Não Tenho Rancores Nem Ódios

Preview:

DESCRIPTION

Fernando Pessoa - Textos

Citation preview

Quando Falo com Sinceridade no sei com que Sinceridade FaloNo sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade no sei com que sinceridade falo. Sou vriamente outro do que um eu que no sei se existe (se esses outros). Sinto crenas que no tenho. Enlevam-me nsias que repudio. A minha perptua ateno sobre mim perptuamente me ponta traies de alma a um carcter que talvez eu no tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me mltiplo. Sou como um quarto com inmeros espelhos fantsticos que torcem para reflexes falsas uma nica anterior realidade que no est em nenhuma e est em todas. Como o pantesta se sente rvore [?] e at a flor, eu sinto-me vrios seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de no-eus sintetizados num eu postio. Fernando Pessoa, in 'Para a Explicao da Heteronmia' No Tenho Rancores nem diosPerteno a uma gerao que ainda est por vir, cuja alma no conhece j, realmente, a sinceridade e os sentimentos sociais. Por isso no compreendo como que uma criatura fica desqualificada, nem como que ela o sente. oca de sentido, para mim, toda essa (...) das convenincias sociais. No sinto o que honra, vergonha, dignidade. So para mim, como para os do meu alto nvel nervoso, palavras de uma lngua estrangeira, como um som annimo apenas. Ao dizerem que me desqualificaram, eu no percebo seno que se fala de mim, mas o sentido da frase escapa-me. Assisto ao que me acontece, de longe, desprendidamente, sorrindo ligeiramente das coisas que acontecem na vida. Hoje, ainda ningum sente isto; mas um dia vir quem o possa perceber. Procurei sempre ser espectador da vida, sem me misturar nela. Assim, a isto que se passa comigo, eu assisto como um estranho; salvo que tiro dos pobres acontecimentos que me cercam a volpia suave de (...). No tenho rancor nenhum a quem provocou isto. Eu no tenho rancores nem dios. Esses sentimentos pertencem queles que tm uma opinio, ou uma profisso ou um objectivo na vida. Eu no tenho nada dessas coisas. Tenho na vida o interesse de um decifrador de charadas. Mas eu no tenho princpios. Hoje defendo uma coisa, amanh outra. Mas no creio no que defendo hoje, nem amanh terei f no que defenderei. Brincar com as ideias e com os sentimentos pareceu-me sempre o destino supremamente belo. Tento realiz-lo quanto posso. Nunca me tinha sentido desqualificado. Como lhe agradecer ter-me ministrado esse prazer! Ele uma volpia suave, como que longnqua. No nos entendem, bem sei... ...Assim como criador de anarquias me pareceu sempre o papel digno de um intelectual (dado que a inteligncia desintegra e a anlise estiola). Fernando Pessoa, 'Pginas ntimas e de Auto-Interpretao'

Recommended