View
213
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
1/27
MUITO MAIS DO QUEISOLAMENTO EM QUESTO:CINCIA PODER EINTERESSES EM UMAANLISE DAS DUASPRIMEIRASCONFERNCIASINTERNACIONAIS DE
LEPRA BERLIM 1897 EBERGEN 1909
Reinaldo Guilherme BechlerInstitut fr Geschichte der Medizin derUniversitt Wrzburg
reibechler@yahoo.com.br
Resumo
Este artigo pretende analisar a transformao doisolamento dos leprosos em um polmico edivergente Paradigma Cientfico.1 Nascido nasduas primeiras conferncias internacionais de
lepra em Berlim 1897 e em Bergen na Noruegaem 1909, ele se formou sob uma efervecente ecompetitiva atmosfera acadmica, ondeestavam em jogo muitos outros interessespolticos, nacionais e pessoais. O retorno da lepra Europa aps um perodo relativamente longode desaparecimento, aliado aos riscos eincovenientes comerciais que instigava s suaspretenes imperialistas, transformavam estadoena no apenas em um problema social quesempre fora, mas agora tambm em umproblema cientfico e poltico que clamava
solues urgentes de uma recm-formadaclasse de mdicos. Seres humanos que seroaqui reconhecidos e valorizados. Critica-los outentar encontrar entre eles vencedores e vencidosno constitui a inteno deste trabalho, mas simtentar contextualiza-los individual, temporal esocialmente, instigando novas perspectivas deanlise para a historiografia da cincia.
Palavras-chave: Histria da Lepra, Isolamento,Histria das Doenas, ConfernciasInternacionais de Lepra, Instituio.
Abstract
This article intends to analyze the transformationof the isolation of lepers into to a polemic anddivergent scientific paradigm. Originated on thefirst two International Conferences of Leprosy inBerlin 1897 and Bergen, Norway 1909, itbecame an effervescent and competitiveacademic atmosphere, where many political,national and personal interests were at stake. Theleprosys return to Europe after a relatively longperiod of its disappearance, along with the risksand inconvenient commercials that instigatedimperialist ambitions, turn this disease into notonly a social problem that has always been butalso a scientific and political problem that criedout for urgent solutions from a out-of-collegedoctors class. Human beings will be recognizedand esteemed here. Criticize them or aim to findwinners and defeated ones among them is notthe purpose of this article. Instead, it is an attemptto contextualize them individually, temporally and
socially, instigating new perspectives of analyzesfor the historiography of science.
Keywords: History of Leprosy, Isolation, History ofDiseases, International Conferences of Leprosy,Institution.
mailto:reibechler@yahoo.com.brmailto:reibechler@yahoo.com.brmailto:reibechler@yahoo.com.br8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
2/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
176
Este trabalho1 pretende abordar os meandros da discusso cientfica acerca da melhor
maneira de se isolar os doentes de lepra no final do sculo XIX e incio do XX, que teve seus
primeiros episdios nas duas primeiras conferncias de lepra em Berlim e Bergen, e que ainda
carece de uma abordagem um pouco mais detalhada por parte da historiografia latino-americana que
trata do assunto.2Alguns dos principais trabalhos historiogrficos no continente sobre o tema, como
de Diana Obregn Torres3e de Yara Monteiro,4embora citem estas conferncias, apenas resvalam
em suas discusses cientficas e no as tm como fonte primria, o que pretende-se fazer aqui.
Compreende-se que em funo das especificidades terico-metodolgicas e dos objetivos de cada
temtica esses trabalhos se ocupam mais com o resultado desse processo, ou seja, o isolamento
compulsrio enquanto um paradigma formado, que o mdico ingls Ernest Muir chamou j no
incio do sculo XX de o maior erro da medicina moderna.5
O processo de produo dos primeiros conhecimentos cientficamente abalizados sobre a
lepra ser aqui compreendido como algo intrncecamente vinculado fatores e representaes
sociais. Nesse sentido, trabalhos como os de Charles Rosenberg abriram novas e profcuasperspectivas historiogrficas nas ltimas dcadas,
Aqui as conferncias sero analisadasem suas publicaes originais em alemo, sendo por mim mesmo traduzidas para o portugus,
assim como demais literaturas paralelas que lidam com o assunto nesse perodo. A grande maioria
dessas obras e dessas fontes assim, sero aqui apresentadas e trabalhadas de maneira indita na
Amrica Latina.
6
1Este artigo faz parte do projeto de doutoramento que desenvolvo no Instituto de Histria da Medicina da JuliusMaximilians Universitt Wrzburg na cidade de Wrzburg na Alemanha, sob orientao do Professor MichaelStolberg, atravs de uma bolsa de estudos do Katolischer Akamemischer Auslnder Dienst Servio Catlico deIntercmbio Acadmico (KAAD).2Para o conceito de Paradigma Cientfico, ver: KUHN, Thomas. Estrutura das revolues cientificas. So Paulo:Perspectiva, 2003.3 OBREGN-TORRES, Diana. Batallas contra la lepra: Estado cincia y medicina en Colombia. Medelin:Banco de la Repblica, Fondo Editorial Univerdidad EAFIT, 2002.4MONTEIRO, Yara.Da maldio divina a excluso social: um estudo da hansenase em So Paulo.DoctoralDissertation, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. So Paulo(manuscrito). 1995.5
MUIR, Ernest & ROGERS, Leonard.Leprosy.Second Edition.Baltmore: Williams & Wilkins Co., 1940. p.14.6ROSENBERG, Charles. Explaining epidemics and the other studies in the history of medicine.Cambridge:Cambridge University Press, 1992.
por passar a conceber a doena como uma
entidade imprecisa e inacabada. Esta deixava de ser o fato biolgico em s para se transformar em
uma entidade produtora de discursos, que acabavam por conceber e legitimar polticas pblicas.
Para este autor, enfim, as doenas no poderiam mais ser analisadas distante de suas representaes
sociais. Ao amalgam-las aos fenmenos sociais e culturais, lega-se novos significados aos eventos
biolgicos, abrindo por fim novas perspectivas de anlise e interpretao histrica.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
3/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
177
Outro elemento terico fundamental da presente anlise consiste em perceber que a idia de
conhecimento e de poder esto ntimamente relacionadas. Pierre Bourdieu7
O sculo XIX foi marcado pelo retorno da lepra s terras europias, depois de ser dada
como extinta, ainda que misteriosamente, desde o sculo XVII.
desenvolve neste campo
o conceito deAutoridade Cientfica, e define duas caractersticas fundamentais para sua observao:
habilidade tcnica e poder social. A competncia cientfica de um indivduo seria definida, de
acordo com esse pensamento, pela sua capacidade socialmente reconhecida de atuar legitimamente,
de maneira autorizada e autoritria, sobre um tema cientfico qualquer. Tenciono com tal idia
ressaltar que a produo do referido paradigma do isolamento compulsrio para os leprosos se deu
de forma valorizar algumas personalidades e idias em detrimento de outras, e que tais fatos se
devem estas influncias subjetivas da noo de poder.
O retorno da lepra Europa: estigma x cincia
8
Em termos sociolgicos, a discusso sobre esse conceito tem sido motivo de importantescontrovrsias nas ltimas dcadas. Segundo anlise de Michael STOLBERG, ele foi pela primeira
vez utilizado relativamente em um mesmo perodo histrico em sentidos distintos,
A natural e justificvel
preocupao com a salubridade e o bem-estar da populao tinha o respaldo de uma classe de
cientistas cada vez mais especializada, e cada vez com maiores conhecimentos sobre a natureza em
todas as suas manifestaes, e pode muito bem ser discutida luz de um abrangente conceito
sociolgico bastante difundido nas ltimas dcadas em estudos sobre a Histria da Medicina no
sculo XIX: o de medicalizao.
E por medicalizao entendedo aqui a expanso do discurso ou da prtica mdica sobre o
campo social, vivido especialmente partir do sculo XVIII, traduzindo os fenmenos sociais em
conceitos de um determinado campo de saber. Em outras palavras, a atitude de tentar compreender
um nmero cada vez maior de aspectos do comportamento humano, antes classificados
simplesmente como normais ou anormais pelo pblico em geral, agora como sinais de sade e
doena, estritamente definidos pela classe mdica.
9
7BOURDIEU, Pierre. The specificity of the scientific field and the social conditions of the reason. In: SocialScience Information: 14 (6), 1975. p.19-47.8HANSEN, Armauer & LIE, H. P. Die Geschichte der Lepra in Norwegen. II INTERNATIONALE LEPRA-CONFERENZ, Bergen, 2: p.314-340, 1909.9
STOLBERG, Michael. Professionalisierung und Medikalisierung. In: PAUL, Norbert & SCHLICH, Thomas(Org.)Medizingeschichte: Aufgaben, Probleme, Perspektiven.Frankfurt/New York: Campus Verlag, 1998. p.69-86.
e se constitui at
certo ponto um equvoco a nomeao de Michel FOUCAULT como seu autor, especialmente na
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
4/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
178
obra O nascimento da clnica,10embora de fato tenha ganhado com ele maior circulao acadmica.
Jacques LONARD11tambm o utilizara como sendo um aumento oficial da atuao de questes
relacionadas sade no cotidiano de uma populao.12Ainda anteriormente, Thomas S. SZAZS13
Enquanto problema clnico, a lepra passou ser objeto de estudo de vrios mdicos partir
da segunda metade do sculo XIX, se destacando figuras como Daniel Danielsen, Armauer Hansen,
Robert Koch, Rudolf Virchow. Nesse perodo, graas um representativo avano tcnicoresponsvel pelo desenvolvimento de instrumentos como o microscpio, por exemplo, vrias
doenas passaram a ser objeto de estudo especfico e sistemtico de uma recm-formada classe de
mdicos convencionalmente chamada de Bacteriologistas, que comprovaram serem as bactrias
responsveis por uma srie de doenas que partir de agora podiam ser melhor compreendidas.
Essa revoluo microbiana
emprega o termo em uma crtica ao sistema psiquitrico europeu do perodo, que para ele seria a
expresso de uma medicalizao dos problemas sociais. No caso do processo aqui abordado, este
conceito ser compreendido como um motor ideolgico que transformou a lepra, como dito
anteriormente, em um problema social, cientfico e poltico dos mais graves nessa virada dos
sculos XIX e XX.
14
A lepra neste espectro de doenas bacteriolgicas entretanto, se transformou em um desafio
cientfico para esses mdicos uma vez que sua cura clnica era um objetivo sabidamente distante.
Sequer se conhecia seus meios de transmisso, ou mesmo se ela era transmitida ou hereditria.
modificou comportamentos mdicos, ampliou horizontes
investigativos e, partindo do pressuposto terico anteriormente mencionado de que o conhecimento
cientfico intrincecamente vinculado estruturas e matizes sociais, acabou por criar umaatmosfera de competio acadmica por prestgio e poder entre esses profissionais.
15
O fenmeno que Eric Hobsbawn chamou deA era dos imprios,
16
10FOUCAULT, Michel. O nascimento da clnica.6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006.11LONARD, Jacques.Les mdecins de lOuest au XIXme sicle.Paris, 1978.12STOLBERG, Michael. Professionalisierung und Medikalisierung.p.75.13 STOLBERG, Michael. Professionalisierung und Medikalisierung. p.75. Apud: SZAZS, Thomas S. Themanufacture of madness. A comparative study of the inquisition and the mental health movement.London, 1971.14 CUNNINGHAM, Andrew & WILLIAMS, Perry. The Laboratory Revolution in Medicine. Cambridge:Cambridge University Press, 1992. p.209.15
Sobre isso ver: MONTEIRO, Yara.Da maldio divina a excluso social: um estudo da hansenase em SoPaulo; e OBREGN-TORRES, Diana.Batallas contra la lepra: Estado cincia y medicina en Colombia.16HOBSBAWN, Eric.A Era dos Imprios.So Paulo: Paz e Terra, 1988.
oferece subsdios para
que se interprete esse momento cientfico do estudo leprolgico como momento imperial, ou
colonial da lepra. As principais naes europias no final do sculo XIX, incio do XX sepreocupavam sobremaneira com a expanso comercial e econmica de suas divisas, e
coincidentemente em quase todas as regies que foram objeto desse Imperialismo, a lepra era um
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
5/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
179
srio problema endmico.17
Wolfgang Eckart pesquisou fundo essa experincia.
A maneira porm, com que cada pas europeu lidaria com o problema
se distinguiria consideravelmente.
Por isso alguns autores como Diana Obregn Torres, tendem considerar esse momento da
histria da lepra como um momento colonial ou tropical da doena. Ou seja, o olhar cientfico
etnocntrico europeu associou o retorno da preocupao com a doena expanso comercial
imperialista, transformando as colnias em disseminadores em potencial da doena; e
transformando o clima quente desses pases em uma caracterstica inconteste da enfermidade.
Interessante observar todavia que, como tambm aponta a autora, a lepra nunca foi definitivamente
extinta em pases europeus de clima frio como a Noruega por exemplo. Fato que foi ignorado por
esses cientistas.
O problema cientfico a ser resolvido estava apresentado: a lepra, uma doena toestigmatizadora e que instigava um temor muito alm de clnico, era no sculo XIX novamente
encontrada em nmeros consideravalmente alarmantes, tambm na Europa. Alternativas cientficas
seguras de tratamento era algo distante. Restava apenas uma antiga sada: isolar os doentes para no
alastrar o mal. Alemanha e Noruega foram foras cientficas hegemnicas desse processo, e
apresentariam suas propostas para a resoluo do problema, suas maneiras de isolar os leprosos.
Antecipadamente, necessria se faz a constatao histrica de que a alternativa germnica conta de
maneira geral com maior respaldo documental, por ter sido realizada e descrita em diferentesmomentos, em diferentes contextos e por diferentes personagens. A noruegusa, por sua vez, se
mostra at os dias atuais bastante vinculada figura acadmica de seu principal personagem,
Armauer Hansen, que produziu quase que sozinho seus discursos histricos, que se constituem at
os dias atuais no principal substrato argumentativo no qual se baseiam todas as tentativas histricas
em descrev-la.
O Modelo alemo
A experincia alem com a lepra foi adquirida inicialmente em suas colnias africanas nas
duas ltimas dcadas do sculo XIX, especialmente Togo e Camares.18
17EDMOND, Rod. Leprosy and Empire A Medical and Cultural History. New York: Cambridge UniversityPress, 2006.18
ECKART, Wolfgang U.Medizin und Kolonialimperialismus. Deutschland 1884-1945.Paderborn: FerdinandSchningh, 2000; ECKART, Wolfgang U.Leprabekmpfung und Ausstzigenfrsorge in den afrikanischen"Schutzgebieten" des Zweiten Deutschen Kaiserreichs, 1884-1914.Leverkusen: Verlag Heggendruck, 1990.
Seus trabalhos so de grande
relevncia para a compreensso do assunto, por se caracterizar num dos mais importantes trabalhos
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
6/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
180
histricos relacionados ao tema atualmente na Alemanha, mas sero aqui discutidos juntamente com
a anlise de fontes primrias como relatrios sobre a construo e sobre o funcionamento dos
leprosrios construdos pelo pas na frica especialmente o de Bagida e o de Bagamoyo em Togo
conseguidos no Arquivo Nacional (Bundesarchiv) de Berlim.
bem verdade que esse problema colonial da lepra no era exclusividade da Alemanha
no perodo. Wolfgang Eckart narra as experincias inglsas e francsas em suas colnias no
continente africano, e as compara com a alem. Essa comparao resulta na constatao de que a
forma com que a Alemanha lidou com o problema se mostrou bastante diversa da de seus vizinhos
colonizadores, especialmente nos primeiros momentos. Alm dele, outros autores tambm
corroboram com essa opinio como Rod Edmond, que mostra que Inglaterra e Frana tiveram uma
postura com relao doena em suas colnias que se aproximou muito mais do temor do que dequalquer outro sentimento.19
O caso colonial ingls especificamente abordado por Jane Buckingham, onde transparece
a interpretao de que a lepra era muito mais uma questo de polcia do que de medicina. As
instituies construdas eram baseadas inclusive no modelo do Panptico de Bentham, mostrando
que a preocupao com o doente era exclusivamente para que ele no fugisse. Era um prisioneiro,
enfim, no um doente.
Assim a lepra seria antes de tudo um entrave s intenes comerciais
desses pases.
20
Nas colnias alems, em contrapartida, a questo foi tratada de maneira diferente. Na
segunda metade do sculo XIX j era grande a preocupao com a quantidade de casos e de novos
casos de lepra encontrados nos pases africanos sob sua influncia, e especialmente com a
impotncia clnica e cientfica no que tange uma cura ou mesmo um tratamento para o mal.
21A
ao do governo no tardaria. No incio da dcada de 1890 foi enviada ao continente uma comitiva
mdica, chefiada pelo Dr. Robert Koch,22
Heinrich Hermann Robert Koch essa altura possua um cargo de conselheiro no
Gesundheitsamt (Ministrio da Sade), e era tambm Assistente Extraordinrio do Gabinete
no apenas para fornecer um detalhado relatrio da real
exteno da doena na regio, como tambm para propr solues, e especialmente construirinstituies que atendessem tanto s necessidades clnicas e sociais das colnias quanto s
necessidades econmicas da metrpole.
19EDMOND, Rod.Leprosy and Empire A Medical and Cultural History.20BUCKINGHAM, Jane.Leprosy in Colonial South India Medicine and Confinement.New York: Palgrave,2002. p.36.21
ECKART, Wolfgang U.Medizin und Kolonialimperialismus. Deutschland 1884-1945.22 Sobre isso ver: ECKART, Wolfgang U. Medizin und Kolonialimperialismus. Deutschland 1884-1945; eKOCH, Robert.Die Lepra-Erkrankungen im Kreise Memel.Klinisches Jahrbuch, 6: 239-253. 1897.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
7/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
181
Imperial de Sade desde 1880. J era portanto considerado uma das maiores autoridades da cincia
mdica mundial, devido sua respeitvel experincia clnica, e s identificaes dos
microorganismos causadores da tuberculose e da Clera, feitas na dcada de 1880. Gozava assim,
de grande legitimidade para propr qualquer soluo com relao lepra na frica. Nessa
conjuntura permaneceu por quase dois anos no continente, quase todo o tempo em Togo, onde
auxiliou diretamente na construo de 4 leprosrios, alm de outros 2 em Camares. 23
Os internos eram separados, por exemplo, por sexo como era de praxe, mas tambm poretnia, respeitando costumes, lnguas, e demais estruturas sociais. Sobre a alimentao, houve a
preocupao de explicitar nesse relatrio que ela era feita de maneira adaptar o quanto fosse
possvel a realidade contingencial s necessidades e gostos dos internos.
Bsicamente, esse Modelo Alemo, proposto por Robert Koch e seus assistentes, era
composto por leprosrios que possuam dois princpios: respeitar ao mximo as diversidades e as
individualidades de seus internos, e ser ao mximo auto-sustentvel financeiramente. No caso
especfico dos leprosrios construdos nas colnias africanas, houve uma preocupao sria quanto
diversidade tnica e cultural dos doentes, e um considervel respeito essa diversidade em todas assuas manifestaes.
No relatrio de 1904, Sobre o leprosrio de Bagamoyo em Togo, observa-se de maneira
clara as intenes do governo germnico com tais instituies. Dados sobre o plano de construo,
sobre alimentao, e at mesmo sobre vigilncia so seguramente importantes objetos de anlise.
Em 1904 o leprosrio j tinha sete anos de funcionamento, um tempo considervelmente interesante
para observaes dos mdicos e governantes do pas.
24Sobre a vigilncia, foi
adotada por exemplo a prtica de eleger um doente, que geralmente era escolhido entre aqueles com
mais tempo de internao, para ser um auxiliar do guarda responsvel pela ordem da instituio.
Interessante observar que o prprio texto relata que a figura do guarda era at certo ponto
desnecessria, pois os doentes eram relativamente satisfeitos com sua alimentao e com ascondies de vida que tinham em Bagamoyo, no sendo at hoje registradas ocorrncias de fugas.25
A presena de mes e esposas/maridos de doentes era permitida, como mostra o Relatrio
da Casa dos Leprosos de Bagida, em Togo de 1902, com o intuito de melhorar a vida e a
23ECKART, Wolfgang U.Medizin und Kolonialimperialismus. Deutschland 1884-1945.p.341.24FA 1/4 . Einrichtung eines Lepraheimes bei Bogamoyo.6397.Bericht ber das Lepraheim in Bogamoyo 1904.
Bundesarchiv Berlim. p.2.25FA 1/4 . Einrichtung eines Lepraheimes bei Bogamoyo.6397.Bericht ber das Lepraheim in Bogamoyo 1904.Bundesarchiv Berlim. p.2.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
8/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
182
permanncia dos internos na instituio.26
Ao mesmo tempo esses leprosrios possuam a preocupao de serem auto-sustentveis o
mximo quanto possvel. Atividades como agricultura e pecuria foram implementadas tanto com o
objetivo de manter os internos ativos fisicamente, quanto para baratear seus custos operacionais.
Todos os doentes que eram capazes de trabalhar, eram aconselhados a produzir o suficiente para
seu sustento durante um ano.
O relatrio regulamenta porm as condies dessa
permanncia e deixa claro que essas pessoas deveriam cuidar de sua prpria subsistncia. Mas de
todas as maneiras tais exemplos representam indcios de uma forma mais humana de lidar com o
problema, de um respeito condio humana dos doentes internados nesses leprosrios.
27
Fato que essa experincia colonial africana, aliada a figura proeminente e cientficamente
legitimadora de Robert Koch apresentavam subsdios que tinham tudo para legar aos alemes uma
condio de vanguarda no assunto. E um outro acontecimento poderia trazer ainda maislegitimidade esse modelo: a doena tambm voltava a ser encontrada na prpria Alemanha, na
cidade de Memel na Prssia
O relatrio no explica porm como era feito esse clculo, apenas
diz que o interno teria que produzir apenas um tipo de alimento, prviamente estabelecido pela
administrao, em uma pequena poro de terra de propriedade da instituio.Os leprosos africanos sob responsabilidade alem eram, assim, tratados de uma maneira
bem diferente, se comparados com os da Inglaterra e Frana, por exemplo, que no eram sequer
reconhecidos como doentes. Era clara alm disso a preocupao com os custos e com a realizao
de uma proposta vivel financeiramente ao governo.
28
O foco de lepra na cidade porturia de Memel, na Prssia, foi observado inicialmente no
incio da dcada de 1890, atravs do trabalho do Dr. Pindikowsky,
na dcada de 1890. O Modelo Alemode isolamento de leprosos
teria assim, uma oportunidade singular de ser implementado dentro das divisas territoriais do pas, e
no mais apenas em suas colnias comerciais.
29sendo relatados 9 casos vivos e
4 mortos. Mas apenas em 1896 o mdico prussiano pde juntamente com Blaschko fazer umtrabalho de mais flego chamadoA lepra na regio de Memel,30
26FA 3.Lepraheim Bagida. 3098.Lepraheim Bagida 1906 1911. p.3.27FA 3.Lepraheim Bagida. 3098.Lepraheim Bagida 1906 1911. p.4.28Atualmente a cidade de Memel se chama Klaipeda, e pertence ao territrio lituano.29
PINDIKOWSKY: Mitteilungen ber eine in Deutschland bestehende Lepraepidemie. Dtsch. Med. Wschr.1893.30BLASCHKO, A.Die Lepra im Kreise Memel.Berl. Klein. Wschr. p.433-448. 1896.
onde se viu a seriedade do assunto,
e que a lepra se transformava em um problema que realmente mereceria a ateno do Reich. O
retorno de uma doenca estigmatizante como a lepra era tudo que no se desejava num perodo
poltico importante para a recm-formada nao alem.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
9/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
183
Repetindo o que havia acontecido na frica alguns anos antes, ainda em 1896 Robert Koch
foi enviado ao local, juntamente com seu assistente Martin Kirchner, para averiguar a seriedade do
problema, propr solues plausveis, e especialmente orientar a construo de uma instituio que,
se acreditava, serviria de modelo no tratamento da enfermidade. Ele desembarcou em Memel em
setembro de 1896 com esse intuito. E em menos de 3 anos, em 20 de julho de 1899 seria inaugurado
o Lar dos Leprosos de Memel. A instituio idealizada por Koch possua aposentos para 16 leprosos
que, como disse Kurt Schneider, mdico do leprosrio por mais de 30 anos, eram tratados com o
mximo respeito e humanidade.31
Talvez um dos principais interlocutores capazes de dizer um pouco mais detalhadamente o
que foi o Lar dos Leprosos de Memel seja Kurt Schneider. Ele trabalhou como mdico no local de1911 at o fim da instituio em 1944, e escreveu dois artigos sobre o local e seu cotidiano: o
primeiro intituladoDie Geschichte der Lepra im Kreise Memel und das Lepraheim im Memel(A
Histria da Lepra na regio de Memel e o Lar dos Leprosos de Memel), de 1942. E o segundo
chamado Das Vorkommen von Lepra im Kreise Memel und das deutsche Lepraheim bei Memel
1899 bis 1945,
Em 1909 a insituio sofreria uma expanso, ampliando sua
capaciadade para 22 internos.
32
No primeiro, narra de maneira detalhada os primeiros momentos da estada de Robert Kochna regio para averiguar o real estado da doena, alm de sua inteno em construir ali uma
instituio que representasse realmente uma soluo alem para o problema do isolamento dos
leprosos. Contamos aqui com as idias de um dos maiores personagens da histria da medicina
mundial para apresentar uma soluo alem para o povo alemo, contra o mal da lepra.
(O retorno da lepra na regio de Memel e o Lar dos leprosos alemo em Memel de
1899 at 1945) escrito em 1953.
33
O leprosrio, que tinha o nome amenizador de Lar dos leprosos, contava com instalaes
como descreve o prprio autor: simples porm confortveis.
34
31 SCHNEIDER, Kurt. Die Geschichte der Lepra im Kreise Memel und das Lepraheim in Memel. Berlin:Verlagsbuchhandlung von Richard Schoetz, 1942. p.421.32SCHNEIDER, Kurt. Das Vorkommen von Lepra im Kreise Memel und das deutsche Lepraheim bei Memel1899 bis 1945.Der ffentliche Gesundheitsdienst: Monatsschrift fr Gesundheitsverwaltung und Sozialhygiene,
Berlin, v.12, p.465-469. 1953.33SCHNEIDER, Kurt.Die Geschichte der Lepra im Kreise Memel und das Lepraheim in Memel.p.414.34SCHNEIDER, Kurt.Die Geschichte der Lepra im Kreise Memel und das Lepraheim in Memel.p.411.
Robert Koch tinha bem arraigada
em sua mente a idia de que a instituio deveria se adequar s condies econmicas alems doperodo. Com isso, todas as estruturas da instituio foram justificadas minuciosamente. Ele narra
uma interessante passagem sobre isso em seu artigo de 1897 dizendo: Cheguei a questionar a
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
10/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
184
construo de um jardim, que custaria 1.250 Marcos, mas fui convencido por Kirchner de que seria
interessante.35
Em seu segundo artigo de 1953, j depois do final da segunda guerra mundial, e da
consequente extino do leprosrio ocorrida em 1944 Kurt Schneider conta que o ambienteentre funcionrios e pacientes era formidvel, ponto de se esquecer s vezes que aquilo era um
leprosrio.
Alm disso, Robert Koch ainda utilizou mais uma alternativa para tentar baratear os custos
estatais da instituio: uma espcie de terceirizao profissional do leprosrio. O governo seria o
responsvel pela construo da instituio, pela manuteno dos mdicos que eram apenas dois
e pelos demais gastos operacionais que no fossem cobertos pela produo interna de alimentos.
Todos os outros gastos e responsabilidades foram divididos com a Knigsberger Diakonie, uma
congregao evanglica, que assumiu compromissos como a manuteno fsica da instituio, o
cuidado pessoal com os doentes atravs de irms de caridade, e seu controle administrativo geral.
36
A Noruega contava j em meados do sculo XIX com respeitvel experincia no combate
doena no seu prprio territrio diferentemente dos outros pases anteriormente citados, que
O lar dos leprosos de Memel representava assim uma soluo relativamente econmica para
o isolamento dos leprosos nica alternativa cientfica em questo no final do sculo XIX ao
mesmo tempo em que conseguia instigar um sentimento positivo e de pertencimento de seus
internos para com a instituio. Fato alis, que tambm seria observado nos leprosrios construdos
na frica. Robert Koch seria assim um dos principais idealizadores do que este trabalho conceituarcomo Modelo Alemode isolamento de leprosos. Em suma, a Alemanha desenvolvia no decorrer
da dcada de 1890 sua poltica-pblica contra a lepra, seja atravs de sua experincia colonial na
frica, seja por sua experincia caseira em Memel. Em ambos os casos observa-se uma postura
bastante preocupada com a condio do doente, ao mesmo tempo em que se tentava gastar o
mnimo de recuros estatais possveis. Estruturas que transformavam esse modelo alemo em uma
significativa opo no conjunto de propostas polticas sugeridas contra a lepra, na disputa cientfica
travada nesse perodo para legitimar um modelo de isolamento de leprosos. Mas no a nica, muitomenos a mais legitimada.
O Modelo Noruegus
35
KOCH, Robert.Die Lepra-Erkrankungen im Kreise Memel.p.251.36SCHNEIDER, Kurt.Das Vorkommen von Lepra im Kreise Memel und das deutsche Lepraheim bei Memel1899 bis 1945.p.463.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
11/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
185
desenvolveram suas polticas de combate lepra em funo de suas necessidades imperialistas
tornando-se a primeira potncia cientfica no estudo leprolgico. Eleito nas primeiras dcadas deste
sculo como o principal problema social do oficialmente recm-formado Estado noruegus, a lepra
passou pela primeira vez a ser objeto de ao governamental. Um rigoroso sistema de medidas
polticas e sanitrias foi implementado partir da dcada de 1830 para diminuir a incidncia da
enfermidade que, segundo a anlise aqui realizada, deve ser diferenciada em dois aspectos
histricos, saber:primeiro, como e sob quais condies foram implementadas e, segundo, como e
sob quais condies foram divulgadas e aclamadas como soluo para o problema.
A premissa argumentativa na qual este trabalho se baseia , assim, a de que existiram dois
modelos norueguses de combate lepra. O Prtico, que foi efetivamente desenvolvido na Noruega
partir de meados do sculo XIX ; e o Terico, que foi oficialmente apresentado nas duas primeirasconferncias internacionais de lepra de Berlin 1987 e a de Bergen 1909. Histricamente, do
primeiro conhece-se relativamente pouco, uma vez que o segundo assumiu partir desses encontros
acadmicos um carter discursivamente hegemnico, que terminou ocultando-o.
Em uma rpida anlise da produo histrica sobre o tema, observa-se que ainda existem
dificuldades considerveis na compreenso dessas medidas, e na definio de suas atribuies no
contexto scio-cientfico de combate lepra partir de meados do sculo XIX. O prprio conceito
deModelo Noruegus, por exemplo, foi utilizado por vrios autores que se dedicaram esse temaem diferentes momentos, nota-se porm que a compreenso que se faz dele distinta e
incongruente, merecendo ser aqui ressaltada.
Zachary Gussow37e Diana Obregn Torres o entendem como sendo o que aqui delimitei de
Modelo Noruegus Prtico, ou seja, o que foi prticamente realizado na Noruega partir do meio
do sculo XIX. Ao descrever a forma com que Gussow entendia o referido conceito, concordando
com ele, Obregn Torres afirma que: Segn este autor, el modelo noruego era democrtico,
racional y ilustrado. [] Fue promovido por los noruegos mismos bajo condiciones culturalesespeciales.38
Yara Monteiro, por sua vez, compreende oModelo Norueguscomo sendo o que previa o
isolamento compulsrio obrigatrio e irrestrito, proposto nas duas primeiras conferncias
internacionais de lepra, o que neste trabalho chamei de Terico. Segundo a autora, os norueguses
se contradisseram posteriormente, ao apresentar comunidade cientfica um sistema de medidas
contra a lepra diferente do que foi realizado realmente no pas nas dcadas anteriores. E que: Esta
37
GUSSOW, Zachary.Leprosy, Racism and Public Health: Social Policy in Chronic Disease Control.Boulder:Westview Press, 1989.38OBREGN-TORRES, Diana.Batallas contra la lepra: Estado cincia y medicina en Colombia.p.121.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
12/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
186
distoro influenciou boa parte dos hansenlogos da poca, fazendo com que o Modelo
Noruegus , ou seja, o isolamento compulsrio, fosse adotado em muitas regies endmicas do
mundo.39
Compreende-se este Modelo Noruegus Prtico aqui como resultado de uma tentativa
nacionalista de acabar com a lepra, eleito o principal problema social vivido pelo pas no princpio
do sculo XIX.
Com isso, segundo a interpretao historiogrfica atualmente vigente, tem-se delimitado o
seguinte panorama histrico: esseModelo Noruegus Prticoteria sido desenvolvido com base em
estruturadas e educativas medidas sanitrias, e em um isolamento voluntrio que contava com a
participao de vrios setores da sociedade, e se transformaram em um positivo exemplo de como
lidar com o problema; o Terico, em contrapartida, teria sido apresentado nas referidas conferncias
internacionais, de maneira totalmente impositiva e contraditria com relao ao primeiro, tendo num
isolamento compulsrio e punitivo a nica alternativa apresentada, que gerou, por fim, um
incontestvel equvoco na atuao profiltica contra a doenca no sculo XX, em vrias partes domundo.
40
Para alcanar este objetivo o governo escandinvo se disps a formar e financiar a primeira
classe de mdicos especialistas nesta enfermidade partir da dcada de 1830.
A doena foi concebida pela primeira vez por um Estado como um problema
cientfico. Entretanto, a conotao dessa cientificidade ultrapassou seus limites clinicamente
especficos e foi desembocar nos matemticos. A lepra enfim, era concebida em termos prticos
como um nmero ser eliminado ou pelo menos reduzido, transformando o doente apenas numdado. Alm disso ela passava ser uma responsabilidade exclusiva do Estado que deveria por fim se
esforar por desvincula-la do carter caritativo e religioso que sempre se viu vinculada.
41Neles foi depositada
a esperana de todo o pas na construo dos primeiros conhecimentos essencialmente tcnicos
sobre a enfermidade. Fruto desta empresa, surge no final da dcada de 1840 o primeiro trabalho
reconhecidamente cientfico sobre a doena, intitulado Om Spedalskhed
42
39MONTEIRO, Yara.Da maldio divina a excluso social: um estudo da hansenase em So Paulop.124.40Sobre isso ver: KOCH, Robert.Die Lepra-Erkrankungen im Kreise Memel; HANSEN, Armauer & LIE, H. P.
Die Geschichte der Lepra in Norwegen;GUSSOW, Zachary.Leprosy, Racism and Public Health: Social Policyin Chronic Disease Control.41Sobre isso ver: HANSEN, Armauer & LIE, H. P.Die Geschichte der Lepra in Norwegen; VOGELSANG, Th.M. The Termination of Leprosy in Norway: An Important Chapter in Norwegian Medical History; Together witha Portrait of Armauer Hansen circa 1873. In: International Journal of Leprosy. 25 (4): p.345-51, 1957;LORENTZ, M. & IRGENS, M.D. Leprosy in Norway: An Interplay of Research and Public Heath Work. In:
International Journal of Leprosy: 41 (2): p.189-198, 1973.42DANIELSEN, Daniel C. & BOECK, Carl W. Trait de la Spdalsked ou Elphantiasis des Grecs.Paris : J. B.Ballire, 1848.
(Sobre a Lepra) deDaniel Danielsen e Carl Boeck personificaes dessa esperana escandinva que deixou claro
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
13/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
187
que o caminho cientfico at a cura seria rduo e longo. Concomitante este passo cientfico, o
governo patrocinou um grande censo da lepra, que durou mais de uma dcada,43e tentou tornar
palpvel o tamanho do problema ser solucionado: Era necessrio nesse primeiro momento
compreender a extenso numrica da enfermidade. 44 Mdicos foram contratados para viajar e
catalogar todos os doentes do pas, o que tornou pblico as difceis condies sanitrias e de vida em
geral da populao. Consciente disso o governo noruegus tratou de agir contra a lepra tambm no
mbito social, criando um requintado sistema hierrquico de poderes entre a sociedade com relao
doena, que foi interpretado por vrios autores como democrticos e positivos,45
Na prtica, porm, essa propensa atitude descentralizadora serviu to somente para que o
governo pudesse controlar melhor a realizao das atitudes propostas por ele de maneira
centralizada e impositiva. partir da dcada de 1850 o governo re-utilizou a fora de trabalho dos
mdicos contratados para a realizao do grande censo sobre a doena nas dcadas de 1830 e 1840,
e criou para eles o cargo de Distriktarzt, Mdico Distrital (HANSEN, 1909), que deveria
oficialmente ser responsvel por cuidar da sade e do bem-estar de uma determinada regio, mas
que conforme aponta o prprio Hansen: sua tarefa principal era controlar mais de perto o fluxoepidemiolgico da lepra.
pois alm de
tericamente legarem ao doente a deciso de se isolar em seu domiclio segundo normas tcnicas
estabalecidas ou de ser levado aos assim se acredita modernos leprosrios que construiria partir
desse momento, gerava uma atmosfera participativa na sociedade quanto ao assunto.
46
43 Sobre esse senso ver: HANSEN, Armauer & LIE, H. P. Die Geschichte der Lepra in Norwegen;VOGELSANG, Th. M. The Termination of Leprosy in Norway: An Important Chapter in Norwegian Medical
History; Together with a Portrait of Armauer Hansen circa 1873; LORENTZ, M. & IRGENS, M.D. Leprosy inNorway: An Interplay of Research and Public Heath Work.44HANSEN, Armauer & LIE, H. P.Die Geschichte der Lepra in Norwegen.p.326.45VOGELSANG, Th. M. The Termination of Leprosy in Norway: An Important Chapter in Norwegian Medical
History; Together with a Portrait of Armauer Hansen circa 1873;LORENTZ, M. & IRGENS, M.D. Leprosy inNorway: An Interplay of Research and Public Heath Work;MONTEIRO, Yara.Da maldio divina a excluso
social: um estudo da hansenase em So Paulo;OBREGN-TORRES, Diana.Batallas contra la lepra: Estadocincia y medicina en Colombia.46HANSEN, Armauer & LIE, H. P.Die Geschichte der Lepra in Norwegen.p.327.
Em cada um destes distritos tambm seria criado o cargo de
Kommunalbehrde,Autoridade Comunitria, um cidado escolhido peloDistriktarzt, quase sempre
com o auxlio da autoridade religiosa do local, que teria a funo oficial de ser uma voz de dentro da
comunidade auxiliar esseDistriktarztem todas as decises que julgasse tcnicamente necessrias
contra a lepra.Estes profissionais por sua vez estariam sob a responsabilidade do que foi chamado
de Oberarzt der Lepra, Mdico Chefe da Lepra, reponsveis por recolher e estudar os dados
colhidos por seus subordinados em termos estatsticos e por pensar solues em termosestruturalmente amplos, de acordo com ordens e regulamentaes administrativas diretas do
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
14/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
188
governo, atravs da figura central de Daniel Danielsen, o pilar de toda esta estrutura. Assim, ao
contrrio dos autores anteriormente citados, considero tais medidas como centralizadoras e
impositivas, uma vez que a atuao dos Kommunalbehrde e do Distriktarztno processo era na
prtica cerceada e diminuta: [] com essas medidas Danielsen assumiu o controle geral da
situao.47
Bastante influenciados pelo resultado epidemiolgico dessas medidas apresentado no final
do sculo XIX, onde os quase trs mil casos confirmados da enfermidade registrados em meados do
sculo caram para algumas centenas,
A historiogrficamente apregoada atmosfera democrtica dessas medidas no foi
observada nas fontes pesquisadas por este trabalho. O prprio Armauer Hansen deixa bem claro
tambm neste artigo que houve compulsoriedade e mesmo a ao policial no pas para garantir a
realizao do isolamento, especialmente aps a sua entrada no processo, na dcada de 1870.
48
Assim apesar de na prtica partir do mesmo vis documental, ou seja, o discurso de
Armauer Hansen, porm enquanto fonte primria, pude chegar aqui alguns outros
questionamentos e observaes sobre essa poltica-pblica escandinva contra a lepra. Essa
concepo historiogrfica atual das medidas noruegusas, ou doModelo Noruegus Prtico, partem
do pressuposto que sob uma atmosfera democrtica bem regulamentada houve uma diminuio
a historiografia contempornea sobre o tema acabacompreendendo tais medidas enfim, como bem fundamentadas e como um modelo ser seguido.
Procurei neste trabalho me focar mais detalhadamente no discurso de Armauer Hansen
sobre o processo, que em termos prticos se constitui de fato como a principal fonte histrica sobre
o mesmo. A desejvel consulta de documentos oficiais do governo noruegus sobre o assunto se
apresentou como um problema linguistico e temporal cuja soluo ainda no me foi possvel neste
trabalho. Assumo desta maneira uma postura analtica at certo ponto reducionista, de me fazer
valer bsicamente apenas do discurso de um personagem para compreender uma ao poltica destarelevncia. Justifico-a em funo da centralizao poltica e acadmica em torno da figura de
Hansen que, em termos prticos, se transformou no porta-voz oficial e no estandarte dessas
medidas, no deixando margem outros personagens que pudessem t-las descrito de outra
maneira. Isto no apenas em funo de ter sido um responsvel direto pela implementao dessas
medidas na Noruega partir da dcada de 1870, ou por ser aluno e genro de Daniel Danielsen que
j havia falecido em 1879 , mas tambm e principalmente por ser quela altura aclamado como o
pai do bacilo da doena, fato que abriria novos horizontes seu estudo.
47HANSEN, Armauer & LIE, H. P.Die Geschichte der Lepra in Norwegen.p.328.48
Sobre isso ver: HANSEN, Armauer a. Facultativ oder Obligatorische Isolation der Leprsen. I InternationaleLepra-Konferenz, 1: 1-5. 1897; KOCH, Robert.Die Lepra-Erkrankungen im Kreise Memel;HANSEN, Armauer& LIE, H. P.Die Geschichte der Lepra in Norwegen.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
15/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
189
epidemiolgica dos casos da doena que no deixava dvidas de sua eficcia. Ao considerar tais
medidas como exitosas, essa corrente d margens interpretao de que elas foram responsveis
pela cura dos doentes, ou seja, que a impressionante curva decrescente do nmero de casos
registrados teve como consequncia o retorno dos doentes seus lares e sua vida social. A lepra,
porm, era uma enfermidade cuja cura clnica naquele momento representava uma utopia. Como
explicar ento essa diminuio epidemiolgica? H.P. LIE, assistente de Armauer HANSEN por
mais de uma dcada e seu sucessor poltico no pas aps seu falecimento em 1912, deixa claro em
um artigo escrito j em 1933 com o objetivo de descrever essas medidas escandinvas que ele no
tinha resposta esta pergunta, e ainda completa reticente: is the decline spontaneous? 49
As medidas noruegusas contra a lepra no sculo XIX ou Modelo Noruegus Prticoforam assim implementadas sob uma atmosfera pragmtica e cientificista que centralizou o combate
lepra sob a figura do Estado, que transformou a doena em um nmero. O doente por sua vez,
segundo palavras do prprio Hansen seria: um mal-trabalhador, e por conseguinte uma perda
econmica para sua sociedade.
O prprio Armauer Hansen, como se ver, fornecer na I Conferncia Internacional de
Lepra de Berlim em 1897 alguns indcios histricos capazes de responder pelo menos em parte este questionamento. Nesta ocasio, como ressaltado anteriormente, ele foi o principal responsvel
por realizar a descrio do que denominei deModelo Noruegus Terico, isto , a sua interpretao
feita mais de meio-sculo depois e sob olhares atentos de autoridades cientficas e polticas de
todo o planeta sobre a poltica-pblica escandinva contra a lepra no sculo XIX que, graas
uma relativa dificuldade documental sobre o tema e legitimao de sua figura acadmica, se
transformou na descrio reproduzida historiogrficamente partir de ento.
50
O governo alemo organizaria com muito orgulho e pompa o primeiro encontro cientfico
mundial para tratar especficamente do assunto lepra. O pas era um fundamental centro cientfico
Porm, com mais de meio-sculo de histria, tendo como
predicado o poderoso libe dos nmeros que comprovavam naquele momento prticamente a
extino da doena no pas, e sob a regncia acadmica do principal personagem cientfico
vinculado ao estudo tcnico da enfermidade, elas chegavam ao primeiro encontro internacional demdicos e polticos sobre a doena como principal proposta poltica contra o problema da lepra.
I Conferncia Internacional de Berlim 1897
49LIE, H.P. Why is leprosy decreasing in Norway.In: International Journal of Leprosy. (1): 1933. S. 210.50HANSEN, Armauer. Einleitung.I Internationale Lepra-Konferenz, 2: p.18. 1897.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
16/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
190
do perodo, levando autores como John Cornwell a chama-lo de Meca da Cincia.51 Os
resultados cientficos dos germnicos eram realmente respeitveis. Em 1921, vinte anos depois da
instituio dos prmios Nobel, alemes, ou pelo menos pessoas de lngua alem, haviam ganhado
metade dos prmios concedidos s cincias naturais e medicina. 52
Seguindo o pressuposto indicirio e investigativo de Carlo Ginzburg,
Fazendo do idioma alemo,
por consequncia, condio fundamental para divulgao e progresso cientficos. Nomes como
Albert Einstein na fsica, Adolf von Bayer na qumica e Robert Koch na medicina eram exemplos
incontestes dessa hegemonia.
Nessa atmosfera foram convidadas as maiores autoridades mdicas de todo o mundo para a
Conferncia de lepra, com a real e viva esperana de se compreender a exteno do problema que
voltava tona, como tambm de apresentar solues plausveis para combater a doena. Era sabido,
porm, que a cura ainda era uma utopia, e que as discusses deveriam ser por conta da melhormaneira de se realizar o isolamento dos doentes, nica alternativa vivel para o no alastramento do
mal.
Para entender essa querela, necessrio se faz explicar um pouco melhor em que consiste a
publicao dessa Conferncia de lepra em Berlim, em 1897. Os anais da conferncia so divididos
em dois tomos que totalizam 1392 pginas, originalmente publicados em alemo. No primeiro
existem artigos prviamente escritos pelos participantes do encontro, como tambm os discursos
literais proferidos na abertura e no encerramento do mesmo por alguns dos mais importantes dessesleprlogos. E no segundo tomo existe um resumo das discusses dirias dos quatro dias da
conferncia.53
Muito provavelmente na publicao de Robert Koch, chamada A lepra na regio de
Memelestaria a explicao para essa ausncia. A inteno do artigo publicado trs meses antes da
realizao da conferncia seria de relatar a extenso da doena na regio alem que, como mostrado
relevantes
atividade histrica no que tange observao de detalhes e mesmo de silncios nas fontes
pesquisadas, pode-se observar importantes fatos nesse encontro acadmico. Por exemplo, o fato de
um dos principais personagens da idealizao e da prtica do mencionado Modelo Alemo, Robert
Koch, no ter sequer participado do evento, mesmo sendo um importante cone acadmico sobre oassunto, e um dos representantes mais respeitados, e inclusive conselheiro, do Gesundheitsamt
(Ministrio de sade do Reich), que promoveu o encontro.
51CORNWELL, John. Os cientistas de Hitler.Rio de Janeiro: Imago Editora, 2003. p.45.52
CORNWELL, John. Os cientistas de Hitler.p.46.53GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes O cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela inquisio.So Paulo: Companhia das Letras, 1987.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
17/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
191
anteriormente, voltava a contabilizar novos casos de lepra, assustando todos e exigindo medidas
urgentes do governo alemo. Contudo, alm de realizar tal tarefa, ele tece crticas s medidas
implementadas na Noruega nas dcadas anteriores, e especialmente ao fato de atribuir ao isolamento
compulsrio em instituies estatais o desaparecimento da doena no pas.54Ele j afirma no artigo
que essas medidas no eram confiveis, duvidando da relevncia dos dados epidemiolgicos para a
discusso do assunto. E afirma por exemplo, que permanece apenas uma sada lgica para o
problema, construir instituies que levem em conta tanto as mais modernas preocupaes tcnicasno combate doena quanto s necessidades e a realidade sociais de cada pas. 55Mostra tambm
uma tabela epidemiolgica com o nmero de casos da doena na Noruega antes e depois da
implantao dessas medidas no pas, concluindo que esses dados no seriam suficientes para dar a
confiana necessria s medidas noruegusas, dizendo que nmeros no curam, so apenasnmeros.56
A Alemanha porm contava no mesmo perodo com um outro renomado bacteriologista, e
que tambm possua uma relevante experincia no estudo de vrias enfermidades, dentre elas alepra: o berlinense Rudolf Virchow, que foi inclusive escolhido para ser o presidente da conferncia
de Berlim. Sua estreita relao profissional e pessoal com o noruegus Armauer Hansen acabou
sendo uma fundamental vantagem para o escandinvo na disputa pela legitimao da melhor
poltica-pblica contra a lepra. Artigos de Armauer Hansen no famoso Virchows Archiv que foi
um dos mais importantes peridicos mdicos do sculo XIX eram comuns. O prprio Rudolf
Virchow relata mais detalhadamente a amizade com Armauer Hansen, quem chamou de um
Para ele, enfim, a proporo de doentes internados nos leprosrios estatais
escandinvos nunca foi suficiente para atribuir o fim da enfermidade no pas ao isolamento
compulsrio.
Essa atitude de Robert Koch em criticar de maneira to explcita a postura noruegusa com
relao lepra em um trabalho que teria uma finalidade completamente diferente, est arraigada nas
diferenas profundas, anteriormente abordadas, com relao ao papel do doente e do Estado no
desenvolvimento de suas polticas-pblicas contra a lepra observadas entre Alemanha e Noruega.Segundo oModelo Alemode atuao contra a lepra, era inconcebvel o Estado arcar com todas as
despesas decorrentes desse combate. Robert Koch inicia assim a crtica que boa parte da
historiografia no sculo XX faria figura de Armauer Hansen, uma vez que lega ao escandinavo a
responsabilidade por fazer uma espcie de deturpao da realidade vivida durante todo o processo
de implementao dessa poltica na Noruega.
54
KOCH, Robert.Die Lepra-Erkrankungen im Kreise Memel.55KOCH, Robert.Die Lepra-Erkrankungen im Kreise Memel.p.250.56KOCH, Robert.Die Lepra-Erkrankungen im Kreise Memel.p.249.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
18/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
192
grande amigo57 num artigo publicado nesse peridico. O historiador Manfred Vasold tambm
narra uma importante passagem da vida profissional de Rudolf Virchow no artigo Rudolf Virchow
und die Lepra in Norwegen(Rudolf Virchow e a lepra na Noruega), onde conta com detalhes uma
viagem feita pelo mdico alemo em 1859 Bergen na Noruega, onde toma conhecimento das
medidas tomadas pelos norueguses com relao doena, alm de ter a oportunidade de estreitar
os laos acadmicos com Daniel Danielsen e com o prprio Armauer Hansen, quela altura ainda
assistente de Danielsen. Nesse artigo, de 1989, Manfred Vasold conta que Virchow compactuava
da mesma viso de cincia de Hansen, e os dois se uniriam cada vez mais partir dessa viagem do
berlinense capital noruegusa.58
Se torna difcil crer, assim, que Armauer Hansen no tomou conhecimento das tais crticas
de Robert Koch, trs meses antes da Conferncia, e que no quis se retaliar. E que essa retaliaono influenciou na no participao de Robert Koch no evento. Oficialmente, Robert Koch estava
em mais uma de suas muitas Forschungsreise (Viagens Investigativas) ao continente africano,
59
57VIRCHOW, Rudolf. Zur Geschichte des Aussatzes, besonders in Deutschland, nebst Aufforderung an rzteund Geschichtsforscher.In: Virchows Archiv: v. 18. p.139 ,1860.58VASOLD, Manfred.Rudolf Virchow und die Lepra in Norwegen.In: Medizinhistorisches Journal, v. 24 p.135,
1989.59Sobre a biografia de Robert Koch ver por exemplo: BOCHALLI, Richard. Robert Koch Der Schpfer dermodernen Bakteriologie.Stuttgart: Wissenschaftliche Verlagsgesellschaft M.B.H., 1954.
porm sua presena no seria difcil de ser arranjada, se desejada, pelas autoridades reponsveis. A
relevncia acadmica que gozava no campo da bacteriologia bem como sua experincia pessoal na
idealizao e implementao das medidas de seu pas contra a lepra nas colnias africanas e no
pequeno foco caseiro em Memel me levam crer que a ausncia de Robert Koch na conferncia de
Berlim foi algo polticamente arranjado.Por todos os motivos aqui ressaltados, a voz de Armauer Hansen era sem dvida a mais
aguardada. Na ocasio ele realizaria a descrio das medidas que conseguiram acabar com a lepra
em seu pas, no que denomino neste trabalho de Modelo Noruegus Terico. Sua inteligncia e
perspiccia histricas merecem ser ressaltadas, uma vez ter reconhecido o nvel de inseguranca
tcnica que pairava sobre os conhecimentos acerca da lepra no perodo, e de ter escolhido a
alternativa argumentativa do isolamento como soluo ser recomendada todos que quisessem
chegar aos mesmos resultados norueguses. Alm disso, ele reconheceu desde o princpio suarelevncia histrica no processo, e se esforou para galgar at certo ponto sozinho o posto de cone
moderno da lepra.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
19/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
193
Shubhada Pandya,60
The suppression and prevention of leprosy can only be accomplished by smothering itby means of [leper] isolation. We want to obtain enforced and complete isolation by theconsent of governments; we want the necessary measures to be taken, everywhere,rigorously, and that the principle of isolation may pass into practice, with all itsconsequences, all the duties and efforts it may entail.
por exemplo, narra com interessantes fontes primrias a tentativa do
mdico norte-americano Albert Ashmead que tambm esteve presente na conferncia de Belim
de formar junto com Armauer Hansen e outros mdicos uma rede mundial de pesquisadores, um
Comit, partir do final de 1896, e que teriam tambm a responsabilidade poltica de propr
solues contra a enfermidade. De maneira sutil mas determinada, segundo o autor, o noruegus
declina de todas as tentativas, numa atitude que interpreto aqui como intencionalmente pensada para
ressalta-lo como o mais importante e relevante personagem cientfico e poltico da lepra no perodo.
Albert Ashmead seria assim, um outro personagem que buscaria seu reconhecimento
acadmico no processo. Tambm favorvel ao isolamento compulsrio, ele buscava maneiras de
formar uma primeira classe de leprologistas, que teria a responsabilidade de convencer os
governos de todo o mundo da necessidade do isolamento para se chegar ao fim da lepra:
61
Meus senhores! Temos aqui duas propostas feitas por Dr. Ashmead (New York) e porDr. Westberg sobre a formao de um Lepra-Comit. Eu j havia escrito anteriormente Dr. Ashmead que eu no posso compreender o que este Comit teria fazer, no serassinar papis e tecer belos discursos. Eu penso que a coisa bem simples. Nsconseguimos resultados realmente requintados na Noruega, mas se eles no foremsuficientes para convenc-los, ento faam como queiram. Se os senhores no queremseguir nosso exemplo so, como eu disse Dr. Ashmead, idiotas (sic), e pessoas idiotas
no merecem ser ajudadas. Mas minha experincia mostra que as pessoas no so toidiotas como se diz comumente, e por isso eu acredito que os senhores faro como nsfizemos e eu posso garantir que em pouco tempo estaro livres da lepra.
Mas, pelos motivos apontados anteriormente, tal atitude no seria bem-vista e no contaria
com o apoio do mdico noruegus. Em uma das discusses da conferncia de Berlim que por fim
no foi abordada por Shubhada Pandya o noruegus trata do assunto, e d mostras contundentes
da maneira com que defenderia sua posio na ocasio, no que considero um de seus discursos mais
sintomticos de toda a conferncia:
62
Estava claro, assim, que ele no aceitaria a insero de outros personagens no processo. A
experincia e os resultados epidemiolgicos de seu pas, associada sua experincia pessoal no
estudo cientfico da doena, somada providencial e fundamentada relao acadmica com Rudolf
60PANDYA, Shubhada. The first international leprosy conferency, Berlin, 1897: the politics of segregation. In:Histria, Cincias, Sade Manguinhos: 10 (suplement 1). S. 161-177, 2003.61Ashmead, 22.1.1897. Apud: PANDYA, Shubhada. The first international leprosy conferency, Berlin, 1897:
the politics of segregation.p.168.62 I INTERNATIONALE LEPRA-CONFERENZ. Die Isolierung der Ausstzigen und die dazu erforderlichenMaassregeln.Berlin, 1897: 2. p.165.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
20/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
194
Virchow eram predicados suficientes para legar sua figura a condio de legitimidade necessria
para propr, sozinho, solues aos presentes. E sua soluo foi o isolamento compulsrio que, de
fato, era a nica alternativa plausvel.
De qualquer forma, todas as tentativas teraputicas para a lepra foram at agora toclaramente mal-sucedidas,ou pelo menos to inseguras, que no nos resta outraalternativa. Ser o mais sensato e mais humano de nossa parte, se ns combatermos apropagao desta enfermidade atravs do isolamento dos doentes. 63
Aconteceram tantas outras doenas, tantas outras infeces, que os doentes morriamnesses leprosrios muito antes do que se estivessem ficado em casa. Isso se trata deproblema exclusivamente sanitrio, nenhum acidente, mas bonito e humano no foi.
A idia do mdico noruegus era clara. Atravs do isolamento compulsrio dos doentes, a
doena iria naturalmente desaparecer. Este procedimento foi de fato, por fim, o adotado em seu pas.
O governo reuniu a maior quantidade possvel de leprosos em leprosrios sob sua total
responsabilidade, e partir deste momento passou no se preocupar demasiadamente com o que
acontecia l dentro.
64
Este pequeno trecho do discurso de Armauer Hansen transcrito nos anais da primeira
conferncia internacional de lepra de Berlim abre assim novas perspectivas de anlise do processo
de implementao da poltica-pblica noruegusa contra a doena no sculo XIX. Ao l-lo
compreende-se um pouco melhor os motivos pelos quais o pas conseguiu diminuir
epidemiolgicamente o nmero de doentes de forma to impactante em pouco mais de meio-sculo
sem que fosse possvel tcnicamente curar a doena. No se trata de dizer que o governo noruegus
exterminou seus doentes de lepra, mas sim de dizer que ele no dispenderia recursos financeiros e
mesmo energticos em cuidar da sade e do bem-estar de pessoas que se sabia no possurem futuro
social. Era de seu conhecimento que os doentes que fossem internados nesses leprosrios no
tinham chance de l sarem curados. O que acontecesse dentro dos muros dessas instituies, assim,
no deveria mesmo ser objeto de tanta preocupao governamental, j que a eliminao desses
doentes viria em ltimo caso de encontro com a perspectiva cientfica pragmtica e tecnicista deste
governo que, como j ressaltado anteriormente, compreendia o doente apenas como um dado, um
nmero ser reduzido ao mximo. No foi encontrada nenhuma meno sequer desse
pronunciamento de Armauer Hansen em toda a bibliografia estudada sobre o tema, o que refora a
idia de que essa poltica pblica noruegusa para a lepra no sculo XIX se apresenta ainda como
um profcuo e frutfero campo de anlise e pesquisa histrica.
63I INTERNATIONALE WISSENSCHAFTLICHE LEPRA-KONFERENZ. Zweite Sitzung: 2. p.48-49. Berlin,
1897.64 I INTERNATIONALE LEPRA-CONFERENZ. Die Isolierung der Ausstzigen und die dazu erfolgreichenMaassregeln.p.162.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
21/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
195
A ressonncia conseguida por seu discurso na ocasio foi bastante positiva. ponto de legar
ele a coragem de opinar livremente, por exemplo, sobre o problema da lepra na Alemanha, que
pelos motivos apresentados aqui, seria oficialmente o principal concorrente ideolgico de sua
proposta. Em um dos encontros da conferncia vamos encontrar um singular acontecimento nesse
sentido: Especialmente aqui na Alemanha, onde existem 36 casos em uma regio (grito:15!), se
poderia em poucos anos acabar com a doena.65
O legado oficial da conferncia para a histria da lepra, em outras palavras da descrio e
aclamao do Modelo Noruegus Terico, seria assim como j afirmam vrios autores, o
isolamento compulsrio todos os leprosos em instituies que haveriam de ser construdas pelo
Em uma de suas inmeras intervenes, Armauer
Hansen sugere que tambm os alemes deveriam seguir seus conselhos, recebendo a corrigenda
imediata de algum da platia quanto ao nmero de casos citado por ele na regio de Memel.
Acontecimento que por fim nos oferece uma idia do nvel de divergncias e competitividade com
que foi criado o paradigma cientfico do isolamento compulsrio como soluo para o problema da
lepra.A proposta alem por sua vez foi relegada um segundo plano. Ao contrrio do que se
observava com os norueguses, que possuam j na conferncia de Berlim uma srie de dados e
argumentos epidemiolgicos acumulados em mais de meio-sculo de histria de sua soluo para o
problema, a poltica pblica contra a lepra implementada pela Alemanha estava em pleno processo
de desenvolvimento, tanto em suas colnias africanas quanto no pequeno foco caseiro na regio de
Memel, e ainda no possua resultados prticos apresentar, ou seja, no podia ainda comprovar a
diminuio epidemiolgica da doena com tais medidas. Este foi, sem dvida, um dos fatoresdecisivos para a aclamao dessa maneira noruegusa de lidar com o problema na ocasio. No
continente africano, as medidas alems comecaram a ser implementadas no princpio da dcada de
1890, mas ainda estavam longe de apresentar resultados prticos em 1897. E no foco prussiano, tal
poltica pblica teve inicio oficial, conforme tambm salientado neste trabalho, com a visita de
Robert Koch regio para propr as solues polticas para o problema j no ano de 1896, um ano
antes da conferncia na capital do Reich. Alia-se essa falta de resultados prticos, ou mesmo de
experincia, ausncia de Robert Koch no encontro, a personalidade poltica e acadmica quepoderia interceder de maneira decisiva favor dessa alternativa. A maneira alem de lidar
estatalmente com a lepra foi, desta maneira, desacreditada.
65I INTERNATIONALE LEPRA-CONFERENZ.Die Isolierung der Ausstzigen und die dazu erfolgreichenMaassregeln.op. cit. S. 165.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
22/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
196
Estado um custo alto e sem qualquer garantia quanto resultados,66como se isolar fosse suficiente
para curar. partir de ento comeava uma disputa ainda maior por poderes entre os acadmicos
envolvidos no assunto, que ressoaria em vrios contextos histricos e sociais no perodo. Alguns
autores como Yara Monteiro, que estudou esse processo no Brasil, chegam a dividir a classe mdica
envolvida no assunto em dois grupos: isolacionistas e partidrios de uma nova postura.67No
mundo inteiro borbulhavam discusses sobre o tema. Diana Obregn, por exemplo, narra que na
Colmbia as discusses percorreram congressos de medicina por mais de trs dcadas.68
Mas na realidade, o poder de Armauer Hansen s fez aumentar na conferncia de Berlim,
fazendo com que ele mesmo afirmasse em sua auto-biografia que se me senti famoso algum
momento de minha vida, este momento foi em Berlim em 1897. Me senti feliz por perceber que as
pessoas passaram a se interessar verdadeiramente pela lepra, e tinha contribudo para isso.
69Eleitopresidente da Associao dos Leprlogos, criada na ocasio por sugesto de Rudolf Virchow,70
Outro exemplo disso seria observvel tambm em seu mais importante passo cientfico. Elerecebeu os louros da descoberta do Mycobacterium Leprae, o microorganismo que seria o
responsvel pela transmisso da doena. Entretanto, levando-se em conta algumas estruturas
metodolgicas que consideram o pensamento e a produo cientfica como fenmenos coletiva e
ele
conseguiu por fim aprovar a realizao da prxima conferncia internacional sobre o assunto para a
capital noruegusa: Bergen, que se realizaria 12 anos e muitas discusses depois.
II Conferncia Intenacional de Lepra Bergen 1909
Em realidade pode-se considerar a Conferncia de Bergen, aps sua leitura completa, e
levando-se em conta todo o abordado contexto acadmico, como uma espcie de homenagem
Armauer Hansen, que j quela altura apresentava sinais contundentes de sua idade avanada, vindo
a falecer menos de trs anos mais tarde.
Por meio de uma anlise desses pequenos trechos da trajetria acadmica e mesmo pessoal
do mdico noruegus, neste trabalho tambm esboadas, pde-se identificar traos de um
egocentrismo e uma necessidade de afirmao cientfica que trariam consequncias fundamentais
para o processo aqui abordado.
66MUIR, Ernest & ROGERS, Leonard.Leprosy; MONTEIRO, Yara.Da maldio divina a excluso social: umestudo da hansenase em So Paulo; OBREGN-TORRES, Diana. Batallas contra la lepra: Estado cincia ymedicina en Colombia.67MONTEIRO, Yara.Da maldio divina a excluso social: um estudo da hansenase em So Paulo.p.137.68OBREGN-TORRES, Diana.Batallas contra la lepra: Estado cincia y medicina en Colombia.p.181.69
HANSEN, Armauer. The memories and reflections of Dr. Gerhard Armauer Hansen. Wrzburg: GermanLeprosy Relief Association, 1976. p.100.70I INTERNATIONALE WISSENSCHAFTLICHE LEPRA-KONFERENZ. Zweite Sitzung.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
23/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
197
socialmente construdos, no permitindo por fim que se aceite uma nica e chapada Verdade
Cientfica, ou mesmo uma descoberta cientfica,71a contempornea historiografia da cincia tm
tentado re-interpretar esse descobrimento do mdico noruegus. Diana ObregnTorres,72afirma
que ele apenas conjecturou ser o microorganismo realmente uma bactria no artigo Die Lepra
Klinischen und Pathologisch-Anatomischen Standpunkte,73A lepra: atuais ponto-de-vistas clnico e
anatmico-patolgico, sem nenhuma comprovao contundente, o que por sua vez seria feito
efetivamente apenas cinco anos depois, pelo mdico alemo Albert Neisser, com a publicao do
artigo:Zur Aetiologie der Lepra, 74
Armauer Hansen conta porm sua verso para esse fato ainda indita nos trabalhos latino-
americanos sobre o tema , em um artigo publicado nessa II Conferncia Internacional de Lepra de
Bergen em 1909. Segundo ele, Albert Neisser havia estado em seu laboratrio em Bergen, neste
mesmo ano de 1879, para tentar comprovar que o microorganismo era uma bactria, e que se
encaixava na estrutura bacteriana de Robert Koch, principal paradigma cientfico do assunto no
perodo. Para comprovar isso, eles precisavam cultivar o microorganismo in vitro, e este deveriamudar de cor, de acordo com as trs estruturas bacterianas propostas por Robert Koch. Os testes no
deram resultado.
Sobre a Etiologia da lepra. Mas como Armauer Hansen havia
publicado seu artigo anteriormente, e como tinha o aval cientfico e legitimatrio de Daniel
Danielsen, alm de sua prpria experincia j quela altura respeitvel no meio acadmico pelas
atividades realizadas na Noruega, se consentiu haver sido ele o descobridor da bactria causadorada lepra.
75 Depois disso, ele enviou pessoalmente uma carta Robert Koch pedindo
conselhos sobre a melhor maneira de realizar a experincia. E recebeu como resposta que o
preparado deveria permanecer por um perodo, at 24 horas, em repouso para chegar ao
resultado.76
71 FLECK, Ludwik. La gnesis y el desarollo de un hecho cientifico. Madrid: Alianza Universidad, 1986.Utilizei aqui esta traduo em espanhol, mas a verso original de 1935. FLECK, Ludwik. Genesis anddevelopment of a scientific fact.In: TREN, Thadeus & MERTON, Robert K. (ed.). Chicago: The Universit ofChicago Press, 1935/1979.72OBREGN-TORRES, Diana.Batallas contra la lepra: Estado cincia y medicina en Colombia.73 HANSEN, Armauer. Die Lepra Klinischen und Pathologisch-Anatomischen Standpunkte. Cassel: Verlagvon TH. G. Fischer & Co., 1874.74
NEISSER, Albert.Zur tiologie der Lepra.In: Berslauer Artzl. Zeitschrift 1: p.200-215, 1879.75HANSEN, Armauer & LIE, H. P.Die Geschichte der Lepra in Norwegen.p.333.76HANSEN, Armauer & LIE, H. P.Die Geschichte der Lepra in Norwegen.p.335.
Assim feito, Hansen acreditava ter conseguido provar que oMicobacterium Leprae
era realmente uma bactria. Porm para sua surpresa, na mesma semana Albert Neisser publica o
artigo com os mesmos resultados, o enervando profundamente. Ainda assim em seu artigo de 1909,Armauer Hansen se auto-nomeia descobridor da bactria dizendo que o ocorrido no seria nada
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
24/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
198
que tirasse o brilhantismo de Armauer Hansen como principal cone da histria da lepra, 77
Diferentemente da primeira conferncia de Berlim, a conferncia de Bergen se deu em um
ambiente de tranquilidade e troca de deferncias entre os participantes. Com o falecimento de
Rudolf Virchow em 1902, a delegao alem agora seria chefiada por Martin Kirchner. Como
assistente de Robert Koch tanto na frica quanto no foco caseiro da doena no pas em Memel,
Martin Kirchner exerceu um papel interessante no processo cientfico apresentado, pois ao mesmo
tempo em que confirma que [] a Alemanha no podia traar um panorama cientficamente
convincente sobre a lepra no pas quando da conferncia de Berlim, devido ao pouco tempo de sua
existncia, mas me comprometo realizar esta tarefa hoje aos senhores,
e
sequer cita o artigo e o nome de Albert Neisser alm desse comentrio.
78 se mostra
completamente favorvel Armauer Hansen, chamando-o de maior nome da histria da lepra.79
Coube Martin Kirchner assim, a fundamental tarefa de explicar melhor as medidas
tomadas nas colnias africanas em Memel, agora com dados absolutamente completos e
estruturados, diferentemente do que ocorreu em Berlim doze anos antes, na primeira tentativa. Eled maiores detalhes sobre o leprosrio da cidade prussiana, que estava na ocasio completando
quase dez anos de existncia, e contava com 22 doentes. Ressalta que os resultados desses dez anos
tambm seriam relevantes em termos epidemiolgicos, tendo o nmero de novos casos na regio
prussiana diminudo para apenas trs nesses dez anos.
A astcia poltica de Kirchner nessa questo foi interessante. Ele sabia que quela altura a proposta
noruegusa estava definitivamente aclamada como melhor alternativa. Ao mesmo tempo era
necessrio apresentar os agora existentes resultados das medidas alems contra a lepra, colhidos
nesses doze anos entre a conferncia de Berlim e a de Bergen.
80Alm disso ele deixa claro que a alternativa
institucional de Memel era consideravelmente menos dispendiosa ao Estado do que a proposta
apresentada pelos norueguses em Berlim. O lar dos leprosos de Memel foi construdo levando em
considerao as condies e a realidade social alems, j apresentando resultados incontestes.
81
77HANSEN, Armauer & LIE, H. P.Die Geschichte der Lepra in Norwegen.p.336.78 KIRCHNER, Martin. Die in Deutschland und den deutschen Schutzgebieten seit 1897 ergriffenSchutzmaregeln gegen die Lepra.II Internationale Lepra-Konferenz, Bergen: 2, 1909. p.15.79KIRCHNER, Martin.Die in Deutschland und den deutschen Schutzgebieten seit 1897 ergriffenSchutzmaregeln gegen die Lepra.p.17.80 KIRCHNER, Martin. Die in Deutschland und den deutschen Schutzgebieten seit 1897 ergriffen
Schutzmaregeln gegen die Lepra.p.18.81 KIRCHNER, Martin. Die in Deutschland und den deutschen Schutzgebieten seit 1897 ergriffenSchutzmaregeln gegen die Lepra.p.23.
Aatitude de Kirchner em expr essa experincia na conferncia de Bergen porm, foi quase que uma
atitude para livrar sua conscincia, uma vez que ele prprio sabia que sua retrica e seus dados no
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
25/27
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
199
iriam modificar o panorama cientfico do momento, que enxergava apenas o modelo noruegus
como adequado: Considero terminado meu dever de informar aos senhores sobre nossa
experincia no combate lepra. Agradeo pela oportunidade.82
Imperioso se torna por fim, constatar novamente a marginal mas agora pelo menos
presente participao de Robert Koch na conferncia de Bergen. Suas idias foram observadas
apenas no sucinto artigo de quatro pginas,
83que pode ser considerado como uma espcie de tratado
eugnico da lepra. Quase sem tocar no assunto do isolamento, ele versa apenas sobre o fato de se
dever considerar a lepra como enfermidade tropical, propondo como soluo por exemplo, o envio
de um maior nmero de mulheres europias para as colnias, com o objetivo de diminuir a
mistura dos europeus com os povos contaminados pela doena,84mostrando como tambm suas
idias se modificaram nesse intervalo de doze anos entre as duas conferncias. Mesmo estando emBergen, e mesmo com esta pequena participao, Robert Koch no perdeu a oportunidade de fazer
crticas forma noruegusa de combater a lepra: Tambm na Noruega, bsicamente um povo de
pobres pescadores, se observou que a doena mesmo transmissvel, e que o tratamento deve ser
orientado todos, no apenas aos mais pobres.85Na nica frase em que versa sobre o isolamento
afirma: O isolamento ainda , infelizmente, o nico meio pelo qual a enfermidade pode ser
combatida cientficamente, enquanto no chega cura para a doena, prometida pelo Dr. Deycke.86
Na ltima seo da conferncia, destinada a escolha dos prximos membros da sociedade
dos leprlogos, tendo sido Armauer Hansen aclamado novamente presidente, exatamente no ltimo
pargrafo da publicao l-se: noite foi oferecido pelo Comit Organizador um banquete aos
participantes. Sua Excelncia Robert Koch declinou ao convite, afirmando necessitar viajar s
pressas para a participao em um outro congresso, tendo deixado na oportunidade seus sinceroscumprimentos aos colegas. Sobre isso respondeu Sua Excelncia Dr. Armauer Hansen: A
Conferncia de Lepra envia agradecimentos ao Dr. Robert Koch pelos cumprimentos deixados.
ntida a inteno de Robert Koch nessa frase em atingir Armauer Hansen, pois era mais do queclaro para os cientistas presentes ao encontro que se a cura da enfermidade poderia chegar, seria
evidentemente pelas mos do mdico noruegus.
87
82 KIRCHNER, Martin. Die in Deutschland und den deutschen Schutzgebieten seit 1897 ergriffenSchutzmaregeln gegen die Lepra.p.28.83KOCH, Robert.Zur Prophylaxe der tropischen Lepra.II Internationale Lepra-Konferenz, 2: 253-256. Bergen,1909.84KOCH, Robert.Zur Prophylaxe der tropischen Lepra.p.255.85
KOCH, Robert.Zur Prophylaxe der tropischen Lepra.p.254-255.86KOCH, Robert.Zur Prophylaxe der tropischen Lepra.p.254.87II INTERNATIONALE WISSENSCHAFTLICHE LEPRA-KONFERENZ. Vol. III. Bergen, 1909. p.423.
http://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidadeshttp://www.fafich.ufmg.br/temporalidades8/13/2019 MUITO MAIS DO QUE ISOLAMENTO EM QUESTO: CINCIA, PODER E INTERESSES EM UMA ANLISE DAS DUAS PRIM
26/27
Muito mais do que Isolamento em questo: Cincia, poder e interesses em uma anlise das duas primeirasConferncias Internacionais de Lepra Berlim 1897 e Bergen 1909
Reinaldo Guilherme Bechler
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades
200
Um sintomtico acontecimento que demonstra o grau de competitividade e divergncias
entre os seres humanos envolvidos nessa querela acadmica. Ao se recusar participar do banquete
oficial oferecido aos participantes na ltima noite do evento, Robert Koch deixa claro que no
compactuava da maneira pela qual estava sendo formado o paradigma cientfico do isolamento
compulsrio como soluo para o problema da lepra. Ao deixar a capital noruegusa, ele via sua
luta pessoal por idealizar e implementar uma alternativa para o problema menos dispensiosa ao
estado e mais preocupada com o doente oficialmente desacreditada e subjulgada, e observava a
aclamao de Armauer Hansen como a eterna figura cientfica vinculada lepra.
Recommended