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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
MULHERES NA ESTRADA: A TRAJETÓRIA DAS HEROÍNAS DE ROAD MOVIES
Marcio Markendorf1
Resumo: A narrativa trivial dos road movies ou filmes de estrada pode ser considerada um produto cultural da modernidade – cada vez mais ensimesmado na metrópole, o sujeito apenas consegue conectar-se consigo mesmo e com o outro em situação de viagem. Por essa razão tal gênero cinematográfico, frequentemente associado à aventura, apresenta personagens que descobrem valores pessoais inexplorados ou desconhecidos e transformam-se interiormente após uma série de peripécias. Assim, ao mesmo tempo em que a estrada expressa uma mudança de geografia física também engendra a alteração das paisagens subjetivas dos viajantes. Os road movies, entretanto, são em sua grande maioria dominados por personagens masculinos intrépidos, marca que parece afirmar no imaginário ocidental a ideia do viageiro como um homem que vai para longe. Com o intuito de questionar o que constitui uma espécie de paradigma do gênero, este trabalho pretende discutir a presença de mulheres nos filmes de estrada, analisando a identidade das protagonistas do filme Thelma & Louise (Thelma & Louise, Ridley Scott, 1991). Palavras-chave: Gêneros cinematográficos. Road movie. Mulheres. Identidade. A viagem, a aventura e os road movies
Os relatos de viagem permeiam o imaginário desde há muito tempo. Como sempre existiu o
deslocamento de um lugar a outro, de forma errática ou necessária, não importando se as distâncias
eram pequenas ou grandes, pode-se dizer que as narrativas sobre a movimentação pelo espaço
datam da aurora do próprio ser humano. De natureza oral ou escrita, estas histórias tomaram o
espaço de trânsito como um manancial de novas experiências e, portanto, um vetor para o
conhecimento e para a aventura. A ideia de viagem presente nessa vertente narrativa é marcada
fortemente pelo deslumbramento com o extraordinário, pela descoberta e domesticação de novos
territórios e/ou povos, pelo caráter pragmático da travessia, fatores que a tornam oposta à noção
moderna de turismo, surgida em meados do século XX e focada no prazer hedonista e no
entretenimento. Enlaçada ao sentido de aventura, a viagem encerra uma série de acontecimentos,
ocorridos entre a partida e a chegada, no qual impera uma percepção do ato de viajar como algo
imprevisto, ameaçador, perigoso e, até mesmo, potencialmente mortal.
O aventureiro, de acordo com a narrativa tradicional, é definido como alguém que irá lançar-
se voluntariamente em um projeto arriscado, no qual o extemporâneo e o adventício estão presentes
de modo dominante. Retratado como um sujeito dotado de curiosidade, de audácia, de espírito de
1 Professor Adjunto do Curso de Cinema na Universidade Federal de Santa Catarina, Doutor em Teoria da Literatura, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
combate, características que permitem a adaptação e o enfrentamento de qualquer meio, o
aventureiro é historicamente representado como um homem que vai para longe. Para sobreviver em
territórios inóspitos e estranhos, esse viajante empreendedor precisa, por princípio, ser dotado de
força física e, também, de força psicológica, especialmente no que diz respeito ao controle do medo.
Há uma espécie de hybris viril que empurra o sujeito temerário em direção ao desconhecido,
metáfora para tudo o que é ignorado, obscuro ou periculoso e, a priori, um manancial de ansiedade.
Em tal característica reside o paradoxo do aventureiro: sentir prazer com o negativo, ou seja, gozar
mediante a suspensão da segurança e a tensão produzida pelo confronto com o não familiar.
No cinema, o gênero de aventura acompanha os tópicos da literatura, os heróis possuem
ideais nobres e suas ações desenrolam-se em locais exóticos, distantes, suntuosos, nos quais “a
violência [dos filmes de ação] cede lugar a explorações, conquistas, atitudes patrióticas, corajosas
ou altruístas”, não sendo raro que “tesouros, florestas tropicais, desertos, reis e rainhas, piratas, do
passado ou do futuro” encabecem os elementos mais frequentemente abordados (RODRIGUES,
2005, p. 11). Além desses componentes, os filmes de aventura também lidam com a
[...] incerteza do destino dos protagonistas; com um heroísmo diletante desses mesmos protagonistas, capazes muitas vezes de achados de humor mesmo nas situações mais críticas; com, finalmente, um toque de romantismo clássico que funciona como apaziguamento das contendas e dos perigos aventureiros. (NOGUEIRA, 2010, p. 51)
A partir do contexto descrito é possível inferir que o road movie surge como “consequência
de um gênero que perdeu a dimensão crítica”, no caso a aventura, e longe de ser um subgênero
como defendem alguns (NOGUEIRA, 2010, p. 44), pode ser enquadrado como uma forma narrativa
autônoma, sobretudo devido ao desenvolvimento de especificidades narrativas, iconográficas,
temáticas e estilísticas. Seguindo tal pressuposto, o filme de estrada seria, em certo aspecto, uma
espécie de versão depurada das histórias de aventura no cinema, reconfiguração não relacionada ao
desaparecimento do aventureiro, mas à necessidade de outra forma para expressar o tema da viagem
no espaço moderno. Por estar associado ao desconhecido e à jornada de descoberta, o road movie “é
parente da literatura de aventura”, além de, “em certa medida, [ser] uma expressão contemporânea
do romance de formação.” (SALLES apud STRECKER, 2010, p. 25-26). Contudo, enquanto a
premissa narrativa da aventura está centrada no herói e seus feitos – ações que só ressaltam o caráter
do aventureiro, sublinhando o que ele já é –, nos road movies a premissa está nos defeitos do herói,
pois as ações desse personagem possibilitam descobrir ou aperfeiçoar traços do caráter e alterar a
visão de mundo do viajante, dramatizando o que ele será. Assim, ao modo de um desdobramento da
3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
literatura de viagem, o filme de estrada substitui o modelo de viajante consagrado pela narrativa de
aventura pelo nômade da modernidade, personagem proveniente de sociedades metropolitanas e nas
quais a vida mental pode ser confrangedora às suas necessidades espirituais. O laço de parentesco
com a aventura, portanto, realiza-se tão somente por certa partilha morfológica e ontológica,
intersecção também comum à natureza de outros gêneros cinematográficos postos em paralelo.
Há quem aponte a origem dos road movies nas narrativas de expansão e conquista territorial,
como as realizadas pelos westerns americanos ou pelos filmes de viagem conhecidos por
travelogues (PAIVA, 2011, p. 40). Em ambos os casos, o elemento espacial – frequentemente
exótico – é o objetivo/objeto central, seja pela possibilidade de dominação territorial seja pela
capacidade de fascinação proporcionada pelo ambiente, fatores que os distanciam do propósito dos
road movies. Delimitar o filme de estrada exclusivamente pela presença da viagem e de um meio de
transporte é igualmente insatisfatório, pois, muito embora o método de locomoção pontue uma
forma especial de pensar e viver a paisagem, o princípio fundamental da narrativa baseia-se no
personagem em movimento pela estrada, não importando qual forma empregue para deslocar-se.
Vincular os filmes de estrada aos veículos automotivos, nesse sentido, também pode ser uma ideia
errônea ou apenas parcialmente verdadeira e que poderia levar à conclusão inadvertida de que,
dentre as formas ancestrais do gênero, construtoras de sua genealogia, estariam os chase movies,
filmes policiais de perseguição motorizada a um bandido. No road movie, “as estradas, autoestradas
e demais redes viárias ganham especial importância dramática e cenográfica” e “os automóveis e
motociclos tornam-se fulcrais” (NOGUEIRA, 2010, p. 51), mas não devem ser componentes
tomados como o centro da narrativa.
O gênero do nomadismo de estrada, analisado sob a ótica de um relato de viagem
contemporâneo2, estruturaria uma narrativa contígua à da aventura, porém, pertencente a um
universo no qual a viagem assume sentido distinto. Se na aventura o tema do deslocamento prioriza
a paisagem geográfica, o road movie concede ênfase à paisagem humana, sendo, por isso, mais uma
história sobre a descoberta de si e menos sobre a conquista ou invenção de um território espacial. A
composição do roteiro incorpora em si o princípio do rito de passagem, constituindo a viagem uma
espécie de cerimônia iniciática; e os choques de consciência ao longo do itinerário, etapas do ato de
conversão da cosmovisão do viajante. Essa singular liturgia mística altera a percepção que o
protagonista tem de si mesmo e, por extensão, o olhar da sociedade sobre ele.
2 Cf. MARKENDORF, Marcio. Road movie: a narrativa de viagem contemporânea. Revista Estação Literária, Londrina, vol. 10 A, p. 221-236, dezembro de 2012.
4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
O cinema, assim, explora outra vertente da viagem, aquela na qual uma travessia implica a
conexão com um componente afetivo da identidade individual, representado reiteradamente como o
lado derrelito da alma de um sujeito. O deslocamento pela estrada, segundo o que se pode
depreender do gênero, equivale a uma peregrinação3 secular, romaria subjetiva na qual se completa
um ciclo de vida e morte propício ao desprendimento do sujeito de sua antiga autoimagem. Logo,
ao versar sobre encontros e relações entre pessoas em situações de viagem, a jornada do filme de
estrada representa uma metáfora para a busca de uma personalidade em crise, cuja necessidade de
deambulação tem a ver com o desejo de confrontar-se com novos desafios, sendo o percurso
espacial o dinamizador das andanças para os confins da própria subjetividade. Nesse sentido, parece
acertado imaginar o gênero como simbólica representação do processo de desenvolvimento de um
personagem, traço inerente aos romances de formação e aos ritos de passagem, especialmente
porque o aprendizado do viajante reflete a assunção de outro grau de maturidade.
Na simbologia possibilitada pela estrada, o genuíno exotismo não se encontra no espaço
exterior, mas no interior, de modo que o moderno nomadismo expresso por essas histórias está
focado na inquietude mística do coração. O objetivo da viagem, ainda que definido por um lugar de
chegada, apenas é a meta provisória para algo que está difuso na consciência do viajante e que se
torna evidente ao longo da travessia. O resultado da partida de um lugar para o outro produz uma
espécie de epifania, de revelação de algo antes cifrado, proporcionada pelas peripécias do viajante.
As histórias, de um modo geral, tratam de personagens desencantados com o mundo e que precisam
restaurar as conexões perdidas, via contemplação visual e meditação espiritual, o que faz da viagem
uma forma de renovação, de resgate ou de encontro. Tais convenções narrativas permitem
caracterizar os road movies como gêneros de ênfase existencialista – espécies de drama do espírito
vivido na estrada – traço determinante de um perfil especial de viajante e em torno do qual se
organiza a própria estrutura da história. O roteiro trivial das produções on the road é
“essencialmente sobre buscas interiores” e, por isso, “voluntária ou não, a viagem é sempre uma
expressão visual de uma profunda mudança interior dos protagonistas, a visão mesma do arco da
narrativa (BAHIANA, 2012, p. 164).
Em vista da necessidade de procura por tesouros espirituais, pode-se considerar que o
modelo seria um tipo de narrativa-jornada, na qual o protagonista alcança a iluminação depois de
um caminho de provas. Na condição de forasteiro em uma terra estranha – diferente da de
residência –, “o protagonista se vê a sós com sua alma, suas questões e os outros, que encontra em
3 Do latim perigrinatio, onis, o vocábulo peregrinação etimologicamente significa viagem.
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situações despidas dos contornos do dia a dia e, por isso, levadas ao extremo.” (BAHIANA, 2012,
p. 164). A estrada, nesse sentido, é o suporte da jornada do espírito, o componente físico que
permite a ressurreição do personagem como outro ao dar por encerrado o antigo eu. Essa
característica revela um traço inerente à narrativa tradicional road movie – o caráter linear da
história não permite que o enredo desrespeite a cronologia dos fatos e, em vista disso, a narrativa
incorpora uma visão positivista da História, ou seja, cada evento provoca uma consequência e que,
por sua vez, detonará o evento seguinte, determinando um ciclo de disparos para frente. Assim
elabora-se uma crescente tensão dramática entre as duas pontas, a partida e a chegada, sendo o
termo da trajetória também o momento de distensão emocional. Nesse gênero cinematográfico de
jornada é possível apenas mover-se para diante, sobretudo porque o protagonista precisa confrontar
obstáculos os quais possa vencer, remover ou mesmo sofrer derrota (FIELD, 1997, p. 63).
O roteiro road movie caracteriza-se, além disso, por uma estrutura de episódios e peripécias,
organização responsável por aproximar o viajante de estrada dos heróis do gênero de aventura e,
muito especialmente, promover a manutenção do protagonista sob a forma de um personagem
masculino. Ainda que esteja localizado em um cenário moderno, a viagem de automóvel ou
motocicleta por uma estrada – tradicionalmente representada pela autoestrada ou pela rodovia –,
acaba por excluir as mulheres do protagonismo desse tipo de fábula. As convenções da sociedade,
aliás, conforme pontuadas pelos discursos patriarcais, elaborou um perfil de ação bastante estreito e
limitado para as mulheres.
Ao gênero feminino, desde as narrativas de aventura e os relatos de viagem, são atribuídas
qualidades – culturalmente construídas pelo modelo patriarcal – de ser indefeso, fraco, assustadiço e
desinteressado pelo perigo, razão para que acabe por não ter papel ativo nessas formas narrativas,
assumindo na maioria das vezes apenas a função de testemunha passiva, de propósito de busca do
herói ou mesmo de companhia a ser defendida. Muito embora os filmes de estrada permitam
variantes de veículos motorizados – barco, trem, ônibus, bonde, metrô etc – e também a versão
pedestre do viajante – do caroneiro ao andarilho – as mulheres continuam sendo raras nesse tipo de
narrativa-jornada, sobretudo devido às vicissitudes virilizadas da viagem – trocar pneus, consertar o
motor do carro, enfrentar a falta de gasolina, parar em qualquer acostamento para aliviar
necessidades fisiológicas, dormir em paragens inospitaleiras, acampar à beira da estrada dentre
outros. Some-se a isso o estereótipo disseminado por discursos machistas de que o gênero oposto
dirige mal.
6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Por semelhantes razões é um número consideravelmente pequeno de produções que tomam
as mulheres como personagens atuantes em situação de travessia. Muitas das vezes, elas estão
subordinadas ao homem por diferentes razões. Alice nas cidades (Alice in den Städten, Wim
Wenders, 1974) e Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, Jonathan Dayton e Valerie Faris,
2006), por exemplo, muito embora tenham como linha de força as personagens-título, estas recebem
suporte de personagens masculinos por serem menores de idade. Em outros casos, como Bonnie e
Clyde – Uma rajada de balas (Bonnie and Clyde, Arthur Penn, 1967), Assassinos por natureza
(Natural born killers, Oliver Stone, 1994) e Na estrada (On the road Walter Salles, 2012), a
personagem feminina assume importância à medida em que é o elemento romântico da trama.
Thelma & Louise (Ridley Scott, 1991), Somente elas (Boys on the side, Herbert Hoss, 1995),
Crossroads: amigas para sempre (Crossroads, Tamra Davis, 2002) e A força da amizade
(Bonneville, Christopher N. Rowley, 2006), os poucos exemplares focados exclusivamente em
heroínas, são filmes que tratam do companheirismo firmado entre mulheres.
Dentre os exemplos citados, apenas Thelma & Louise e Crossroads: amigas para sempre
são trabalhos de roteiristas, respectivamente das escritoras Callie Khouri e Shonda Rhimes, o que
parece ser bastante revelador quanto ao imaginário dos filmes de estrada. Se os valores masculinos
são fundamentalmente associados ao espaço exterior, do grupo de caçadores ao patriarca da família,
a cultura parece restringir a área de domínio feminino ao espaço doméstico. É curioso que, em vista
das inúmeras conquistas femininas no campo social, as ideias de mobilidade, liberdade, realização e
aventura continuem ser representadas como inerentes ao masculino. Quando assumem algumas
destas qualidades é tão somente para torná-las um produto sensual, altamente desejado pelos
homens da tela ou fora dela, como as formosas heroínas dos filmes de ação, ou um objeto atraente e
perigoso, ao modo do arquétipo femme fatale dos filmes noir, ou uma personagem fora dos
parâmetros estabelecidos de beleza feminina e, portanto, pretexto para a comicidade e a abjeção.
Este trabalho, portanto, pretende avaliar a representação das heroínas do filme Thelma &
Louise (Thelma & Louise, Ridley Scott, 1991), exemplar narrativamente mais rico para análise das
personagens femininas dentre os títulos já citados, e também discutir o protagonismo expresso pelo
título da obra cinematográfica. Com isso, pretende-se questionar um naturalizado imaginário
ocidental e conferir às mulheres a capacidade de se inscrever no filme de estrada como mulheres
que vão para longe e que, ao deslindar fronteiras, manifestam componentes da personalidade até
então adormecidos ou não reconhecidos em meio à cultura de origem. É apenas com o livre trânsito
por diferentes paisagens, nos quais podem libertar-se de certos constrangimentos morais ou sociais,
7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
que essas heroínas podem converter a alegada fragilidade do sexo em uma força atuante sobre o
mundo.
A quest de Thelma e Louise
Escrito pela roteirista Callie Khouri e dirigido por Ridley Scott, o filme estadunidense
Thelma & Louise foi lançado em 1991, atingindo grande sucesso de bilheteria e saindo vencedor do
Oscar de melhor roteiro original e do Globo de Ouro de melhor roteiro. A story line da produção
apresenta duas mulheres que decidem viajar para um final de semana em uma casa das montanhas,
passeio que acaba tragicamente por se verem envolvidas em uma série de crimes. Contando com
aproximadamente 130 minutos de duração, a história apresenta a transformação de duas
personagens, Louise Elizabeth Sawyer, garçonete, e Thelma Yvonne Dickinson, dona de casa, ao
longo de 11 paradas e uma jornada feita em um carro Thunderbird, modelo 1966, por
aproximadamente seis estados.
Contrariando o estereótipo que atribui ao gênero feminino um péssimo comportamento ao
volante, as duas mulheres demonstrarão ser muito boas na direção, melhores que os homens da
narrativa (não que eles constituam um modelo paradigmático). Merece atenção, aliás, o modo como
os homens são representados na trama, pois a eles são imputados estereótipos culturais: Darryl é
uma caricatura cômica do macho alfa; Jimmy, o modelo do sujeito que não quer se comprometer;
Harlan, o agressor de Thelma, o retrato do típico mulherengo agressor; e J. D., a imagem, em duplo
sentido, do amor bandido. Por essa e por outras razões a história foi chamada à época de “um
desconcertante roteiro feminista” sobre camaradagem entre mulheres e mesmo uma variante da
batalha dos sexos (FIELD, 1997, p. 27), protagonizado por garotas que enfrentarão o
recrudescimento do risco à medida que avançam nos “espaços masculinos” da sociedade.
De acordo com o roteiro, as duas personagens, a princípio, planejam apenas gozar um
momento de lazer, livre da presença do namorado ou do marido, em uma casa de campo
emprestada. Nos preparativos para a viagem somos apresentados ao universo das duas mulheres:
Thelma é casada com um gerente de uma loja de carpetes, Darryl, que, segundo a descrição de
Khouri (1990, p. 05), é alguém que acredita ser excepcionalmente atraente para as mulheres, o que
o torna dotado de uma extrema autoconfiança, característica responsável por infantilizar e oprimir a
esposa; Louise namora um músico de pouco sucesso, com menos autoconfiança que Darryl, mas
ainda assim pertencente à linhagem dos homens mulherengos. Além disso, ao passo que
observamos o ambiente bastante organizado da casa de Louise, o que reflete sua personalidade de
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mulher madura, independente e segura de si, somos apresentados a uma insegura, atarantada e
dependente Thelma, características percebidas na organização do espaço doméstico, na arrumação
da mala e mesmo em dois itens escolhidos para a viagem – uma lamparina e um revólver –
essenciais para, nas palavras dela, um possível ataque de um urso ou de um homem psicopata. Não
é difícil perceber por essas atitudes que o abandono do espaço doméstico é, para a personagem,
causa de medos pouco sensatos e nada aventureiros. Devido a essas posturas, torna-se
compreensível porque Louise deliberadamente decide não avisar o namorado da viagem e Thelma,
com imensa relutância, acaba por deixar a casa às escondidas do marido, por receio de ser impedida
por ele de sair para o final de semana planejado.
É querendo entregar-se a esse clima de diversão – e também de suspensão do jugo
masculino – que as duas fazem uma parada no bar Silver Bullet4, uma boate de música country,
onde Thelma quase é estuprada por um caubói com quem dançou animadamente. Ao intervir no
momento que poderia ter deslindado para a violência sexual, com momentos prévios de agressão
física, Louise acaba por ferir mortalmente o homem com um tiro. Rechaçando a possibilidade de
procurarem a polícia, ambas fogem da cena do crime a toda velocidade. Para Louise, o homicídio
nunca poderia ser fundamentado como legítima defesa, uma vez que Thelma, segundo tal
inferência, teria provocado sexualmente o homem e, com isso, implicitamente autorizado a
investida sexual. A lógica de esquiva apresentada pela homicida, como será depreendido mais tarde,
embora não de modo categórico, deve-se ao fato de Louise já ter sido estuprada anos antes no
estado do Texas. Aliás, este incidente no Texas acaba por ser a espinha dorsal da narrativa (FIELD,
1997, p. 34), razão por sempre existir um tipo paralelismo em relação a este espaço de recordação
traumática em diferentes situações. Por isso, ao impedir que a amiga revivesse uma mesma situação
dramática e devastadora, certamente não julgada pelas autoridades da forma esperada, Louise
acabou por tirar a vida do possível violador. Vale ressaltar que o crime cometido não é, no universo
diegético ou fora dele, um ato que se justifica, contudo, o jogo de relações no qual o evento está
inserido demanda compreensão do espectador (FIELD, 1997, p. 32).
Essa situação de fuga, na condição de peripécia da narrativa ou turning point, levará as duas
mulheres a uma modificação de caráter, porque, em certo sentido, a viagem liberta-as de preceitos
normativos desiguais no tratamento entre homens e mulheres. A transformação mais expressiva é a
da personagem Thelma, pois de uma dona de casa subjugada pelo marido, torna-se dominadora da
situação. Dando-se conta de que seu casamento é uma instituição há muito falida, de que nada 4 O nome funciona como uma metáfora visual, pois sugere que um “lobisomem social” – portanto, um homem bestializado – será morto por uma bala.
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conhece da vida afetiva, especialmente por ter contraído matrimônio, aos 18 anos, com o primeiro e
único namorado, decreta autonomia para vivenciar outras experiências. Assim, faz sexo com um
atraente e jovem rapaz, J.D., passa a beber e a fumar, assalta um mercado, prende um autoritário
patrulheiro rodoviário no porta-malas da viatura, explode o caminhão-tanque de um motorista que
fazia gestos vulgares para Louise e a ela – ações que constituem parte do seu rito de passagem. Com
essa progressiva reformulação de si mesma, deixa de ser uma dona de casa reprimida para
converter-se em uma bandida considerada perigosa pelas autoridades. A jornada das viajantes torna-
se, em outro sentido, uma resposta violenta à opressão masculina. É significativo, portanto, que
Thelma tenha declarado ao patrulheiro que se ele conhecesse o marido dela, entenderia a razão de
suas atitudes, recomendando ao agente rodoviário cuidar melhor da própria esposa para que outras
mulheres não acabem agindo como ela. Não significa, contudo, que os atos de ambas protagonistas
mereçam indulgência, visto que estamos na esfera do crime.
Outro dado expressivo da narrativa é como a transformação interior também se dá por
decodificação semiótica, isto é, o visual de Thelma e de Louise se altera ao longo da história. No
começo da jornada, ambas encontram-se vestidas de modo elegante, com acessórios e maquiagem
que realçam a “beleza natural” das duas, cabelos bem penteados e peças delicadamente femininas
(figura 1); paulatinamente há um abandono desse visual inicial, pontuado especialmente por uma
cena em que Louise, desolada por ter seu dinheiro roubado por um homem, olha-se no espelho
retrovisor e interrompe o gesto de aplicar batom nos lábios atirando-o para fora do carro (figura 2);
em fins da viagem, as heroínas apresentam um visual despojado, um tanto mais virilizado, com
camisetas remangadas, jeans, acessórios masculinos, cabelos despenteados, rosto sem maquiagem
(figuras 3 e 4).
Ao que parece, no jogo por afirmar a própria autoridade, Thelma e Louise apropriam-se de
um “visual masculino” (entre muitas aspas) para inserir-se no modelo do viajante destemido e
temerário por meio desse constructo artificial. Esta simulação semiótica do masculino claramente
Figura 1 Figura 2
10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
constitui um artifício sagaz para expressar a modificação de uma atitude passiva em relação à
realidade social e pontuar o direito ao grito, isto é, à emancipação na estrada da vida.
O espaço exterior, nesse sentido, emerge como um importante componente narrativo, não
constituindo apenas um elemento decorativo porque assume um aspecto funcional de expressão. No
filme de Ridley Scott, à medida que as personagens ganham a estrada, o espaço passa a ser mais
aberto, muitas vezes aprofundando-se em tomadas que exploram a vastidão do cenário e o
isolamento das viajantes. É nesta ambiência realista – e espraiada para fora – é que as heroínas
podem expandir a própria consciência, encontrar-se e transformar-se. A referência espacial funciona
como uma metáfora da dimensão afetiva. O interior e o exterior constituem uma unidade, são
paisagens integradas em um todo orgânico, de modo que a exploração do visual geográfico é o que
acentua o invisível, o mundo espiritual das duas personagens. Por isso é significativa a descrição da
paisagem feita pela roteirista, de acordo com o ponto de vista das duas personagens quando
atravessam Monument Valley, no Arizona (figura 5) – “o céu é brilhante e aberto e a estrada parece
ser infinita” – e para a qual Thelma declara “Isto é muito lindo”, tendo como réplica aterrada de
Louise, “Caramba. Com certeza é” (KHOURI, 1990, p. 99-100).5
A paisagem geográfica, consequentemente, reflete o aspecto significativo da natureza
interior, atuando como superfície especular na qual ambas podem finalmente olhar para si mesmas,
5 No original: “The sky is bright and expansive and the road goes on forever”/”This is so beautiful”/”Gosh. It sure is”.
Figura 3 Figura 4
Figura 5 Figura 6
11 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
por meio da moldura do para-brisa, e reconhecer a luminosidade própria das suas almas. A roteirista
Callie Khouri observa que fez parte integrante do processo criativo do roteiro este dado, a
descoberta de uma faceta até então não acessada da personalidade:
Você pensa ser uma pessoa normal e ter uma vida normal, mas coisas podem acontecer e você realmente não sabe o que está dentro de você. Esse tipo de relacionamento tênue que temos com nossa vida normal era muito intrigante para mim. Como uma pequena coisa pode fazer seu mundo inteiro ruir completamente. (KHOURI apud FIELD, 1997, p. 33).
Como personalidades fora-da-lei, as duas só poderiam reivindicar para si o exílio –
representado inicialmente pelo México – de modo que o movimento é quase ininterrupto por esse
território que não é mais possível pertencer – os EUA. Por perceber-se como criminosa potencial,
Thelma declara ter descoberto um tipo de vocação, algo adormecido, o que a faz experimentar tudo
como algo novo, tornando-a fraterna à viagem acumuladora de experiências, e o que a impossibilita
de retroceder e optar, junto com Louise, pelo salto para a morte, pois viver da mesma forma que
antes já seria em si um suicídio. Por isso, as duas camaradas encerram sua trajetória no abismo da
existência ao, literalmente, precipitar-se para a morte no Grand Canyon (figura 6), forma radical de
concluir o rito de passagem instaurado ao longo do percurso terrestre.
Muito embora seja comum aos road movies uma narrativa linear impulsionando os
personagens sempre para frente, esta história trata de modo extremo da impossibilidade do retorno,
pois, como observa a roteirista “tive de continuar a empurrá-las mais e mais para longe,
dinamitando as pontes atrás delas, de forma que só pudessem ir para frente” (KHOURI apud
FIELD, 1997, p. 64). A única forma, portanto, de dar por encerrada a viagem das duas mulheres é
culminando com o fim das próprias vidas. O que impele essas mulheres a ir mais para frente é o
medo de confrontar-se com o passado de suas vidas ao mesmo tempo em que a rebelião do presente
recente, em um ciclo de três dias, só pode ser punida com a morte.
Considerações finais
Thelma & Louise pode ser considerado um filme híbrido, com intercruzamento de diferentes
gêneros, pois incorpora traços dos chase movies, do filme de ação, do policial, do drama. Com isso
há uma combinação interessante entre mulheres, carros, crimes e estrada, o que colabora para, na
mestiçagem do gênero cinematográfico, desconstruir estereótipos culturais associados ao gênero
feminino e aprofundar a dimensão existencial dos road movies. A quest – ou busca – empreendida
pelas duas heroínas é um rito de passagem que as inscreve no seu próprio tempo, os anos 1990, e
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incorpora um novo referencial para os sujeitos femininos, permitindo que as viajantes expressem “a
vocação para uma nova ordem” (STRECKER, 2010, p. 26). Ainda que a violência contra o espaço
doméstico – e a ideia de salvação e estabilidade pelo matrimônio – enverede para a marginalidade e
o exílio do corpo em relação à vida, a história de Callie Khouri é exemplar no modo como apresenta
o direito de mobilidade da mulher no meio social e a possibilidade de desempenhar um papel como
protagonista no mundo dos homens.
Referências
BAHIANA, Ana Maria. Como ver um filme. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
FIELD, Syd. Quatro roteiros – uma análise de quatro inovadores clássicos contemporâneos. Tradução de Alvaro Ramos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
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Women on the road: the journey of road movies’ heroines Abstract: The trivial narrative of the road movies can be considered a cultural product of modernity - increasingly introverted in the metropolis, the subject can only connect with himself and others in travel status. For this reason this film genre, often associated with adventure, presents characters who discover unexplored or unknown personal values and become inwardly different after a series of adventures. Thus, while the road expresses a change of physical geography also engenders changes of the subjective landscapes of the travelers. The road movies, however, are mostly dominated by intrepid male characters, fact that seems to suggest in the Western imagination the idea that a traveler is a man who is going far away. Aiming to question what seems to constitute a sort of paradigm of the genre, this paper discusses the presence of women in road movies, analyzing the identity of the protagonists of the movie Thelma & Louise (Ridley Scott, 1991). Keywords: Film genres. Road movie. Women. Identity.
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