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Trabalho apresentado ao Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/ICPD) como pré-requisito para obtenção de Certificado de Conclusão de Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Direito Penal e Controle Social
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Centro Universitrio de Braslia
Instituto CEUB de Pesquisa e Desenvolvimento - ICPD
MARCEL FORTES DE OLIVEIRA PORTELA
MORTE CULPOSA NO TRNSITO E RACHA: ALTERNATIVAS DUPLA TIPIFICAO INTRODUZIDA PELA LEI N 12.971/2014
Braslia 2015
MARCEL FORTES DE OLIVEIRA PORTELA
MORTE CULPOSA NO TRNSITO E RACHA: ALTERNATIVAS DUPLA TIPIFICAO INTRODUZIDA PELA LEI N 12.971/2014
Trabalho apresentado ao Centro Universitrio
de Braslia (UniCEUB/ICPD) como pr-
requisito para obteno de Certificado
de Concluso de Curso de Ps-graduao Lato Sensu em Direito Penal e Controle Social
Orientador: Marcelo Ferreira de Souza
Braslia 2015
MARCEL FORTES DE OLIVEIRA PORTELA
MORTE CULPOSA NO TRNSITO E RACHA: ALTERNATIVAS DUPLA TIPIFICAO INTRODUZIDA PELA LEI N 12.971/2014
Trabalho apresentado ao Centro Universitrio
de Braslia (UniCEUB/ICPD) como pr-
requisito para obteno de Certificado
de Concluso de Curso de Ps-graduao Lato Sensu em Direito Penal e Controle Social
Orientador: Prof. Marcelo Ferreira de Souza
Braslia, 03 de Julho de 2015.
Banca Examinadora
_________________________________________________
Prof. Msc. Marcelo Ferreira de Souza
_________________________________________________
Profa. Dra. Tnia Cristina da Silva Cruz
_________________________________________________
Prof. Alex Duarte Santana Barros
O marche implacable des socits humaines! Pertes d'hommes et d'mes chemin faisant! Ocan o tombe tout ce que laisse tomber la loi! Disparition sinistre du secours! mort morale! La mer c'est l'inexorable nuit sociale o la pnalit jette ses damns. La mer c'est l'immense misre. L'me, vau-l'eau dans ce gouffre, peut devenir un cadavre. Qui la ressuscitera? (Victor Hugo, Les Misrables, 1re partie, II, 8)
RESUMO
O objetivo desta pesquisa apresentar alternativas questo da dupla
tipificao da morte culposa no trnsito em situao de racha, introduzida pela Lei n 12.971/2014. Optou-se por investigar a questo sob o prisma estritamente judicial, do operador do direito, que lida com problemas deduzidos em juzo, sem discutir possveis solues legislativas. No primeiro captulo foi traado o perfil dogmtico dos tipos de morte culposa em situao de racha. No segundo, procurou-se analisar a tramitao legislativa dos Projetos que resultaram na Lei n 12.971/2014, para definir qual foi a inteno do legislador (mens legislatoris), por meio de interpretao dos documentos legislativos. Buscou-se ainda equacionar o problema da dupla tipificao da morte culposa no trnsito, com base nos critrios e mtodos tradicionais de interpretao da norma penal, para definir a inteno objetivada na lei (mens legis). Por ltimo, analisou-se se as modernas discusses em torno dos limites do controle de constitucionalidade de normas penais, com fundamento no princpio da proporcionalidade, impem que se afaste a resposta proporcionada pelos mtodos tradicionais de hermenutica, com base no princpio da vedao da proteo insuficiente/deficiente de bens jurdico-penais. Em termos metodolgicos, a presente pesquisa um estudo de caso representativo do embate entre os critrios liberais clssicos de interpretao e os imperativos de garantia positiva dos bens jurdico-penais de modo proporcional a sua estatura na ordem de valores constitucional. O ncleo da pesquisa se desenrola por meio, essencialmente, de um trabalho de reviso sistemtica da bibliografia sobre o assunto. Concluiu-se que uma interpretao que leve a srio os imperativos constitucionais de tutela e segurana suficientes aos bens jurdicos exige que se opte pelo tipo mais grave, a despeito de a hermenutica penal tradicional resultar na aplicao da norma mais benfica ao ru. Palavras-chave: Dupla tipificao da morte culposa em situao de racha. Interpretao das normas penais. Princpio do in dubio pro reo. Princpio da proporcionalidade. Vedao da proteo insuficiente.
ABSTRACT
The objective of this research is to present alternatives to the problem of the double criminalization of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized speed contest, introduced by Federal Statute n 12.971/2014. We chose to investigate the issue from the perspective of the judicial operator, who handles problems deducted in court, without discussing possible legislative solutions. In the first chapter, was drawn the dogmatic profile of the two crimes of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized speed contest. In the second, we tried to analyze the legislative process of the law proposals that resulted in Federal Statute n 12.971/2014, to define what was the intention of the legislator (mens legislatoris), by means of the interpretation of the legislative documents. It was also attempted to elucidate the problem of the double criminalization of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized speed contest, through the employment of the traditional criteria and methods of interpreting the criminal statutes, to define the objectified intention in the law (mens legis). Finally, we analyzed whether the modern discussions about the limits of judicial review of laws on the basis of the principle of proportionality and of the prohibition of insufficient protection of legal interests require that the answer provided by the traditional methods of the hermeneutics of criminal laws be abandoned. In terms of methodology, this research is a case study of the overspread dispute between the classic liberal interpretation criteria and the positive assurance imperatives of legal interests in proportion to their status in the order of constitutional values. The core of the research unfolds through a systematic review of the literature on the subject. We concluded that an interpretation that takes the constitutional imperatives of protection and sufficient security to legal interests seriously requires that we opt for the application of the more severe offense, despite the traditional criminal hermeneutics criteria resulting in the application of the most favorable norm to the defendant. Key words: The double criminalization of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized races. Interpretation of criminal statutes. In dubio pro reo principle. Principle of proportionality. Prohibition of insufficient protection of legal interests.
SUMRIO
INTRODUO ______ 09
1 A LEI N 12.971/2014 E O PERFIL DOGMTICO DA MORTE CULPOSA NO
TRNSITO EM SITUAO DE RACHA ______14
1.1 As alteraes no tipo de homicdio culposo no trnsito _______ 15
1.2 As alteraes no tipo de participao em competio automobilstica no
autorizada (racha) ______19
1.3 A dupla tipificao da morte culposa em situao de racha _______24
2 A RESPOSTA DA HERMENUTICA TRADICIONAL PARA A DUPLA
TIPIFICAO DA MORTE CULPOSA NO TRNSITO EM SITUAO DE
RACHA ______ 31
2.1 O sentido e a importncia da mens legislatoris ______ 31
2.2 O sentido e a importncia da mens legis _______32
2.3 O sentido e a importncia do in dubio pro reo _______37
3 A RESPOSTA DA HERMENUTICA CONSTITUCIONAL CONTEMPORNEA
PARA A DUPLA TIPIFICAO DA MORTE CULPOSA NO TRNSITO EM
SITUAO DE RACHA____________________________________________50
3.1 O Direito Penal e a dupla dimenso das normas constitucionais de direitos
fundamentais: perspectivas subjetiva e objetiva ______51
3.2 O Direito Penal e a dupla face do princpio da proporcionalidade: a vedao
do excesso e a proibio de proteo insuficiente_______________________54
3.3 O controle de constitucionalidade pela via da proporcionalidade da Lei n
12.971/2014_______________________________________________________57
CONCLUSO _______64
REFERNCIAS _______68
9
INTRODUO
antiga a interveno do Direito no mbito do trnsito e dos transportes.
A existncia das civilizaes, na forma como as conhecemos, sempre pressups
algum nvel de circulao espacial de recursos humanos e materiais. As migraes
populacionais, os intercmbios comerciais, as invases, as viagens e descobertas
marcam a histria do homem. E onde h vida social, l estar o Direito ainda que em
um nvel ainda rudimentar.
O regime jurdico dos transportes ou o Direito de Trnsito serve no
apenas para fixar as regras adequadas a orientar a ordinria e regular
movimentao de pessoas, animais, mercadorias e veculos (normas de segurana,
de proteo, de gesto), como para resolver os conflitos que emergem quando
ocorrem inevitveis intercorrncias danosas a pessoas e/ou ao patrimnio. Os
frequentes acidentes explicam porque o Direito de Trnsito uma rea de especial
interface entre normas administrativas e de responsabilidade civil e penal.
O quadro desolador, de autntica tragdia humanitria, vivenciado no
trnsito, na maioria das naes desenvolvidas, tem produzido a percepo de que o
conjunto normativo existente no suficiente para fazer frente ao incremento da
complexidade das relaes de transporte, advindas do rpido crescimento
populacional, do aumento descontrolado da frota veicular e da urbanizao
acelerada vivenciada nas ltimas dcadas. Essa situao gerou uma crescente
produo legislativa em matria de trnsito, tornada essa matria em pauta
prioritria dos polticos dos mais variados espectros ideolgicos, em funo da
visibilidade que proporciona. Essa produo legislativa alcanou tambm a esfera
penal, do que so exemplos: a nova Lei Seca (Lei n 11.705 de 2008) e suas
sucessoras (dentre as quais a Lei n 12.760 de 2012), que tornaram mais rgido o
tratamento jurdico da embriaguez ao volante.
O Cdigo de Trnsito Brasileiro possui um captulo apenas para tratar dos
Crimes de Trnsito. L esto tipificadas diversas condutas delituosas, como o
homicdio culposo, a leso corporal culposa, a omisso de socorro e outras que
mereceram tratamento diferenciado quando praticadas em situao de trnsito. O
10
crime de participao em corrida no autorizada, o popular racha, delito exclusivo
da legislao de trnsito, tambm se encontra tipificado no referido Captulo.
Foi com vistas a punir mais severamente a prtica do racha, bem como
a ocorrncia de leses graves e mortes no trnsito, que o legislador brasileiro editou
a Lei n 12.971/2014 (oriunda do Projeto de Lei n 2.592/2007 da Cmara dos
Deputados), de 09 de maio de 2014, aumentando as sanes administrativas
(amplitude de multas) e alterando a redao tpica e as penas de alguns crimes.
No que interessa especificamente ao problema a ser destacado na
presente pesquisa, vale apontar que a Lei parece haver inserido, como se ir
detalhadamente demonstrar, em dois dispositivos diferentes, mas com quase
idnticas elementares do tipo, dois crimes de morte culposa em situao de racha,
atribuindo a cada um deles penas diferentes.
Assim, como se h de verificar, desde maio de 2014, existiriam dois tipos
de morte culposa em situao de racha no Brasil. O primeiro estaria inserido como
forma qualificada do homicdio culposo (art. 302, 2 do CTB), com a pena de dois a
quatro anos de recluso e o segundo estaria inserido como forma qualificada do
crime de racha (art. 308, 2 do CTB), com a pena de cinco a dez anos de
recluso.
O problema que concretamente se coloca, portanto, na presente pesquisa
o seguinte: como equacionar juridicamente a questo da dupla tipificao da morte
culposa no trnsito em situao de racha, introduzida pela Lei n 12.971/2014?
fcil perceber que, admitindo-se que realmente ocorreu a dupla
tipificao da mesma infrao penal, a referida Lei produziu uma situao de terrvel
insegurana jurdica que precisa ser adequadamente enfrentada pela doutrina. A
existncia de dois tipos criminais, com, praticamente, as mesmas elementares e com
penas diferentes, produz um enorme risco de incrementar a j injusta seletividade do
Direito Penal, com indiciamentos, denncias e condenaes variando drasticamente,
conforme o perfil socioeconmico/racial do acusado, abrindo-se a possibilidade de
que delegados, promotores e juzes acabem optando por um dos tipos criminais, e
por sua respectiva pena, de maneira mais ou menos arbitrria e irracional, em
autntico retorno a um Direito Penal do agente e no do fato. A garantia
constitucional de que no h crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
11
prvia cominao legal (art. 5, inciso XXXIX da Constituio Federal), pressupe
que a lei penal seja certa, inteligvel, com mbito de incidncia bem definido.
Essa questo poderia se desdobrar em dois planos, o da aplicao
normativa, ou seja, o do momento da deciso judicial, da busca de uma soluo
para o caso concreto e o da fundamentao normativa, ou seja, o do momento da
produo de uma lei nova. Mas os estreitos limites desta monografia impem a
opo pela anlise de apenas um dos planos. Optou-se por investigar a questo sob
o prisma estritamente judicial, do operador do direito, que lida com problemas
deduzidos em juzo.
Assim, o que se buscar definir neste trabalho : qual dos dois tipos
criminais de morte culposa no trnsito em situao de racha dever prevalecer,
empregando-se os critrios e mtodos clssicos de interpretao da norma penal,
em cotejo com as novas discusses sobre a vedao da proteo insuficiente de
bens jurdico-penais?
Observe-se que, com o intuito de apresentar uma fundada resposta ao
dilema que se coloca e sem nunca perd-lo de vista, levantar-se-o discusses
sobre temas prementes, na Teoria do Crime e na Poltica Criminal de hoje, dentre os
quais: o princpio da proibio da proteo deficiente, bem jurdico-penal e
controle de constitucionalidade de leis penais e princpio da proporcionalidade e
normas penais. Tambm se passaro em revista crtica os critrios e mtodos
tradicionais da interpretao jurdica das normas penais, cunhados no auge do
liberalismo poltico iluminista, buscando avaliar a sua validade e utilidade presentes,
em confronto com os modernos imperativos constitucionais de proteo suficiente
aos bens jurdicos fundamentais e de proporcionalidade legislativa.
Para levar a cabo essa tarefa, a presente pesquisa se divide em trs
captulos. No primeiro, ser possvel, traando o perfil dogmtico dos crimes sob
anlise, entender-se: como e se, efetivamente, as principais alteraes, introduzidas
pela Lei n 12.917/2014, resultaram na dupla tipificao da morte culposa em
situao de racha?
No segundo, procurar-se- analisar a tramitao legislativa dos Projetos
que resultaram na Lei n 12.971/2014 para definir, se possvel, qual foi a inteno do
legislador (mens legislatoris). O referido trabalho factvel e no apresenta maiores
dificuldades, uma vez que o mapeamento de todo o processo legislativo j levado
a cabo pela assessoria tcnica de ambas as casas do Congresso Nacional e pode
12
ser acompanhado nos respectivos endereos eletrnicos. Como no se trata aqui de
fazer anlise de discurso dos textos dos autores das proposies, mas de simples
colheita das justificativas apresentadas nos Projetos e nos relatrios das Comisses
de Mrito, com a finalidade de identificar eventual inteno bem definida do
legislador penal, para apoiar a atividade de fixao do sentido da mudana
normativa, que o foco deste trabalho, no se faz necessrio nenhum tratamento
metodolgico prvio especial dos dados a serem coletados. Trata-se de simples
interpretao de textos.
Verificar-se- ainda se possvel equacionar o problema da dupla
tipificao da morte culposa no trnsito com base nos critrios e mtodos
tradicionais de interpretao da norma penal, para definir, se possvel, a inteno
objetivada na lei (mens legis).
E, por ltimo, tendo-se em vista o resultado interpretativo obtido no captulo
anterior, ser preciso contextualizar as modernas discusses em torno dos limites do
controle de constitucionalidade de normas penais com fundamento no princpio da
proporcionalidade, analisando se ser possvel afastar a resposta fornecida pelos
mtodos tradicionais de hermenutica com base no princpio da vedao da
proteo insuficiente/deficiente de bens jurdico-penais.
Acreditamos que o impasse interpretativo introduzido pela Lei n
12.971/2014 apenas um exemplo significativo, e particularmente aberrante, no
ordenamento jurdico brasileiro, do embate, que se torna cada vez mais frequente,
entre os critrios liberais clssicos de interpretao e os imperativos de garantia
positiva dos bens jurdico-penais de modo proporcional a sua estatura na ordem de
valores constitucional.
Como se props a pr em debate dois paradigmas de interpretao, com
foco no problema anteriormente apresentado, o ncleo da pesquisa se desenrola por
meio, essencialmente, de um trabalho de reviso sistemtica da bibliografia sobre o
assunto. Por meio da reviso bibliogrfica, ser possvel traar um panorama de
ambos os esquemas interpretativos cotejados e submet-los anlise crtica,
sempre com vistas ao equacionamento da questo jurdica especfica posta em
discusso, da dupla tipificao da morte culposa no trnsito em situao de racha.
A seleo do material de pesquisa tambm levou em conta os estreitos limites desta
obra, de cunho monogrfico, que no poder ter a pretenso de esgotar o assunto e
13
nem de fornecer um apanhado completo de todos os temas abordados, mas apenas
de refletir de forma concreta, crtica e propositiva acerca do problema discutido.
A hiptese que se pretende verificar com a presente investigao, como j
referido : dever ser afastado o resultado interpretativo produzido pelos parmetros
tradicionais da hermenutica penal liberal, por no ser a soluo mais adequada da
perspectiva de uma orientao comunitarista do conceito de bem jurdico, que
pressupe um dever do Estado de assegurar-lhe proteo suficiente na ordem de
valores da Constituio?
14
1 A LEI N 12.971/2014 E O PERFIL DOGMTICO DA MORTE CULPOSA NO
TRNSITO EM SITUAO DE RACHA
A Lei n 12.971, de 09 de maio de 2014, alterou o Cdigo de Trnsito
Brasileiro, Lei n 9.503/1997, introduzindo alteraes nos tipos de quatro delitos j
previstos na legislao de trnsito (leso e morte culposa no trnsito, embriaguez ao
volante e a participao em disputas automobilsticas no autorizadas, vulgarmente,
conhecida como racha), bem como incrementando as sanes administrativas
correspondentes s infraes associadas a esses mesmos delitos.
A Lei n 12.971/2014 previu um perodo de vacatio legis, programando a
sua entrada em vigor apenas a partir do dia 01 de novembro de 2014. No custa
lembrar que a lei no teve eficcia nesse perodo de suspenso de sua vigncia
nem mesmo para beneficiar o ru, segundo entendimento do STF1, uma vez que o
referido interstcio de prova pressupe a possibilidade de que a norma seja
revogada. O que no impede, no entanto, a eficcia retroativa da lex melior,
afetando inclusive os fatos praticados no perodo de vacncia, quando efetivamente
entrar em vigor o diploma legislativo, conforme regra corriqueira de aplicao e
interpretao das normas penais, que reflete um dos corolrios do princpio da
legalidade2.
As alteraes estritamente administrativas, como j se referiu,
correspondem a um substancioso incremento das sanes pecunirias (multas) dos
seguintes ilcitos administrativos: disputar corrida, promover ou participar de
competio de percia em manobra de veculo sem autorizao, ultrapassagem na
contramo, ultrapassagem em local imprprio e passagem forada entre veculos
que transitam em sentidos opostos (CAVALCANTE, 2014).
1 STF - Inq: 1879 DF, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 10/09/2003, Tribunal Pleno,
Data de Publicao: DJ 07-05-2004 PP-00008 EMENT VOL-02150-01 PP-00028). 2 CONSTITUIO DA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988
Art. 5. [...] XL - a lei penal no retroagir, salvo para beneficiar o ru; DECRETO-LEI N
o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.
Art. 2 - Ningum pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execuo e os efeitos penais da sentena condenatria. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) Pargrafo nico - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentena condenatria transitada em julgado. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984)
15
O objeto deste estudo, no entanto, analisar apenas as alteraes
introduzidas pela Lei n 12.971/2014, nos crimes de homicdio culposo e de racha,
em especial, para propor uma soluo jurdica para a dupla tipificao, produzida
pelo diploma, da morte culposa no trnsito, em situao de racha.
1.1 As alteraes no tipo de homicdio culposo no trnsito
O crime de homicdio culposo no trnsito, previsto no artigo 302 do
Cdigo de Trnsito, apresenta a seguinte redao, aps as recentes alteraes:
Art. 302. Praticar homicdio culposo na direo de veculo automotor: Penas - deteno, de dois a quatro anos, e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor. 1
o No homicdio culposo cometido na direo de veculo automotor, a
pena aumentada de 1/3 (um tero) metade, se o agente: (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) I - no possuir Permisso para Dirigir ou Carteira de Habilitao; (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) II - pratic-lo em faixa de pedestres ou na calada; (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) III - deixar de prestar socorro, quando possvel faz-lo sem risco pessoal, vtima do acidente; (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) IV - no exerccio de sua profisso ou atividade, estiver conduzindo veculo de transporte de passageiros. (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) 2
o Se o agente conduz veculo automotor com capacidade psicomotora
alterada em razo da influncia de lcool ou de outra substncia psicoativa que determine dependncia ou participa, em via, de corrida, disputa ou competio automobilstica ou ainda de exibio ou demonstrao de percia em manobra de veculo automotor, no autorizada pela autoridade competente: (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) Penas - recluso, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor. (Includo pela Lei n 12.971, de 2014)
Observe-se que a redao do tipo bsico, bem como a suas penas
(deteno de dois a quatro anos e proibio ou suspenso de se obter a permisso
ou a habilitao para dirigir veculo automotor) foram mantidas. Trata-se de um crime
culposo, que, portanto, sempre ensejar a substituio da pena privativa de
liberdade pela restritiva de direitos, cumpridos os outros requisitos da legislao
penal (ser o ru primrio e fazendo-se presentes as outras circunstncias pessoais
que recomendam a substituio). 3
3 DECRETO-LEI N
o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.
16
As causas de aumento de pena, que antes compunham o pargrafo nico
do artigo 302 foram mantidas, passando a constituir os incisos do 1. A verdadeira
modificao introduzida pela Lei n 12.971 consta do novo 2 do artigo 302.
Pretendeu-se tipificar duas formas qualificadas do delito de homicdio culposo
previsto no caput: quando o condutor do veculo se encontrar com a sua capacidade
psicomotora alterada em razo de embriaguez alcolica ou causada por outra
substncia entorpecente ou ainda quando o homicdio ocorrer no contexto de uma
corrida, disputa, competio automobilstica ou demonstrao de percia em
manobra de veculos no permitida pela autoridade de trnsito, o que caracteriza a
situao configuradora do crime de racha.
As formas qualificadas de homicdio culposo no trnsito, no entanto,
receberam a mesma pena de sua forma simples: de dois a quatro anos de priso. O
fato de o termo deteno, empregado no caput, haver sido substitudo por
recluso no faz nenhuma diferena, a no ser de carter simblico. Com uma
pena igual ou inferior a quatro anos de priso e um ru primrio, o regime de
cumprimento de pena ser o aberto/domiciliar, independentemente, de se tratar de
recluso ou deteno. Na lgica do Cdigo Penal vigente, a nica diferena
significativa entre a recluso e a deteno que apenas para crimes aos quais se
comine a recluso possvel se impor o regime fechado de cumprimento da pena
privativa de liberdade. Mas tambm caber, desde o incio, para condenados no
reincidentes a uma pena igual ou menor que quatro anos o regime aberto, at
porque a fixao do regime aberto no guarda relao com a espcie de pena
(recluso ou deteno), mas com a quantidade de pena (at 04 anos). 4 E essa pena
Art. 44. As penas restritivas de direitos so autnomas e substituem as privativas de liberdade, quando: (Redao dada pela Lei n 9.714, de 1998) I aplicada pena privativa de liberdade no superior a quatro anos e o crime no for cometido com violncia ou grave ameaa pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; (Redao dada pela Lei n 9.714, de 1998) II o ru no for reincidente em crime doloso; (Redao dada pela Lei n 9.714, de 1998) III a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstncias indicarem que essa substituio seja suficiente. (Redao dada pela Lei n 9.714, de 1998) 4 DECRETO-LEI N
o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.
Art. 33 - A pena de recluso deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. A de deteno, em regime semiaberto, ou aberto, salvo necessidade de transferncia a regime fechado. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) 1 - Considera-se: (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) a) regime fechado a execuo da pena em estabelecimento de segurana mxima ou mdia; b) regime semiaberto a execuo da pena em colnia agrcola, industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execuo da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.
17
de priso em regime aberto ser quase sempre substituda por uma restritiva de
direitos (art. 44 do CP) ou suspensa, nos termos do artigo 77 do Cdigo Penal5, o
que significa que a referida alterao no representa nada em termos de incremento
do rigor punitivo.
Alm de no ter havido agravamento de pena, por ter sido mantida a
mesma escala punitiva do preceito secundrio da forma simples, a previso da
forma qualificada de homicdio culposo no trnsito em situao de embriaguez
impede que a morte culposa e a embriaguez ao volante sejam tratadas como crimes
autnomos, do modo que vinha fazendo parcela da jurisprudncia, ora entendendo
que se tratava de concurso formal, ora material, entre os dois delitos, embora o
entendimento majoritrio na jurisprudncia j fosse o de que haveria consuno, o
crime de dano absorvendo o crime de perigo concreto6.
Afastada a possibilidade de concurso, ao crime de homicdio que,
ademais de ser culposo, tem pena mxima igual a quatro anos, falta base legal para
a decretao da priso preventiva, nos termos dos artigos 312 e 313 do Cdigo de
2 - As penas privativas de liberdade devero ser executadas em forma progressiva, segundo o mrito do condenado, observados os seguintes critrios e ressalvadas as hipteses de transferncia a regime mais rigoroso: (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos dever comear a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado no reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e no exceda a 8 (oito), poder, desde o princpio, cumpri-la em regime semiaberto; c) o condenado no reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poder, desde o incio, cumpri-la em regime aberto. 3 - A determinao do regime inicial de cumprimento da pena far-se- com observncia dos critrios previstos no art. 59 deste Cdigo. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) 4
o O condenado por crime contra a administrao pblica ter a progresso de regime do
cumprimento da pena condicionada reparao do dano que causou, ou devoluo do produto do ilcito praticado, com os acrscimos legais. (Includo pela Lei n 10.763, de 12.11.2003) 5 DECRETO-LEI N
o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.
Art. 77 - A execuo da pena privativa de liberdade, no superior a 2 (dois) anos, poder ser suspensa, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que: (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) I - o condenado no seja reincidente em crime doloso; (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstncias autorizem a concesso do benefcio;(Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) III - No seja indicada ou cabvel a substituio prevista no art. 44 deste Cdigo. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) 1 - A condenao anterior a pena de multa no impede a concesso do benefcio.(Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) 2
o A execuo da pena privativa de liberdade, no superior a quatro anos, poder ser suspensa, por
quatro a seis anos, desde que o condenado seja maior de setenta anos de idade, ou razes de sade justifiquem a suspenso. (Redao dada pela Lei n 9.714, de 1998) 6 TJ-DF - APR: 260502720108070007 DF 0026050-27.2010.807.0007, Relator: ROBERVAL
CASEMIRO BELINATI, Data de Julgamento: 22/03/2012, 2 Turma Criminal, Data de Publicao: 30/03/2012, DJ-e Pg. 204 e STJ Resp 629,087/MG, 5 Turma, Relator Ministro Arnaldo da Fonseca, Julgado em 7/4/2005, DJ de 9-5-2005, p. 462.
18
Processo Penal7, devendo ser o indiciado ou acusado liberado provisoriamente com
ou sem fiana. A priso em flagrante delito cabvel, mas dificilmente pode ser
mantida, uma vez que o suspeito, aps ser detido e conduzido Delegacia, poder
ter a sua fiana arbitrada pela autoridade policial, segundo o disposto no artigo 322
do diploma processual penal8.
O crime de leso corporal culposa do artigo 303 do Cdigo de Trnsito9
no foi modificado, apenas alterando-se a meno topogrfica s causas de
aumento de pena (de um tero metade), que so as mesmas do homicdio
culposo.
O crime de embriaguez ao volante do artigo 30610 tambm sofreu
pequenas alteraes com a Lei n 12.917/2014. Inseriu-se, em seu pargrafo
7 DECRETO-LEI N 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.
Art. 312. A priso preventiva poder ser decretada como garantia da ordem pblica, da ordem econmica, por convenincia da instruo criminal, ou para assegurar a aplicao da lei penal, quando houver prova da existncia do crime e indcio suficiente de autoria. (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). Pargrafo nico. A priso preventiva tambm poder ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigaes impostas por fora de outras medidas cautelares (art. 282, 4
o). (Includo
pela Lei n 12.403, de 2011). Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Cdigo, ser admitida a decretao da priso preventiva: (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade mxima superior a 4 (quatro) anos; (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentena transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei n
o 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Cdigo
Penal; (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). III - se o crime envolver violncia domstica e familiar contra a mulher, criana, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficincia, para garantir a execuo das medidas protetivas de urgncia; (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). IV - (Revogado pela Lei n 12.403, de 2011). Pargrafo nico. Tambm ser admitida a priso preventiva quando houver dvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta no fornecer elementos suficientes para esclarec-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade aps a identificao, salvo se outra hiptese recomendar a manuteno da medida. (Includo pela Lei n 12.403, de 2011). 8 DECRETO-LEI N 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.
Art. 322. A autoridade policial somente poder conceder fiana nos casos de infrao cuja pena privativa de liberdade mxima no seja superior a 4 (quatro) anos. (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). Pargrafo nico. Nos demais casos, a fiana ser requerida ao juiz, que decidir em 48 (quarenta e oito) horas. (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). 9 LEI N 9.503, DE 23 DE SETEMBRO DE 1997.
Art. 303. Praticar leso corporal culposa na direo de veculo automotor: Penas - deteno, de seis meses a dois anos e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor. Pargrafo nico. Aumenta-se a pena de 1/3 (um tero) metade, se ocorrer qualquer das hipteses do 1
o do art. 302. (Redao dada pela Lei n 12.971, de 2014)
10 LEI N 9.503, DE 23 DE SETEMBRO DE 1997.
Art. 306. Conduzir veculo automotor com capacidade psicomotora alterada em razo da influncia de lcool ou de outra substncia psicoativa que determine dependncia: (Redao dada pela Lei n 12.760, de 2012)
19
segundo, a possibilidade de constatao da presena de substncia psicoativa
distinta de lcool por meio de exame toxicolgico, o que j no era vedado pelo
ordenamento, lembrando-se que so admitidos todos os meios de prova no
considerados ilcitos ou imorais11. A outra novidade, contida no pargrafo terceiro,
a determinao de que o CONTRAN disponha, por meio de resolues, sobre a
unificao e a equivalncia dos exames toxicolgicos para determinao da
configurao do delito do art. 306.
1.2 As alteraes no tipo de participao em competio automobilstica no
autorizada (racha)
O crime de participao em competio no autorizada, o racha,
previsto no artigo 308 do Cdigo de Trnsito Brasileiro, passou a viger com a
seguinte redao:
Penas - deteno, de seis meses a trs anos, multa e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor. 1
o As condutas previstas no caput sero constatadas por: (Includo pela Lei n 12.760, de 2012)
I - concentrao igual ou superior a 6 decigramas de lcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de lcool por litro de ar alveolar; ou (Includo pela Lei n 12.760, de 2012) II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo CONTRAN, alterao da capacidade psicomotora. (Includo pela Lei n 12.760, de 2012) 2
o A verificao do disposto neste artigo poder ser obtida mediante teste de alcoolemia ou
toxicolgico, exame clnico, percia, vdeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito contraprova. (Redao dada pela Lei n 12.971, de 2014) 3
o O CONTRAN dispor sobre a equivalncia entre os distintos testes de alcoolemia ou
toxicolgicos para efeito de caracterizao do crime tipificado neste artigo. (Redao dada pela Lei n 12.971, de 2014) 11
DECRETO-LEI N 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. Art. 157. So inadmissveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilcitas, assim entendidas as obtidas em violao a normas constitucionais ou legais. (Redao dada pela Lei n 11.690, de 2008) 1
o So tambm inadmissveis as provas derivadas das ilcitas, salvo quando no evidenciado o
nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. (Includo pela Lei n 11.690, de 2008) 2
o Considera-se fonte independente aquela que por si s, seguindo os trmites tpicos e de praxe,
prprios da investigao ou instruo criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. (Includo pela Lei n 11.690, de 2008) 3
o Preclusa a deciso de desentranhamento da prova declarada inadmissvel, esta ser inutilizada
por deciso judicial, facultado s partes acompanhar o incidente. (Includo pela Lei n 11.690, de 2008) LEI N
o 5.869, DE 11 DE JANEIRO DE 1973.
Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legtimos, ainda que no especificados neste Cdigo, so hbeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ao ou a defesa.
20
Art. 308. Participar, na direo de veculo automotor, em via pblica, de corrida, disputa ou competio automobilstica no autorizada pela autoridade competente, gerando situao de risco incolumidade pblica
ou privada: (Redao dada pela Lei n 12.971, de 2014) Penas - deteno, de 6 (seis) meses a 3 (trs) anos, multa e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para
dirigir v eculo automotor. (Redao dada pela Lei n 12.971, de 2014)
1o Se da prtica do crime previsto no caput resultar leso corporal de
natureza grave, e as circunstncias demonstrarem que o agente no quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade de recluso, de 3 (trs) a 6 (seis) anos, sem prejuzo das outras penas
previstas neste artigo. (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) 2
o Se da prtica do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstncias demonstrarem que o agente no quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade de recluso de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuzo das outras penas previstas neste
artigo. (Includo pela Lei n 12.971, de 2014)
A prtica de disputas automobilsticas no autorizadas, tipificada no artigo
308, conhecida como racha, antes era enquadrada como mera contraveno penal
de direo perigosa (LCP, art. 34) 12, mas o crescimento do nmero de acidentes
causados por essas competies levou o legislador do Cdigo de Trnsito a tipific-
las especificamente como crime, j na sua redao original.
Trata-se de crime que visa tutela da segurana viria, bem como da
incolumidade das pessoas e de seu patrimnio, em especial, nas suas formas
qualificadas, quando, culposamente, resultar em morte ou leso corporal grave. O
referido delito pressupe o concurso de vrios motoristas, visto que no poderia
haver corrida, disputa ou competio praticada por um nico agente, nem exibio
de percia sem competidores, ainda que cada performance seja individual ou feita
separadamente. Um sujeito isolado responderia pela contraveno da direo
perigosa ou, a depender do contexto, pelo crime do artigo 311 do Cdigo de
Trnsito13.
12
DECRETO-LEI N 3.688, DE 03 DE OUTUBRO DE 1941. Art. 34. Dirigir veculos na via pblica, ou embarcaes em guas pblicas, pondo em perigo a segurana alheia: Pena priso simples, de quinze das a trs meses, ou multa, de trezentos mil ris a dois contos de ris. 13
LEI N 9.503, DE 23 DE SETEMBRO DE 1997. Art. 311. Trafegar em velocidade incompatvel com a segurana nas proximidades de escolas, hospitais, estaes de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentao ou concentrao de pessoas, gerando perigo de dano: Penas - deteno, de seis meses a um ano, ou multa.
21
O delito pressupe que se produza risco incolumidade pblica ou
privada. A anterior dico legal mencionava dano potencial incolumidade pblica
ou privada, expresso atcnica, mas que queria significar a produo de uma
situao de perigo concreto a bens jurdicos, o que mais claramente entendido
com a linguagem atualmente empregada. Dispensa-se a prova de que uma pessoa
determinada foi exposta a perigo, impondo-se apenas a comprovao da
potencialidade lesiva concreta da competio (ANDREUCCI, 2013, p. 79). Ou seja,
no se presume o perigo, ele deve ser demonstrado, porm no preciso que se
identifique e se indique um sujeito passivo especfico. Se h de convir que, desde o
incio, no se poderia interpretar dano potencial como sendo algo diferente de um
perigo de dano.
Sobre a troca dessa fraseologia SILVA (2014) defende um entendimento
bastante diferente. Segundo ele:
Levando-se em conta que a inteno do legislador foi caminhar pelo enrijecimento do rigor punitivo desta norma penal, entendemos que a substituio de tais expresses teve por objetivo deixar claro que o crime do artigo 308 do CTB de perigo abstrato, pois fala em risco, e no dano potencial. Alis, dano potencial uma expresso mais forte, vale dizer, demonstra que a situao de portabilidade de dano concreta (crime de perigo concreto), e dentro do iter criminis, est mais prximo do resultado danoso, ao passo que gerar situao de risco algo que est um pouco mais longe de se concretizar (perigo abstrato).
Em que pesem tais assertivas, convm destacar o entendimento
jurisprudencial consolidado em sentido contrrio, refletido no seguinte julgado do
Superior Tribunal de Justia, e ainda plenamente aplicvel, a despeito da alterao
legislativa, como se h de justificar:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. RACHA. CRIME DE PERIGO CONCRETO. DEMONSTRAO DA POTENCIALIDADE LESIVA. OCORRNCIA. SUBSTITUIO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. LEI N 9.714/98. AUSNCIA DE REQUISITO SUBJETIVO. I - O delito de racha previsto no art. 308 da Lei n 9.503/97, por ser de perigo concreto, necessita, para a sua configurao, da demonstrao da potencialidade lesiva, o que restou indicada na condenao guerreada. II - Para que o ru seja beneficiado com a substituio da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, indispensvel o preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos constantes do art. 44 do Cdigo Penal. Recurso desprovido
22
(STJ - REsp: 585345 PB 2003/0130699-1, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 16/12/2003, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicao: DJ 16.02.2004 p. 342)
Esse precedente ainda vlido, sem dvidas, pois possvel inferir que
as expresses dano potencial e risco so sinnimos. Dano potencial no dano
efetivo, real e, portanto, no pode ser algo diferente do risco. O que diferencia o
crime de perigo concreto do de perigo abstrato que o primeiro exige a
comprovao do risco para o bem protegido e no segundo h uma presuno legal
do perigo. Assim, mesmo com a alterao legal, dever prevalecer o entendimento
de que o racha continua a ser crime de perigo concreto14, at mesmo porque
emenda legislativa (de autoria do Senador Pedro Taques) que objetivava deixar
expresso que o delito passaria a ser considerado de perigo abstrato foi rejeitada
(CAVALCANTI, 2014).
Em sua redao originria, o Cdigo de Trnsito Brasileiro previa que se
aplicavam ao crime de participar em competio no autorizada os institutos da Lei
n 9.099 de 26 de setembro de 1995, como a composio civil e a transao penal,
bem como a necessidade de representao para a propositura da ao penal
pblica, no caso de resultarem leses corporais culposas. Tambm, em virtude da
aplicao da Lei dos Juizados Especiais, no eram instaurados inquritos policiais
para a apurao desse crime, lavrando-se simples termo circunstanciado,
assumindo o autor o compromisso de comparecer em juzo, na data designada.
A Lei n 11.705, de 19 de junho de 2008, passou a dispor que os
sobreditos benefcios da Lei dos Juizados Especiais j no mais teriam lugar no
caso de crimes de leso corporal culposa que ocorressem em situao de corrida,
disputa ou competio automobilstica, de exibio ou demonstrao de percia em
manobra de veculo automotor, praticada em via pblica. A ao passou a ser
pblica e incondicionada. Hoje, com a elevao da pena mxima cominada em
abstrato da figura tpica bsica do racha para trs anos, no se est a tratar de
delito de menor potencial ofensivo, no devendo mais ser lavrado termo
circunstanciado de ocorrncia e sendo cabvel a priso em flagrante delito. A pena
mnima cominada de seis meses, no entanto, continua a autorizar a suspenso
14
[...] O art. 308 do CTB crime doloso de perigo concreto [...] (STJ, 1 Turma. HC 101.698, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 18/10/2011).
23
condicional do processo, aps a denncia, cumpridos os requisitos da Lei n 9.099
de 1995.
Para o crime de racha, a lei impe a aplicao da pena principal de
suspenso ou proibio da permisso ou habilitao para dirigir veculo, entre o
mnimo de 02 (dois) meses e o mximo de 05 (cinco) anos, combinada com a pena
privativa de liberdade e, a depender da hiptese concreta, tambm com a pena
pecuniria.
O fato delituoso de participar em competio no autorizada, tipificado no
art. 308 do CTB, s fica configurado se ocorrer em via pblica, e no em qualquer
via terrestre do territrio nacional aberta circulao. Assim, caso a conduta seja
praticada em vias particulares, como por exemplo: estacionamentos privados, vias
internas de propriedades rurais ou ptios de garagens e postos de gasolina
(ANDREUCCI, 2013), deve ser considerada atpica.
A Lei n 12.971/2014 introduziu ainda formas qualificadas do crime de
racha, quando resultar leso corporal grave ou morte culposa, com penas de 03 a
06 anos e de 05 a 10 anos de recluso, respectivamente. A introduo de duas
figuras qualificadas preterdolosas ao art. 308 parece, primeira vista, representar
um agravamento da punio dos condutores que participam de competies no
autorizadas. No entanto, como a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal estava
se encaminhando para reconhecer, quase sempre, o tipo subjetivo de dolo eventual
nos crimes de homicdio e leso grave praticados no contexto de um racha 15, a
incluso de formas qualificadas pelo resultado culposo d novo flego para a tese
dos que defendiam estar configurada nessas hipteses a culpa consciente, o que
acaba por beneficiar os mesmos sujeitos que se queria punir mais gravemente.
Aqui surge o maior problema da Lei n 12.971/2014: o crime de racha em
que houver resultado morte decorrente de culpa tem hiptese ftica quase idntica
forma qualificada de homicdio culposo do art. 302, 2. Trata-se de dupla tipificao
da mesma hiptese ftica com penas diversas.
15
STF HC: 91159 MG, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 02/09/2008, Segunda Turma, Data de Publicao: DJe-202 DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008 EMENT VOL-02338-02 PP-00281.
24
1.3 A dupla tipificao da morte culposa em situao de racha
De fato, com uma simples leitura dos artigos 302, 2, segunda parte e
308, 2, do Cdigo de Trnsito Brasileiro, verifica-se que as elementares que
compem ambos os delitos so virtualmente indistinguveis. Ambos os crimes
acontecem em situao de racha, vale dizer, quando o condutor participar, na
direo de veculo automotor, de corrida, disputa ou competio automobilstica no
autorizada pela autoridade competente. As diferenas entre os descritores dos dois
tipos no so relevantes.
De fato, embora o pargrafo segundo do artigo 302 contenha a expresso
ou ainda [participar] de exibio ou demonstrao de percia em manobra de
veculo automotor, percebe-se que, muito raramente, a referida exibio de percia
ocorrer fora do contexto de uma disputa ou competio automobilstica. No
existe demonstrao de percia sem platia, exibio sem pblico e, dificilmente,
essas prticas seriam realizadas por um condutor isolado, agindo sozinho,
procurando admirao de transeuntes aleatrios. Trata-se sim de uma modalidade
de competio no autorizada, em que no est em disputa a velocidade dos
participantes ou o tempo em que completam um percurso, mas sim a percia em
manobras arriscadas, conduta j includa, portanto, na previso do caput do artigo
308. A hiptese do exibicionista isolado, praticando o delito de racha, tanto no faz
sentido que o tipo fala de participar em exibio ou demonstrao e no em exibir
ou demonstrar.
Outra diferena, de pouca monta, que, enquanto o crime de racha,
como j referido, pune a conduta praticada em via pblica, a forma qualificada do
homicdio culposo em situao de racha, tambm se aplica s vias, sem maiores
qualificaes. Registre-se que as disposies do Cdigo de Trnsito Brasileiro,
como j referido, aplicam-se ao trnsito de qualquer natureza nas vias terrestres do
territrio nacional abertas circulao. So vias terrestres urbanas e rurais as ruas,
as avenidas, os logradouros, os caminhos, as passagens, as estradas e as rodovias,
a elas se equiparando ainda as praias abertas circulao e as vias internas de
condomnios constitudos por unidades autnomas. 16
16
LEI N 9.503, DE 23 DE SETEMBRO DE 1997
25
Percebe-se que, pela lgica do Cdigo de Trnsito, nem toda via aberta
circulao via pblica. Existem vias particulares abertas circulao. Assim,
quando competies automobilsticas no autorizadas ocorrerem em vias privadas,
no estar configurado o crime de racha do artigo 308 do Cdigo de Trnsito, mas,
caso ocorra uma morte culposa, poder incidir a forma qualificada do homicdio
culposo em situao de racha. Uma tcnica legislativa verdadeiramente
desastrosa. De qualquer forma, a hiptese referida, de incidncia isolada do tipo de
homicdio culposo qualificado , por bvio, bastante rara e no diminui o fato de que,
na imensa maioria dos casos, haver conflito entre ambos os tipos.
Est claro tambm que, em termos de objetividade jurdica, os crimes de:
racha com resultado morte culposa e de morte culposa em situao de racha
tutelam o mesmo bem: a vida dos sujeitos participantes do trnsito. E, nos dois tipos
criminais, a culpa, que provoca a produo do resultado morte, aquela cujas
modalidades esto especificadas no artigo 18, inciso II, do Cdigo Penal
(imprudncia, negligncia e impercia)17. A sua definio a mesma da teoria geral
do delito: a ao humana voluntria que produz, de forma no intencional, o
resultado tpico, por meio de uma quebra de dever de cuidado, cujas consequncias,
embora fossem previsveis, no foram previstas pelo agente ou no foi por ele
assumido o risco de produzi-las (DOTTI, 2003). De fato, afirmar-se que as
circunstncias demonstram que o agente no quis o resultado nem assumiu o risco
de produzi-lo o mesmo que se afirmar que o condutor agiu culposamente.
Os dois crimes, por bvio, pressupem que o sujeito ativo esteja no
comando dos mecanismos de controle e velocidade de um veculo automotor
Art. 1 O trnsito de qualquer natureza nas vias terrestres do territrio nacional, abertas circulao, rege-se por este Cdigo. [...] Art. 2 So vias terrestres urbanas e rurais as ruas, as avenidas, os logradouros, os caminhos, as passagens, as estradas e as rodovias, que tero seu uso regulamentado pelo rgo ou entidade com circunscrio sobre elas, de acordo com as peculiaridades locais e as circunstncias especiais. Pargrafo nico. Para os efeitos deste Cdigo, so consideradas vias terrestres as praias abertas circulao pblica e as vias internas pertencentes aos condomnios constitudos por unidades autnomas. 17
DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.
Art. 18 - Diz-se o crime: (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) [...] Crime culposo (Includo pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudncia, negligncia ou
impercia. (Includo pela Lei n 7.209, de 11.7.1984)
26
(CAPEZ, 2014, p. 306). Quando o autor da imprudncia no estiver na direo de
veculo automotor, ainda que o fato se passe no trnsito e no contexto de uma
competio no autorizada, no estaro configuradas as elementares dos crimes do
Cdigo de Trnsito, mas sim as do homicdio culposo do Cdigo Penal (art. 121,
3). Observe-se que espectadores e passageiros que venham a estimular a corrida e
promover o esprito de emulao podero vir a ser responsabilizados na condio de
partcipes (art. 29 do CP).
Essa situao de dupla tipificao claramente percebida por Sannini
Neto e Moraes (2014), em artigo sobre o tema:
Ocorre que a conduta tpica de causar a morte culposamente quando da participao em corrida, disputa ou competio automobilstica sem autorizao pela autoridade competente se subsume de igual modo ao tipo penal da nova figura qualificada do 2 do art. 302, o qual, porm, comina pena muito inferior, de 2 a 4 anos de recluso, como j apontado. Trata-se de inaceitvel falha na tcnica legislativa. O delito de perigo (racha), por bvio, deve ser absorvido pelos mais graves, de dano (homicdio ou leso corporal).
Luiz Flvio Gomes (2014) tambm identifica de modo distinto a
dificuldade trazida pela lei:
O problema: aqui no art. 308 o resultado morte provocado culposamente aparece como qualificadora do delito de participao em racha. J no art. 302 (homicdio culposo), a participao em racha que o torna qualificado (mais grave). No delito de participao em racha, a morte que o qualifica. No delito de homicdio, a participao no racha que o qualifica. Mas tudo isso a mesma coisa! O mesmo fato foi descrito duas vezes. Na primeira situao (art. 302), a descrio legal foi de trs para frente (morte em virtude do racha) na segunda (art. 308), da frente para trs (racha e depois a morte). Para no haver nenhuma dvida (talvez essa tenha sido a preocupao do emrito legislador), descrevesse o mesmo fato duas vezes. Seria uma mera excrescncia legis (o que j bastante reprovvel), se no fosse o seguinte detalhe: No art. 302 (homicdio culposo em razo de racha) a pena de recluso de dois a quatro anos no art. 308 (racha com resultado morte decorrente de culpa) a pena de cinco a dez anos de recluso! Mesmo fato, com penas diferentes [...].
Nucci (2014), por sua vez, entende que o referido conflito aparente de
normas tem fcil soluo: inequivocamente seria aplicado o tipo do homicdio
culposo qualificado (art. 302, 2), em vez do tipo de racha com resultado morte
culposa (art. 308, 2), j que o crime, cuja figura tpica bsica de dano (ainda que
27
culposo), sempre absorveria o crime, cuja figura tpica bsica de perigo concreto,
ainda que deste resultasse um dano que o agente no quis nem assumiu o risco de
produzir (crime preterdoloso dolo com relao ao perigo concreto e culpa com
relao ao dano).
A resposta para esse imbrglio, no entanto, no to simples quanto
parece. Mesmo se levando em conta as assertivas de Nucci acima resumidas, no
h como negar que todas as circunstncias qualificadoras dos tipos so idnticas.
Em ltima anlise, so criminalizadas duas mortes culposas em situao de racha.
Trata-se de dois crimes de dano. O bem jurdico tutelado em ambas as formas
qualificadas a vida, a despeito de as figuras tpicas bsicas, em que as
qualificadoras esto inseridas, visarem defesa de bens jurdicos diversos. O crime
de dano consumado s absorve o crime de perigo concreto que lhe anterior, para
que no haja punio duas vezes pelo menos fato, evitando-se, por razes de
poltica criminal, que se configurasse um concurso material ou formal de crimes. No
entanto, tratando-se de um nico delito preterdoloso (seja ele forma qualificada de
uma figura tpica bsica de dano ou de perigo) no cabe falar de dupla punio pelo
mesmo fato nem de absoro de crimes. Aqui no cabe a frmula do ne bis in
idem.
O desastre produzido pelo legislador penal no se esgota no conflito entre
os dois tipos. De fato, h uma incongruncia ainda entre a pena cominada ao
homicdio culposo e a pena abstratamente prevista para a leso corporal culposa
que resultar de racha. desproporcional cominar-se uma pena maior leso grave
do que aquela a ser aplicada prpria perda da vida, bem indiscutivelmente mais
importante que a integridade fsica. Esse tipo de incoerncia, que chega s raias da
irracionalidade, no se legitima pela discricionariedade do legislador penal, para
traar as diretrizes de poltica criminal. No extremo, ela demanda a construo de
uma soluo, tanto quanto a dupla tipificao acima mencionada.
Sannini Neto e Moraes (2014) sintetizaram as possveis alternativas de
soluo desse imbrglio, conforme trecho a seguir:
Com isso, sob um prisma tcnico-jurdico, a soluo apropriada ser aquela mais favorvel ao investigado ou ru, ou seja, o enquadramento na figura qualificada do homicdio culposo do 2, do art. 302, tornando na prtica letra morta o 2 do art. 308 contendo idntica hiptese ftica. Por outro
28
lado, pode-se argumentar, por meio de uma interpretao teleolgica, que a vontade do legislador, manifestada na Lei n 12.971/2014, foi no sentido de agravar a reprimenda para os casos em que houver morte em virtude da prtica do racha. Assim, para que a inovao legislativa no se torne letra morta, a nica soluo seria a adoo do entendimento em que o crime mais grave, qual seja, o agora previsto no artigo 308, 2, do CTB, absorvesse o crime menos grave, tipificado no artigo 302, 2, do mesmo codex. Tal entendimento pode, inclusive, ser subsidiado pelo princpio da proporcionalidade, mais especificamente na sua esfera de proteo insuficiente, afinal, a conduta daquele que causa a morte de outrem em virtude da prtica do racha de enorme gravidade, constituindo verdadeira afronta sociedade e ao prprio Estado. No mesmo sentido, podemos nos valer do princpio da especialidade para reforar esse entendimento. Ora, se o caput do artigo 308 pune o crime de racha e o seu 2 nos apresenta uma modalidade qualificada desse crime, obvio que essa conduta especfica para aquele caso, devendo, consequentemente, prevalecer sobre a conduta descrita no artigo 302, 2, que genrica. Apenas para ilustrar, caso o tipo penal do artigo 306 trouxesse uma figura qualificada envolvendo morte, esta seria especial em relao ao delito de homicdio previsto no artigo 302, at porque h uma clara distino entre os bens jurdicos em questo. De qualquer modo, tais divergncias to contundentes no ocorreriam se o legislador atuasse com o mnimo de cautela e tcnica jurdica.
Outra alternativa de interpretao ainda apresentada por Cavalcanti
(2014), na opinio do qual a nica maneira de valorizar as palavras da lei
interpretando sistematicamente os seus dispositivos e evitando que caia em desuso
o tipo mais grave do artigo 308, 2 do Cdigo de Trnsito Brasileiro. Nesse sentido,
impor-se-ia o entendimento, nos termos da hermenutica jurdica tradicional, de que
no havendo dispositivos inteis e nem lacunas no ordenamento, tambm no
poderia haver dupla tipificao, tendo ocorrido, na verdade, a previso de penas
diversas para condutas diferenciadas pelos graus de culpa. Assim haveria uma
morte culposa em situao de racha configurada pela culpa consciente (art. 308,
2) e, portanto, merecedora de punio mais grave e uma configurada pela culpa
inconsciente (art. 302, 2), sendo-lhe atribuda punio menos severa.
A referida proposta de interpretao bastante interessante, mas tambm
apresenta dificuldades de monta. Ambas as formas qualificadas so culposas e, no
ordenamento jurdico brasileiro, no existem tipos culposos exclusivos de culpa
consciente ou inconsciente. Na legislao penal, s existe a previso da culpa tout
court, sem gradaes, nos termos do artigo 18, inciso II, do Cdigo Penal, quando o
agente der causa ao resultado por imprudncia, negligncia ou impercia, vale dizer,
quando pelas circunstncias se verificar que ele no quis nem assumiu o risco de
produzir o resultado.
29
Os graus de culpa (inconsciente, consciente e gravssima), no sistema da
Nova Parte Geral do Cdigo Penal de 1984, s tm relevncia como uma das
circunstncias judiciais do artigo 59 do Cdigo Penal18, para fundamentar, limitar e
regular a aplicao da pena (GOMES, 2005, p. 75). Em verdade, todos os tipos
culposos admitem, no caso concreto, a configurao do tipo subjetivo tanto na forma
da culpa consciente quanto na forma da culpa inconsciente. No a pena
abstratamente cominada que deve distinguir a graduao das culpas, destinando-se
a culpa consciente para os crimes culposos mais severamente apenados.
Atualmente, no existem tipos penais exclusivos para cada grau de culpa.
Alis, j passou da hora de o legislador criminal prever um tipo exclusivo de culpa
temerria ou gravssima, precisamente, para essas hipteses de crimes de trnsito
(racha ou embriaguez) em que a punio na modalidade culposa parece
insuficiente, produzindo uma sensao de impunidade, enquanto, por outro lado, a
punio a ttulo de dolo eventual, para a maioria dos casos, seria desproporcionada
e excessiva. Mas no existe ainda norma posta nesse sentido, embora j existam
propostas de alterao legislativa semelhana do que consta do Anteprojeto do
Novo Cdigo Penal (Projeto de Lei do Senado n 236 de 2012) e do Projeto de Lei n
7.623/2014 da Cmara dos Deputados.
Entender contrariamente ao aqui defendido seria negar a possibilidade de
se verificarem homicdios culposos no trnsito em situao de racha com culpa
consciente e admiti-lo para todas as outras hipteses de homicdio culposo no
trnsito (embriaguez; na modalidade do tipo bsico; nas hipteses das causas de
aumento de pena etc.). Essa interpretao no resolve o conflito de normas de uma
forma justa e coerente e negligencia a anlise das circunstncias do caso concreto,
nica maneira adequada de se determinar qual a configurao que foi assumida
18
DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.
Art. 59 - O juiz, atendendo culpabilidade, aos antecedentes, conduta social, personalidade do agente, aos motivos, s circunstncias e consequncias do crime, bem como ao comportamento da vtima, estabelecer, conforme seja necessrio e suficiente para reprovao e preveno do crime: (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) I - as penas aplicveis dentre as cominadas; (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) II - a quantidade de pena aplicvel, dentro dos limites previstos; (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) IV - a substituio da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espcie de pena, se cabvel. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984)
30
pela mens rea, vale dizer, pelos elementos subjetivos do delito. impossvel negar a
sobreposio de tipos virtualmente idnticos de morte culposa em situao de
racha.
As propostas dos autores anteriormente referidas, embora consistam em
simples esboos, de fato resumem bem os caminhos que podem ser trilhados para
equacionar a controvrsia da dupla tipificao.
Em um primeiro momento, seria preciso verificar se, como inicialmente
afirmado, o emprego dos mtodos tradicionais de hermenutica jurdica resultariam
em uma resposta satisfatria para a questo. Poderia ser encontrada nos trabalhos
legislativos a clara demarcao da vontade do legislador (mens legislatoris), a ponto
de inspirar o intrprete/aplicador da norma? O princpio da especialidade associado
a uma interpretao sistemtica e topogrfica das normas apresentaria uma
resposta convincente para a questo? Ou a dificuldade apresentada deveria ser
enfrentada com o recurso ao princpio do favor rei?
Em um segundo momento, seria preciso verificar se caberia ao intrprete
aplicador da norma, com o emprego do princpio da proporcionalidade, como
parmetro para o controle de constitucionalidade concreto e difuso das normas,
afastar a incidncia do tipo criminal que conferisse tutela insuficiente ao bem jurdico
tutelado (a face do princpio da vedao da proteo deficiente), autorizando a
incidncia da norma mais grave.
31
2 A RESPOSTA DA HERMENUTICA TRADICIONAL PARA A DUPLA
TIPIFICAO DA MORTE CULPOSA NO TRNSITO EM SITUAO DE
RACHA
O objeto desta pesquisa, como j referido, , essencialmente, um problema
de interpretao e aplicao da norma penal. Em verdade, a investigao que se
coloca pode ser desenvolvida a partir do cotejo de dois paradigmas de interpretao:
um liberal clssico e um constitucionalista de bases axiolgicas e comunitaristas.
O debate se centra no possvel confronto a ser feito entre o resultado
interpretativo produzido pelos parmetros tradicionais da hermenutica penal liberal
e a soluo mais adequada da perspectiva da proteo suficiente dos bens jurdico-
penais na ordem de valores da Constituio.
Neste captulo, buscar-se- definir qual a importncia do processo
legislativo e da inteno original do legislador (mens legislatoris), caso seja possvel
identific-la, na fixao do alcance atual da norma j posta no mundo jurdico
(MAXIMILIANO, 2011); bem como se, adotando-se os mtodos consagrados e os
princpios tradicionais de soluo de um conflito aparente de normas, alcanvel
uma resposta satisfatria acerca do significado da alterao introduzida pela Lei n
12.971/2014 (a sua mens). Nesse sentido, ser preciso definir o papel e os limites
do princpio da interpretao mais benfica (o favor rei) na aplicao de normas
penais. Seria ele um critrio norteador de toda a hermenutica penal ou apenas
elemento adicional de interpretao?
2.1 O sentido e a importncia da mens legislatoris
A Lei n 12.971/2014 tem origem no Projeto n 2.592/2007, proposto pelo
Deputado Beto Albuquerque (PSB/RS), em 11 de dezembro de 2007. Na sua
redao originria, a forma qualificada do homicdio culposo em situao de racha
tinha pena de recluso de cinco a doze anos. O crime de racha deixava de ser de
menor potencial ofensivo e passava a ser considerado inafianvel por lei. Colhe-se
da justificativa do Projeto que:
Mostra-se, portanto, imperioso modificar o Cdigo de Trnsito Brasileiro para aperfeio-lo com vistas a dar uma resposta adequada aos anseios e
32
reclames da sociedade pela adoo de medidas pelo Poder Pblico, inclusive na esfera legislativa, que efetivamente contribuam para a segurana no trnsito das cidades e estradas e assegurem punies severas queles que praticam crimes na direo de veculo automotor.
19
Fcil perceber que a inteno inicial do legislador era promover um
incremento de pena para os casos de morte culposa no trnsito em situao de
racha. As penas da proposta original so inclusive maiores do que as atuais.
O referido Projeto de Lei foi apensado ao de nmero 308, tambm da
Cmara dos Deputados, de autoria do Deputado Pompeo de Mattos PDT/RS, o qual
procurava inserir uma forma qualificada preterdolosa no crime de racha, quando
resultasse em morte culposa. A pena do referido delito seria de cinco a quinze anos
de recluso. Na justificativa da referida proposta encontra-se a seguinte defesa das
mudanas sugeridas:
Hoje, punido de forma extremamente branda pelo art. 308 do Cdigo Nacional de Trnsito, que tambm no prev as formas qualificadas e preterdolosas desse delito. A nova redao proposta corrige tais erros e tambm permite punio rigorosa quando no h dolo eventual quanto ao resultado leso grave ou morte, sendo sabido que, hoje em dia, muitos dos praticantes de racha, se safam de punies mais severas, incidindo somente nas apenaes brandas dos crimes de homicdio culposo e leses corporais culposas, quando no se consegue provar o dolo eventual.
20
Essa deve ter sido a origem da dupla tipificao da morte culposa no
trnsito em situao de racha: os Projetos apensados previam, na essncia, a
mesma qualificadora, mas a inseriram em dispositivos distintos do Cdigo de
Trnsito Brasileiro (artigos 302 e 308). Aqui tambm possvel perceber que a
inteno originria do legislador era punir com maior rigor o delito.
Os Projetos apensados foram submetidos a regime de urgncia e
encaminhados ao Plenrio daquela casa de Leis. No h dvidas de que foi neste
ponto, em que a discusso e a votao das propostas legislativas foram conduzidas
em regime de urgncia, que se cometeu o equvoco da dupla tipificao.
Em parecer apresentado em Plenrio pela Comisso de Viao e
Transportes, elaborado pelo Deputado Hugo Leal (PSC/RJ), desaparecem as formas
qualificadas de crime de racha (art. 308) e figura qualificada do homicdio culposo
19
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=FE04CA915CC77AD7C5FAD86177B7CA9F.proposicoesWeb1?codteor=530930&filename=Tramitacao-PL+2592/2007. 20
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=442307&filename=Tramitacao-PL+308/2007.
33
em situao de racha foi atribuda a estranha pena de recluso de dois a quatro
anos hoje vigente. Essa mudana inusitada foi feita apesar de no relatrio do
parecer se insistir na ideia motriz da garantia da punio dos infratores do Cdigo
de Trnsito e na inteno de dar um basta impunidade. Pareceram os
congressistas no ter percebido que estavam propondo um modelo mais benfico
que o da proposta original. 21
No parecer apresentado em Plenrio pela Comisso de Constituio e
Justia, elaborado pelo Deputado Alexandre Leite (DEM/SP), no foram feitas
alteraes22. Em reformulao do parecer do relator da Comisso de Viao e
Transportes foram restabelecidas as figuras qualificadas do crime de racha (art.
308), momento preciso em que ocorreu o equvoco da dupla tipificao, o qual
passou despercebido. 23
Apenas em nova reformulao do parecer pelo Deputado Hugo Leal
pareceu-se dar conta do equvoco cometido com o conflito de normas, tendo se
chegado ao entendimento de que deveria cair a figura qualificada do homicdio
culposo e ficariam as qualificadoras preterdolosas do racha, por resultado leso
corporal e morte culposas, evitando-se a dupla tipificao. 24 o que consta da
ltima manifestao da Cmara dos Deputados.
Aps os referidos debates e as discusses, foi aprovada a Subemenda
Substitutiva Global de Plenrio apresentada pelo Relator da Comisso de Viao e
Transportes ao PL n 2.592/2007. Essa aprovao fez com que restassem
prejudicados: a proposio inicial; a Emenda da Comisso de Constituio e Justia
e de Cidadania; o Substitutivo da Comisso de Viao e Transportes; as Emendas
de Plenrio; e os Projetos de Lei n 308/07 (principal) e 2.595/07, 5.006/13 e
5.075/13, apensados 25.
No entanto, a despeito da tempestiva constatao do equvoco,
provavelmente por uma falha tcnica e de assessoria, a redao final da matria na
21
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1081798&filename=Tramitacao-PL+2592/2007 22
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1081799&filename=Tramitacao-PL+2592/2007 23
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1081800&filename=Tramitacao-PL+2592/2007 24
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1081803&filename=Tramitacao-PL+2592/2007. 25
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=380428.
34
Cmara dos Deputados 26, concluda em 24 de abril de 2013 e que seguiu para o
Senado Federal sob a denominao de Projeto de Lei da Cmara n 26 de 2013,
manteve a dupla tipificao da morte culposa no trnsito com a redao hoje
vigente. Trata-se de um erro material absurdo e de consequncias desastrosas,
sendo quase inacreditvel que no foi feita a sua adequao na redao final. Esse
tipo de equvoco causa de grave deslegitimao das instituies democrticas,
enfraquecendo a confiana depositada sobre o Poder Legislativo de que ele seja
capaz de traar as diretrizes de poltica criminal de modo minimamente racional.
No Senado Federal, o Projeto foi encaminhado Comisso de Constituio
e Justia, onde recebeu vrias propostas de emenda, sendo aprovado na forma do
parecer final de autoria do Senador Vital do Rgo (PMDB/PB), o qual, na forma do
Substitutivo apresentado, incrementou as sanes cominadas para as infraes
administrativas previstas no Projeto, optando ainda pela retirada da parte criminal da
proposta, com vistas a sua mais clere apreciao. Nas palavras do relator:
preciso, no entanto, destacar que a presente proposio tramitou na Cmara dos Deputados por cerca de cinco anos e, ainda assim, seu texto contm algumas impropriedades, geradas na pressa de se concluir a apreciao. Com essa experincia em mente, propomos recortar do presente PLC os dispositivos mais controversos, os penais, com vistas pronta aprovao da parte que possui maior consenso, qual seja, o aumento das multas previstas para as infraes de trnsito mais graves, dada a ansiedade com que a populao aguarda a efetividade de tais medidas.
27
Com o parecer conclusivo da Comisso de Constituio e Justia, o
Substitutivo apresentado retornou Cmara dos Deputados para nova anlise.
Na Cmara dos Deputados, o projeto de lei foi novamente encaminhado s
comisses de Constituio e Justia e de Viao e Transportes. Na primeira, em
parecer da Deputada Sandra Rosado (PSB/RN), props-se que o Substitutivo do
Senado Federal deveria ser rejeitado, uma vez que retirara do Projeto a sua parte
criminal, considerada de suma importncia. Segundo as regras do processo
legislativo de leis ordinrias, a rejeio do Substitutivo da Casa Revisora implica na
aprovao do Projeto na forma em que deixou a Cmara dos Deputados, salvo
emendas redacionais de pouca monta.
26
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1082212&filename=Tramitacao-PL+2592/2007 27
http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/136750.pdf.
35
Destaque-se que, mais uma vez, neste ponto, foi indicada a aberrao da
dupla tipificao da morte culposa em situao de racha, sendo ainda apresentada
uma proposta de emenda supressiva para a retirada da segunda parte do pargrafo
segundo do artigo 302 do CTB, o que corrigiria esse equvoco. Como chamou
ateno a relatora:
Todavia vislumbramos que no Projeto original encontra-se uma incongruncia de natureza redacional. Ora a parte final do 2 do art. 302 e o disposto no art. 308, ambos alterados pelo Projeto de Lei n 2.592-A/07, aprovado na Cmara dos Deputados em 24/4/2013, existe duplicidade de condutas tpicas, pois, em acatando emenda de Plenrio, esqueceu o Relator de verificar que o fato j estava tipificado em outro dispositivo. H, assim, conflito de penalidades nos dispositivos aprovados pela Casa, uma emenda de tcnica legislativa deve ser aprovada nesta ocasio para que no subsista qualquer dvida futura na jurisprudncia: O crime de racha no trnsito, j est contemplado de forma detalhada nos pargrafos 1 e 2 do art. 308 modificado pelo referido projeto, razo pela qual emenda deve ser apresentada.
28
Entretanto, mesmo tendo sido o problema identificado a tempo, por uma
segunda vez, tambm nesse momento, no foi feita a correo necessria. Embora,
inicialmente, o referido Substitutivo tenha sido encaminhando s Comisses de
Viao e Transportes e de Constituio e Justia, para s depois ser submetido
apreciao do Plenrio, com a aprovao de requerimento de urgncia, a anlise e
discusso pelas Comisses foi feita em turno nico na ordem do dia de 16 de abril
de 2014. Nos pareceres apresentados em plenrio, pelos relatores de ambas as
Comisses, no mais se mencionou o erro, concluindo-se apenas pela rejeio do
Substitutivo do Senado.
Assim o Projeto de Lei n 2.592/2007 seguiu para a sano presidencial na
forma em que foi aprovado na Cmara, relegando doutrina e jurisprudncia a
tarefa de corrigir o problema da dupla tipificao.
O que se pode extrair sobre a inteno do legislador, a partir da anlise
detida da justificativa do projeto e dos pareceres das comisses pelas quais tramitou
que, aparentemente, o que se buscava era um incremento da punio dos crimes
de morte culposa em situao de corrida no autorizada e que a sobreposio de
tipos, por mais que seja difcil de acreditar, no foi intencional, decorrendo de erro e
de incompetncia. Esse objetivo de aumentar a punio dos condutores envolvidos
28
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1245895&filename=Tramitacao-PL+2592/2007.
36
em mortes culposas, ocorridas em competies no autorizadas refletido em
quase todas as manifestaes dos congressistas, durante a tramitao do Projeto,
mas como j se assinalou, revelou-se frustrado pela redao final aprovada.
Qual a importncia desta pretensa mens legislatoris para a aplicao
presente da norma, j posta no mundo jurdico, disposio dos operadores do
direito, para a soluo dos casos concretos?
A remisso inteno originria do legislador, por mais que se parta do
pressuposto de que ela pode ser aferida de modo mais ou menos certo, por
exemplo, quando se investigam alteraes legislativas bastante recentes, como a
ora em anlise, em verdade, no pode ter mais do que um sentido retrico, como um
elemento adicional indicativo do correto significado da norma. J se incorporou ao
senso comum terico dos juristas (COSTA, 2008), desde o incio do sculo passado,
o entendimento de que no o sentido pretendido pelo legislador que vincula, na
interpretao/aplicao de um texto normativo controvertido, mas o sentido refletido
pela prpria norma, o qual adquire vida prpria e valor diferenciado da vontade ou
conscincia de seus formuladores (NUNES, 2005).
No fosse essa abertura hermenutica dos textos normativos, os quais
esto inseridos, em um contexto dinmico e evolutivo, de ideias e de sentidos, e a
forma do Direito, sua rigidez caracterstica na fixao da letra da lei, que serve para
dar segurana, estorvariam as transformaes normais das sociedades e no
dariam conta de responder, de maneira justa e adequada, s novas demandas
surgidas nos casos concretos, refletindo relaes jurdicas cada vez mais
complexas. nesse sentido que, na teoria da interpretao, de h muito, com o
declnio das doutrinas subjetivistas, insiste-se na importncia de se desvelar a mens
legis, o sentido objetivo da lei, servindo a inteno do legislador apenas como um
recurso adicional e de importncia relativa na construo do significado vinculante
da norma (COSTA, 2008).
Sobre a perda pela voluntas legislatoris do seu lugar reitor na interpretao
do Direito, ensinava Carlos Maximiliano:
A pesquisa da inteno ou do pensamento contido no texto arrasta o intrprete a um terreno movedio, pondo-o em risco de tresmalhar-se em inundaes subjetivas. Demais restringe o campo de sua atividade: ao invs de a estender a toda a substncia do Direito, limita o elemento espiritual da norma jurdica, isto , a uma parte do objeto de exegese e eventualmente um dos instrumentos desta. Reduzir a interpretao procura do intento do
37
legislador , na verdade, confundir o todo com a parte; seria til, embora nem sempre realizvel, aquela descoberta; constitui um dos elementos da Hermenutica; mas no o nico, nem sequer o principal e o mais profcuo; existem outros e de maior valia. Serve de base, como adiante se h de mostrar ao processo histrico, de menor eficincia que o sistemtico ou teleolgico. [...] Com a promulgao, a lei adquire vida prpria e autonomia relativa; separa-se do legislador; contrape-se a ele como um produto novo; dilata e ate substitui o contedo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na pratica, mais previdente que o seu autor. [...] Logo, ao intrprete incumbe apenas determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac potestas legis; deve ele olhar menos para o passado do que para o presente, adaptar a norma finalidade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaborao primitiva. (2011, p. 24-25)
Mas o que seria essa vontade da lei (voluntas legis) objetivada, separada
da vontade do legislador? Onde seria possvel encontr-la?
2.2 O sentido e a importncia da mens legis
J Ferrara afirmava que a mens legis poderia ser identificada pela
finalidade social, pelo escopo prtico, o resultado visado pela norma. O significado
correto seria sempre aquele que conferisse maior eficcia e tutela teleologia da
norma. E as finalidades da norma no esto contidas no prprio texto normativo,
nem podem ser derivadas de um sistema abstrato de valores, mas so aquelas
finalidades da prpria coletividade, expressas pelos interesses e exigncias
individuais e coletivos. O que no quer dizer que o juiz possa fazer algo alm de
executar as leis, no se admitindo que busque o direito livre fora do ordenamento.
Nada disso, reconhecer a importncia das relaes sociais na definio do sentido
da lei, significa apenas que o aplicador do Direito no pode tapar os olhos para
realidade da qual a norma deriva e na qual voltar a influir (COSTA, 2008, p. 328).
Mais especificamente, tratando-se de uma norma penal incriminadora, que
comina uma sano penal em abstrato a um comportamento previsto em lei, na
forma de uma hiptese ftica (um tipo criminal), as finalidades sociais, que a norma
expressa, no podem ser algo distinto dos objetivos prprios do Direito Penal. E, no
contexto de um Estado Democrtico de Direito, o Direito Penal se legitima,
basicamente, por um objetivo de preveno geral de delitos associado a um objetivo
humanitrio e de garantias (SILVA SNCHEZ, 2011, p. 58).
importante destacar esse ponto, pois, em virtude da fora que, na
contemporaneidade, ganhou o populismo penal, e o discurso de
38
maximizao/exacerbao de penas, bem como a insistncia na funo simblica da
legislao penal, por vezes, esquece-se que tambm do interesse pblico o
controle da reao punitiva do Estado s condutas consideradas delituosas,
segundo os parmetros da dignidade humana, proporcionalidade e segurana
jurdica. Tem sido a misso histrica do Direito Penal a reduo da violncia social
em geral, tanto a violncia do delito, por meio da preveno, quanto a da punio
das infraes, com a instituio de garantias ao delinquente.
O fato de no se poder perder de vista a finalidade social da norma, que d
os contornos do seu significado, no quer dizer que se dispense a anlise do prprio
texto normativo. O texto da norma o ponto de partida, bem como o limite de toda a
interpretao. No possvel, simplesmente, desconsiderar o texto de uma norma
vigente, ainda que com o fim de alcanar os objetivos sociais realmente buscados
pelo Direito. No possvel abrir mo dos mecanismos de segurana jurdica, dentre
os quais, o processo legislativo constitucional de aprovao e reviso de normas. A
atividade de aplicao do Direito, que estruturalmente distinta da normognese ou
da legislao, nunca dispensa a forma em que a norma foi fixada, devendo sempre
lev-la em considerao em alguma medida.
Por isso, o primeiro nvel ou mtodo de interpretao, o gramatical, o que
pretende esmiuar as palavras da lei, encontrar o correto significado da norma, na
anlise lxica, bem como da ordem das palavras e de sua conexo (FERRAZ
JUNIOR, 2007, p. 289).
Um segundo momento da atividade jurdico-interpretativa, o lgico, o que
lida com as palavras da lei na forma de conceitos (FERRAZ JUNIOR, 2007, p.
290). Assim, busca-se apreender a construo de definies dos termos que so
estipuladas pela prpria norma. O que no significa que os conceitos contidos no
texto normativo sejam imutveis, pois se remetem a um universo material
verificvel (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 292), constitudo pelo uso comum e
constante das expresses, razo pela qual no escapam de um processo histrico
de mutao, como as prprias instituies sociais s quais fazem meno.
A fase subsequente, de interpretao sistemtica, enfrenta as questes de
compatibilidade num todo estrutural (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 293) da norma
jurdica. Ou seja, pe-na em cotejo com os princpios gerais do direito, e com o
conjunto do ordenamento, levando em considerao a hierarquias entre as fontes do
Direito e as regras para solucionar a sua aparente sobreposio. pressuposto da
39
hermenutica jurdica tradicional a negao da existncia de lacunas no
ordenamento jurdico. Isso se explica, em parte, pelo fato de que no dado ao
magistrado se eximir do dever de decidir, nem mesmo alegando dificuldades
interpretativas (vedao do non liquet art. 126 do Cdigo de Processo Civil).
Assim, j que preciso que o ordenamento jurdico apresente uma resposta para os
problemas concretos que se colocam em juzo, tambm necessrio harmonizar as
suas disposies, evitando contradies, incompatibilidades e fixando regras de
sucesso de leis no tempo, de aplicao da lei no espao e de concurso aparente de
normas.
O concurso aparente de normas penais tem regras especficas de
resoluo, tradicionalmente indicadas pela doutrina, que merecem anlise em
separado. Ele aponta para uma sobreposio de infraes penais, para uma
pluralidade de tipos, aos quais, pretensamente, subsumir-se-ia o fato concreto, se
fossem visualizados de modo isolado. O tratamento sistemtico dessas situaes,
no entanto, evitaria a eficcia cumulativa de um conjunto de normas incriminadoras
incidentes sobre o mesmo fato, apontando as suas relaes de hierarquia,
subordinao e mtua excluso (DOTTI, 2003, p. 286).
O primeiro critrio usual para a resoluo de conflito aparente de normas
penais o da especialidade, nos termos do qual o tipo fundamental afastado por
outro tipo que contenha todos os elementos j contidos no primeiro acrescidos de
circunstncias especificadoras (lex specialis derogat legi generali). J a regra da
consuno afasta a incidncia do crime que meio necessrio, ou normal etapa de
preparao ou de execuo de outro crime (lex
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