últimos decênios pareçam caracterizar-se
por um desmedido protagonismo do direito penal. A presença excessiva
do direito penal está corroborada num dado irrefutável: a proliferação de
leis penais na pretensa sociedade pós-industrial. As demandas de
controle advindas da “sociedade do risco” suscitam problemas
incontornáveis, induzindo a uma redefinição do direito penal. Perante as
novas exigências de atuação, os mecanismos formais e materiais do
direito penal orientam-se à tutela antecipada dos bens jurídicos supra-
individuais e coletivos, aos uso indiscriminado das normas penais em
branco, de tipos de perigo, a satisfação dos interesses da vítima etc. Os
efeitos dessa orientação confluem no direito penal econômico: as
manifestações da lei penal de ultima ratio se transformam em prima ratio
nas mãos do Estado, procedendo o argumento crítico quanto ao direito
penal possuir atualmente o caráter de “arma política”170.
É o que se deu com a criação de causas de extinção e suspensão
da punibilidade, incidentes sobre os crimes do Direito Penal Econômico, e o
acordo de leniência, institutos bem jovens do ordenamento jurídico brasileiro,
portadores de um fardo de azadas críticas, sobre as quais se passa a debruçar.
5.1 Causa de extinção da punibilidade
170 RÍOS, Rodrigo Sánchez. Das Causas de Extinção da Punibilidade nos delitos econômicos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 33.
O Código Penal traz, a partir do artigo 107, disposições sobre as
causas de extinção da punibilidade, como a prescrição, a morte do agente, a
abolição do fato criminoso, entre outras, todas com o condão de impedir a
aplicação do jus puniendi estatal, caso ocorram. Nenhuma delas se funda na
reparação voluntária do dano pelo agente, tratada no Código Penal, pelo instituto
do arrependimento posterior previsto no artigo 16, premiando aquele que repara o
dano voluntariamente, com redução de pena.
Confirmando sua característica de funcionalidade, a Lei 8.137/90,
além de prever tipos penais destoados dos ditames autorizadores do Direito
Penal, exaltou sua função arrecadatória, quando previu no artigo 14171 a criação
de uma nova modalidade de extinção da punibilidade do agente. Consistia em
que, o agente que se amoldasse às condutas típicas dos artigos 1º, 2º, e 3º, teria
extinta sua punibilidade, se promovesse o pagamento do tributo antes do
recebimento da denúncia.
Com isso, o legislador inaugurou uma nova causa de extinção da
punibilidade, fora dos valores costumeiros do Direito Penal, sendo instituto muito
próximo do arrependimento posterior, porém sem a característica da
voluntariedade, e ainda agraciado não com redução de pena, senão com extinção
da punibilidade.
Por tais nuances, o instituto demonstrou com impudência a
finalidade puramente arrecadatória da Lei 8.137/90. Primeiro se pune com rigor
desmedido certas condutas que, no máximo, mereceriam tratamento no âmbito
administrativo, em seguida se abranda o rigor da lei, concedendo a benesse de se
afastar por completo a previsão legal, se for entregue o objeto de desejo estatal, o
tributo. Como que para disfarçar a indulgência excessiva da lei, permite-se a
proeza apenas até o recebimento da peça inicial da ação penal.
Agravando a questão, o legislador ainda não exigiu para o alcance
da extinção que o agente o faça de forma voluntária, retirando a natureza de
prevenção da norma, pela valoração do fato por seu autor. Decorre concluir que o
Estado fundamenta a causa de extinção da punibilidade pelo recolhimento dos
171 Lei 8.137/90: Art. 14. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1º a 3º quando o agente promove o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.
tributos, em critérios político-fiscais e não sob o enfoque jurídico penal. Aprecie-se
a defesa deste ponto de vista pela doutrina:
Da forma como está regulamentada a extinção da punibilidade no nosso sistema normativo, prevalece o fundamento político-fiscal sobre os critérios jurídico-penais vinculados aos fins da pena. Na prática, torna-se mais vantajoso esperar ser denunciado pelo Ministério Público para então realizar o pagamento, pois basta efetuá-lo para obter este privilégio. In casu, o fim da prevenção geral é desrespeitado e, perante a sociedade, torna-se uma “vantagem” direcionada para determinado estamento social, questionando a própria reafirmação social da norma penal. Idêntica situação ocorre com a prevenção especial, uma vez que não se comprove, em nenhum momento, o retorno à legalidade quando o comportamento reparador é feito coativamente e longe dos moldes exigidos para uma conduta voluntária positiva posterior ao delito172.
A extinção da punibilidade criada pelo legislador pode também gerar
o efeito negativo de desestimular aquele que contribuiu devidamente ao fisco,
podendo levá-lo a escolher pela sonegação, dando-lhe duas opções: se esta for
descoberta, ainda assim não sofrerá as penalidades, porque poderá efetivar o
recolhimento do tributo antes do recebimento da denúncia. Senão, não pagará a
tributação enquanto ficar impune, lembrando que isto é o mais provável já que, os
mecanismos fiscalizadores deixam a desejar. Assim, para que pagar antes, se
poderá pagar depois, com chances até de não fazê-lo?
O art. 14 da Lei 8.137/90 foi revogado em 1991 pela lei 8.383, o que
aboliu a causa sob exame, que, entretanto, ressurgiu através da lei 9.249/95, com
a mesma previsão, vigorando atualmente para os crimes contra a ordem tributária
previstos na Lei 8.137/90. Mais uma vez se está diante da atividade legislativa
confusa e instável, que modifica o ordenamento jurídico sempre que motivos de
ordem política se mostram convenientes. Desnecessário enfatizar que em Direito
Penal isto é odioso.
Ao estipular a extinção da punibilidade para os crimes fiscais, o
legislador demonstra não ser necessária a aplicação da pena, pela ausência de
motivos de prevenção especial ou geral, o que leva à constatação de que as
condutas nem mesmo deveriam ter sido criminalizadas. É inevitável questionar
por que a diferença de tratamento para os crimes fiscais, quando nos demais
172 RÍOS, Rodrigo Sánchez. Das Causas de Extinção da Punibilidade nos delitos econômicos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 156.
crimes a reparação do dano, no máximo, leva a uma redução de pena. Assim,
quem furta uma bicicleta, se arrepende e a devolve, posteriormente, não poderá
usufruir dos mesmos benefícios que um macrocriminoso, responsável pela
sonegação de vultosos tributos.
É uma constatação interessante, ser a Lei 8.137/90 criada dentro de
justificativas de arrocho no combate aos crimes contra ordem tributária. Causa
espanto que, para o agente da criminalidade, comum não é possível o benefício
da extinção da punibilidade pela reparação do dano, mas para o fraudador
tributário sim. O Fisco, enquanto “vítima”, merece a atenção legislativa como
participante na solução do crime, diferentemente das demais vítimas, ainda
esquecidas no trato criminal.
5.2 Causa de suspensão da punibilidade
Na mesma trilha que levou às novas causas de extinção da
punibilidade pelo pagamento de tributo, foi criado o programa intitulado REFIS –
Programa de Recuperação Fiscal – cuja finalidade seria recuperar o pagamento
de tributos, com a renegociação e parcelamento destes. Não parando por aí, a lei
que instituiu o programa, n.º 9.964/2000, previu institutos de natureza penal,
inaugurando uma modalidade de suspensão da punibilidade e reforçando a causa
de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo173.
O agente incluído no REFIS, antes do recebimento da denúncia
criminal, ficará protegido do jus puniendi estatal, configurando uma causa de
suspensão da punibilidade. Cumprindo o ajustado no programa e extinguindo seu
173 Art. 15 da Lei 9.964/2000: É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1.º e 2.º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde que a inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal. §1.º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. §2.º O disposto neste artigo se aplica também: I – a programas de recuperação fiscal instituídos pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, que adotem, no que couber, normas estabelecidas nesta Lei; II – aos parcelamentos referidos nos arts. 12 e 13. §3.º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos
débito, terá então extinta sua punibilidade. Apenas se for excluído do REFIS,
poderá ser processado criminalmente, isto se também não pagar o tributo até o
recebimento da denúncia nos termos da lei 9.249/95.
O agente foi agraciado por duas vezes. Em termos tributários, com
um parcelamento a longo prazo extremamente favorável. Em termos penais, com
a paralisação dos mecanismos estatais de persecução penal.
Servem aqui, as mesmas críticas levantadas em relação à causa de
extinção da punibilidade, com o mesmo desconforto frente a um instituto
claramente político-fiscal, de viés instrumental coercitivo de arrecadação. Rodrigo
Sánchez Ríos acena ser lamentável o “uso político do direito criminal como
instrumento de política interna, no qual a norma penal de ultima ratio do
ordenamento jurídico passa a ser a prima ratio da solução das questões
sociais”174.
5.3 Acordo de Leniência
Outra modalidade encontrada pelo legislador para funcionalizar o
Direito Penal se dá pelo ajuste entre a Secretaria de Desenvolvimento Econômico
e o autor de crime contra a ordem econômica, sugestivamente intitulado de
Acordo de Leniência. Segundo o Aurélio Dicionário Eletrônico, leniência, significa
brandura, suavidade, doçura, mansidão. Trata-se de possibilidade de
abrandamento legal das conseqüências do fato criminoso, inspirado no modelo
norte americano, que objeta estimular o infrator a participar da investigação,
prevenindo ou reparando dano de interesse coletivo contra a ordem econômica.
oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia criminal.174 RÍOS, Rodrigo Sánchez. Das Causas de Extinção da Punibilidade nos delitos econômicos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 144 e 145.
Previsto na lei 8.884/94 (acrescida pela Lei 10.149/00) que trata
da proteção da livre concorrência, está inserido o acordo de leniência nos artigos
35b e 35c175. Em nome da dita proteção, se estipulou uma possibilidade de
composição entre a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e aquele que
confessar ilícito contra a ordem econômica e apresentar provas suficientes para a
condenação dos demais envolvidos na suposta infração, ou mesmo reparar o
dano – quando possível. A justificativa é ganhar o Estado por ter a oportunidade
de formar um melhor processo contra todos os autores do fato criminoso,
desmantelando organizações. Também ganha o agente criminoso que pode ter
extinta a ação punitiva da administração pública, ou redução de 1/3 a 2/3 da
penalidade, no campo administrativo e a não responsabilização no campo penal,
já que está impossibilitada a denúncia.
O instituto foi importado para o regramento jurídico brasileiro sem
as adaptações necessárias, sendo fonte de problemas. Os crimes contra a ordem
econômica, previstos na legislação brasileira, se procedem mediante ação penal
pública incondicionada de titularidade exclusiva do Ministério Público. Nas
previsões sobre o Acordo de Leniência não se inclui o parquet como um dos
acordantes na extinção da punibilidade do agente. Assim, se instalou uma
controvérsia entre Ministério Público e CADE, já que, há na lei 10.149/00
dispositivos sobre a extinção da punibilidade com consequente suspensão do
curso do prazo prescricional e impedimento do oferecimento da denúncia, mas
não se regulamentaram os seus efeitos, gerando uma dissensão de
entendimentos.
175 Lei 8.884/94: Art. 35-B. A União, por intermédio da SDE, poderá celebrar acordo de leniência,
com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um a dois terços da
penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras
de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o
processo administrativo e que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais co-autores
da infração; II - a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou
sob investigação Art. 35-C. Nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei no 8.137, de
27 de novembro de 1990, a celebração de acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a
suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia. Parágrafo único.
Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade dos
crimes a que se refere o caput deste artigo.
Assim, há posição que defenda que o Acordo de Leniência é
inconstitucional, pois fere a titularidade exclusiva do Ministério Público e sua
obrigação na propositura das ações penais. Por outro lado, encontra-se quem
advogue que o Princípio da Obrigatoriedade possa ser mitigado – como o fora
pela transação penal, instituto criado pela Lei 9.099/95 – o que possibilitaria o
Ministério Público de participar do Acordo de Leniência, tomando para si a
discricionariedade do ajuste. Talvez esta última seja a solução mais adequada
dentro de uma perspectiva de validade do acordo, embora aqui se defenda que
toda a idéia da “leniência “ em tema penal seja um desdobramento indesejável da
má utilização do Direito Penal.
Considere-se que o Acordo de Leniência se mostra como uma
forma de extinção da punibilidade, já que o Ministério Público é impedido à ação
penal, o que na realidade implica em afastamento do jus puniendi estatal.
Contudo, a ocorrência desta causa de extinção da punibilidade está atrelada a
motivos políticos incidentes em cada caso concreto, vez que o Acordo de
Leniência será celebrado ao alvedrio de órgão da união, a Secretaria de
Desenvolvimento Econômico e para alguns, com a participação do Ministério
Público. Percebe-se nitidamente o Estado barganhando com o agente do fato
criminoso, sua impunidade em troca de melhores informações, o que reforça seu
falho sistema de fiscalização sobre as práticas que ferem a livre concorrência.
Não há dúvida de que, pelo acordo de leniência, novamente o
Estado vem complementar uma norma – no caso as incriminações contra a ordem
econômica da lei 8.137/90 – potencializando seu alcance de função. Isso se dá
porque as incriminações não alcançaram a finalidade almejada pelo legislador:
combater condutas pela ameaça de perda de liberdade – o que já era de se
esperar face à sua inidoneidade. Como as incriminações não alcançam o êxito de
extinguir – ou mesmo diminuir – as condutas indesejadas, é proposto, então, um
remendo legal, com a criação de mais um instituto para servir ao arsenal
intimador e alborque do Estado.
Não merecem elogios os institutos referenciados, representantes
que são de uma experiência legislativa equivocada. Melhor seria a extirpação de
tais institutos do ordenamento jurídico pelas mãos de seus criadores. Em não
sendo possível uma revogação, adequado, então, que o Poder Judiciário
restabelecesse a condição de prima ratio ao Direito Penal, por meio de seus
julgamentos. Nem sempre é o que se vê. Porém o tema alcança complexidade
que extrapola o presente estudo, ficando para apreciação ulterior em outras
buscas ao conhecimento.
Frize-se que, não se repele a “Justiça Restaurativa” no Brasil, que
visa a solução do conflito inaugurado pelo crime, através da inserção da vítima na
busca da solução, passando pela necessária reparação do dano. É louvável que o
autor do fato reconheça sua responsabilidade proveniente de seus maus atos e
que a vítima seja incluída neste processo cooperativo de responsabilização, que
vai além da simples punição dos infratores. Neste caso, não se busca apenas o
combate à criminalidade, mas a redução do impacto dos crimes sobre os seres
humanos.
Mas, estas nuances não são encontradas nos institutos analisados,
que, distanciam-se de tal ideal, quando admitem, pela reparação dos danos, a
impunidade, sem qualquer valorização pelo autor do fato acerca da negatividade
de sua conduta. Também a vítima, que em tema penal econômico é mormente o
próprio Estado, não é passível de ser fortalecida como as demais vítimas perante
a sociedade, e acaba por utilizar as possibilidades como fonte negocial. Conclui-
se que as causas de extinção e suspensão da punibilidade e o Acordo de
Leniência não se enquadram em modalidades de viés criminológico restaurativo.
6 CONCLUSÃO
A atividade legislativa é de relevante importância na construção de
um Estado Democrático de Direito, sendo as normas o referencial para a vivência
social. As leis penais, somando-se aos demais ramos do ordenamento jurídico,
cumprem função apaziguadora, de prevenção especial e geral, por meio de
previsões que, entre outras, podem levar à perda de um bem caro ao ser humano:
a liberdade.
Na escolha das condutas que ensejarão incriminações, o legislador
deve inicialmente observar se estas ofendem a um bem jurídico de relevo para
sociedade. O bem em questão terá natureza individual quando extraído de
postulados constitucionais de direitos e garantias fundamentais do ser humano.
São facilmente aquilatados, pois essenciais ao ser humano: o direito à vida, à
liberdade, ao patrimônio, à saúde, à liberdade sexual, à honra, entre outros.
Além dos individuais, colocam-se os bens jurídicos de natureza
supra-individual, que extrapolam a singularidade alcançando a seara da
coletividade, destacados em uma sociedade de risco. Com a maximização da
economia e a aproximação de mercados, os comportamentos sociais se
transformam, surgindo novas relações entre capital e trabalho, decorrendo da
necessidade de proteção de bens jurídicos supra-individuais, frequentemente
atacados, dos quais se pode citar a ordem econômica, a ordem tributária, a
coletividade consumidora ou mesmo o meio ambiente, atividades precipuamente
econômicas.
Não é o bastante que o legislador identifique os bens jurídicos,
sejam individuais ou supra-individuais, a serem protegidos. Escolhido o bem
jurídico, esse deve se mostrar relevante à sociedade e somente os ataques que
lhe forem mais graves devem ser combatidos pelo Direito Penal. Além disso se
deve optar pela proteção do bem jurídico apenas se não houver uma suficiência
de proteção por outros ramos do direito. Tal pesquisa criteriosa é realizada em
respeito ao Princípios da Intervenção Mínima, em seus matizes da
subsidiariedade e da fragmentariedade.
Ultrapassada esta investigação, ainda resta avaliar se o bem jurídico
relevante tem idoneidade para receber a proteção pela criminalização. Significa
dizer que o bem jurídico deve merecer, necessitar e ser capaz de receber a
proteção por meio do Direito Penal que será, então, o meio idôneo para tanto.
Não é suficiente que o bem jurídico seja importante para que pese sobre ele uma
incriminação, é indispensável que a finalidade da norma possa ser atingida, com a
conseqüente legitimação social. É pela aptidão do bem jurídico a ser agasalhado
pela norma penal que se chegará à legitimidade da incriminação.
A partir dos anos oitenta, houve uma sequência de edições de leis
penais em tema econômico, acompanhando as modificações da sociedade de
risco globalizada. Fazendo parte dessa excedente construção legislativa do
ordenamento jurídico nacional inúmeras são as disposições de cunho
incriminador que inovaram o sistema penal, principalmente no campo econômico,
destacando-se do Direito Penal e passando a ser tratado pela doutrina como
Direito Penal Econômico.
Hodiernamente, é possível fazer um resumo da legislação penal
econômica nacional, e se é obrigado ao reconhecimento de que esta não é bem
sucedida. Enquanto ventos internacionais rumam para o Direito Penal Mínimo, o
legislador brasileiro se posiciona contrariamente, sendo prolixo na criação de
crimes. Para cada falha da função estatal ou percalço no controle dos
administrados, se desvirtua o Direito Penal como socorro. Enquanto a
Criminologia mundial constata que o aumento de previsão de crimes ou rigor de
penas não se mostra proporcional à diminuição da criminalidade, legisladores
brasileiros trabalham arduamente no aumento do rol de crimes.
Analisando detidamente a construção legislativa de algumas das
legislações penais econômicas em pleno vigor, chega-se à triste conclusão de
que o legislador brasileiro, pondera apenas questões de ordem política para optar
pela incriminação de condutas, ignorando os princípios penais constitucionais. A
resposta à pergunta sobre quais os critérios utilizados para incriminação de
determinadas condutas e não de outras é lamentável, simplesmente porque não
há critério. Em tese, dentro de uma técnica jurídica, dever-se-ia responder que o
legislador escolhe condutas lesivas a um bem jurídico idôneo para incriminar
como ultima ratio e deixa de fora aquelas condutas menos importantes, que
alcançam solução por outros ramos do direito.
Mas isso não é o que se extrai da legislação penal nacional
examinada. Depara-se com uma atividade legislativa desvirtuada, que
funcionaliza o Direito Penal, no intuito de potencializar a eficácia das
necessidades do Estado. Por outro ângulo, também negativo, constatam-se
características meramente publicistas e eleitoreiras em algumas incriminações.
Assim é que o Direito Penal é utilizado para poupar combustível, para arrecadar
tributos ou para aparentar uma proteção ao consumidor ou mesmo iludir sobre a
responsabilização de macrocrimes, embora bem disfarçado, sob a máscara de
grandes títulos como proteção à ordem tributária, ordem econômica, sistema
financeiro e defesa do consumidor.
O Direito Penal não pode servir aos fins administrativos do Estado.
Para esses, o Estado deve buscar soluções efetivas de âmbito administrativo,
podendo para tanto se utilizar de seu poder de polícia, mas jamais criminalizar.
Tome-se como exemplo, o Imposto sobre Propriedade de Veículo – IPVA –
acerca do qual o órgão fiscal não enfrenta grandes problemas de sonegação, uma
vez ter encontrado um meio eficaz de cobrança e fiscalização, no próprio âmbito
administrativo, não havendo necessidade de utilização de incriminação, como no
caso do Imposto de Renda. Embora haja críticas, o não pagamento do IPVA tem
mecanismo de fiscalização – agentes de trânsito – altamente eficaz, e forma de
cobrança tanto quanto – apreensão de veículos e não emissão da documentação
de porte obrigatório.
Nesse caso, o estado se aparelhou de forma suficiente, não
necessitando de lançar mão de subterfúgios para alcançar o resultado:
arrecadação. Não ocorre o mesmo com outros tributos, à exemplo do imposto de
renda, cujo mecanismo de declaração pelo próprio contribuinte é falho, originando
a tipificação do crime de declaração falsa ao Fisco. Nasce para Direito Penal a
indevida função de reforçar a atividade de fiscalização e cobrança do Estado.
Devendo se pautar por ditames constitucionais, o Direito Penal tem o
dever de observância obrigatória aos princípios informadores. Afinal são esses as
vigas que lhe dão sustentação. A construção de uma incriminação somente deve
ser admitida se partir da observação do Princípio da Intervenção Mínima, da
Exclusiva Proteção aos Bens Jurídicos e à Idoneidade. Sem a contemplação
destes, não é possível que uma conduta seja legitimada como criminosa, porque
sua existência se posta fora do conjunto de idéias necessárias ao Direito Penal de
ultima ratio do Estado Democrático de Direito.
Não se discute aqui uma legitimação formal, já que esta existe, uma
vez que os crimes penais econômicos que se censura, tiveram o adequado
processo legislativo, por representantes do povo. Cuida-se de uma ausência de
legitimação essencial, relacionada ao seu fundamento, porquanto o legislador
criminalizou condutas sem a devida fundamentação antropológica, significa dizer,
em desrespeito à condição humana. As leis penais nascem ilegítimas porque não
servem ao homem a partir de um admissão do ser do homem, não sendo capazes
de assegurar a sua existência .
Acolhe-se que condutas provenientes de criminalização inadequada
são ilegítimas, e como tal, desmerecem surtir efeitos. A ilegitimidade deve pois
aniquilar a norma imperfeita, pois esta não será efetiva e, com isso, não terá o
condão de alcançar a reprovação social, ensejando um resultado de anomia, com
tensões sociais, que ao final possivelmente assolarão sua vigência. Por outro
ângulo, uma norma carente de legitimidade incide em mero exercício do poder
estatal. Entretanto, enquanto tiver eficácia fática no ordenamento jurídico, será
Direito Penal vigente.
Ideal que os próprios legisladores atuassem na retirada das normas
ilegítimas do ordenamento jurídico, dotando-o de uma validade melhor, mais
eficaz. Mas as descriminalizações ou despenalizações são raras na história
brasileira. Pelo contrário, o que se percebe, é um esforço hermenêutico da
comunidade jurídica para se adequar as previsões desvirtuadas aos princípios e
ditames constitucionais. Melhor seria se tais institutos fossem veementemente
rejeitados, o que talvez forçaria a uma aperfeiçoamento legislativo. Não se pode –
ou pelo menos não se deve – entender um crime com base em um princípio, se
este mesmo princípio nunca povoou o espírito do legislador.
Parasse por aí a crise da legislação penal econômica nacional, já
seria desastrosa. Contudo, ainda há outro aspecto a contribuir para o negativo
quadro. Como é comum que a criminalização imprópria não alcance o resultado
esperado – até por sua ilegitimidade – o legislador tenta corrigir o percalço com a
criação ou modificação de institutos para reforçar a característica funcional que
conferiu ao Direito Penal.
Surgem, daí, institutos próprios do Direito Penal Econômico, como o
são as causas de extinção e suspensão da punibilidade e o Acordo de Leniência.
São eles, numa última análise, formas de impedimento ao jus puniendi estatal.
Em crimes “contra a ordem tributária” é possível que, pela entrega do tributo
devido e não recolhido, seja extinta a punibilidade do agente, desde que isto
ocorra antes do recebimento da denúncia. Ou em tema de “ordem econômica”, é
possível a realização de acordo com o agente, em troca de informações que
levam ao desmantelamento de toda a cadeia criminosa, o que o torna imune à
punibilidade.
Confirmando então, o emprego do Direito Penal como função, à
serviço do Estado como instrumento de coação, são inseridos os mencionados
institutos, verdadeiros dispositivos de barganha. Por meio destes o legislador
reconhece a utilização indevida do Direito Penal e sua consequente ilegitimidade,
e instrumentaliza o órgão estatal em sua tentativa de fazer funcionar a todo custo,
frações administrativas deficientes.
É cediço que o Direito Penal, por seu rigor e seu efeito devastador
na vida do ser humano, é exceção à regra liberdade. Incriminações construídas
em inobservância aos princípios informadores do Direito Penal, desvirtuam sua
condição de ultima ratio e, por isso, não devem receber aplicação, uma vez não
alcançarem a necessária legitimidade para sua validade. Indubitável que o
legislador falha na criação de crimes, o que restou evidenciado nesta pesquisa,
restrita ao campo do Direito Penal Econômico. Infelizmente tais impropriedades
não recebem a correção na medida necessária, sendo toleradas pela dogmática,
de modo geral.
Se faz premente uma mudança de cultura neste país, extinguindo o
pensamento de que pelo Direito Penal tudo se consegue. A banalização gerada
pela excessiva criação de tipos, tem efeito contrário, gerando na população um
desprezo pelas leis penais. Tal sentimento é potencializado quando se constata
que a impunidade cresce em proporção maior que a superabundante
criminalização, já que os aparatos de resposta ao crime continuam ineficientes.
As leis penais passam a ser enxergadas apenas simbolicamente pela ordem
social.
Uma política criminal moderna deve buscar a descriminalização,
com o encolhimento do ordenamento punitivo, devendo o sistema penal se basear
em núcleo ético constitucional, adquirindo assim, o Direito Penal, um caráter
garantidor. A incriminação de condutas que não merecem o status de crime, e a
conseqüente responsabilização das pessoas com base em criminalizações
ilegítimas enfraquecem o Estado Democrático de Direito em seu viés mais
precioso, o da sociedade justa e livre.’
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DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO MESTRADO EM DIREITO DA
UNIVERSIDADE GAMA FILHO, NO RIO DE JANEIRO, E APROVADA PELA
COMISSÃO EXAMINADORA FORMADA PELOS SEGUINTES PROFESSORES:
Prof. Dr. JUAREZ TAVARES
Universidade Gama Filho – UGF
(Orientador)
Prof. Dr. José Ribas Vieira
Universidade Gama Filho – UGF
Prof. Dr. Francisco Mauro Dias
Universidade Gama Filho – UGF
Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2007
Prof. Dr. José Ribas Vieira
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito
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