View
0
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
MESA TEMÁTICA COORDENADA - Eixo 13
DE QUE EDUCAÇAO NECESSITAMOS? Por uma educação pública e contra-hegemônica
Ana Maria Marques Santos1 (Coordenadora)
Patricia Bastos de Azevedo2
Lucilia Augusta Lino3
Maria da Conceição Calmon Arruda4
Cláudia Rodrigues do Carmo Arcenio5
Patricia Bastos de Azevedo6
EMENTA
A mesa que ora apresentamos, é a síntese de campos de pesquisas e reflexões da práxis
de luta e formação docente com vista a educação escolar e a formação humana ampliada.
Diz respeito à educação em sua forma pública, de direito, e constitutiva de sujeitos-mundo e
a crítica a propostas que ameaçam a escolarização. A atualidade do desmonte dos
constitutivos educativos brasileiros, marcados por deslegitimações das conquistas históricas
da classe trabalhadora, entre elas os professores e os profissionais da escola pública, da
perda de direitos, e da busca em desconstruir a educação pública em sua gênese,
infelizmente, compõem e nos desafia nesse contexto. É preciso confrontá-lo, problematizá-lo
e torná-lo propositivo em sua afirmativa socialmente referenciada. Assim, esta proposta tece
o diálogo entre as políticas macro da formação docente, à escola, suas interfaces com a
formação na Universidade Pública – mais especificamente aqui, a Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ e a Faculdade de Formação de Professores/UERJ, , a
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ, através do seu programa de Pós-
Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares – PPGEduc
e o Programa de Formação de Professores da Educação Básica – PARFOR-UFRRJ,
alinhados com as instâncias de luta e resistência dos profissionais da educação, em defesa
da escola pública. Nessa direção, e destacadas as pesquisas e produções voltadas à
1 Professora do Departamento de Educação e Sociedade da UFRRJ e do PPGGEduc e PPGGEO-UFRRJ.
Doutora em Psicologia Social, E-mail: anamarques.ufrrj@gmail.com 2 Professora do Departamento de Educação e Sociedade da UFRRJ, do PPGGEduc-UFRRJ e do PROFHist.
Doutora em Educação, E-mail: patriciabazev@gmail.com 3Professora do Departamento de Educação Inclusiva e Continuada da Faculdade de Educação da UERJ e doutora em
Educação. E-mail: lucilialinop@yahoo.com.br 4 Professora da Faculdade de Formação de Professores da UERJ, tecnologista em Saúde Pública da FIOCRUZ e doutora em
Educação. E-mail: conceicaoarruda2010@hotmail.com 5 Professora da Prefeitura Municipal de Nova, Mestre em Educação/UFRRJ, Doutorando do PPGEduc/UFRRJ, E-mail
claurodriguesmd@gmail.com. 6 Professora do Departamento de Educação e Sociedade da UFRRJ, do PPGGEduc-UFRRJ e do PROFHist.
Doutora em Educação, E-mail: patriciabazev@gmail.com
formação docente, desde suas bases político-critico-pedagógicas da Educação Básica, à
Pós-Graduação, desde as políticas Macro de formação, ao chão da escola, à sociedade, e
aos processos formativos, dando destaque ao feminino que empenha tais lutas formativas.
Buscamos, assim, dialogar com a temática desta IX Jornada Internacional de Políticas
Públicas, 2019 – Civilização ou Bárbarie: o futuro da humanidade. Objetivos. Articular as
Políticas para Formação de Professores e a Educação Básica de forma analítica e crítica,
buscando compreender as relações entre os caminhos e descaminhos do Estado atual, e
seus impactos no espaço macro e micro da Educação brasileira. Organizamos a
apresentação desse debate em três trabalhos, a saber: MULHERES-PROFESSORAS E AS
POLITICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE DO PARFOR (2010-2018): trajetórias, lutas e
empoderamentos, em que buscamos contextualizar a atual situação dessa política
nacional, em primeira licenciatura, e suas correlações formativas para a ação de mulheres-
professoras nas escolas públicas de educação básica, da Baixada Fluminense e Cidade do
Rio de Janeiro, RJ. O foco principal dessa pesquisa, expressa nesse artigo, é destacar
como essas políticas de formação impactam nas relações escolares da escola publica
através da formação pessoal-profissional das mulheres-professoras do PARFOR-UFRRJ,
suas correlações de força e poder constituídas e constituintes. Para este artigo,
analisaremos registros de falas de egressas dos Cursos de Licenciaturas e a atualidade das
mudanças das políticas destinadas ao Programa, desde os episódios políticos de 2016, que
veem impactando as políticas publicas de formação docente no país. O segundo –
INVERSÃO DO FLUXO HISTÓRICO: ensino domiciliar como política de
desescolarizaçao e ameaça ao direito à educação. Trata da proposta de regulamentação
do ensino domiciliar que se insere no projeto neoliberal de privatização e de financiamento
da educação pública, com impactos sobre o direito à educação e obrigatoriedade escolar, e
a formação e atuação dos professores. A defesa do direito de escolha das famílias,
ancorado no conservadorismo ideológico e religioso, informa os pleitos daqueles que
anseiam por uma regulamentação jurídica laxativa. A padronização e o empobrecimento
curricular da BNCC e da reforma do ensino médio, aliados a centralidade da questão moral
e ideológica do novo MEC, contribuem com os processos de privatização e redução do
papel do Estado na oferta da educação, conforme o ideário neoliberal. O terceiro – NAS
TRILHAS DA MEMÓRIA: Os caminhos do letramento na escola através das trajetórias
de vida de professoras alfabetizadoras do PARFOR/UFRRJ pretende investigar as
permanências e rupturas na trajetória do letramento escolar por intermédio das histórias de
vida de professores que foram alfabetizados e alfabetizam na Baixada Fluminense do Rio de
Janeiro. E que estão gerindo suas formações no Curso de Pedagogia oferecido pela UFRRJ
no ambiente do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica
(PARFOR). Compreendendo a alfabetização como uma das principais práticas de
letramento escolar, esta investigação apresenta um levantamento dos indícios elencados a
partir das narrativas produzidas sobre as memórias do período de alfabetização e sobre as
atuais práticas em sala de aula. Nesse sentido, esta Mesa Coordenada busca estabelecer a
conexão entre as políticas macro de educação propostas em sua atualidade, com seu
desmontes e resistências – por dentro dos processos formativos e da escola pública, e de
seus Fóruns de resistência. Releva, ainda, o papel contra-hegemônico dos coletivos de
formação, na reflexão de políticas que de fato considerem a realidade social em suas
necessárias transformações: críticas, justas e socialmente referendadas.
Palavras-Chave: Direito a educação. Políticas Públicas. Formação de Professores. Estado.
Escola.
MULHERES-PROFESSORAS E AS POLÍTICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE DO PARFOR
(2010-2018): trajetórias, lutas e empoderamentos
Ana Maria Marques Santos7
Patricia Bastos de Azevedo8
RESUMO: A primeira licenciatura de professores em serviço, e suas correlações formativas para a ação de mulheres-professoras nas escolas públicas de educação básica, da Baixada Fluminense e Cidade do Rio de Janeiro, RJ são o mote desse trabalho. Seu foco principal: expressar como essa formação impacta nas relações da escola publica com a formação pessoal-profissional das mulheres-professoras do PARFOR-UFRRJ, suas correlações de força e poder constituídas e constituintes. As falas de egressas dos Cursos de Licenciaturas são desveladoras, e o quadro atual das políticas destinadas ao Programa, desde os episódios políticos de 2016, impactam a formação docente no país.
Palavras-chave: Mulheres-Professoras.Empoderamento.
Políticas de Formação Docente. Escola Pública.
ABSTRACT: The first degree of in-service teachers, and their formative correlations for the action of women-teachers in public primary schools, Baixada Fluminense and Rio de Janeiro City, RJ are the motto of this work. Its main focus is to express how this formation impacts the relations of the public school with the personal-professional formation of PARFOR-UFRRJ women-teachers, their correlations of strength and power constituted and constituents. Speeches from the undergraduate courses are unveiling, and the current policy framework for the Program, since the political episodes of 2016, has impacted teacher training in the country. Keywords: Women-Teachers. Empowerment. Teacher Training Policies. Public school.
1 INTRODUÇÃO
Para compreender o eixo que elegemos para constituir nossa reflexão neste artigo,
julgamos ser necessário contextualizar o Plano Nacional de Formação de Professores da
Educação Básica (PARFOR), assim como os referenciais teóricos que mobilizamos para
7 Professora da UFRRJ Doutora em Psicologia Social, E-mail: anamarques.ufrrj@gmail.com.
8 Professora da UFRRJ Doutora em Educação, E-mail: patriciabazev@gmail.com.
pensar este campo de pesquisa e seus indícios. O foco principal trata de expressar como
essa formação impacta nas relações da escola publica com a formação pessoal-profissional
das mulheres-professoras do PARFOR-UFRRJ, suas correlações de força e poder
constituídas e constituintes, e nessa direção, as correlações de força e poder que
constituem as práticas de oralidade e letramento desse processo formativo, pensando-se
aqui, a tríade Universidade/Mulheres-Professoras-Escola.
Para este artigo, analisaremos o lugar de fala das mulheres-professoras9 que
asseguram em torno de 95% (noventa e cinco por cento) do corpo discente dos (as)
ingressantes nas turmas PARFOR-UFRRJ. Utilizaremos como indícios os relatos de
experiência das mulheres-professoras que são egressas de licenciaturas do programa, no
período de 2014-2018, e o discurso de formatura da oradora do curso de História/PARFOR
de 2016.2.
2. O PARFOR
O Decreto n.º 6.775, de 29 de janeiro de 2009, instituiu a Política Nacional de
Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica e disciplinou a atuação da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no fomento a
programas de formação inicial e continuada.
O Plano Nacional de Formação de Professores de Professores da Educação Básica
– PARFOR foi criado pelo Governo Federal para atender o Decreto nº 6.755, de 29 de
janeiro de 2009. Implantado em regime de colaboração entre a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior (CAPES), Estados, Municípios, Distrito
Federal e as Instituições de Ensino Superior.
O Decreto 6.755/2009 afirma:
Art. 2
o São princípios da Política Nacional de Formação de Profissionais do
Magistério da Educação Básica: I - a formação docente para todas as etapas da educação básica como compromisso público de Estado, buscando assegurar o direito das crianças, jovens e adultos à educação de qualidade, construída em bases científicas e técnicas sólidas; [...] II - a formação dos profissionais do magistério como compromisso com um projeto social, político e ético que contribua para a consolidação de uma
9 Usaremos a expressão mulheres-professoras para apresentamos as alunas das Licenciaturas PARFOR. Nossa
escolha é motivada pela compreensão que estes atores ocupam mesmo na Universidade esta dupla função, sendo majoritariamente, mulheres.
nação soberana, democrática, justa, inclusiva e que promova a emancipação dos indivíduos e grupos sociais; [...] IX - a eqüidade no acesso à formação inicial e continuada, buscando a redução das desigualdades sociais e regionais;
O PARFOR caracteriza-se como uma política que pretende corrigir as desigualdades
e efetivar direitos a segmentos da sociedade historicamente excluídos da participação e
usufruto dos bens, riquezas e oportunidades, do direito à cidadania, cultura, educação e/ou
trabalho digno. Atributo acentuado por sua tripla característica:
1. A reserva de vagas;
2. Emancipação dos indivíduos e grupos sociais;
3. Reduzir as desigualdades sociais e regionais que marcam nosso país.
A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em 10 de novembro de
2009 assinou o termo de adesão ao Acordo de Cooperação Técnica - ACT no- 014/2009,
com vistas à implantação do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação
Básica, instituído pelo Ministério da Educação (MEC), destinado a atender à demanda de
professores das redes públicas estadual e municipais sem formação adequada à Lei de
Diretrizes da Educação Brasileira (LDB - Lei no- 9394/1996), com oferta de ensino superior
público e gratuito.
No ano de 2010, na UFRRJ foi aberto pela primeira vez o processo de inscrição pela
Plataforma Freire10 para os professores da Educação Básica participarem do processo
seletivo e ingressarem na universidade pelo UFRRJ/PARFOR. O primeiro processo de
inscrição apresentou um número significativo de professores interessados em ingressar na
UFRRJ nos cursos de licenciatura. Diante do elevado número de candidatos o MEC
procurou a reitoria e solicitou que a UFRRJ abrisse turmas específica para os
professores/alunos.
Em 2010.1 foi iniciada a primeira turma exclusivamente composta por mulheres-
professoras de ingressos pelo PARFOR no curso de Pedagogia, no Instituto Multidisciplinar.
Os cursos de Matemática, História, Geografia e Letras receberam 5 alunos em suas turmas
regulares neste mesmo período. Subsequentemente, as outras licenciaturas oferecidas no
Instituto Multidisciplinar abriram suas turmas PARFOR: 1) 2011.1 - Letras; 2) 2011.1 -
Matemática; e 3) 2012.2 - História.
O PARFOR trouxe consigo um perfil de mulheres-professoras que possuem marcas
identitárias e saberes acumulados ao longo de suas vidas sobre práticas de letramento
10
A Plataforma Freire2 (foi intitulada assim, desde 2016, quando ocorreram mudanças significativas na CAPES-DEB): https://freire2.capes.gov.br. Nesse AV (ambiente virtual), as/os docentes das redes municipais e estaduais de ensino, procediam a suas inserções de interesse de matricula, nos mais variados cursos e licenciaturas ofertadas. A Plataforma anterior, ora desativada, significativamente, passou a se chamar LegadoFreire.
diferenciados dos alunos que tradicionalmente ingressam na Universidade. As mulheres-
professoras trazem saberes que possuem concepções sobre validade e pertinências
relativas as práticas de oralidade, leitura e escrita. No processo de formação na graduação
essas pretensões são questionadas e passam a tencionar as tradições letradas constituídas
na Universidade.
As práticas pedagógicas no âmbito acadêmico nas Ciências Humanas são marcadas
pela oralidade, leitura e escrita, isto é, práticas de letramento que ao longo do tempo se
constituíram como legítimas e válidas na difusão do conhecimento produzido na
Universidade e na formação por ela efetivada.
Neste sentido, nossa pesquisa busca dialogar com os dois Níveis da Educação
brasileira, a Educação Básica e a Superior. Compreendendo que a formação de professores
se caracteriza como um lugar de transmissão e consolidação de práticas, difusão e
manutenção que podem promover a emancipação de indivíduos e grupos sociais, ou
agravar as concepções de letramento de caráter elitista e excludente, configurando-se como
um instrumento de manutenção do status quo hegemônico.
Outra questão fundamental pouco pesquisada, no âmbito das investigações de
letramento, são as práticas de letramento nas Universidades e seu caráter político
ideológico. Neste sentido, buscamos compreender as tensões e disputas políticas que
existem nas práticas letradas que se constituem no decorrer da formação de professores, e
de seu diálogo com o mundo, em especial, a escola, e as/os professoras/es das
Licenciaturas PARFOR do Instituto Multidisciplinar, da UFRRJ.
Desde seu momento inicial, o PARFOR na UFRRJ, baseado nos princípios
norteadores de seu Decreto de instituição, o 6.775/09, pautou e prosseguiu suas ações
formativas, em busca do alcance de equidade, formação sólida, ético-democrática,
emancipatória e socialmente referenciada, tendo por base as epistemes-científicas inerentes
e necessárias à formação docente, mas também, sempre em busca de considerar as
realidades pulsantes ao chão da escola, vividas pelos professores-aluno, a quem
denominamos aqui, de mulheres-professoras.
Entretanto, cabe dizer que em maio de 2016, período no qual o país viveu forte
turbulência e ameaça de suas instâncias democráticas, ocorreu a revogação do Decreto que
institui o PARFOR, através do Decreto nº 8.752, de 09 de maio de 2016, que conjuntamente
revogou em ato conjunto, o Decreto no 7.415, de 30 de dezembro de 2010 que criara
políticas para formação continuada para formação em serviço, preferencialmente a
distância, o Profuncionário.
O Decreto nº 8.752/16 dispõe, agora, não apenas pela Criação do PARFOR, mas,
como preconiza seu Art. 1º: “Fica instituída a Política Nacional de Formação dos
Profissionais da Educação Básica, com a finalidade de fixar seus princípios e objetivos, e de
organizar seus programas e ações, em regime de colaboração entre os sistemas de ensino
e em consonância com o Plano Nacional de Educação - PNE, aprovado pela Lei no 13.005,
de 24 de junho de 2014, e com os planos decenais dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios”.
E, em seus princípios, preconizados no Art. 2o, destacam-se, similares aos
anteriores, para atender às especificidades:
“I - O compromisso com um projeto social, político e ético que contribua para a consolidação de uma nação soberana, democrática, justa, inclusiva e que promova a emancipação dos indivíduos e dos grupos sociais; II - O compromisso dos profissionais e das instituições com o aprendizado dos estudantes na idade certa, como forma de redução das desigualdades educacionais e sociais; VIII - a compreensão dos profissionais da educação como agentes fundamentais do processo educativo e, como tal, da necessidade de seu acesso permanente a processos formativos, informações, vivência e atualização profissional, visando à melhoria da qualidade da educação básica e à qualificação do ambiente escolar;”
E, ainda, destacado, nesse novo decreto, o direcionamento para o alinhamento, com
o Plano Nacional de Educação – PNE (2014) em suas metas, em especial, as metas 15 e
1611, e a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2017), que conta diretamente, com os
processos formativos em curso, para sua implantação, a saber: os Programas de
Residência Pedagógica (RP) e Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), este
último, bastante alterado em sua forma, como podemos observar, a partir dos princípios
demarcados no Decreto 8752/16:
“X - O reconhecimento das instituições educativas e demais instituições de educação básica como espaços necessários à formação inicial e à formação continuada; XIII - a compreensão do espaço educativo na educação básica como espaço de aprendizagem, de convívio cooperativo, seguro, criativo e adequadamente equipado para o pleno aproveitamento das potencialidades de estudantes e profissionais da educação básica; “
11 Mesmo sendo de conhecimento amplo, cabe ressaltar, do que tratam as Metas 15 e 16 do PNE: 15 -
Formação de Professores: “Garantir, em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no prazo de 1 ano de vigência deste PNE, política nacional de formação dos profissionais da educação de que tratam os incisos I, II e III do caput do art. 61 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, assegurado que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam”; e 16 - Formação continuada e pós-graduação de professores: formar, em nível de pós-graduação, 50% dos professores da Educação Básica, até o último ano de vigência deste PNE, e garantir a todos os(as) profissionais da Educação Básica formação continuada em sua área de atuação, considerando as necessidades, demandas e contextualizações dos sistemas de ensino. (PNE, 2017).
Ainda assim, O PARFOR, ao longo de sua trajetória formativa de 9 (nove) anos, vem
possibilitando a entrada de um perfil de professores-alunos (mulheres-professoras)
possuidores de marcas identitárias e saberes acumulados ao longo de seus percursos no
mundo da vida e do trabalho sobre práticas de letramento diferenciadas dos alunos que
tradicionalmente ingressam na universidade. Esses professores-alunos (mulheres-
professoras) carregam, portanto, saberes que possuem concepções sobre validade e
pertinência relativas às práticas de oralidade, leitura e escrita. No processo de formação na
graduação, essas pretensões são questionadas e tensionam as tradições letradas
constituídas na universidade, abalando as certezas cristalizadas em alguns segmentos
acadêmicos. As tensões geram verdadeiras rachaduras epistémicas-pedagógicas, mais
evidenciadas em algumas licenciaturas que outras.
Mais especificamente, em 28 de fevereiro de 2018, é anunciado pelo Governo
Federal, Ministério da Educação - MEC, Diretoria de Educação Básica – DEB, CAPES, a
instituição do Programa Residência Pedagógica, através da Portaria GAB Nº 38, de
28/02/18, e da continuidade de forma contingenciada em número de bolsas, o Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID, cujas adesões e editais seriam
lançados logo, imediatamente, em março de 2018, encontrando-se em curso suas fases de
implementação, e agora, já adentrando seu segundo semestre de execução.
Apesar do que preconiza o Decreto nº 8.752/16, e das inscrições invitadas a serem
realizadas na Plataforma Freire2, por parte dos professores e das professoras de todos os
municípios e estados do país, nenhuma menção foi feita nesta ocasião ao Edital PARFOR,
causando forte estranhamento e mobilização das bases nacionais através de suas
regionais, e do Fórum Nacional de Coordenadores do PARFOR – FORPARFOR,
A resistência e a luta nas bases de formação, nos estados e municípios, onde o
Programa ocorre e se consolida, assim como, junto ao debate profundo, junto DEB/CAPES
(audiências públicas ministeriais, em comissões na Câmara e Senado), resultaram na
publicação do Edital nº 19/2018 - PROCESSO Nº 23038.007092/2018-64 PARFOR-
CAPES12, no âmbito do Programa Nacional de Formação de Professores da Educação
Básica (Parfor). Lembramos, ainda, que a regulamentação do Parfor está estabelecida na
Portaria Capes nº 82, de 17 de abril de 2017.
Em se tratando do edital em voga, observamos indícios que apontam para cenário,
ao menos contraditório, em relação às regulamentações, princípios e metas, em especial, às
12
O estado do Rio de Janeiro recebeu ao todo, a oferta de uma única turma, destinada ao Curso de Licenciatura em Pedagogia. Demais estados, estão chancelados por circunstâncias similares, guardadas proporções de acessos à inscrições na Plataforma Freire2, versus demanda ofertada pela DEB/CAPES.
metas 15 e 16 do PNE (2017), a exemplo: “2.3. São objetivos do Parfor neste edital: I -
Contribuir para o alcance da meta 15 do PNE, oferecendo aos professores em serviço na
rede pública, oportunidade de acesso à formação específica de nível superior, em curso de
licenciatura na área de conhecimento em que atuam”.
Justificam-se, não apenas pelo atual processo de acesso negado, os dias inglórios
de nossos professores-cursistas e nossas professoras-cursistas (mulheres-professoras), na
luta tanto pelo ingresso, em duro processo, mas depois em se manter dignos, nos processos
formativos; e é exatamente sobre isso que esta pesquisa busca explicitar.
Vale ressaltar que as práticas pedagógicas, no âmbito acadêmico e nas Ciências
Humanas, são marcadas pela fala, pela leitura e pela escrita. No entanto, diferentemente
das produzidas pelas mulheres-professoras, são práticas de letramento que, ao longo do
tempo, se constituíram como legítimas e válidas na difusão do conhecimento gerado na
universidade e na formação por ela efetivada, em especial, a escola, lócus de práxis desses
professores-alunos; que em formação continuada agregam, agora, novas epistemes ao
chão das escolas.
Entretanto, as políticas ofertadas e comprometidas de forma tripartie, encontram
também obstáculos em outros âmbitos, extra-Universidade, como preconizado na fala de
uma das mulheres-professoras: “A minha diretora (da Prefeitura de Japeri, RJ) só aceitou
que faltássemos à escola, uma por vez. Como fazer a essa altura, já inscrita e tendo que
estar na Universidade, em um Curso presencial¿ Foram momentos muito difíceis, os da
entrada para a formação”. (Mulher-Professora, aluna 2, Pedagogia).
Nesse sentido, reafirmamos que a pesquisa basal deste artigo, busca dialogar com
os dois níveis da educação brasileira: a Educação Básica e a Superior em seus contextos
formativos, políticos, pedagógicos.
3. CORRELAÇÕES DE FORÇA E PODER CONSTITUÍDAS E CONSTITUINTES: um discurso de formatura, dias de lutas dias de glória.
Por isso, inicio minha fala pedindo licença para brincar com o trecho da música do saudoso Chorão em que ele diz: “...histórias, nossas histórias, dias de luta, dias de gloria...”, pois esta é exatamente a sensação que tivemos durante esses anos na universidade, muitos dias de luta, mas também muitos dias de glória (Mulher-Professora, aluna 1, Oradora – Discurso de Formatura, História).
A escolha do subtítulo desta seção dialoga diretamente com a mulher-professora
Oradora da turma Parfor História, a líder de seu grupo de colegas, que no seu discurso de
formatura apresenta, de forma apaixonada, questões fundamentais do processo de
formação de que participou durante a graduação.
A turma era composta em sua maioria por mulheres, negras, com mais de 30 (trinta)
anos. A maioria são chefes de suas famílias e principais provedoras de seus lares. Uma
realidade bem comum no Brasil e principalmente na Baixada Fluminense. Segundo o
Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE), no sudeste, 40,7% dos lares fluminenses e cariocas
são chefiados por mulheres.
Quando estamos falando do PARFOR/UFRRJ estamos falando de mulheres negras
trabalhadoras, que expressam em suas práticas letradas esse processo de gênero, classe e
raça. Tal marca identitária, muitas vezes é negada no processo de formação e no letramento
acadêmico; que como já falamos anteriormente possui um forte traço de segregação branco,
masculino e urbano, que se expressa no que Street (2014) chama de letramento dominante.
Após uma jornada de trabalho, está em sala a tempo de responder a chamada do professor, passar a noite em claro fazendo resumos, resenhas, fichamentos, portfólio, trabalhos ou estudando para as provas semestrais, dias de luta! Abrir o quadro de notas e ver a palavra aprovado, dias de glória! (Mulher-Professora, aluna 1, Oradora – Discurso de Formatura, História).
Os eventos de letramento ganham um destaque no início do discurso da oradora.
Ela revela apaixonadamente o quanto esse processo está no espectro de luta, produzindo
desgaste e ansiedade. Sua fala também denuncia as condições que o grupo possuía no
processo de formação.
Os gêneros discursivos descritos pela oradora: “resumos, resenhas, fichamentos,
portfólio, trabalhos ou estudando para as provas semestrais” são práticas típicas do meio
acadêmico, assim, sua execução e incorporação As práticas pessoais demandam uma
aprendizagem do uso do gênero textuais, isto é, uma apropriação das normas e estéticas
que compõem essas práticas letradas.
No acordo técnico assinado, os entes federados se comprometem a cooperar, como
podemos ler no trecho a seguir:
1. DA COOPERAÇÃO TÉCNICA ENTRE A CAPES E OS ESTADOS 1.1 A participação dos Estados se efetiva por meio de Acordo de Cooperação Técnica – ACT firmado entre a Capes e a Secretarias de Educação ou órgão equivalente de cada Estado. [...] IX. Garantir as condições necessárias para que os profissionais de sua rede possam frequentar os cursos de formação...
No discurso da mulher-professora podemos observar que o processo de formação é
um sacrifício pessoal, cabendo a elas arcarem com as condições para efetivação e
execução do mesmo. Não há em todo discurso proferido nenhuma menção ao apoio das
Secretaria de Educação ou algo semelhante. Ela reafirma uma escolha pessoal e de
cooperação da família, do grupo de alunas-professoras e de alguns professores/as;
tornando o processo de formação um dia de luta, que cobra um preço custoso aos
indivíduos, do coletivo familiar e dos envolvidos na formação de ação direta e próxima.
Hoje é uma noite muito especial para todos nós aqui presentes, pois é o dia de celebrarmos o fim de uma longa jornada nada fácil em nossas vidas. E digo isso porque não foi fácil mesmo para nenhum nós, familiares, alunos e professores. Muitas foram às nossas lutas, muitos foram os obstáculos, muitas foram às histórias que compuseram essa jornada!(Mulher-Professora, aluna 1, Oradora – Discurso de Formatura, História).
Quando apresenta o cotidiano do curso, as práticas letradas destacadas fazem parte
da tradição acadêmica com aspecto individualista e meritocrático. “Abrir o quadro de notas e
ver a palavra aprovado, dias de glória! (Oradora – Discurso de Formatura)”, a frase dita com
emoção, indica um aspecto muito presente nas práticas acadêmicas que Street (2014)
denomina de letramento autônomo. O autor compreende que um novo modelo é mais
compatível nos processos sociais de letramento.
Os enunciados orais e escritos, no processo de ensino e aprendizagem, muitas
vezes são naturalizados e revestidos do senso comum com base no mito do letramento
(GRAFF, 1990). Esses eventos enunciativos constituem práticas de letramento planificadas
e descontextualizadas do lugar socialmente constituído o que materializa a formação,
produzindo, assim, a manutenção do status quo e o afastamento de camadas sociais que
não trazem consigo essa palavra como uma bagagem social constituída, nem trazem uma
palavra também significada de outros sentidos considerados incorretos pelo campo
discursivo universitário, e pela sociedade burguesa e seus campos de conformação, através
dos aparelhos ideológicos-hegemônicos.
4. MULHER-PROFESSORA, A MINHA VOZ DA E NA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO
Partindo do meu lugar de fala. eu percebo que essas moradoras vindas de uma periferia, no caso da Baixada Fluminense, que trazem diversos estigmas e oriunda da tradição familiar, isto é, estudar somente o ensino médio e a partir do ensino médio ter a tradição do casamento, em uma idade muito nova. Eu mesmo me casei com 18 anos, logo em seguida eu parei de estudar, eu parei o sonho que eu tinha, que era ter uma graduação. Eu me tornei mais uma Maria, eu parei por 4 anos, fiquei estagnada. Neste período eu engravidei tive minha primeira filha. Depois do nascimento dela eu retornei ao trabalho, pois a condição financeira influencia muito. (Mulher-Professora, Aluna 3, Pedagogia)
Compreender as práticas de letramento que se materializam na formação das
mulheres-professoras do PARFOR é dialogar com esse espaço ideológico, que é a
produção do letramento acadêmico e escolar. Que é a produção do mundo e sua civilização.
A análise complexa desse lugar de formação ajuda a dimensionar a ação dos professores
formadores na licenciatura e o papel sócio histórico que a universidade pública e de
qualidade possui na constituição das relações de trabalho e na potencial redução da
exclusão imputada a um número significativo de estudantes atendidos nas redes públicas da
educação básica brasileira e, no caso específico em debate, na região metropolitana do Rio
de Janeiro, a Baixada Fluminense.
(...) Hoje eu ainda falo, falo dentro de minha casa, para os meus amigos de profissão (...) Ter concluído hoje uma Universidade pública de qualidade contribuiu muito para minha vida. Minha vida profissional e minha vida de mulher, inclusive para minha vida de mãe, meu olhar para questões públicas, para coisas do país... minha forma de conduzir as coisas... (Mulher-Professora, aluna 2, Pedagogia). É através de um contrato com a Prefeitura de Japeri, RJ, que acesso à Universidade pelo PARFOR, 2013.3. A essa altura, com três filhos, trabalhando como contratada, estudando para concursos, e adentrando o universo acadêmico. Meu marido, apesar de me apoiar, começa a “sentir” o peso da responsabilidade, que antes estava apenas comigo. Conflitos. (Mulher-Professora, aluna 2, Pedagogia). Ser mulher nessa questão não foi nada fácil, nós sabemos que estamos em uma sociedade machista, você trabalhar cuidar de casa e de filhos, dar conta de toda essa questão não foi nada fácil, algumas colegas que tiveram que escolher entre a família e Universidade e abandonaram o curso... (Mulher-Professora, aluna 1 História)
Perceber a luta pela emancipação e empoderamento (FRASER, 2001), guarda em si
o movimento de deixar de ser objeto, abolindo, com isso, a separação sujeito-objeto, tema
clássico da ciência tradicional. “Neste sentido, o papel do teórico e da teoria, pode ser, e é
crucial para a mudança social, pois é ele quem desvendará o fetiche que encobre as
relações sociais possibilitando a emancipação” (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNADJER,
2000, p. 139). Isto é que esses autores denominaram de tentativa de “[...] compreender
como as redes de poder são produzidas, mediadas e transformadas.”. E é isso, que a práxis
encarnada dessas mulheres-estudantes, obriga a sociedade, e nela a Universidade e o
Estado, a realizarem.
5. CONSIDERAÇÕES
Compreender as práticas de letramento que se materializam na formação das
mulheres-professoras do PARFOR-UFRRJ, e quiçá, do Programa Brasil à fora, é dialogar
com esse espaço ideológico, que é a produção do letramento acadêmico e escolar. A
análise complexa desse lugar de formação ajuda a dimensionar a ação dos professores
formadores na licenciatura e o papel sócio histórico que a universidade pública e de
qualidade possui na constituição das relações de trabalho e na potencial redução da
exclusão imputada a um número significativo de estudantes atendidos nas redes públicas da
educação básica brasileira e, no caso específico em debate, na região metropolitana do Rio
de Janeiro, a Baixada Fluminense.
A ação politico-formativa do PARFOR, parece poder ir muito além do cumprimentro
de créditos e formalidade formativa, pode trazer a realidade de fato, reunindo o Ensino, a
Pesquisa e a Extensão, e o necessário alcance, ente os níveis basico e superior dos
processos formativos, necessariamente, indissociáveis em sua concepção, formulação e
realização concreta, espaços constituídos e constituintes da possibilidade de uma educação
encarnada e com sentido social de fato para seu lócus: as mulheres-professoras e o chão
da escola pública.
REFERÊNCIAS
ALVES-MAZOTTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 2000.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
BRASIL. Decreto n.º 6.775, de 29 de janeiro de 2009
BRASIL. Decreto nº 8.752, de 10 de maio de 2016.
BRASIL. Decreto no 7.415, de 30 de dezembro de 2010.
BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014.
BRASIL. CAPES. Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica. EDITAL Nº 19/2018 PROCESSO Nº 23038.007092/2018-6. 25/05/2018, Brasília. DF.
BRASIL. Portaria CAPES nº 82 de 17 de abril de 2017.
BRASIL. Resolução CNE/CP Nº 2, DE 22 de dezembro DE 2017.
FRASER, N. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilema da justiça na era pós-socialista. In. SOUZA, Jessé. Democracia hoje: noções desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasil: Ed. UNB, 2001.
GRAFF, H. J. O mito do alfabetismo. Teoria e Educação. Porto Alegre, nº2, 1990.
STREET. B. Letramentos sociais: Abordagens críticas do letramento desenvolvido, na etnografia e na educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.
INVERSÃO DO FLUXO HISTÓRICO: ensino domiciliar como política de desescolarização e
ameaça ao direito à educação
Lucilia Augusta Lino13
Maria da Conceição Calmon Arruda14
RESUMO: A proposta de regulamentação do ensino domiciliar
se insere no projeto neoliberal de privatização e desfinanciamento da educação pública, com impactos sobre o direito à educação, a obrigatoriedade escolar e a formação e atuação dos professores. A defesa do direito de escolha das famílias é ancorado no conservadorismo ideológico e religioso que informa seus pleitos. A padronização e o empobrecimento curricular da BNCC e da reforma do ensino médio, aliados a centralidade da questão moral e ideológica do novo MEC, contribuem com os processos de privatização e redução do papel do Estado na oferta da educação, conforme o ideário neoliberal. Palavras-chave: ensino domiciliar. direito à educação. privatização. conservadorismo. escolarização obrigatória. ABSTRACT: The proposal to regulate homeschooling is part of
the neoliberal project of privatization and not financing of public education, with impacts on the right to education and school compulsory education. The defense of family’s choice, anchored in ideological and religious conservatism, informs the lawsuits of those who long for laxative legal regulation. The standardization and curricular impoverishment of the BNCC and the reform of secondary education, together with the centrality of the moral and ideological question of the new MEC, contribute to the processes of privatization and reduction of the role of the State in the offer of education, according to the neoliberal ideology. Keywords: homeschooling. right to education. privatization.
conservatism. compulsory schooling.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo discutir a proposta do ensino domiciliar como
inserida nos processos de privatização e desfinanciamento da educação pública e de
abandono do projeto de escolarização obrigatória de acordo com o ideário neoliberal em
13
Professora do Departamento de Educação Inclusiva e Continuada da Faculdade de Educação da UERJ e doutora em Educação. E-mail: lucilialinop@yahoo.com.br 14
Professora da Faculdade de Formação de Professores da UERJ, tecnologista em Saúde Pública da FIOCRUZ e doutora em Educação. E-mail: conceicaoarruda2010@hotmail.com
associação com o conservadorismo ideológico e religioso. Assim, a defesa da
regulamentação jurídica do homeschooling, encampada pelo atual Governo, é uma ameaça
concreta à obrigatoriedade escolar, uma conquista tardia da sociedade brasileira, com
impactos sobre a formação e a atuação docente. Os processos de padronização e
empobrecimento curricular, de privatização da gestão da escola pública, de controle
ideológico dos profissionais da educação e das instituições educativas, dialogam com o
ideário neoliberal de redução do papel do Estado na oferta da educação.
A escola pública e a escolarização das massas são um projeto da modernidade que,
no Brasil, se materializou tardiamente, refletindo a dificuldade das elites em perceber como
direito a efetivação da educação básica pública e gratuita para o conjunto da população
brasileira. A tradição liberal sempre viu com reservas o financiamento público da
escolarização da população, assim como uma trajetória escolar de longa duração para as
camadas populares, alegando princípios de concorrência desleal no mercado de trabalho
entre os que custeiam com recursos próprios sua educação e os que a recebem de forma
gratuita do Estado, como Adam Smith, no século XVIII, que ainda questionava como
disfuncional às demandas da manufatura emergente, uma formação para o trabalho
prolongada (SMITH, 1974).
Os liberais do século XX vão afirmar a escolarização das massas como um
componente importante para o desenvolvimento do capital e defender que o Estado financie
um patamar mínimo de escolarização obrigatória de acordo com sua estrutura econômica e
sua inserção na divisão internacional do trabalho. Entretanto, persiste o questionamento da
manutenção de escolas públicas, que poderiam ser substituídas por vouchers educação ou
por escolas charters, cabendo aos pais a responsabilidade de buscar no mercado
educacional a escola que melhor lhes aprouver e de fazer os sacrifícios necessários caso
desejem ofertar a seus filhos um patamar educacional mais elevado (HAYEK, 1983).
O governo atual aponta para a desnecessidade de investimento no ensino superior,
anuncia forte controle ideológico da universidade e da escola pública e de seus profissionais
e defende o ensino domiciliar e a educação a distância, na faixa etária da escolaridade
obrigatória, como alternativas ao padrão de escolarização presencial. Abandona-se, assim,
o projeto de escola pública da modernidade e de escolarização ‘adequada’ das massas, que
passam não só a ter sua eficácia questionada, mas também sua necessidade. Nessa
proposição, minimiza-se a importância de o Estado ofertar uma escolarização mínima para a
população, que como defendia Hayek (1983) promoveria a difusão de valores comuns e
materializaria a democracia. É importante mencionar que a superação da aclamada ‘crise da
escola’ exige investimentos massivos na melhoria física e material das escolas e na
formação e valorização dos professores, assim como na redução do quantitativo de alunos
por sala de aula, como previstos nas metas e estratégias do Plano Nacional de Educação
2014-2024 (BRASIL, 2014), cujo cumprimento foi inviabilizado pelo corte de gastos
determinado pela Emenda Constitucional nº 95/2016.
Os processos de desfinanciamento e de privatização, intensificados com velocidade
descomunal após o Golpe de 2016, dialogam com as propostas de ensino domiciliar que
atribuem centralidade e prioridade ao papel das famílias na educação dos filhos. Assim,
vemos acirrar-se um debate centrado em grande parte na oposição entre o direito de
escolha das famílias pela educação fora do sistema oficial de ensino e a defesa do direito à
educação e da constitucionalidade da obrigatoriedade escolar. Os defensores do ensino no
âmbito domiciliar argumentam que a prática não é inconstitucional, dada a omissão da lei a
esse respeito, e fundamentam sua opção nas críticas à qualidade da escola, à sua eficiência
e à sua incapacidade de atentar para as especificidades de cada estudante, além do temor
da violência e de uma formação de valores mais flexíveis e diversos dos familiares. Esses
fatores emergem da literatura como os principais motivos elencados pelas famílias para
justificar a opção pelo ensino domiciliar, educação domiciliar ou homeschooling, principais
termos adotados para essa modalidade.
Entretanto, por outro lado, temos a defesa do direito à educação e da
constitucionalidade da obrigatoriedade escolar, aliada aos prováveis prejuízos advindos da
exclusão de crianças e adolescentes da socialização secundária promovida pela escola e da
impossibilidade de o Estado fiscalizar a educação ministrada nos lares. Os contrários à
permissão da prática de homeschooling alegam que esta representaria a quebra do dever
do Estado de responsabilizar-se pela oferta e pelo controle dos processos de escolarização,
entre outros, como determina a Constituição Federal (1988), além dos impactos sobre a
formação e atuação dos professores.
Nossa Carta Magna afirma, em seu artigo 205, que a educação é um direito de todos
e dever do Estado e da família, e deve ser ministrada segundo princípios, explícitos no
artigo 206, como o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e a gestão
democrática do processo educacional (BRASIL, 1988).
2 INVERSÃO DO FLUXO HISTÓRICO?
Em sua gênese a Educação Domiciliar está relacionada a uma educação restrita,
para poucos, como o modelo do preceptorado adotado pela aristocracia até o limiar do
século XX. É o projeto de escolarização pública da modernidade que abre espaço para que
as camadas populares tenham acesso ao conhecimento socialmente produzido ao atender a
demanda, dos Estados Nação emergentes, de transmitir ao conjunto da população
escolarização com objetivos e valores comuns no intuito de inculcar os sentidos de
cidadania e de pertencimento a determinada nação.
Cabe destacar que apenas em 1988, a educação passa a ser um direito público
subjetivo do indivíduo e que a escolaridade obrigatória foi sendo paulatinamente alongada e
atualmente se inicia aos 4 anos de idade e se entende até 17 anos e 11 meses, ampliando o
acesso à escolarização dos historicamente excluídos pela expansão do sistema público de
ensino. Entretanto, a adoção de políticas de cunho neoliberal na década seguinte, a par de
não promover alterações significativas na estrutura socioeconômica e cultural, não logrou
associar qualidade ao ensino ofertado, confirmando a histórica perversidade da dualidade
do sistema de ensino no país, que apenas nas últimas décadas, se tornou acessível ao
conjunto da população.
Para garantir o direito à educação das camadas populares não basta a matrícula na
escola, são necessárias uma série de medidas que viabilizem que os filhos dos de baixo
permaneçam na escola, como transporte, material escolar, livro didático, alimentação etc.
Assim, o financiamento da educação pública é uma questão central para assegurar sua
expansão e garantir acesso e permanência das camadas populares. A compreensão dessa
realidade veio se construindo ao longo das últimas décadas, assim como os desafios
financeiros e humanos na oferta de uma escola básica pública socialmente referenciada e
de qualidade.
Mudanças significativas na política governamental, no período de 2003-2015,
asseguraram a ampliação do acesso à cidadania e o reconhecimento da dívida histórica
com a população excluída dos mais básicos direitos sociais, com impactos positivos na
efetivação do direito à educação.
Hoje, em cenário de amplo retrocesso promovido pelas contrarreformas trabalhista,
previdenciária, fiscal e educacional, o Estado brasileiro se desresponsabiliza com a garantia
dos direitos sociais. A EC 95/2016, mais do que estabelecer um novo regime fiscal, identifica
direitos sociais como despesas, atendendo aos interesses do capital nacional e internacional
em detrimento da maioria da população, promovendo processo de desfinanciamento que
inviabiliza o cumprimento das metas do PNE 2014-2024 e a garantia de acesso e
permanência das camadas populares no sistema público de ensino, ampliando os processos
de exclusão.
Assim consideramos que a proposta de regulamentação do ensino domiciliar,
visando a sua liberação, constitui uma inversão do fluxo histórico de ampliação da oferta de
escolarização para segmentos da população historicamente excluídos.
Apesar dos defensores da regulamentação do ensino domiciliar, alegarem ser esta
prática admitida em diversos países centrais, é importante salientar que não há uma
regulamentação uniforme da modalidade e que a regulamentação estatal vai variar de
acordo com o arcabouço legal de cada país. No Canadá e nos EUA, que possui o maior
número de homeschoolers registrados, impera a descentralização, sendo que no caso
canadense inexiste um órgão central responsável pela educação (BOSETTI&VAN PELT,
2017).
Andrade (2017) afirma que com o reconhecimento do direito dos pais educarem seus
filhos em casa haverá uma redução no número de alunos matriculados no sistema público
de ensino, o que acarretará redução dos custos de manutenção e de desenvolvimento de
ensino. Assim, ele pleiteia que o Estado brasileiro direcione os recursos advindos dessa
suposta economia para “aperfeiçoamento e capacitação de professores, com vistas a
programar um núcleo de estudo e capacitação para a educação domiciliar” (ANDRADE,
2017, p. 189).
Andrade defende, ainda, que os projetos pedagógicos das escolas passem a
incorporar a educação domiciliar de maneira que as instituições de ensino se organizem
administrativamente e pedagogicamente para apoiar e acompanhar alunos em situação de
ensino domiciliar. Do mesmo modo sustenta que os alunos em educação domiciliar devem
ter uma avaliação de rendimento que se coadune com as especificidades desta modalidade
de ensino, posto que “o modelo domiciliar não segue rigidamente o modelo idade-série e o
currículo fundado no desenvolvimento de competências meramente cognitivas” (ANDRADE,
2017, p. 189).
É evidente que a suposta autonomia financeira do ensino domiciliar em relação ao
financiamento público não se sustenta face aos pleitos elencados por Andrade (2017) que
demandam que o Estado (1) reorganize a formação de professores para atender uma
manifestação particular, a opção pelo ensino domiciliar, e (2) adeque a gestão escolar à
lógica das famílias que praticam o ensino domiciliar.
Assim, a possibilidade de regulamentação do ensino domiciliar configura não só o
abandono da responsabilização do Estado com a oferta da escolarização, em uma
concepção elitista e retrógada, como dialoga com processos de privatização e
desfinanciamento, com consequências para a atuação e formação dos professores, além de
ferir o direito à educação.
3 DIREITO À EDUCAÇÃO OU DIREITO A ESCOLHA EDUCATIVA?
No Brasil, a proposta do ensino domiciliar carece de legislação regulatória, como
explicitou o julgamento15 no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da constitucionalidade
ou não da Educação Domiciliar. As associações16 que questionam o papel e a autoridade do
Estado na educação e defendem a educação familiar, propõem a adoção de
regulamentação minimalista sobre o assunto que permita às famílias implementar um
programa de ensino-aprendizagem com seus filhos. Seu entendimento é que cabe aos pais
e responsáveis “o dever prioritário de prover e garantir a educação de cada criança e
adolescente (...), e não sobre os poderes e as instituições de Estado, dever esse que
consiste em ‘assistir, criar e educar os seus filhos menores’, conforme prescreve” a
Constituição (ANDRADE, 2017, p. 187).
Andrade (2017) destaca que os defensores da Educação Domiciliar vêm provocando
a manifestação do judiciário no sentido de verem reconhecido seu direito de educar os filhos
em casa. Em paralelo, tramitam ou já foram submetidos ao Legislativo Federal projetos de
leis que “visam a retirar da ilegalidade o crescente movimento internacional e nacional de
pais que operam em favor da promoção da educação e do ensino, sob o seu protagonismo,
de modo desescolarizado” (ANDRADE, 2017, p. 181).
Os defensores do direito ao ensino domiciliar questionam tanto a obrigatoriedade
escolar quanto o controle da frequência escolar, propondo o reconhecimento da
especificidade do ensino domiciliar quando da submissão de seus adeptos a avaliações
escolares. Andrade (2017, p. 190), contra argumenta sobre a capacidade dos pais:
O Estado não poderá presumir que o pai, a mãe, ou o responsável legal que queiram praticar o modelo educacional domiciliar não saibam fazê-lo porque não ostentam títulos acadêmicos de nível superior, independentemente do estágio de aprendizagem no qual se encontra a criança ou adolescente.
A contradição que se instala é que se para um contingente significativo da população
brasileira uma trajetória escolar de longa duração ainda é um vir a ser, para alguns grupos
15
O julgamento do Recurso extraordinário 888.815-RGS, levado ao Supremo Tribunal Federal (STF) por uma família adventista que solicitava à Corte um posicionamento, ocorreu em setembro de 2018. 16
Como a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), fundada em 2010, e a Associação Brasileira de Defesa e Promoção da Educação Familiar (ABDPEF).
sociais minoritários a instituição escolar, seja ela pública ou privada, parece não atender
mais a suas particularidades, e por isso travam na justiça o direito de educarem seus filhos
em casa. Não é objetivo deste texto discorrer sobre o perfil desses grupos sociais, mas cabe
destacar que a literatura sobre Educação Domiciliar sinaliza que as famílias que optam por
essa modalidade de educação têm renda média e escolaridade acima da média.
No julgamento no STF, o Ministro Fux (2018) observou que a escola além de ser
responsável pela transmissão de conhecimentos, é o espaço, por excelência, da pluralidade
de ideias e da convivência com o outro, com o diferente. A seu ver a família pode atuar
suplementarmente no processo de escolarização de seus filhos “sem retirar o olhar
profissional que vai exatamente aferir (...) essa necessidade de a criança conviver com a
pluralidade de pessoas, com a pluralidade de ideias, com crianças diferentes, com pessoas
com deficiência, que ela vai analisar com total normalidade” (FUX, 2018, p. 103). Fux
sustenta, ainda, que a gama de experiências, positivas e negativas, vivenciada na escola
contribui para que crianças e adolescentes desenvolvam uma visão de mundo mais
abrangente e plural. O Ministro votou contra o relator da matéria, o Ministro Luís Roberto
Barroso, por entender que a Educação Domiciliar é inconstitucional.
Em direção oposta, o Ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso no STF,
alegando que como nossa Carta Magna não proíbe a Educação Domiciliar votou a favor do
direito de os pais educarem seus filhos em casa. A seu ver a Educação Domiciliar não é
sinônimo de “educação informal ou não curricular, ou mesmo de descaso com a formação
da criança, mas sim de um método alternativo de instruir os educandos, utilizando a família
como base para a difusão do conhecimento científico, filosófico e cultural” (BARROSO,
2018, p. 35).
No que diz respeito às críticas de que a Educação Domiciliar privaria crianças e
adolescentes de uma convivência plural e da socialização com outras pessoas fora de seu
círculo familiar, Barroso sustenta que a escola não é o único espaço de socialização
disponível nas sociedades modernas, seguindo a argumentação dos defensores da
modalidade. Afirma que a “participação dos estudantes em outras atividades extraclasses
(i.e.: clubes esportivos, clubes sociais, igrejas, bibliotecas, parques públicos, escolas de
música, organizações não governamentais, associações civis, trabalhos voluntários)”
contribui para que eles convivam “com pessoas de diferentes cosmovisões, perspectivas e
realidades”. A seu ver essas atividades extra domicílio “suprem a necessidade de
socialização supostamente preenchida pela escola” (BARROSO, 2018, p. 52). Cabe contra
argumentar que esses outros espaços sociais de convivência não são, necessariamente,
plurais e nem abrigam uma diversidade social mais ampla, pois sendo de escolha da família
a tendência social é que essa opção recaia sobre aqueles que congreguem pessoas e
grupos que comungam os mesmos valores e compostos pelo mesmo segmento social.
A decisão do Ministro Barroso mais do que reconhecer o direito à Educação
Domiciliar, lança as bases para a normatização da prática do ensino doméstico no Brasil até
que uma norma legal seja emanada do Poder Legislativo, que está de posse de projeto de
lei encaminhado pelo Poder Executivo (PL 2401/2019) à Câmara dos Deputados17, além das
proposições sobre o tema que já tramitam nesta Casa de Leis.
O voto do Ministro Relator sugere uma regulamentação da prática do ensino
domiciliar que contemple (1) a obrigatoriedade de pais e responsáveis efetuarem o devido
registro nas secretárias municipais de educação de sua opção pela Educação Domiciliar; (2)
a submissão do aluno em Educação Domiciliar a avaliações periódicas conforme o
calendário escolar adotado por escolas públicas e privadas; (3) a responsabilidade do órgão
municipal de educação, por ocasião do registro do aluno como educado em casa, em indicar
a escola pública mais próxima de sua residência para que este possa efetuar as avaliação
periódicas.
O Ministro faculta aos órgãos municipais de educação o compartilhamento, ou não,
do cadastro de alunos em Educação Domiciliar com “as demais autoridades públicas, como
o Ministério Público, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente ou o
Conselho Tutelar” (BARROSO, 2018, p. 54). E por último, caso o desempenho do aluno em
situação de Educação Domiciliar fique abaixo do esperado nas avaliações anuais o Ministro
transfere “aos órgãos públicos competentes” a responsabilidade de “proporem melhorias ao
ensino doméstico e, nas hipóteses em que não haja aumento do rendimento nos testes
periódicos, determinarem a matrícula das crianças e adolescentes submetidas ao ensino
doméstico na rede regular de ensino” (BARROSO, 2018, p. 54).
Não iremos nos estender sobre o julgamento em tela, mas destacar que o Brasil,
país de dimensões continentais e marcado por assimetrias, parece viver tempos históricos
desiguais que de tempos em tempos se entrecruzam em virtude de demandas específicas e
particulares que por conta da correlação de forças favorável conseguem se apresentar como
um pleito coletivo. Cabe, entretanto, destacar que as ‘recomendações’ contidas no texto do
voto do Ministro Barroso não foram seguidas pelo PL 2 01 2019, que transfere para o MEC
a responsabilidade de acompanhamento e avaliação da modalidade uma forma de tornar
o controle menos eficaz, pois mais distante, que deveria ser do Poder Municipal, que é o
17
O PL 2401/2019 propõe que o Ministério da Educação (MEC) centralize o cadastro dos alunos em Educação Domiciliar através de uma plataforma virtual a ser criada, assim como transfere para o MEC as regulamentações posteriores sobre o ensino domiciliar.
responsável pela educação infantil e pelo ensino fundamental, ou do Poder Estadual, no
caso do ensino médio.
Em nota assinada por 12 entidades nacionais18 do campo educacional, em resposta
à notícia de que o Governo Federal encaminharia ao Congresso uma Medida provisória para
regulamentar o ensino domiciliar, argumenta-se que:
A escola é um lugar onde as crianças ampliam suas oportunidades de aprendizagem, experimentam a interdisciplinaridade e a realização de projetos de pesquisa e de inovação em contato com profissionais preparados para isso. É onde o conhecimento se constrói no diálogo. Lugar, também da socialização, solidariedade, autoconhecimento e conhecimento da própria comunidade, valores que se aliam aos valores das muitas e diferentes famílias brasileiras, lugar onde as crianças e jovens se tornam cidadãos, onde adquirem consciência dos limites necessários à vida social e que em sociedade todos têm direitos e deveres (ANPED ET AL, 2019).
Assim a defesa da escola é o mote da nota das entidades nacionais que apontam
para a necessidade “de ampliar o acesso à escolarização, de valorizar a escola pública e
seus profissionais, assegurando condições adequadas de trabalho e de aprendizagem dos
alunos, tendo em vista a construção de uma educação pública de qualidade para todos”. É
um equívoco a negação da escola como espaço privilegiado de formação que não pode ser
substituído pela família, da mesma forma em que o papel da família não pode ser
desempenhado pela escola, pois “as iniciativas da família não se confundem e nem
substituem aquelas da escola” pois “nem a família substitui a escola, e nem a escola
substitui a família, elas não são antagônicas, mas complementares. A relação família escola
é um aspecto importante da elevação da qualidade da educação que não pode ser
minimizada” (ANPED ET AL, 2019).
É relevante, ainda, considerar que a realidade concreta com a qual dialoga o ensino
domiciliar vai além do suposto reconhecimento de direitos individuais (no caso o dos pais
como soberanos do direito de educar), mas se plasma em um quadro mais amplo que
parece ter como leitmotiv o abandono do laicismo na educação básica pública e sua
substituição pelo fundamentalismo religioso.
Nesse aspecto, a Educação Domiciliar pode vir a ser um indutor da intolerância, já
evidenciada pelas famílias que não desejam que seus filhos convivam com a diversidade e a
pluralidade existente nas escolas e na sociedade. Da mesma forma a generalização da
“visão da escola como lugar violento e perigoso” omite o fato estatisticamente comprovado,
no Brasil e no mundo, “que a violência contra crianças e jovens, e inclusive a violência
18
ANPED, ANFOPE, ANPAE, ABdC, ANPUH, ABRAPEC, CEDES, FORUMDIR, FINEDUCA, MNEM, SBEnBio; FCHSSALA. Ver Nota (2019).
sexual, é fortemente praticada no interior das famílias, e poucas vezes denunciada”, como
alerta a referida nota.
Além das questões explicitadas anteriormente, entendemos que o projeto de
Educação Domiciliar traz um conjunto de ameaças para o direito a educação, apenas
recentemente conquistado e já bastante ameaçado, e para a quebra da obrigatoriedade
escolar, que prejudicaria a ampla maioria da população. O apoio governamental à proposta
de ensino domiciliar é incompatível com seu dever constitucional, pois,
As sucessivas manifestações do atual governo, no sentido de desvalorizar a educação pública, criminalizar o trabalho dos educadores e desprestigiar a escola, desconsiderando sua importância, não condizem com a missão do Estado de assegurar a oferta de educação pública de qualidade (ANPED ET AL, 2019).
O que parece evidente na proposta do ensino domiciliar, e em sua adesão pelo
governo atual, é que ela não conflita, ao contrário, dialoga com o ideário neoliberal, de
redução da presença do Estado na educação e com o ideário conservador, que atribui
centralidade aos valores morais, ideológicos e religiosos das famílias que pleiteiam seu
direito de escolha, em movimento marcado por um suposto resgate de um conjunto de
valores que se perdeu e quiçá da própria família.
Hobsbawm (1984, p. 10) nos alerta, em estudo sobre as tradições inventadas, que
estas, ao exaltarem o passado, funcionam como um meio de rememorar um passado
idealizado que é apresentado como concreto. Nesse sentido, as “tradições inventadas”
podem representar uma tentativa de negação do novo buscando a rememoração de algo
considerado melhor e mais estável, mas não necessariamente real, estabelecendo com o
passado “uma continuidade bastante artificial”, cristalizando práticas fixas, calcadas em um
“passado real ou forjado”, como explicita Hobsbawm (198 , p. 10). Assim, essas ‘tradições
inventadas’ configuram-se como “reações a situações novas que ou assumem a forma de
referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição
quase que obrigatória” (HOBSBAWM, 198 , p. 10). As tradições inventadas, logo artificiais,
se caracterizam pela invariabilidade, enquanto os costumes dialogam com seu tempo e são,
portanto, passíveis de modificação, pois a vida não é invariável, imutável ou cristalizada,
“nem mesmo nas sociedades tradicionais”. (HOBSBAWM, 198 , p. 10).
Consideramos que é na interseção entre o clamor irreal pelo retorno de um passado
idealizado (valores morais) e pela negação do real (o social), que a educação domiciliar se
corporifica como uma aparente demanda da sociedade brasileira, mas que na realidade
busca a atender a grupos e setores específicos e minoritários da sociedade. É neste
contexto que processos de privatização, descentralização, mercantilização da educação se
antenam com o direito à autonomia, à liberdade e à individualidade entre outros evocadas
pelos defensores do homeschooling.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um contexto sociocultural, histórico e econômico em que a flexibilização
produtiva parece penetrar nas relações sociais e no padrão de consumo da maioria das
sociedades capitalistas assistimos, pari passu ao aprofundamento do individualismo, a
emergência de uma gama de produtos e serviços customizados/personalizados que buscam
atender a necessidades específicas/particulares dos clientes/consumidores (personal
trainer, coach, personal adviser etc.).
A Educação Domiciliar emerge como uma proposta/projeto familiar que a um só
tempo parece dialogar com esse processo de individualização/personalização, como
atender a possibilidade de resgate de um passado idealizado, de tradições e valores
familiares que se “perderam” nas últimas décadas. Neste contexto a escola é vista/dita como
ineficaz e a socialização que propõe (o ambiente escolar) como perigoso. E onde estaria a
eficácia e a segurança? No domicílio familiar. Não há uma discussão sobre os sentidos da
escola para a sociedade, mas sua atomização, como se a escola não fosse fruto e
componente de nossa sociedade, mas estranha a ela.
Nesse projeto societário neoliberal e neoconservador extremado, não basta atomizar
a escola, é necessário reduzir seu protagonismo social à instrução curricular. Um papel que
qualquer um pode desempenhar, sem necessidade de formação adequada, já que não
estamos falando de educação escolar, muito menos de processo de ensino aprendizagem,
mas de instrução, de transmissão mecânica de conteúdo sem contextualização sociocultural
e histórica, ou mesmo de aprofundamento teórico.
Dentro dessa dinâmica conceituar o que é eficácia escolar, ou mesmo ambiente
escolar perigoso, é disfuncional à racionalidade que parece permear o debate acerca da
Educação Domiciliar, já que em sua essência esta parece operar pelo estranhamento, pela
negação do outro e das diferenças. Nesse sentido a opção familiar pela Educação
Domiciliar, pelo particular/privado, opera pela negação do coletivo/social, este último
representado pela escola. Consideramos a proposição da educação domiciliar não apenas
um retrocesso histórico, pedagógico e social, mas principalmente um grave ataque ao direito
a educação que se configura como desresponsabilização do Estado em cumprir seu dever
constitucional com a oferta da educação básica pública gratuita e de qualidade para o
conjunto da população brasileira
REFERÊNCIAS
ANDRADE, E.P. de. Educação Domiciliar: encontrando o Direito. Pro-Posições, Campinas, v. 28, n. 2, p. 172-192, Aug. 2017.http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2016-0062.
ANPED, ANFOPE ET AL. Nota das entidades nacionais - A educação domestica fere os direitos de crianças e joven,s em 6 fev. 2019.
BARROSO, Luís Roberto. Voto. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão Recurso extraordinário 888.815 RGS. Relator: BARROSO, Luís Roberto. Publicado no DJE 21/03/2019 - ATA Nº 33/2019. DJE nº 55, divulgado em 20/03/2019. P. 11-57.
BOSETTI, Lynn; VAN PELT, Deani. Provisions for Homeschooling in Canada: Parental Rights and the Role of the State. Pro-Posições, Campinas, v. 28, n. 2, p. 39-56, ago. 2017.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da república federativa do Brasil de 1988. Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais.
BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 jun. 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá
outras providências.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão Recurso extraordinário 888.815 RGS. Relator: BARROSO, Luís Roberto. Publicado no DJE 21/03/2019 - ATA Nº 33/2019. DJE nº 55, divulgado em 20/03/2019.
FUX, Luiz. Voto. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão Recurso extraordinário 888.815 RGS. Relator: BARROSO, Luís Roberto. Publicado no DJE 21/03/2019 - ATA Nº 33/2019. DJE nº 55, divulgado em 20/03/2019. P. 101-127.
HAYEK, Friedrich August. Educação e pesquisa. In:___. Os Fundamentos da liberdade.
São Paulo: Visão, 1983. 446-465.
HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence, org. A Invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 9- 23. 316p.
SMITH, Adam. Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. 349 p. P. 7-247.
NAS TRILHAS DA MEMÓRIA: Os caminhos do letramento na escola através das trajetórias
de vida de professoras alfabetizadoras do PARFOR/UFRRJ
Cláudia Rodrigues do Carmo Arcenio19
Patricia Bastos de Azevedo20
Esta pesquisa pretende investigar as permanências e rupturas na trajetória do letramento escolar por intermédio das histórias de vida de professores que foram alfabetizados e alfabetizam na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. E que estão gerindo suas formações no Curso de Pedagogia oferecido pela UFRRJ no ambiente do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR). Compreendendo a alfabetização como uma das principais práticas de letramento escolar, esta investigação apresenta um levantamento dos indícios elencados a partir das narrativas produzidas sobre as memórias do período de alfabetização e sobre as atuais práticas em sala de aula. Palavras chave: Letramento. Alfabetização. Memória. Biografia. PARFOR.
This research intends to investigate the permanences and ruptures in the trajectory of the school literacy through the life histories of teachers who were literate in the Baixada Fluminense of Rio de Janeiro who are managing their formations in the Pedagogy Course offered by the UFRRJ in the context of the National Plan for the Training of Basic Education Teachers (PARFOR). Understanding literacy as one of the main practices of school literacy, this research presents a survey of the clue listed from narratives produced on the memories of the literacy period and on the current practices in the classroom. Keywords: Literacy. Teaching to read and write. Memory.
Biography. PARFOR.
1. INTRODUÇÃO
“É experiência aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao passar-nos nos forma e nos transforma”
Larrosa.
19
Professora da Prefeitura Municipal de Nova, Mestre em Educação/UFRRJ, Doutorando do PPGEduc/UFRRJ, E-mail claurodriguesmd@gmail.com. 20 Professora da UFRRJ, Doutora em Educação, E-mail patriciabazev@gmail.com.
A pesquisa em Educação possui uma especificidade interessante: qualquer professor
que passou por uma educação formal possui no mínimo dez anos de experiência enquanto
educando na Educação Básica. As formas de ensinar-aprender a que foram submetidos
influenciam direta ou indiretamente o seu fazer pedagógico cotidiano. Independentemente,
se repetimos ou excluímos as práticas que presenciamos enquanto estudantes seria um
contrassenso supor que todo este período de nossas vidas não repercute de alguma forma
no pensar a educação e a escola enquanto profissionais.
A identidade do professor se constitui em uma identidade coletiva. Não é incomum
nos citarmos em 3º pessoa do singular: “O professor não é valorizado!” “O professor precisa
se capacitar”. Para Pollak (1992) o que define uma identidade coletiva, não é a exclusão da
individualidade, mas o sentimento e unidade, continuidade e coerência, ou seja, a noção de
pertencimento a um grupo específico.
Dentro desta perspectiva quando refletimos sobre alfabetização e letramento
(SOARES, 1999, 2011; STREET, 2014), estamos refletindo também sobre nossas vivências
no cotidiano escolar e, é neste contexto que as trilhas do letramento, da memória e da
formação docente se entrecruzam (FREIRE, 2006).
Ao avaliarmos os discursos produzidos sobre as práticas profissionais que
pretendem facilitar a apropriação da língua e escrita queremos nos deter na investigação
das trilhas deixadas por e nestes professores de forma a observar as rupturas e
permanências do letramento através das trajetórias de vida destes profissionais
(MORTTATI, 2010), compreendendo a leitura e escrita de si como parte essencial do
processo autoformativo e, que estas escritas tornam-se elemento constitutivo da memória
coletiva e social do Letramento no Rio de Janeiro.
Ao buscar visualizar as permanências e rupturas nas práticas educativas que visam
facilitar a apropriação da leitura e da escrita através das biografias de profissionais que
atuam na área, buscamos compreender as trilhas que a alfabetização e o letramento
impregnaram ao longo dos períodos de vida destes profissionais e desta forma percebermos
o que se transformou nas práticas educativas que visam à apropriação da língua escrita; a
partir do olhar de quem de fato executa a ação de ensinar a ler e a escrever.
2. TRILHAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS: O REGISTRO (AUTO) BIOGRÁFICO COMO
FONTE DE PESQUISA
Para os fins deste artigo, buscamos analisar as autobiografias a partir dos aportes
teóricos que observam a memória como meio de reconstrução de um fenômeno em um
determinado espaço temporal (HALBWACHS, 1990; DELORY-MOMBERGER, 2016;
POLLAK, 1989, 1992). Neste sentido, baseamos nossas análises principalmente nas
propostas de Pollak, pensando a memória individual como fonte para a construção da
memória social, no sentido de fazer emergir as memórias subterrâneas destes professores
que lecionam a classes populares, conferindo às trajetórias de vida destes profissionais o
papel protagonista na construção do real. Além disso, nossas análises deságuam nos
entremeios da linguagem como canal para concretizar os discursos a serem produzidos.
Para essa discussão, trazemos as concepções de Bakhtin (1997) quanto à forma de
organização da linguagem verbal em gêneros discursivos.
Os caminhos de análise das narrativas seguem o princípio hermenêutico inspirado
no paradigma indiciário exposto por Ginzburg (1989). O autor, em seu livro “Mitos,
emblemas, sinais: Morfologia e história,” no ensaio “Sinais: Raízes de um paradigma
indiciário” propõe uma perspectiva de interpretação que considera o entorno. Neste ensa io,
Ginzburg analisa os procedimentos investigativos de Sherlok Holmes, Freud e Morelli,
atendo-se ao que lhes é comum: a atenção ao que geralmente não está exposto
propositalmente, aquilo que perpassa, os pormenores normalmente considerados sem
importância, ou até triviais (GINZBURG, 1989). Assim, podemos considerar que o
paradigma indiciário ou semiótico baseia-se na análise dos indícios, das pistas. Trazendo o
paradigma para a análise das narrativas poderemos observar o que a narrativa deixa
escapar por entre as palavras, aquilo que não é proposital, mas que revela o que está no
subterrâneo. O uso deste tipo de análise nos auxilia a compreender o que a memória
silenciou, reconstruindo a partir do entrecruzamento com a história da alfabetização no
Brasil, a história sobre o letramento escolar, que está expressa nas narrativas, não de
maneira explicita, mas de forma implícita, fugidia, rastreável, indiciária.
Temos como objeto de pesquisa as narrativas destes profissionais, contudo não é
possível desconsiderar o processo de construção das (auto) biografias neste projeto, uma
vez que se consolidam como percurso formativo estabelecido por meio das escritas de si
(DELORY-MOMBERGER, 2006).
A memória não é a reprodução de um passado com fidedignidade e, sim, uma representação do mesmo, isto é, quando lembramos o passado estabelecemos critérios de importância e/ou grandeza. Nossa memória é seletiva, escolhemos alguns elementos que a compõem e a eles privilegiamos, seja por fatores emocionais ou sociais. A memória é fugidia, flexível e socialmente composta (AZEVEDO, 2016, p. 52).
Portanto, neste ambiente, procuramos observar a partir das narrativas destes
profissionais as práticas educativas a que foram submetidos enquanto alfabetizados,
correlacionando estas práticas com suas atuais práticas em alfabetização de forma a
observar, por meio das narrativas produzidas, as rupturas e permanências nas práticas
alfabetizadoras, tendo como eixo norteador as concepções de letramento em que
permearam ambas as práticas educativas.
3. UMA TRAVESSIA: AS PERMANÊNCIAS E RUPTURAS DE UM TRECHO DA
JORNADA.
Acredito que à proporção que a sociedade se transforma, transforma-se também o
que a língua escrita passa a representar, tal como seus usos nesta sociedade. Através dos
anos, temos observado diversas configurações para o ensino de língua materna no Brasil,
em especial a língua portuguesa. Conforme a reconfiguração se estabelece surgem
acaloradas discussões sobre como se deve ensinar e até como a criança deve aprender.
A jornada do letramento é longa, inesgotável em um artigo, arriscamo-nos a dizer
mesmo em uma tese. Neste sentido é que propomos a travessia. Escolhemos uma fração
do letramento escolar limitado pelas escolhas epistemológicas e pelo espaço-tempo que nos
era aprazível. As trilhas que escolhemos percorrer estão na memória, buscando fazer
emergir através da escrita de si o que não poderia ser contado de nenhuma outra forma:
como o letramento escolar atravessou e atravessa a vida de professores alfabetizadas e
alfabetizadoras na Baixada Fluminense, compreendendo que suas memórias não são
capazes demonstrar todo o trajeto, mas ilustram um trecho da jornada contribuindo com a
visualização desta trajetória.
Buscamos caminhar por estas trilhas, observando os vestígios a fim encontrar pistas
que nos ajudem a visualizar trajetória do letramento escolar por outro ângulo, apresentando
uma perspectiva que não pretende ser a visão unificada de um determinado espaço-tempo,
mas uma fração que busca dar visibilidade a especificidade. Esta especificidade é outorgada
principalmente pelo evento único que é cada trajetória de vida, e desta forma esta travessia
vem a compor trajetória do letramento escolar de forma ímpar, específica, biográfica, se
transformando em elemento constitutivo desta jornada.
Na pesquisa que subsidiou este artigo, procuramos investigar quais concepções de
alfabetização e letramento são observáveis por meio da evocação da memória a fim de
identificar permanências e rupturas nas ações ou práticas educativas que pretendem
promover a alfabetização enquanto prática de letramento escolar. Para tanto,
demonstraremos a seguir alguns objetos gráficos que pretendem favorecer a visualização
dos resultados que obtemos a partir das histórias de vida de professores alfabetizadores em
confronto com os discursos oficiais e as estratégias de homogeneização das práticas
educativas. Além disso, é possível observar também os movimentos de resistência à
institucionalização de uma ou outra vertente para o ensino da escrita representada,
sobretudo, pelas permanências, adaptações e combinações entre os métodos ou
concepções para se alfabetizar.
Neste sentido torna-se importante organizar os indícios encontrados de forma
sistemática a fim de facilitar a visualização dos resultados de nossas análises.
A fim de aperfeiçoar esta exposição elaboramos quadros expositivos, linhas do
tempo e gráficos que permitem a visualização simultânea dos resultados desta pesquisa que
emergem do campo selecionado.
O primeiro quadro que elaboramos pretende expor os indícios de permanência do
letramento escolar que encontramos nas narrativas:
Figura: 1
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Vejamos também as rupturas que extraímos das narrativas.
Figura: 2.
Figura: 3
Fonte: Elaborado pelas autoras.
A próxima figura pretende evidenciar os pontos de intersecção entre as narrativas da
primeira das duas últimas fases do ateliê. O objetivo da elaboração deste objeto é evidenciar
os resultados desta pesquisa graficamente. A permanência é constituída pela interseção
entre as narrativas elaboradas nas Memórias de Alfabetização em comparação às Memórias
da Escola e as autobiografias elaboradas ao final do percurso formativo.
Figura: 4
Fonte: Elaboração das autoras.
É possível observar que há um quantitativo maior de rupturas. Acreditamos,
entretanto, que estas rupturas não são abruptas. Ao mesmo tempo que algumas delas se
estabelecem através de imposições, entendemos que outras vão se construindo nas
trajetórias, no cotidiano, na vivência. Pensamos que além do fator temporal, o quantitativo
superior de rupturas pode caracterizar três realidades diferentes apesar de ser possível
vinculá-las.
A primeira se refere aos avanços nas pesquisas em alfabetização e letramento que
vem norteando as formações inicial e continuada dos professores. Como vimos, a formação
pode se estabelecer como travessia e motivar mudanças diretas nas práticas profissionais A
segunda se refere ao indício que encontramos na 2º fase do ateliê que diz respeito à
intervenção das secretarias motivadas pelas avaliações externas que influencia diretamente
o fazer pedagógico cotidiano. E por fim, podemos assinalar que as urgências que emergem
do cotidiano escolar podem favorecer as rupturas. Além disso, podemos inferir que algumas
destas urgências sofrem a influência das políticas de ampliação da universalização do
acesso e da permanência ao ensino fundamental à medida que exigem a reformulação de
estratégias para atender diferentes públicos.
As permanências parecem apontar para duas perspectivas opostas. Observamos
que podem indicar tanto o diálogo com a experiência, com o que é necessário para que a
alfabetização se realize, com o reconhecimento de práticas que se constroem de forma
exitosa, quanto com as implicações específicas do cotidiano escolar, ou a imposições que
por vezes fogem ao fazer pedagógico. Isto é, pouco pode fazer o professor presencialmente
para mudar a caracterização do espaço físico da sala de aula além de colar cartazes e
mudar a disposição das cadeiras, por exemplo. As estratégias de utilização de outros
espaços da escola também se constroem como permanência podendo ou não estar
relacionada à revitalização do espaço da sala de aula agregando outros espaços destinados
à aprendizagem. Neste sentido observamos que nem toda permanência é optativa algumas
permanências são literalmente impostas.
Contudo, dentre tantas narrativas, chama-nos atenção o relato de alfabetização de
Silvia: todas as práticas alfabetizadoras que sua professora utilizou em 1985 se mantiveram
até hoje como indícios de permanência. Neste sentido, podemos inferir que estas práticas
em específico vão se estabelecendo por meio do compartilhamento, da memória dividida, da
prática bem-sucedida. Diferente de algumas rupturas, elas parecem não estar ligadas a
imposições, mas parecem se construir na experiência e na vivência em sala de aula.
A próxima elaboração gráfica tem o objetivo de demonstrar a simultaneidade que
observamos nas narrativas entre as permanências e rupturas. Na elaboração exposta a
seguir, antevemos que a maior parte dos elementos de ruptura foi extraída das narrativas de
Cristiane e que somente as memórias de Silvia apresentam-se integralmente como
permanências ao final do percurso.
Vejamos a construção gráfica a seguir:
Espiral do tempo
Figura: 5
E
Fonte: Elaboração das Autoras
Ainda sobre a composição gráfica acima, recordamos que as professoras-alunas
Amanda e Daniele, embora tenham matrícula ativa no PARFOR/UFRRJ não atendiam as
características para análise da segunda e terceira fase do ateliê: Amanda por não lecionar
na Baixada Fluminense e Daniele por seu último exercício se estabelecer na Educação
Infantil.
Além disso, avistamos que os métodos sintéticos, que aparecem em 50% das
Memórias de Alfabetização, não reaparecem na segunda fase caracterizando uma
importante ruptura. Isto é, tal como assinalamos nos tópicos anteriores, a preferência pelo
método sintético parece indicar a compreensão da língua escrita como um código a ser
decifrado. De fato a língua apresenta esta faceta, entretanto compreendemos que a
abordagem apenas desta característica no ensino não produz proficiência em leitura se
observada à variedade de gêneros textuais que circulam nas sociedades contemporâneas.
É importante observar a língua em sua faceta interativa assim como compreendê-la como
uma construção social a fim de evitar equívocos catastróficos no ensino. A retomada de um
posicionamento que entende a língua como somente uma coisa ou outra seria um
retrocesso aos avanços nas pesquisas em alfabetização e letramento que atualmente
compreendem a língua escrita como um constructo cultural multifacetado (SOARES, 2018)
buscando privilegiar as práticas sociais em que a escrita se faz necessária em conjunto com
o ensino sistemático do sistema de escrita.
As professoras parecem ter compreendido isto. A preferência pelos métodos
ecléticos e analíticos e práticas alfabetizadoras que levam em consideração o lado interativo
da língua prevalece na segunda e terceira fase do dispositivo. As afirmações são
confirmadas por vários dos indícios de ruptura evidenciados nas narrativas e expostos na
espiral do tempo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluindo este trabalho, depreendemos que as permanências e rupturas que
encontramos através da memória destes professores integram de forma constitutiva
Memória do Letramento Escolar na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. É evidente que
estas memórias são apenas travessias: atravessamentos em uma jornada muito maior que
configura a trajetória do letramento escolar.
No entanto, gostamos de pensar que estes atravessamentos podem contribuir para a
compreensão desta trajetória, tendo em vista que colaboram para fazer emergir a memória
de parte de um grupo bastante específico: professores em formação e em exercício que
foram alfabetizados e alfabetizam na Baixada Fluminense, estabelecendo vínculos
colaborativos com a memória oficial do letramento escolar no Estado.
No decorrer desta pesquisa compreendemos que as permanências se constituem
como trilhas cruzadas entre espaços e tempos, entre os pontos de travessias. Elas podem
representar continuidade de práticas eficazes ou exitosas. Podem se estabelecer como
momentos de enfrentamento e resistência ao que muitas vezes se torna homogeneizante às
práticas educativas. Ou simplesmente podem representar imposição ou acomodação. Cada
permanência tem sua razão de resistir/existir. As rupturas acontecem gradativamente não
podendo ser estabelecidas apenas pela existência de uma legislação ou documento oficial
que apesar de criar um ambiente propício para que elas aconteçam através de mecanismos
de intervenção e monitoramento, não tem a capacidade de impor rompimentos imediatos,
eles vão se construindo no fazer pedagógico, no cotidiano escolar. Deste modo ressaltamos
que as permanências e as rupturas só existem na trajetória e a trajetória somente se realiza
através das travessias que as histórias de vida das pessoas compõem.
REFERÊNCIA
AZEVEDO, P.B. Ensino de história e memória social. A construção de história-ensinada em uma sala de aula dialógica. Niemcy: Edições Acadêmicas, 2016, v.1. p. 155.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
DELORY-MOMBERGER, C. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. Revista Educação e Pesquisa (online). Vol. 32 n.10 p. 359-371. São Paulo: 2006.
FREIRE, P. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 2006.
GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Tradução: Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Edições Vértice. Editora Revista dos tribunais LTDA. São Paulo: 1990
DELORY-MOMBERGER, C. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. Revista Educação e Pesquisa (online). Vol. 32 n.10 p. 359-371. São Paulo: 2006.
DELORY-MOMBERGER, C. A pesquisa biográfica ou a construção compartilhada de um saber singular. Revista Brasileira de Estudos (Auto) biográficos. N.1, 2016.
MORTATTI, M.R.L. Alfabetização no Brasil: conjecturas sobre as relações entre públicas e seus sujeitos privados. Revista Brasileira de Educação v. 15 n.44 maio/ ago.
2010.
POLLAK, M. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Ed. Vértice, n. 3, p. 3-15, 1989.
POLLAK, M. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos. vol. 5 n.10 Rio de
Janeiro: 1992.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. São Paulo: Autêntica, 1999
SOARES, M. Alfabetização e Letramento. 6º Ed. São Paulo: Contexto, 2011.
SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2018.
STREET. B. Letramentos Sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2014.
Recommended