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Revista História da Educação (Online), 2020, v. 24: e99641 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2236-3459/99641
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Artigo
NARRATIVAS DO ESPAÇO HABITADO:
SENSIBILIDADES NO ESTUDO DOS
PRÉDIOS ESCOLARES DE PORTO
ALEGRE/RS (1940/1980)
Lucas Costa Grimaldi1
Dóris Bittencourt Almeida2
RESUMO
O presente estudo investiga espaços escolares a partir das narrativas de estudantes de Porto
Alegre/RS, no período de 1940 a 1980. Analisaram-se as edificações das seguintes escolas:
Colégio Marista Rosário, Colégio Anchieta, Colégio Americano e Colégio Farroupilha. A pesquisa
cartografou sensibilidades sobre o espaço vivido pelos estudantes durante a escolarização. Neste
estudo, privilegiou-se o exame dos periódicos escolares, fotografias e plantas das edificações,
encontrados nas escolas. Além disso, também examinamos o conteúdo discursivo de entrevistas
realizadas, tendo como metodologia a História Oral. Para tanto, construíram-se quatro
categorias de análise: “O Antigo e o Novo: relações entre os estudantes e os prédios das escolas”;
“Entre a vigilância e a diversão: o espaço escolar como elemento curricular”; “A escola como
casa: sensações de pertencimento” e, por fim, “A arquitetura escolar e a sensação de liberdade”.
Considera-se que os espaços habitados na escola adquirem um lugar de destaque na hora de
narrar suas memórias. Estas memórias do espaço habitado trazem evidências para compreender
1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS, Brasil. 2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS, Brasil.
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a arquitetura escolar como um elemento central durante a escolarização.
Palavras-chave: história da educação, arquitetura escolar, sensibilidades.
NARRATIVAS DEL ESPACIO HABITADO: SENSIBILIDADES EN EL ESTUDIO DE LOS
EDIFICIOS ESCOLARES EN PORTO ALEGRE / RS (1940/1980)
RESUMEN
El presente estudio investiga los espacios escolares basados en las narrativas de estudiantes de
Porto Alegre / RS, de 1940 a 1980. Se analizaron los edificios de las siguientes escuelas: Colégio
Marista Rosário, Colégio Anchieta, Colégio Americano y Colégio Farroupilha. La investigación
mapeó las sensibilidades sobre el espacio vivido por los estudiantes durante la escuela. En este
estudio, el examen de los diarios escolares, fotografías y planos de construcción encontrados en
las escuelas fue privilegiado. Además, también examinamos el contenido discursivo de las
entrevistas realizadas, utilizando la Historia Oral como metodología. Con este fin, se
construyeron cuatro categorías de análisis: "Lo viejo y lo nuevo: relaciones entre estudiantes y
edificios escolares"; “Entre vigilancia y diversión: el espacio escolar como elemento curricular”;
“La escuela como hogar: sentimientos de pertenencia” y, finalmente, “La arquitectura escolar y
el sentimiento de libertad”. Se considera que los espacios habitados en la escuela adquieren un
lugar destacado al narrar sus recuerdos. Estos recuerdos del espacio habitado aportan evidencia
para entender la arquitectura escolar como un elemento central durante la escolarización.
Palabras clave: historia de la educación, arquitectura escolar, sensibilidades.
NARRATIVES OF THE INHABITED SPACE:
SENSITIVITIES IN THE STUDY OF SCHOOL
BUILDINGS IN PORTO ALEGRE / RS (1940/1980)
ABSTRACT
The present study investigates school spaces based on the narratives of students from Porto
Alegre / RS, from 1940 to 1980. The buildings of the following schools were analyzed: Colégio
Marista Rosário, Colégio Anchieta, Colégio Americano and Colégio Farroupilha. The research
mapped sensitivities about the space lived by students during schooling. In this study, the
examination of school journals, photographs and building plans found in schools was privileged.
In addition, we also examine the discursive content of interviews conducted, using Oral History
as a methodology. To this end, four categories of analysis were built: “The Old and the New:
Relationships between Students and School Buildings”; “Between surveillance and fun: the
school space as a curricular element”; “The school as home: feelings of belonging” and, finally,
“The school architecture and the feeling of freedom”. It is considered that the spaces inhabited
in the school acquire a prominent place when narrating their memories. These memories of
inhabited space bring evidence to understand school architecture as a central element during
schooling.
Keywords: history of education, school architecture, sensitivities.
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RÉCITS DE L'ESPACE HABITÉ: SENSIBILITÉS DANS
L'ÉTUDE DES BÂTIMENTS SCOLAIRES DE PORTO
ALEGRE / RS (1940/1980)
RÉSUMÉ
Cette étude explore les espaces scolaires à partir des récits des élèves de Porto Alegre / RS, de
1940 à 1980. Les bâtiments des écoles suivantes ont été analysés: Colégio Marista Rosário,
Colégio Anchieta, Colégio Americano et Colégio Farroupilha. La recherche a cartographié les
sensibilités de l'espace vécu par les élèves pendant la scolarité. Dans cette étude, l'examen des
journaux scolaires, des photographies et des plans de construction trouvés dans les écoles a été
privilégié. De plus, nous examinons également le contenu discursif des entretiens menés, en
utilisant l'Histoire Orale comme méthodologie. À cette fin, quatre catégories d'analyse ont été
construites: «L'ancien et le nouveau: relations entre les élèves et les bâtiments scolaires»;
«Entre surveillance et divertissement: l'espace scolaire comme élément de programme»;
«L'école comme chez soi: sentiment d'appartenance» et enfin «L'architecture de l'école et le
sentiment de liberté». On considère que les espaces habités dans l'école acquièrent une place de
choix lors de la narration de leurs souvenirs. Ces souvenirs d'espace habité apportent la preuve
de la compréhension de l'architecture scolaire comme élément central de la scolarité.
Mots-clés: histoire de l'éducation, architecture scolaire, sensibilités.
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INTRODUÇÃO
Das paredes pintadas de verde (um verde grosso, antiquado) pendiam quadros, empastados de enfeites, das primeiras turmas de bacharelandos do Ginásio. Aqueles todos decerto já eram advogados, médicos, talvez deputados... O fazendeiro não se podia furtar à ideia agradável de que um dia o retrato do filho estaria também num quadro assim, exposto à admiração de outros eu viriam recém-chegando...[...]Apesar dessas escapadas da imaginação, a espera naquela sala penumbrenta, silenciosa, fatigava. Aos poucos ia se gastando a boa disposição que os animava ao penetrarem no edifício. O guri entrevia na taciturnidade do casarão, uns indícios sombrios da prisão que o aguardava (MARTINS, 1942, p. 36).
Iniciamos o presente texto com um excerto do livro “O menino vai ao
colégio”, publicado em 1942, no qual o narrador tece algumas considerações
sobre o espaço escolar que acabou de conhecer. Destacam-se as palavras de
Cyro Martins que dizem respeito à autobiografia do autor, nas quais relata
memórias do período que se escolarizou. Estas palavras atuam como inspiração
e também como primeiras reflexões sobre o que será discutido neste estudo.
Dos fragmentos que selecionamos para iniciar o presente texto, emergem
memórias permeadas de percepções e sensações que têm por foco a experiência
no espaço escolar e nos permitem indagar, principalmente, de que formas os
estudantes habitaram o espaço escolar e como foram afetados por ele.
Nesse sentido, é preciso pensar a concepção material das escolas como
produto de seu tempo, e também como intersecção de discursos arquitetônicos,
pedagógicos e históricos. Viñao Frago (1998, p.26) exemplifica que esta
materialidade atua como “um programa, uma espécie de discurso que institui na
sua materialidade um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e
vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e motora e toda uma
semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos, culturais [...]”.
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O estudo da materialidade escolar, além da percepção destes discursos
apontados por Viñao Frago (1998), possibilita a compreensão dos modelos de
construções escolares. Sendo assim, Zevi (1990, p.27) considera este espaço
como o substantivo, isto é, o protagonista da arquitetura. E para tanto discorre
que “a história da arquitetura é, essencialmente, a história das concepções
espaciais” e, além disso, a história da produção de espaços.
“O espaço é um lugar praticado” (CERTEAU, 2008, p.120). Para o
autor, lugar e espaço são conceitos com significados distintos, o primeiro diz
respeito ao que foi demarcado, a sua materialidade intransponível, o segundo
corresponde à maneira pela qual esse lugar foi praticado, representado ou
rememorado.
Todo esse esforço em pensar a espacialidade escolar torna-se possível,
entre outras coisas, pelo fato desses espaços não serem neutros, são
“construções culturais que expressam e refletem para além de sua
materialidade, determinados discursos” (ESCOLANO, 2001, p.26). Também se
pode pensar nesses espaços que atuam como o “suporte físico da educação”
(DÓREA, 2013, p. 162), o lugar, ou os lugares onde a prática pedagógica
cotidiana toma forma, e, como tal, “estão dotados de significados e transmitem
uma importante quantidade de estímulos, conteúdos e valores” (ESCOLANO,
2001, p.27).
Nesse sentido, da arquitetura escolar como transmissora de estímulos, é
interessante pensar os modos de objetivação, a partir dos espaços escolares, isto
é, de que maneira fomos transformados em sujeitos, a partir de um discurso
espacial disciplinar. Tendo como referencial teórico-metodológico a perspectiva
das relações de poder foucaultianas, entendemos que, de forma alguma somos
sujeitos passivos desses discursos espaciais, afinal sempre existe resistência.
Também, é interessante pensar nos modos de subjetivação que escapam a esse
discurso dominante, a partir, principalmente, da noção de tática de Michel de
Certeau (2008), que vem do cotidiano. Para o autor (CERTEAU, 2008), as
táticas seriam as resistências do “corpo a corpo”, “o golpe preciso”, uma hábil
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utilização do tempo, “movimento dentro do campo de ação do inimigo” frente às
relações de poder instituídas.
Algumas perguntas ressoam, a partir desses referenciais: Como se
produzem sujeitos no embate com a norma/disciplina no sentido
espacial/arquitetônico? Como nos assujeitamos a determinados discursos
espaciais da escola? Quais sensibilidades podem ser produzidas nos embates
com esses discursos e em relações de poder? Cabe deixar claro, que o assujeitar-
se diz respeito a uma perspectiva foucaultiana a “se tornar sujeito de ...”, não
passivamente, pois, considerando essa concepção teórica, onde há poder há
resistência3.
Trazendo elementos para pensar essas questões, podemos dizer que a
institucionalização da escola, na Modernidade, demandou prédios e espaços
próprios para a prática educativa (FOUCAULT, 2014; URIA e VARELA, 1992;
BOTO, 2017). Esses espaços escolares tinham funções disciplinares e de
enclausuramento do estudante, sendo a vigilância e a punição elementos
importantes para o estabelecimento das práticas pedagógicas. Para Foucault, o
estudo desses espaços institucionalizados, para além de sua estrutura,
possibilita novas abordagens, seria preciso fazer uma “história dos espaços” -
que seria ao mesmo tempo uma “história dos poderes” que estudasse desde as
grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da
arquitetura institucional, da sala de aula ou da organização hospitalar, passando
pelas implantações econômico-políticas (FOUCAULT, 2017, p. 61).
A partir dessa proposição foucaultiana, de pensar uma história dos
poderes e dos espaços e de relacionar com os modos de objetivação, houve a
necessidade teórico-metodológica de transitar na intersecção de campos de
saber: história da educação, história da arquitetura escolar e história das
sensibilidades. Pois, como diz o autor: “É preciso antes multiplicar os caminhos
e as possibilidades de idas e vindas” (FOUCAULT, 2008, p. 304).
3 Sobre a questão do poder no pensamento de Michel Foucault, ver Foucault (2014); (2017) e (1968).
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Essas “idas e vindas” filiam-se às perspectivas teórico-metodológicas da
História Cultural. E por isso, podemos pensar na perspectiva material escolar
como um discurso que produz sensibilidades, a partir das
experiências/habitações nesse espaço, tendo na memória o eixo principal de
análise, pois, como afirma Ricoeur (2007, p. 45): “nada temos de melhor que a
memória para garantir que algo ocorreu antes de formarmos sua lembrança”.
Portanto, o objetivo deste estudo é investigar memórias de prédios e
espaços escolares, problematizando a experiência sensível evocada por
estudantes de quatro instituições de ensino de Porto Alegre/RS, no período de
1940 a 1980. O corpus documental privilegiado são narrativas de discentes
inventariadas nos acervos das escolas, tais como redações e periódicos
escolares, que foram estudados a partir da metodologia da análise documental
histórica. Também trazemos algumas entrevistas produzidas com a metodologia
de História Oral4. Para além, são importantes para a pesquisa, os documentos
imagéticos, como fotografias, mapas da cidade e plantas arquitetônicas5.
Após a delimitação temática e metodológica, selecionamos para análise
os prédios e espaços das seguintes instituições escolares: Colégio Americano,
fundado pelos Metodistas, em 1885; Colégio Anchieta, fundado pelos Jesuítas,
em 1890; Colégio Farroupilha, fundado pela Associação Beneficente e
44 Neste estudo, tivemos como foco a análise do material encontrado no arquivo das instituições, tais como periódicos escolares e redações. Sobre as oito narrativas orais produzidas no âmbito da pesquisa, ver Grimaldi e Almeida (2020). 5 As fontes foram inventariadas nos museus e arquivos dessas instituições. Do Colégio Americano inventariamos: fotos do Museu do Americano, exemplares do Jornal Escolar “O Crisol” do período de 1926 -1962.Correspondências e Históricos da mudança da escola, 2 Álbuns Memorialísticos – 1955 e 1998, plantas arquitetônicas das edificações da escola e produzimos duas entrevistas com as ex-alunas Nelly e Elaine. Do colégio Anchieta inventariamos: livro da Campanha de arrecadação de fundos para o novo prédio; plantas arquitetônicas do Prédio da Rua Duque de Caxias; livro “O menino vai ao Colégio” – Cyro Martins – Narrativa autobiográfica; 10 Plantas do Novo Anchieta; livros Memorialísticos: Memória Anchietana e Folheto Comemorativo aos 118 anos e produzimos duas entrevistas com os ex-alunos Fernando e Marcos. No Colégio Farroupilha amealhamos: plantas arquitetônicas do prédio chamado "Velho Casarão; reportagens do Jornal – O Clarim;Redações de estudantes do Curso Científico; fotografias das sedes; correspondências e relatórios A.B.E; relatórios de Inspeção Ginasial; material da Comissão de Propaganda do Novo Farroupilha e produzimos duas entrevistas com os ex-alunos Martin e Ana Luisa. Do Colégio Rosário: edições do anuário Echos do Ginásio Rosário;fotos de espaços escolares retiradas do Echos; albuns fotográficos comemorativos; plantas arquitetônicas e produzimos duas entrevistas com os ex-alunos José Eduardo e Sérgio.
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Educacional6, em 1886 e o Colégio Rosário, fundado pelos Maristas, em 1904.
Neste sentido, a presente escrita divide-se em três momentos:
primeiramente, analisamos a história das sensibilidades e suas intersecções com
a história da educação, em seguida, a relação entre arquitetura escolar e
sensibilidades e por último intitulado: “Cartografias do sensível” comentamos
algumas categorias de análise das entrevistas, a partir do conceito de
sensibilidades.
HISTÓRIA CULTURAL, SENSIBILIDADES E
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
Há 13 anos, no capítulo inicial do livro “História e História Cultural”,
(2005), a historiadora Sandra Pesavento comenta que as pesquisas em História
Cultural correspondem a “80% da produção historiográfica nacional” (p. 7). Dez
anos antes, na Europa, Antonio Viñao Frago comentava que “raro es el mês em
el que no aparece, com está rubrica, algun nuevo livro o artículo o no se convoca
algún seminário, congreso o simpósio” (1995, p.63).
Sobre isso, os dois autores consideram um sucesso de adesão às
pesquisas ancoradas na referida corrente, tanto no âmbito da história quanto no
da história da educação. Houve a ampliação do olhar para o horizonte da
cultura, não de uma história da cultura, mas de múltiplas: escolares, urbanas,
visuais, materiais. Há, como diz Pesavento, “renovação das correntes da história
e dos campos de pesquisa, multiplicando o universo temático e os objetos, bem
como a utilização de uma multiplicidade de novas fontes” (2005, p. 69). Este
movimento só foi possível a partir de uma modificação nos paradigmas da
ciência que originaram uma “redefinição nas questões culturais nas Ciências
Humanas e na História” (CUNHA, 1999, p. 40).
Vinao Frago (1995) exemplifica que esse novo universo de
6 A Associação Beneficente e Educacional, mantenedora do Colégio Farroupilha, foi criada em 1858 para dar auxilio à comunidade alemã de Porto Alegre. Sobre, ver Jacques (2013).
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possibilidades temáticas não se fez a partir de uma perspectiva fragmentada,
mas sim, conectada e integrada. Em 1995, o autor acrescenta algumas
possibilidades, “La historia de La cultura material y la del mundo de las
emociones, lós sentimientos y lo imaginário, así como El de las representaciones
e imágenes mentales” (VIÑAO FRAGO, 1995, p. 64).
Para os dois autores, há uma virada na escrita da história, uma
atualização na perspectiva multidisciplinar que já vinha sendo utilizada desde a
primeira geração dos Annales1, mas que previa uma perspectiva que cruzasse os
conhecimentos e não hierarquizasse as ciências. Houve um abandono no caráter
quantitativo e totalizante da primeira geração dos Annales. Cunha (1999) chama
de uma “falência de modelos explicativos, das grandes teorias explicadoras do
real social” (1999, p.40). Por isso, a emergência de novas percepções acerca do
sujeito e da história, “redefinindo objetos, conteúdos e métodos, bem como
fronteiras disciplinares que se atenuam na busca de uma inter, multi e
transdisciplinaridade” (CUNHA, 1999, p. 40).
Seguindo nessa análise da história cultural, Pesavento (2005) afirma
que a História Cultural corresponde a uma corrente historiográfica que combina
três conceitos que se complementam. As noções de imaginário, de
representação e de sensibilidades compõem o cerne dos estudos no campo,
sendo terreno fértil para as mais diversas análises e objetos, como os citados por
Viñao Frago no excerto anterior.
Outra particularidade dessa corrente é a da “compreensão da História
como uma narrativa que constrói uma representação sobre o passado”
(PESAVENTO, 2005, p. 69), seja através dos discursos, imagens e diferentes
produções do passado. Novos objetos e novas abordagens de antigos objetos são
o mote da análise feita através da História Cultural, percebendo que a cultura
permeia todos os extratos e instituições da sociedade, devemos “pensar a
história cultural como uma certa forma de abordagem do real histórico e, ao
mesmo tempo, encarar a dimensão ou perspectiva cultural como alguma coisa
que está presente na economia, na política e na sociedade como um todo”
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(FALCON, 2006, p. 334).
Dessa forma, o presente textp emergiu, tendo como mote o inventário
das memórias discentes, em periódicos e redações escolares e em narrativas
produzidas pela metodologia de História Oral, bem como pela análise de fontes
iconográficas. Esse conjunto de documentos foi analisado pelas lentes do
conceito de sensibilidade. Esta lente só pode ser pensada a partir de mudanças
paradigmáticas e da intersecção dos conceitos de representação e imaginário,
fundamentais para a história cultural, onde se desenvolve a noção de
sensibilidade. Para Cunha, isso se deve a uma transição, que abalou as antigas
certezas e que, transformou a ciência no trato com o subjetivo. Essa mudança,
abre-se espaço para a percepção de dimensões do homem que escapam à lógica
formal, mas que são também indispensáveis – a emoção e a sensibilidade:
alegrias, medos, angústias, incertezas, temores, euforias que, ao transcenderem
o individual constituem-se em forças mobilizadoras do social (CUNHA, 1999, p.
40).
Após essa redefinição da percepção e dos paradigmas, houve uma
valorização das questões relacionadas aos sentimentos, às reações, aos sujeitos,
enfim. O conceito da sensibilidade possui uma historicidade que o estabelece “à
margem da história das ideias, das representações, dos corpos ou das imagens”
(GRUZINSKI, 2007, p. 7).
Antes, ignorado pelos historiadores2, emergiu uma mudança no olhar,
principalmente, a partir da publicação do livro “O outono da Idade Média”, em
1919, por Johann Huizinga, onde o autor discorre sobre alguns sentimentos
comuns dos homens do medievo. Para Regina Schöpke (2015), o autor trouxe
“cor” ao homem da idade média, ressaltando suas particularidades.
Huizinga não era um historiador da cultura, porém captou aspectos
indispensáveis para a História Cultural. Essa cor ressaltada no “Outono da
Idade Média”, também é reiterada por Serge Gruzinski, em seu prefácio no livro
“Sensibilidades na história: memórias singulares e identidades sociais” (2007),
onde o pesquisador discute sobre a capacidade da História das Sensibilidades
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em “rejuvenescer a história do político, fustigar a história das imagens trazendo
para o primeiro plano os mecanismos da recepção e da absorção, agita a história
das artes, explorando a percepção dos estilos [...]” (GRUZINSKI, 2007, p.8). A
sensibilidade age como uma espécie de verniz, na hora de ser empregado em
antigas temáticas de pesquisa, a partir da subjetividade que é intrínseca à
sensibilidade.
Para Marcos Taborda (2018) outros autores também trabalharam com a
temática dos sentidos e sensibilidades: Carlo Ginzburg, Edward Thompson,
Norbert Elias, Gilberto Freyre. “Todos esses trabalhos, muito já clássicos.
Embora não tenham sido pensados para qualquer tipo de história da educação,
nos mostram formas de definição, mobilização, estabilização e transformação
das sensibilidades” (TABORDA, 2018, p.119).
Com o emprego desse conceito, tudo se pauta na questão da percepção e
do indivíduo. Esta “aventura da individualidade” (PESAVENTO, 2007, p.10)
também possui a capacidade de “capturar as razões e os sentimentos que
qualificam a realidade, que expressam os sentidos que os homens em cada
momento da história, foram capazes de dar a si próprios e ao mundo”
(PESAVENTO, 2007, p. 10). O conhecimento sensível opera como uma forma
de reconhecimento e tradução da realidade que brota não do racional ou das
construções mentais mais elaboradas, mas dos sentidos, que vêm do intimo de
cada individuo” (PESAVENTO, 2005). Por serem sociais e históricas , percebe-
se que as sensibilidades, também carregam uma historicidade e condições para
sua emergência.
A sensação de medo ao adentrar, pela primeira vez, o portão de uma
escola, a ansiedade do primeiro dia de aula, a sensação claustrofóbica que
alguns prédios escolares provocam, as lembranças mais queridas dos espaços
em que se escolarizou: é disso que trata a presente pesquisa, afinada à história
das sensibilidades, do indivíduo e suas sensações, reações. Assim, as
sensibilidades podem ser tratadas como uma representação do passado, e que
chega ao historiador através de um discurso, de múltiplas linguagens.
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Esses discursos sobre o passado devem ser tratados a partir de
questionamentos: Quem fala? Por que fala? E de onde fala? De que lugar fala?
Pra quem fala? Essas são questões norteadoras para se construir qualquer
análise, seja em documentos escritos, imagéticos ou produzidos em
depoimentos orais e também para entender as condições de emergência desses
discursos. São essas indagações que desnaturalizam o discurso, principalmente,
pelo fato de que, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que
têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1999, p .9)
Importa pensar que o discurso, qualquer que seja ele, não é natural, há
uma ordem que o precede, segundo Pesavento esta seria uma das propostas da
História Cultural, isto é, compreender “a realidade do passado por meio das
suas representações, tentando chegar àquelas formas discursivas e imagéticas,
pelas quais os homens expressaram a si próprios e o mundo” (PESAVENTO,
2005, p. 42).
O discurso do sensível é produto de um tempo, construção histórica, e
assim, como todo fragmento da história, pode ser problematizado. Não é apenas
algo individual, por ser uma construção histórica e cultural, não é algo
intransferível, como afirma Nadia Weber (2005), as pessoas podem
compartilhar das mesmas sensações, e estas podem até ser formadores de uma
identidade em comum. Valendo do pensamento de Corbin, certamente, eles não
sentem a mesma coisa, mas compartilham de alguns “recobrimentos, de
sedimentações, de inércias” (CORBIN, 2005, p.17) importantes para a História
Cultural. A fim de perceber como pessoas e também grupos sentem, Corbin
(2005, p. 18) atenta que devem ser levados em conta alguns critérios como “o
sexo, a idade, a categoria social, o local geográfico, a tradição, ou a cultura que
se recebeu”. Tais atravessamentos tornam esta análise algo complexo e que
necessita levar em conta que somos, principalmente interseccionados por
diversos discursos e que ocupamos uma infinidade de lugares/posições de
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sujeito.
A partir dessa análise, o conceito de sensibilidade e sua aplicação na
sistematização dos documentos têm por finalidade captar os sentidos e a
percepção dos estudantes sobre espaços e prédios que os moldavam, vigiavam,
puniam e incutiam ideais3. Além de perceber como os indivíduos sentiam os
espaços, também se pretendeu “identificar a utilização dos sentidos que
permitiu construir imagens do outro, dar forma ao imaginário social” (CORBIN,
2005, p. 19), pensando, principalmente, nos grupos de estudantes. Pesavento
(2007, p.21) reafirma que o estudo das sensibilidades “não é sentir da mesma
forma, é tentar explicar como poderia ter sido a experiência sensível de um
outro tempo pelos rastros que deixou”. Não há uma facilidade em perceber estes
rastros, o historiador que trabalhar com a sensibilidade precisa aguçar o olhar
para captar essas falas da individualidade.
ARQUITETURA ESCOLAR E AS SENSIBILIDADES
Considera-se a arquitetura e o espaço escolar como discursos e também
espaços não neutros, “construções culturais que expressam e refletem para além
de sua materialidade, determinados discursos” (ESCOLANO, 2001, p.26). Essa
é uma maneira recente de pensar a arquitetura escolar, por muitos anos houve
um predomínio das análises de arquitetos e historiadores da arte, pois os
edifícios escolares eram analisados, principalmente, a partir de suas
características estruturais e de seus elementos decorativos. Como se houvesse
uma essência a ser analisada, para Guatteli (2012, p.19) havia uma forma de
teleologia histórica ao se falar das competências e atributos do espaço em
arquitetura, sem os considerar como algo produzido culturalmente.
Superando essa discussão, a história da arquitetura escolar1 do século
XXI vem ao encontro de uma perspectiva multidisciplinar. Arquitetos,
historiadores e pedagogos passam a estudar esta materialidade da escola e
enfocam diversas particularidades, tais como, a questão dos projetos dos
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edifícios, o ambiente como um elemento curricular, mas não exclusivamente, o
espaço como responsável por questões de punição e vigilância, o mobiliário das
escolas, o prédio na trama da cidade entre outros.
A historiadora da arquitetura escolar Anne-Marie Chatelet (2011)
afirma, a partir de seu balanço historiográfico sobre a produção no campo2,
“parece que não há uma única maneira, ou espera-se, de escrever a história dos
edifícios escolares e que em torno desse objeto comum surgiu uma variedade de
abordagens que criou sua diversidade e sua riqueza” (CHATELET, 2011, p. 219).
Dessa multiplicidade de análises, me atenho as que consideram o
espaço como transmissor de estímulos, significados e discursos. O historiador
da educação, Agustín Escolano na introdução do capítulo “Arquitetura como
Programa. Espaço-Escola e currículo3”, se vale de um breve relato,
Quando já havia completado os cinquenta anos de idade, o
protagonista da narrativa visitou a escola que havia frequentado sua
infância, entre os seis e os dez anos de idade. [...]Além das antigas
estruturas, o observador pôde notar que o edifício ainda mostrava
alguns elementos funcionais e decorativos da época em que havia
frequentado a escola. [...]As salas de aula lhe pareceram sem dúvida
menores; os corredores, mais estreitos; a escadaria, pela qual se subia
ao andar superior; onde estavam as salas de aula das meninas, com
menos degraus; o pátio do recreio, muito reduzido. [...]Mas a
memória não lhe era infiel: o espaço que contemplava era,
ainda que menor, o mesmo cenário de sua infância, e os
lugares que observava correspondiam aos seus primeiros
esquemas perceptivos (grifo meu). A escola havia sido, para ele,
depois da sua casa e de alguns limites próximos a ela, uma experiência
decisiva na aprendizagem das primeiras estruturas espaciais e na
formação de seu próprio esquema corporal. [...]O relato mostra a
profunda impressão que as primeiras experiências do espaço
organizado – o espaço escolar vivido – deixaram no observador. [...].
(ESCOLANO,2001, p. 22-24)
O excerto acima trata a questão da interação entre a materialidade e os
sujeitos que a frequentam. Com o termo “experiência vivida”, passamos a
analisar dentro do prédio escolar, a sensibilidade dos estudantes. Para o autor,
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pode-se considerar que os espaços deixam uma “profunda impressão” (2001,
p.23), ou marca nas memórias dos sujeitos.
Pode-se ainda acrescentar ao relato outras situações vivenciadas pelos
estudantes, e que também produzem marcas profundas, como trocas de prédios
e espaços, construções e inaugurações de espaços novos, e principalmente, das
construções que propiciaram novas atividades e práticas pedagógicas. Além
disso, a experiência relatada por Escolano (2001) abre a possibilidade de pensar
outros aspectos simbólicos da arquitetura que fogem da descrição funcional
arquitetônica ou decorativa.
Ainda sobre as experiências sensíveis, Bencostta, ao entrevistar a
pesquisadora francesa Anne-Marie Chatelet, interroga,
mas permita-me saber sua opinião acerca da importância de
investigações que trabalham com o espaço experimentado, percebido e
utilizado. Apesar de esta ser uma discussão, aparentemente, de maior
atenção entre os sociólogos da educação, como nós, historiadores da
arquitetura escolar, podemos tratar de uma arquitetura espacial
enquanto experiência do vivido” (CHATELET, 2011, p. 215).
A pesquisadora responde que essa questão se une “às relações entre
espaço e educação” (2011), e que, por utilizar as regulamentações do Ministério
da Instrução Pública Francês em sua tese de doutorado, não foi possível se
aproximar das questões do sensível. Segundo ela, “teria sido necessário recorrer
às memórias de professores ou alunos, o que é um gênero raro”4. A autora
continua, “os regulamentos são preservados, os testemunhos são raros”,
principalmente, por tratar de escolas do século XIX, na França. Chatelet (2011)
assinala uma das dificuldades na análise das questões do sensível nos prédios
escolares, porém, a autora não considera em sua fala, a possibilidade de captar
esses traços em Jornais Escolares e em Fotografias, sem limitar o tipo de fonte.
Para aproximar essa análise, a presente pesquisa, no contexto de Porto
Alegre, muitos espaços eram alugados e adaptados para fins de constituírem
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escolas, desde o século XIX. Devido à impossibilidade de captar as
representações sensíveis dos estudantes no século XIX, delimitamos a pesquisa
para um recorte temporal de 1920 a 1980, período que possibilita a realização
de entrevistas com a metodologia de História Oral, e a análise do material
iconográfico e da imprensa escolar.
Os prédios escolares, em geral, obtiveram configurações distintas,
conforme o período histórico, ordens religiosas e discursos que deveriam
transmitir. A elaboração de projetos-tipo, de modelos de espaços para a escola
republicana e de uma espacialidade caracterizada pela vigilância, punição e por
questões de higiene são alguns dos aspectos que o complexo campo da História
da Arquitetura Escolar se propõe.
Para além das possibilidades analíticas que o campo engloba, há a
necessidade de discorrer sobre algumas questões metodológicas. Antonio Viñao
e Marcus Bencostta (2009), em balanço historiográfico sobre as publicações
referentes à espaço e arquitetura escolar no Brasil e na Espanha, apresentam
seis questões que devem ser levadas em conta durante o estudo da temática.
A primeira seria “a necessidade de distinguir entre o espaço desejado ou
proposto [...] e o prescrito legalmente, o realmente construído ou utilizado [...] o
espaço, experimentando, percebido e vivido” (VIÑAO FRAGO; BENCOSTTA,
2009, p. 34). Na segunda questão, é colocada a necessidade de perceber a
configuração do espaço, as funções e atividades de cada local e de que forma eles
se relacionam com os outros espaços de uma mesma instituição. O terceiro
aspecto leva em conta a relação do espaço em torno da “dialética entre o interno
e o externo, o aberto e o fechado (sua porosidade, acessibilidade ou
comunicabilidade em relação ao exterior) [...]”.
O quarto e o quinto aspectos tratam da necessidade de pensar o espaço
escolar e o tempo escolar e da percepção do espaço como representações onde
os atores agem em um cenário específico. No sexto aspecto, os autores
enfatizam a necessidade de comparar distintos espaços escolares. Para Viñao e
Bencostta (2009, p.35), “somente a partir da comparação é possível chegar a
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construir ordenações e classificações explicativas de modelos ou tipologias
espaciais”.
Nos valemos destas questões e partimos da comparação do espaço de
quatro instituições escolares (Colégio Anchieta, Colégio Americano, Colégio
Rosário e Colégio Farroupilha) e suas relações com o espaço urbano de Porto
Alegre para compreender de que formas os estudantes evocavam e evocam
sensibilidades daqueles espaços construídos. Prédio e espaços não são apenas
materialidade, são cenário por onde os atores exercem a prática educativa e
também constituem como fomentadores de uma experiência subjetiva.
CARTOGRAFIAS DO SENSÍVEL: UM PANORAMA
SOBRE AS CATEGORIAS ANALÍTICAS A PARTIR
DO CONCEITO DE SENSIBILIDADE
As categorias de análise apresentadas anteriormente partem de uma
perspectiva genealógica foucaultiana, que procura entender as condições de
possibilidade/emergência de algum determinado acontecimento, tendo como
foco não homogeneizar a história, privilegiar suas descontinuidades em
detrimento das regularidades. A partir do que propôs Foucault sobre a
finalidade da genealogia,
marcar a singularidade dos acontecimentos longe de toda finalidade
monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é
tido como não possuindo história – os sentimentos, o amor, a
consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a
curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas
onde eles desempenharam papeis distintos; e até definir o ponto de
sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram. (FOUCAULT,
2017, p.55)
Por meio de vestígios encontrados nas narrativas orais e escritas,
realizou-se uma espécie de cartografia das sensibilidades dos estudantes sobre o
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espaço escolar habitado por eles. Esta cartografia não buscou apenas mapear ou
descrever as experiências sensíveis, mas relacioná-las ao contexto histórico em
que estavam inseridas, privilegiando o que era descontinuo.
Para Ricoeur (2007, p.58), “os lugares ‘permanecem’ como inscrições,
monumentos, potencialmente como documentos, enquanto lembranças
transmitidas unicamente pela voz voam, como voam as palavras”. Há uma
facilidade em lembrar dos espaços, pois, “o ato de habitar, [...] constitui, a esse
respeito, a mais forte ligação humana entre a data e o lugar. Os lugares
habitados são, por excelência, memoráveis. Por estar a lembrança tão ligada a
eles, a memória declarativa se compraz em evoca-los e descrevê-los”
(RICOEUR, 2007, p. 59).
Por isso, considerando a documentação consultada, percebemos que
muito se escreveu sobre os prédios e espaços escolares, principalmente em datas
comemorativas ou quando os estudantes concluem sua escolarização. O prédio
estabelece uma espécie de vínculo perene que marca a identidade do estudante,
na maioria dos casos. As expressões como Velho Casarão, Gigante da Duque,
Velho Anchieta, cunhadas pelos estudantes, denotam essa relação do prédio
com quem os frequentava. E essa relação se torna mais forte quando os
discentes necessitam ressignificar esta identidade, principalmente em
momentos de perda, seja pela saída da escola ou diante da iminência de
destruição do edifício escolar.
Os vínculos que se estabelecem entre os estudantes e a materialidade
escolar evocam uma profusão de discursos. Nestes, os espaços não são tomados
apenas como cenário, mas também como responsáveis por incutir ações e
valores, por exemplo, a prática da vigilância.
Sendo assim, as narrativas escritas7 e orais8 foram articuladas em
7 Os escritos discentes revelam muito do espaço escolar e devem ser pensados como veículos importantes para a prática pedagógica. Para Almeida (2013, p.248) no que diz respeito aos periódicos, “traduzem aspectos significativos do cotidiano escolar e mostram indícios de saberes e de práticas escolares”.
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quatro categorias de análise. Primeiramente, a questão entre o Antigo e o Novo.
Ela emerge no campo discursivo quando há iminência de destruição do espaço
escolar. Quando isso ocorre, os estudantes passam a olhar para o prédio antigo
com saudosismo e projetam o que virá a ser o novo espaço. Por exemplo, nos
Colégio Anchieta e Farroupilha, na década de 1960, houve a publicação de
diversos artigos nos periódicos escolares que traziam esta dicotomia. Com isso,
podem-se notar diferentes percepções sobre como os estudantes consideravam
os edifícios antigos e novos.
Nesta categoria, inventariamos diversas narrativas que tratam dessa
passagem de uma sede para outra. Sobre a construção do chamado “Novo
Colégio Farroupilha” o aluno Mamfredo escreveu em sua redação: “sua
imponência e grandiosidade não poderão apagar de minha memória aquela casa
simples e antiga, em que aprendi a ler, em que passei horas felizes e amargas, e
à qual devo a mais profunda gratidão: o antigo Farroupilha” (WAHMANN,
1956, p.2). Encontramos discursos similares em todas as instituições analisadas.
No periódico estudantil do Colégio Anchieta, o ex-aluno descreve:
Finalmente, Anchieta, velho amigo, a ti nossas derradeiras palavras.
Guardarás em tuas paredes, em tuas salas de aula, em tuas galerias, os
nossos mais belos anos. Podes ficar certo de que, se algum dia caíres,
se algum dia tiveres que morrer em benefício do progresso, levarás,
impregnado em cada tijolo, em cada pedacinho de teu reboco, parte de
nossa juventude. Nossa despedida é apenas aparente, pois em espírito
estaremos sempre juntos e prontos a combater pelo mesmo ideal
(SOUZA, 1961, p.9).
Em paralelo às representações sobre o Antigo e o Novo, emergiu o
discurso da “escola como casa”. Para diversos estudantes, o ambiente escolar
assume como característica o fato de ser um local acolhedor, que se aproxima da
ideia da casa dos pais. Durante o período da escolarização, passa-se muito
8 Diferente das pistas deixadas pelos discursos nos jornais escolares e nas fotografias, os depoimentos orais apresentam as marcas dos processos de ressignificação da memória, e de que forma os sujeitos internalizaram a questão do espaço e do prédio escolar. Com isso, se têm outras particularidades para a análise das questões sensíveis das memórias dos estudantes.
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tempo vivenciando a Arquitetura da escola e seu espaço funcional. Além do
espaço habitável ser, por excelência, memorável, como diz Ricoeur (2007), pode
este mesmo espaço produzir sensações de pertencimento? Como se constrói esta
sensação de estar em meio ao lar? As narrativas orais e escritas evidenciam a
recorrência de um discurso do prédio da escola como se fosse a casa do
estudante.
Dito isso, trazemos um excerto de um escrito da estudante Mara
Momaco, publicado no jornal “O Crisol”, do Grêmio Estudantil das alunas do
Colégio Americano,
Mais do que por recordações que me são infinitamente queridas, mais
do que pela vida feliz de estudante que aqui passei, estarei sempre
ligada ao Americano em todos os momentos da minha vida. É que no
Americano cresci e me formei, assim como o vi crescer e formarem-se
seus edifícios. Por tudo isto sinto que é muito difícil para mim olhá—lo
pelo lado de fora e dizer – adeus (MOMACO, 1927, p.2).
A estudante sintetiza um momento particular na vida discente, o último
ano do Curso Ginasial. Mara, ao registrar suas impressões acerca do último ano
na escola, vincula sua história de vida à história do Colégio Americano,
notadamente quando escreve, “é que no Americano cresci e me formei, assim
como o vi crescer e formarem-se seus edifícios. Por tudo isto, sinto que é muito
difícil para mim olhá-lo pelo lado de fora e dizer – adeus” (MOMACO,1930,
p.2). A estudante, dentro de inúmeras possibilidades discursivas, optou por
tratar sobre uma das coisas que mais a marcava na escola, a estrutura
arquitetônica.
A autora atrela a construção dos espaços à sua própria formação na
instituição, deixando claro que as memórias do Americano, são suas também.
Sobre estas memórias do Colégio Americano, a ex-aluna Nelly, discorre,
Entrei no Colégio Americano aos 7 anos de idade, no ano de 1921.
(...)Eu subia a minha rua até a Floresta e depois subia a Barros Cassal
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até a Independência. E logo adiante ficava o colégio. Era um prédio
imponente, de classe.Tinha um jardineiro, o Seu Eduardo, que gostava
muito da gente e cuidava de tudo. O jardim tinha um aquário com
peixinhos dourados, orquídeas, tinha um chafariz bem grande, onde
na base ficavam outros peixinhos dourados. E no centro do chafariz
tinha uma planta chamada Escadinha do céu. Tinha um escorregador
que ficava no pátio, nós procurávamos muito para brincar.Eu gostava
muito do Colégio Americano. (Nelly, entrevista em 08/12/2014).
A imponência do prédio, as entradas da escola e o chafariz do jardim
são elementos espaciais não levados pelo esquecimento. Na entrevista, Nelly
lembra do jardim com um imenso carinho, e exemplifica dizendo que lá
aconteciam as Festas da Primavera. As atividades lúdicas vividas naquele espaço
foram lembradas facilmente pela estudante. Situações em que o aluno assume
posicionamentos ativos são difíceis de serem esquecidas, principalmente porque
escapam da normalidade, do que acontecia diariamente e por se tratar de um
evento que envolvia a comunidade escolar. Da fachada do prédio, só recorda a
imponência, do interior enfatiza os locais pelas quais tinha maior predileção.
No editorial de “O Crisol”, de setembro de 1926, as estudantes fazem
uma retrospectiva sobre o prédio do Americano na Av. Independência,
Com o maravilhoso impulso comprava-se em 1920 uma excellente
propriedade na rua principal da capital riograndense.
O terreno é espaçoso, esplendidamente situado num ponto accessivel
de toda parte da cidade. O edifício adquirido é um confortável
palacete, que com algumas reformas bem se adaptou às necessidades
do collegio para o anno de 1921.
Em 1922 inaugurava-se a construcção do novo edifício e a reforma
geral do velho. Completada a obra em 1923, passou o primitivo
Collegio a servir para dormitórios e os refeitórios e o novo prédio,
Ipyranga a comportar as aulas, audictorium, etc. Em 1925 foi
construído mais um edifício para o departamento de música. [...]
Grande número de jovens brasileira vem avidamente procurar as luzes
da instrucção neste estabelecimento. (CRISOL, 1926, set. n.4, p.2)
A partir do depoimento de Nelly, do excerto de Mara Momaco e do
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Editorial, conclui-se que o prédio faz parte do imaginário das alunas. Dos
discursos analisados, não se localizaram representações que destoassem dessa
visão idealizada e romantizada do prédio e de seu entorno. Sendo o prédio do
Americano, um local “moderno”, detentor das “luzes da instrução”, esta
perspectiva está de acordo com os ideais republicanos para a educação daquele
período, no Rio Grande do Sul.
Em outra reportagem de “O Crisol”, a aluna chamada de Apê tece
outros comentários sobre o espaço do Americano. Ela se remete ao prédio do
Americano como sendo lugar de uma família, ao comparar com suas janelas,
aproximando a edificação à uma casa de família. Nesse aspecto, considera-se a
materialidade como potencializadora de identidades, principalmente, para os
estudantes que estão deixando a escola.
Esta noção do espaço como casa é enfatizada em um panfleto
distribuido pela escola,
O colégio americano funciona em dois grandes e confortáveis edifícios,
situados no mesmo terreno. O edifício onde ficam situados os
dormitórios foi reformado e está em ótimas condições de oferecer
conforto e comodidade as alunas internas. Possui sala de jantar com
bem montada cozinha e dispensa. Os quartos de dormir são arejados e
bem iluminados, os quartos de banho são fornecidos de água quente e
fria. O edíficio de aulas é completamente novo, construido conforme
as ultimas exigências de uma escola moderna. As salas de aula são
grandes, bem arejadas e iluminadas. Possui carteiras capazes de se
adaptarem ao tamanho da aluna. (AMERICANO, 1924, p.7)
Sobre isso, pode-se pensar que uma das intenções era tornar o espaço
agradável para as estudantes, especialmente as que frequentavam o internato.
Encontramos vários documentos que tratam o internato como um local que
representava a “proteção da casa familiar” (Crisol, 1927).
Para contrapor os depoimentos, trazemos o excerto de “O Crisol”9 de
outubro e novembro de 1927, em que a estudante A. enfatiza a questão do
9 Sobre o periódico escolar das alunas do Colégio Americano: O Crisol, ver Almeida (2013).
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prédio do conservatório de música,
Este edifício está situado no fundo do pateo. É interessante ouvir-
se tocar seis pianos ao mesmo tempo é um jazz-band
infernal (grifos nossos). Finalmente temos o internato, muito alegre
e que nos dá a impressão de uma casa habitada por uma grande
família, sendo a mãe dedicada, nossa diretora. Os dormitorios são
muito arejados e bem cuidados. A comida é de bom paladar e muito
saudável. (A. 9º ano. Crisol, 1927, P.2)
Ao mesmo tempo que uns discursos enfatizam a tranquilidade do
ambiente, outros, como o excerto anterior, comentam sobre o barulho dos
instrumentos do conservatório. Na sequência do texto, a autora volta a tratar
dos demais espaços e a comparar o internato com uma casa de família, sendo a
diretora, a “mãe espiritual” (ALMEIDA, 2013). A questão materna, neste caso,
remete mais uma vez ao ambiente familiar e a questão do cuidado e do ensino às
“filhas espirituais”, que outrora era imputado às mães.
Durante a análise, ponderamos se esta sensação não era exclusiva do
prédio da Av. Independência, por ser mais antigo e pela difusão dos discursos de
pertencimento. Porém, a mesma se repete com a mudança do Colégio
Americano para o Bairro Rio Branco.
Esta nova edificação possuía, o lema do escolanovista, John Dewey
visível na fachada de entrada da instituição: “Educar é ensinar a viver”. A partir
disso, infere-se que essas ideais não só permeiam os espaços, mas fazem parte
da filosofia da instituição. Além disso, a escolha pela frase de Dewey revela
aproximações da instituição com ideais norte-americanos. Este também era o
local em que as estudantes entravam na instituição, sendo assim a inscrição na
parede estava em um local bem visível, justamente para não ser esquecida.
A influência dos ideais da Pedagogia Ativa, da filosofia das instituições,
as diversas atividades extraclasse, a utilização do espaço fora da sala de aula, a
manutenção da presença dos alunos no ambiente escolar fora do período de
aulas, podem ser alguns dos fatores que incutiram nas estudantes este
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sentimento de pertencimento. Além disso, no Colégio Americano, pela
observação das propagandas difundidas pela escola, constatou-se que o prédio
do internato buscava mimetizar a casa familiar, talvez para que as estudantes
melhor aproveitassem o período habitado na instituição. Esta visão idílica foi
problematizada com a intenção de desnaturalizar este lugar que não é neutro e,
a partir do que diz Foucault (1977), tem a intenção de docilizar o estudante.
Nesta perspectiva, regulação e punição caracterizam o espaço escolar,
situação evidenciada em diversos depoimentos e escritos que explicitam esse
caráter ordenatório. Entretanto, o mesmo ambiente que vigia e pune também
permite práticas de recreação, assim essa foi outra questão que procurei
investigar estas situações dicotômicas. Sobre isso, o ex-aluno Martin narra:
Assim, eu não amava a estrutura do colégio, o prédio em si não era
uma coisa que me causava boa impressão. Eu achava meio sombrio, as
cores escuras a arquitetura dele, provavelmente cinza escuro. Como
ele era internamente, principalmente, as partes de madeira, forros.
Não eram alegres. E eu detestava ficar preso né, a minha alegria era o
momento que saia né, que tinha que criar alguma coisa. Lá dentro tu
tinhas que ficar quieto, prestar atenção, repetir. (Martin, entrevista em
12/12/2015)
Na narrativa de Martin, percebe-se que a estrutura do colégio não lhe
agradava. Durante a entrevista, essa lembrança foi recorrente, principalmente
pela existência de uma maquete da casa que morou na infância. Para ele, esta
moradia estava ligada à perspectiva da liberdade, por ser espaçosa e, inclusive,
por ter uma casa na árvore. Ao contrário do colégio, que produzia nele uma
sensação de aprisionamento.
Sobre essa entrevista, nota-se que as memórias de Martin denotam
emoções não agradáveis vividas na década de 1950. Neste sentido, suas
sensações representam o que foi dissonante nas narrativas sobre os prédios
intitulados de “velhos”, visto que a maioria dos entrevistados possuía memórias
agradáveis sobre eles, sendo esta uma temática recorrente.
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A última categoria cartografada enfatiza a chamada “sensação de
liberdade” trazida pelos estudantes. Essa sensibilidade é interessante de ser
pensada, pois, com a institucionalização da escola, houve, conforme Varela e
Uria (1992, p.230), a emergência de um “espaço fechado como dispositivo
institucional”10. Este tinha a função de enclausurar e isolar os estudantes do
“mundo e principalmente de seus prazeres”, ligada diretamente pela referência
aos conventos e às escolas de ordem religiosas, precursoras desta ordenação
espacial.
Pensando nas memórias investigadas pela pesquisa e nas escolas do
século XX, percebe-se que esta função ainda permanece. A constituição de
muitos espaços ainda possibilita e remete este sentido de aprisionamento e
regulação dos estudantes. Considerando que o “espaço fechado não é em
absoluto homogêneo” (VARELA;URIA,1992,p.230), outros sentidos podem ser
atribuídos. O que significa que mesmo nestes locais havia uma flexibilização dos
espaços com áreas que possibilitassem momentos de fuga deste aprisionamento,
como jardins, pátios e outras áreas. Para Marcos, ex-aluno do Colégio Anchieta:
Naquela época, por causa do tamanho da escola os grupos não
socializavam. Logo no início ali na frente não tinha nada, a gente ia
caminhar na grama. A gente tinha aula de botânica ali no mato
mesmo. E ao mesmo tempo tinha lugar pra matar aula, pra se
esconder, uma série de outras coisas. Era tudo mais livre (Marcos,
entrevista em 20/03/2016).
A nova localização da instituição possibilitou uma série de apropriações
do espaço. A partir da narrativa de Marcos, pode-se inferir que o terreno
medindo oito hectares possibilitou a construção de uma obra de grandes
proporções, e, a partir disso, havia esta característica dispersiva, mas que, ao
mesmo tempo, também facilitava a criação dos grupos de estudantes. Como
ressaltou Marcos,
10 O estudo trata especificamente das escolas, porém também são considerados espaços de enclausuramento como: “albergues, casas prisões, casas da doutrina, casas de misericórdia, hospícios, seminários e hospitais” (VARELA;URIA, 1992, p. 230) no século XVII.
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O colégio sendo daquele tamanho, propiciava aos alunos terem um
espaço para os seus grupos que se espalhavam. Tinha o grupo que
ficava na Igreja, nos campos, na quadra. As quadras eram muito
usadas nos recreios. Todo mundo jogava. Hoje ninguém joga,
os recreios são todos separados, cada um em um horário. Os
nossos eram todos juntos. [grifo meu] Tinha muitos espaços que
propiciavam isso (Marcos, entrevista em 20/032016).
Além da questão estrutural, importa dizer que estes novos espaços
contribuíram também para a prática pedagógica. Nas entrevistas citadas
anteriores, há menção dos estudantes utilizando os banhados e a vegetação do
entorno para as aulas de Biologia. Estas novas atividades possivelmente
permitiam que o estudante tivesse uma postura mais ativa em sua escolarização.
Isso também poderia facilitar para que houvesse essa sensação de liberdade
visto que estas experiências não eram possíveis na localização anterior. Além
disso, inferimos que, naquele momento, a escola se encontrava imbuída de
ideais da Escola Nova que postulam o “aprender-fazendo” e a “escola-
laboratório”.
Este espaço provocava no estudante Marcos uma sensação de
deslumbramento. Ao mesmo tempo, ele reitera a questão do enclausuramento
da escola, através da palavra rigor. Isso tudo, concomitantemente com um
pouco de liberdade por parte da instituição.
Inferimos que a percepção de um espaço na qual a liberdade predomina
emerge nos momentos em que se rompe com a sala de aula. Especialmente, no
contato com os pátios, ginásios, quadras e outras áreas da instituição que não
fossem a sala de aula.
Através das memórias dos estudantes sobre os espaços de sua
escolarização, analisou-se de que forma eles percebiam estas construções que
segundo, Varela e Uria (1992, p. 5), procuravam “ocupar o tempo e imobilizar
no espaço os estudantes”. Esta sensação de liberdade rompe, ainda que
parcialmente com o confinamento pretendido pelas instituições escolares.
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CONCLUINDO
Para finalizar, a partir das temáticas inventariadas: o antigo e o novo; a
escola feito casa; espaços de regulação e punição e a sensação de liberdade,
procurou-se investigar quais sensibilidades os prédios e espaços evocaram nos
estudantes, quais usos os sujeitos deram para esta materialidade e de que forma
estas lembranças foram ressignificadas.
Ao problematizar esses aspectos do espaço escolar, a partir das
ferramentas teórico-metodológicas da história das sensibilidades, percebemos
que,
Não vivemos em um espaço neutro e branco; não vivemos, não
morremos e não amamos no retângulo de uma folha de papel.
Vivemos, morremos e amamos em um espaço esquadrado, recortado,
multicor, com zonas claras e sombras, diferenças de níveis, degraus,
cavidades, protuberâncias, regiões duras e outras quebradiças,
penetráveis, porosas (FOUCAULT, 2009, p.23-4).
Esse pequeno excerto faz parte de um dos chamados “Ditos e escritos”
do filósofo francês. Nele, o autor faz uma espécie de reflexão acerca da
complexidade de nossas existências. O autor reforça que “não vivemos em uma
espécie de vazio” (Foucault, 2009, p. 24), mas sim em um espaço complexo
permeado por histórias e memórias. E vem ao encontro do que diz o arquiteto
Igor Guatteli, o “espaço é o lugar do hábito, de imprevistas habitabilidades, de
habitações momentâneas [...] pois, como foi para os pós-estruturalistas, é o
lugar do evento, do acontecimento, da indefinição e do imprevisível) Guatteli,
2012, p.15).
Com isso, nos amparamos no que diz Paul Ricoeur, justamente por
considerar que o “habitar” uma determinada materialidade produz diversas
memórias ricas em sensibilidades. Além disso, como podemos relacionar
História da Arquitetura escolar e Sensibilidades? A título de resposta, podemos
constatar que os espaços escolares não são isolados daqueles que os frequentam.
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Estes são projetados pelos arquitetos, porém quem define o uso são os sujeitos.
O mesmo sujeito que vivencia o espaço é o mesmo que lembra. Logo, para a
investigação, os espaços educativos só se tornaram lugares após serem
vivenciados e utilizados pelos estudantes que rememoraram. Estas questões
trazidas se identificam aos edifícios escolares analisados, pois, é a partir deste
ato de habitar que o espaço é transformado em um lugar, e este evoca
memórias.
Ao longo da pesquisa, foi necessário refletir sobre os sentidos do prédio
escolar. Conclui-se que, além de abrigar as práticas educativas, tem como
principal função a de ser ocupado pelos estudantes. Este ato de habitar é repleto
de sensações de confinamento, clausura, imobilização dos sujeitos, por outro
lado, há o sentido de esteio, um local que acolhe, protege e se torna uma
referência para os estudantes, que pode extrapolar os anos de escolarização.
Por fim, percebemos indícios de como as sensibilidades dos estudantes
foram construídas tomando o espaço como seu evocador e também como
cenário. Esta visão mais aprofundada das sensações dos espaços escolares em
Porto Alegre só foi possível, pois os estudantes reagem aos discursos e estímulos
evocados pelos edifícios escolares, e com esse ato de experienciar o espaço,
produzem sensações. A profusão dos discursos sensíveis sobre estas
materialidades só confirma a importância que estes espaços adquirem na vida
de quem os frequenta, corroborando com o que diz Michel de Certeau: “que
todo o relato é um relato de viagem- uma prática de espaço” (p.200).
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LUCAS COSTA GRIMALDI é doutorando em educação no Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFRGS.
E-mail: lucascgrimaldi@gmail.com
http://orcid.org/0000-0003-4654-1032
DÓRIS BITTENCOURT ALMEIDA é professora de História da Educação da
Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
E-mail:Almeida.doris@gmail.com
http://orcid.org/0000-0002-4817-0717
Recebido em: 20/10/2019
Aprovado em: 10/01/2020
Revista História da Educação - RHE
Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação - Asphe
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