muito prazer 4 mar 12

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Coluna Muito Prazer do dia 4 de março de 2012

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EDUARDO AVELAR

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MUITOprazer

O advogado AndersonEduardo Pereira setornou cozinheiro pornecessidade. No jogodo erro e acerto, foiseduzido, aperfeiçoou-se e descobriu seu lugarde paz

ao alimentoReverência

RAFAEL MOTTA/TV ALTEROSA

Punhosde renda

LILIAN MONTEIRO

rimeiro veio o pedido de socorro: “Pai, estoucom fome!”. A ajuda apareceu de forma inusi-tada. Guiado pelas mãos do advogado e audi-tor fiscal Benjamim Pereira Arantes, aos 18anos, Anderson Eduardo Pereira foi levado àcozinha e apresentado a um futuro amigo: “Es-te é o fogão”. A reação? “Pai, não sei nem ligarisso. Vou botar fogo na casa”. A réplica? “Voufazer uma vez e depois é por sua conta”. Assimcomeçou a aventura gastronômica, impostapelo pai, que “não é nenhum gourmet, mas sevira”. Assustado, Anderson apelou para o mio-jo, “o meu guru”, mas uma semana depois jáestava enjoado. Até que um dia decidiu acres-centar cebola, no outro cenoura, “e depois in-crementar com carne”. Nesse momento, An-derson também fez contato com a sua essên-cia de “menino criado no interior de Minas, en-tre Ponte Nova, Curvelo e Barra Longa”, e des-cobriu suas referências: “A avó e as tias cozi-nhando no tacho de cobre à beira do fogão a le-nha. Aliás, cresci ao lado dele. A comida de raizmineira despertou o meu interesse”.

Maistarde,essadescobertafeznascerumco-zinheiro apaixonado, realizando, inclusive, um“silogismo com a culinária do interior da Fran-ça”. Essa sacada desperta o interesse de Ander-son e o deixa cada vez mais envolvido com apossível proximidade entre as duas cozinhas:“Os franceses dão valor à cozinha local, ao frutoda terra, que está na região geográfica, e prote-gem o produtor, que é bem diferente do forne-cedor, assim como toda a cadeia. Não comempor comer. Como eles, quero saber o que comoedeondevem.Reverenciooalimentoeasmãosde quem trabalha para o nosso sustento. A co-mida mineira tem esse diferencial, pela diversi-dade de ingredientes”, diz. Essa relação leva An-derson à catarse: “A comida alimenta a alma”.

Anderson se tornou autodidata. Superada apressão do pai, com quem foi morar depois deele se separar da sua mãe, a nutricionista Rui-mar, encarou outro desafio: “Primeiro, sougrato ao meu pai. E depois, aos 23 anos, deiuma de mochileiro ao viajar por três mesespela Europa e África, quando tive de pôr amão na massa de novo. Nos albergues haviacozinha e eu ia à feira para comprar os ingre-dientes e preparar minha comida. Engrenei”.

QUEIJO Já casado com a advogada Lilian Ro-cha, Anderson não conseguiu mais deixar acozinha: “Minha mulher é a minha eterna co-baia e sempre me dá força, apesar de já ter co-mido muita coisa ruim, salgada, fora do pon-to. É corajosa, ainda mais por ser de uma famí-lia tradicional, acostumada a comida refinadada alta sociedade, e tendo de se arriscar aomeu lado, criado com comida da roça e pala-dar de mochileiro. Mas de tanto tentar, meaperfeiçoei. Fiz curso com a Ana Gourmet, daAcademia do Vinho, e hoje sempre cozinhopara ela e os amigos”. Lilian, aliás, é a parceiraperfeita nas viagens à França: “Sempre vamospara o interior, cidades das regiões Sul e Leste.Gostamos de frequentar o lugar onde o fran-cês come, não o de turistas. Foi aí que percebia semelhança com Minas, o respeito pelo queé da terra, o não desperdiçar nada. Lembro-meque, criança, ao matarem o porco diziam quesó não aproveitavam o berro. Assim como, nocaso da bananeira, usamos até o umbigo para

fazer doce. Temos isso, apesar da demora pararegistrar o queijo canastra como patrimônionacional cultural imaterial”.

PaideMaurícioeBeatriz,Andersonfazques-tão de passar aos filhos esse seu envolvimento.Começou fazendo o papel de “gourmet das pa-pinhas”. Ele ainda não conseguiu arrebatarMaurício,quesesentefelizdiantedemiojocomsalsicha, mas Beatriz é uma pequena gourmet.

Ávido consumidor de livros de culinária,Anderson assina “todas as revistas especiali-zadas que se possa imaginar”. Não é um segui-dor de receitas: “Aprendi com a Ana que cozi-nha não é cópia. A receita é para ter noção dosingredientes, exceto no caso da patisserie”.

CARÊME A cozinha de Anderson é descons-truída e ele não costuma repetir pratos. “Gos-to de inovar. No cassoulet, troco a coxa defrango por linguiça de javali. Adequo os ingre-dientes brasileiros aos pratos franceses, a par-tir dos livros que tenho de Georges AugusteEscoffier e Antoine Carême. Aprendi errando.Meu lema é não inventar. Menos é mais. Oexagero confunde os sabores e os aromas eatrapalha o visual, que tem que ser perfeito”.Com vida profissional atribulada e estressan-te, comanda três escritórios de advocacia emMinas, Espírito Santo e São Paulo (em proces-so de abertura) e mais de 60 funcionários, An-derson revela que “quanto mais pesado o dia,maior a minha disposição para cozinhar”. É olugar onde encontra a paz, que vem na com-panhia de Lilian, Maurício e Beatriz, “

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●● INGREDIENTES PARA 6 PORÇÕES

700g de filé limpo filetado em tiras de10cm x 0,5cm; 300g de bacon magro emcubos; 200g de minicebolas; suco de 4limões sicilianos; 20 champinhons-de-paris médios, com talo; 15 miniesferas dequeijo de cabra; 100g de vagem baby ourasteira; 250g de cenoura baby(preferencialmente com os talos); 10aspargos verdes; 2 alhos-porós semfolhas; 10 minitomates italianosvermelhos; 10 minitomates italianosamarelos; azeite extravirgem(preferencialmente não filtrado) osuficiente; flor de sal e pimenta-do-reinomoída na hora, medidas com bom senso.

●● MODO DE FAZER

Antes de começar o preparo, lembre-se deque a sequência em que os itens sãointroduzidos na panela é importante, emfunção do tempo de cozimento e textura decada um. Depois de marinar o filé no sucodos limões com flor de sal e pimenta-do-reino por uma hora, escorra o líquido e levea uma panela de ferro até começar a secar.Junte o bacon previamente frito em um fiode azeite e misture. Junte a cenoura pré-cozida no vapor por 15 minutos e misture.Junte o alho-poró fatiado em rodelas de

1cm de espessura e misture. Junte asminicebolas descascadas por meio dechoque térmico (depois de cinco minutosem água fervente, leve-as à água fria.Corte um pequeno pedaço na extremidadeda raiz e aperte para que ela saia da casca)e misture. Junte os aspargos pré-cozidosno vapor por cinco minutos (corte o queexceder 10cm e fatie ao meio, no sentidolongitudinal). Misture com cautela a partirde agora. Junte a vagem pré-cozida novapor por cinco minutos e misture. Junte ochampignon finamente fatiado e misture.Prove e acerte a pimenta-do-reino e a florde sal, se necessário. Rege com azeite paradar brilho e realçar os sabores. Na hora deservir, finalize com os tomates e as esferasde queijo de cabra.

Saboroso, nutritivoe fácil de fazer: filé

com legumes equeijo de cabra

Aos 18 anos, Anderson Pereira foiintroduzido assim pelo pai no mundoda culinária: “Este é o fogão”

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A relação apaixonada dosmineiros com a cozinha temsido o combustível e oprincipal estímulo ao seuincansável trabalho pelavalorização dos costumes e dastradições gastronômicas deMinas Gerais. Muito tenhofalado sobre a influência dosfatores geográficos e climáticosna identificação de um terroir,mas o que mais me emocionanessas andanças pelas paragensmineiras são as pessoas e oquanto carregam da herançados nossos irmãos lusitanos,

cuja cultura vem de tantosanos de viagens pelo mundo.

A força do trabalho, avalorização da família e otalento para os ofícios manuais,sobretudo os ligados àalimentação, demonstram oquanto nós, mineiros,assimilamos a culturaportuguesa. Geralmente, viajopelo interior para garimpartesouros, mas na semanapassada tive a grata surpresa eo privilégio de receber, emminha casa, um verdadeirodiamante da nossa

gastronomia e exemplodas afirmações acima:Maria Fernanda Affonso, daDoces de Portugal.

No primeiro contato com apequenina senhora de pelealva, muito elegante e de faladelicada, percebi que estavapor vivenciar um momentoverdadeiramente especial.Acostumado a falar, calei-me epassei a ouvir e a me encantarcom suas palavras e a suaemocionante história, que mefizeram sentir pequenino doalto dos meus 1,85m e 55 anosde experiência de vida. Ahistória da “princesa” dafamília portuguesa enviadapelo governo à colônia africanade Angola se desfez, como notoque das badaladas do contoda Cinderela, no estourar darevolução civil angolana, há 37anos. Separada da família, ajovem chegou ao Brasil semmeios para se estabelecer nanova e dura realidade. Aovisitar uma conterrânea em

São Paulo, foi convidada aaprender a fazer doces. Aprincípio negou-se, por não tera mínima intimidade com acozinha. Depois de muitainsistência, resolveu ajudá-la e,como num toque de mágica,percebeu que suas mãostinham alguma coisa alhe falar, talvez umdesígnio divino.

De volta a BH, durante umpasseio na Praça da Liberdade,entre artistas e quituteiros dafeira de antiguidades criadapor Mari’ Stella Tristão, veio aideia inspiradora: montar umabarraca de doces para ofereceras três únicas delíciasportuguesas que aprendera atéentão. Logo veio o sucesso. Aover a sobrinha envolvida nessalida, um tio desembarcou noBrasil para saber o que havialevado a princesa a tal decisão.A explicação se revela nacarinhosa alcunha dada pelomarido, “punhos de renda”,uma referência à árdua tarefa

cumprida pelas mãos delicadas.A perda dos pais e outras

agruras da vida, osintermináveis dias cercada poraçúcar, sem conhecer osignificado de férias por longosanos, fizeram com que a “gataborralheira” mostrasse toda asua nobreza. Os exemplos deamor à família, a garra e aluta incessante traduziram oque suas mãos, naquela época,queriam lhe contar. Sob ospunhos de renda, existia – eainda existe – a vontade deferro, a fé inabalável notrabalho e, sobretudo, duasverdadeiras mãos de fada.Nunca duvidei de queos melhores sabores têm,em suas receitas, umagrande história. Não poderiaser diferente com aFernandinha (como gostade ser chamada), quetransformou a amargurados momentos difíceisda vida em doces delíciasde Portugal.

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