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Sobre mãos invisíveis: olhar sobre a religião e o consumo em Araraquara-SP
José Lucas da Silva1
Tarsila Macedo de Oliveira2
1 Introdução
Este trabalho foi escrito a duas mãos. Dicotomias estarão presentes
todo o tempo. A autora, graduanda em Ciências Sociais, e o autor, mestrando
também em Ciências Sociais, tem o mesmo campo etnográfico, a cidade de
Araraquara localizada na região central do Estado de São Paulo, e seus
objetos de estudo, novas dinâmicas religiosas, também são bem próximos. No
caso da primeira seu foco é a relação entre as práticas de consumo e
expressões religiosas no universo neo-esotérico, no caso do segundo a
categoria censitária do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística(IBGE) dos sem religião3 como pessoas de religiosidade
diferencial sido seu objeto desde a graduação.
A realização de um esforço conjunto entre as duas partes para
mapear o espaço urbano em seus elementos religiosos desta cidade é um
projeto que se mantém desde que o Grupo de Estudos em Religião Sociedade,
Cultura(GERSC)4 começou suas atividades no início de 2016. Atuando a partir
de suas pesquisas individuais constrõem, com demais pesquisadores e
pesquisadores deste grupo, uma rede de contatos, apoio e trabalho entre a
graduação e a pós-graduação. Desta colaboração, em especial entre os
autores deste trabalho, surgiu o mapeamento de locais e relações que possam
servir de equipamento urbano para seus sujeitos de interesses na cidade em
1 Mestrando em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras- UNESP
2 Graduanda em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras- UNESP
3 Grifaremos "sem religião" em itálico para denotar quando nos referimos a categoria censitária. Não se usará
este recurso quando o uso for qualquer outro.
4 Grupo de iniciativa discente, não goza de pertença instituicional formal. Tem suas reuniões na Faculdade
Ciências e Letras de Araraquara. Para contato escrever para: gerscfclar@gmail.com senha
questão.
O foco deste artigo será a percepção da cidade a partir da
visão de um nativo, o autor araraquarense, e a de uma forasteira, a autora
é de Franca-SP. Expor-se-á o tema de forma a evidencias que as trajetórias
de pesquisador/a e sujeito de estudo confundem-se a todo momento. De certa
maneira, o que nos permite desenvolver nossos trabalhos é o fato de sermos
identificáveis e identificados em relação ao campo. Nossa trajetória pela
cidade e pela acadêmica se confundem, também, de maneira que os sujeitos
pesquisados criam-se junto com os sujeitos pesquisadores.
Ao longo de texto abordaremos a constituição de Araraquara como
campo apartir do olhar de dois tipos de sujeitos: um que tem sua inclusão
neste campo dos sem religião por ruptura com seu grupo religioso de origem,
seguido pela de quem está neste campo pela inclusão em seu grupo religioso.
2 Araraquara como campo
2.1 Araraquara do ponto de vista de um nativo : eu vi a face de Deus
pichada num muro
Ao longo da graduação meus temas de pesquisa estiveram relacionados a
religiosidades não convencionais ou formas diferentes de se olhar para fenômenos
comuns neste contexto. Foi a partir destes trabalhos que o campo, que se
desenvolve na pós graduação, começou a se desenhar para mim. Num dos primeiros
trabalhos disciplinares da graduação trabalhei com questionários aplicados a uma
rede social de bruxaria moderna com o tema de "porque estas pessoas mudaram de
religião", caso o tivessem feito. Hoje não é incomum encontrar pessoas que
nasceram em famílias de bruxos e bruxas. Percebi que o motor principal desta
"escolha" era a infelicidade com o credo familiar ou com algum outro adotado em
dado momento da biografia. Havia ali a indicação de que determinados indivíduos,
neste caso pagãos5 e pagãs, negariam uma experiência eminentemente institucional
em prol de um viver nas marcas de suas próprias experiências, buscas e construções
na relação com o inefável religioso. Existia todo um contexto sociopolítico
identitário por trás disto também. Vários marginais sociais se encontravam ali:
população LGBTT6, mulheres, negros, povo-de-santo7 com uma visão abrangente de
culto a ancestrais/antepassados, religiões pré-cristãs indo-européias8 reavivadas
e ressimbolizadas para o contexto nacional. Todas estas pessoas me diziam que na
religião em que foram criadas ou estiveram relacionadas durante algum tempo
tiveram tanto sua identidade quanto sua religiosidade clivada ou mesmo ceifada por
uma normatização externa a elas. Na virada deste ano, 2011, participo de um ritual
xamânico com ayahuasca no Instituto Xamânico Morada do Sol em Araraquara-SP a
convite de alguns amigos que já o frequentavam. Provavelmente foi uma dos contatos
mais severos que minha psique, afetividade e referência de mundo passaram até
então. Neste contato pude, através da mediação proporcionada por estas
experiências tando como pesquisador como quanto sujeito, elaborar uma série de
questões pessoais as quais passei a julgar que não havia dado as devidas
dimensões. Não sei precisar exatamente quando nem como, tomo contato com uma
tradição do neo paganismo, Wicca9, ao mesmo tempo com o ambiente underground de
minha cidade, com o RPG10 e vem na esteira disto tudo o contato com ideologias
punks do tipo faça-você-mesmo.
Somada a formação em andamento como cientista social, para colocar
questões e elaborações pessoais novas. Passei a me interessar pessoalmente pelo
estudo de coisas relacionadas às marginalidades religiosas, sendo estas,
5 Cumpre ressaltar que o termo "pagão" quando empregado por membros destes grupos não se refere a visão
que a Igreja Católica Apostólica Romana e cercanias emprega. Do latim paganus, povo da terra, se refere a
todo um imaginário e prática voltado a observação e prática de comunhão com uma visão Gaia do planeta
Terra. Existe um tom político em se assumir "pagão" como oposto a "cristão" como estratégia de ressalte aos
valores adotados pelo grupo.
6 Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e travestis, definição nativa.
7 Nome genérico e amplamente inclusivo para religiões de matriz africana, termo nativo e adota na literatura
especializada.
8 Indo de cultos nórdicos(asatru) para fés gaulesas e célticas
9 A referencia sobre esta religião é PRIETO, Claudinei. Wicca: a religião da Grande Deusa. Rio de Janeiro:
Gaia Editora, 2003.
10 Sigla em inglês para Role Play Game, jogos de interpretação de papéis.
diretamente postas em construções pessoais neste imaginário. Leituras da Escola
Francesa de Antropologia caíram como uma luva para mim. Num trabalho disciplinar
de Antropologia Estrutural, sob supervisão do professor responsável pela
disciplina que se tornaria a partir daí meu orientador, faço uma curta etnografia
num terreiro de candomblé do qual participava nesta época. O que me despertou a
curiosidade para este trabalho foi o desencontro entre o que a bibliografia a
respeito de religiões de matriz africana diziam sobre a separação entre templos de
Umbanda e ilês de Candomblé com o que percebia em minha casa de culto. De acordo
com a bibliografia uma religião não "tocava trabalhos" da outra. Minha casa
"tocava" de quarta-feira Umbanda e nos outros dias Candomblé. Percebia
imbricamentos de um culto no outro. Algo novo, ao menos para mim, estava se
passando ali. Durante a etnografia, com foco nas diferenças de "giras" de esquerda
ou de direita, percebi que as entidades de Umbanda que eram invocadas sofriam uma
limitação de acordo com os dogma do candomblé e que as festas de candomblé eram
precedidas por "giras" de Umbanda. Isto deu um nó em minha cabeça! E isto não é
tudo. Desta imersão colhi um dado que, como praticante e frequentador da casa, não
havia notado: um irmão de santo, também universitário e abiã como eu, era yogue,
observava uma dieta vegetariana e tinha flertes com questões budistas vizinhas de
temas do hinduísmo como, por exemplo, respeito incondicional a vida. Este irmão de
santo era ogã, o que, na distribuição hierárquica do candomblé, o obriga e honra
com a realização dos sacrifícios animais. Tinha a minha frente um adorador da vida
que sacrificava em torno de cinco animais por mês. Dei-me conta disto durante um
feijoada para Ogum. Nesta celebração há um grande número de sacríficos animais e
posteriormente é servido uma feijoada com o axé do santo.
2.2 Como lidar com Hare Krishnas numa feijoada? ou Vikings podem benzer em
nome de Santa Teresa?
Logo em seguida indaguei meu parceiro de grau sobre isto. Sua
explicação não me fez sentido algum na época. Na visão dele haveria incongruência,
sim, das posturas caso ele fosse só budista, Hare Krishna ou filho-de-fé, no
entanto, como não era nenhuma das coisas, de forma pura, podia lidar com a questão
de uma forma própria. Aquilo dizia respeito a ele e não a religião. O respeito
pela vida animal que ele via interligado inseparavelmente da ligação com a terra e
com os ancestrais - que nenhum de nós suspeitávamos que tínhamos até descobrir
isto no terreiro - não entrava em conflito com o entendimento duro da vida, típico
do candomblé, que vê sacralidade tanto na morte como na vida, tanto no sujo quanto
no limpo, instruindo que cada coisa tem seu lugar e merece cada um seu culto,
observação ou trato. Carregando em seu mito pessoal dentro do candomblé a
presença de Ogum logo após seu orixá de cabeça compartilhar da comida deste santo
era algo tanto mais forte para ele graças a não abrir exceções em sua dieta
noutros momentos.
Elaborando o diário de campo esta situação lembrou-me as lições de
Claude Lévi-Strauss sobre o bricoleur, também as questões relativas ao par não
marcado numa topologia estrutural. Tudo se passava como se dependesse das
articulações que ele, o abiã yogue, faria entre as séries de obrigações e
restrições de cada religião. Por um lado era obrigado socialmente a comer da
feijoada, por outro tinha um voto pessoal de não se alimentar de nada de origem
animal. Por um lado tinha um compromisso intransferível com aprender a lidar com
seu Karma e seu Dharma nesta encarnação com relação as pretéritas e vigiando o
efeito nas futuras, por outro poderia no tempo presente, através do ritual, lidar
com questões extra temporais - como nosso destino mítico e, portanto, cíclico no
Candomblé - que lhe possibilitariam um outro contato com questões kármicas. Ao meu
ver, debruçado ali sobre o dado de campo, via tricksters pervertendo sentidos e
pares não marcados readequando séries e lugares numa estrutura que não era nem
budista, nem do candomblé, nem de nada. Os elementos, estes sim, tinham seu
domínio de origem cada em uma série ordenada, no entanto, ao serem reinseridos
numa nova ordem topológica permitiam-se negociar seus pesos e suas medidas.
Curiosamente, graças a minha formação como programador, após esta reconstrução do
mundo caótico num todo possível ordenado, pude diferencias "variáveis" e
"constantes" nesta estrutura. Graças a facilidade com linguagem e sintaxe de
programação de computadores consigo lidar de maneira muito mais tranquila com
abordagens que seguem a lógica das relações diferenciais num contexto onde é
possível destacar diferenciações e singularidades. Isto me agitou a procurar
orientação adequada para desenvolver alguma pesquisa neste sentido.
Encaminhando-me para o final da graduação numa das últimas
disciplinas faço uma matéria sobre História Oral e volto a procurar religiosidades
desviantes11 como campo de trabalho. A proposta que nos foi dada era conduzir uma
entrevista sobre trajetória de vida. Procurei então um amigo, propus realizar uma
entrevista sobre sua trajetória religiosa. Este sujeito de interesse cursava
Letras na mesma faculdade que eu, tinha vinte e dois anos na época sendo conhecido
tanto em meu círculo social quanto em outros circuítos de magia da cidade como
benzedor. Sabia que ele também se dedicava a uma série de estudos teóricos tanto
na graduação quanto de forma pessoal sobre religiosidades pré-cristãs. Sua
iniciação científica foi sobre encantamentos escandinavos antigos. Tinha ciência
de que ele também frequentava desde jovem casas de Umbanda conhecendo até mesmo
pessoal mais-velhos da cidade que eu, como praticante de uma religião próxima e
antropólogo em formação com estudos justamente neste campo, deveria ao menos saber
quem eram. Durante a condução da entrevista entre diversos dados sobre como ele
aprendera a ler tarot, tinha revelações de coisas quando criança, herdara uma
biblioteca de um vizinho que veio a falecer e ele nem se quer sabia quem era, ele
me narra que podia benzer tão bem quanto seu avô. De acordo com sua narrativa o
dom de benzedura em sua família pula uma geração, sempre na linha masculina, e que
mesmo seu pai não tendo este dom isto não o impedia de ser um estudioso destas
coisas e participar da vida mágica da família. Conta ele que nas vésperas da morte
do avô ele e seu pai fizeram com que o senhorzinho recitasse as rezas que
conheciam que eles gravaram, descrevesse como fazer determinados benzimentos e
coisas deste natureza relativos ao trabalho de benzimento. Este material,diz ele,
está documentado e devidamente guardado por sua família. Tendo contato próximo com
ele desde antes disto conheço sua biblioteca muito bem e não me lembro de ter
visto este material. Esta aura de mistério me fascinou ainda mais em lidar com
esta questão não como interessado ou amigo próximo, mas como pesquisador. O que
11 Considero "desviantes" as religiosidades que se aproximam de um corpus de saber e tradição, mas que na
ação do individuo se resinificam desviando do seu sentido original
mais me chamou a atenção neste contexto todo foi a fala dele de que, apesar do que
aconteça, "há o sangue" - retenho esta frase de memória dado impacto - e isto não
tem religião que supere, explique ou de conta. Mesmo sem ter uma uma religião
específica o sangue de sua família e os acordos e tratos multilaterais entre eles
e o mundo espiritual garante que sempre haverá um Santos12 para oferecer ajuda a
quem for na casa deles pedir. Não faz parte do trabalho de campo confirmar ou
validar o que o nativo diz, no entanto, eu vi árvores e flores no jardim dele que
deram flores antes duas estações antes. "Foi tudo na base da acupuntura e reike"
disse ele enquanto tomávamos chá em seu jardim após o gravador ter sido desligado.
Atualmente ele e alguns amigos, futuros informantes por intermédio dele, possuem
uma clinica de terapias holísticas em Araraquara-SP.
Novamente me deparava com esta questão da Religião, como algo fixo,
não ser imprescindível para uma vida religiosa. Isto nos remete muito ao trabalho
clássico que funda toda uma tradição no estudo de religiões que, nos parece
pessoalmente, dever ser retomado. nAs formas elementares da vida religiosa Émile
Durkheim já vislumbra, de seu lugar no tempo e espaço do século XIX francês
positivista, religiões sem deus no mundo empírico, como é o caso do budismo, e que
não seria de se surpreender caso surgissem religiosos sem religião num futuro
social caso a sociedade continuasse orientada para o individualismo e para o
curso das transformações que a modernidade aplicava. Existe aqui algo que julgo
fundamental nesta escola antropológica: a religião, como tal, não precisa,
necessariamente, das formas históricas às quais veio a assumir para continuar se
manifestando na experiência humana. Diferente do que apontam determinados teóricos
a religião não está em vias de sumir no mundo contemporâneo nem estaria ela
passando por um processo de mercantilização a la carte se convertendo numa esfera
de mercado no qual agiria o sujeito agora como consumidor ao invés de sujeito de
fé. Valendo-me de algo muito ouvido na ICAR, em determinados casos, mesmo que não
ajam um ou mais reunidos em nome Dele ele estará lá. Basta que aquele que esteja
tenha uma ideia de como e porque quer fazer.
12 Sobrenome fictício.
Claro, há muito que se considerar sobre o imbricamento estre formas
profanas(mercado) e vida religiosa, no entanto o que salientamos é que a redução
de um fenômeno como parece ser o do transito religioso subordinando-o a esferas
como a do mercado ou do "pós-modernismo" sem a devida consideração em seu próprio
contexto pode ser um tanto quanto prejudicial a sua compreensão. Procurarei aliar
o arrazoado anterior a esta pesquisa sobre a categoria dos sem religião13 e seu
universo religioso, quando houver, a um contexto etnográfico que busque sondar e
delimitar uma imersão possível num grupo disperso e que só se reuniria numa
comunidade de opinião focando na cidade de Araraquara-SP. Mesmo que não tenha
nenhum "centro místico" ou uma grande "aura" que poderia propiciar este
imaginários há, em Araraquara, pessoas que experimentam com religião. Não é
exatamente uma prerrogativa autêntica ou pioneira desta cidade, mas é justamente
disto que se trata. Majoritariamente católica e conservadora até pouco tempo vem
seguindo a esteira nacional manifestando sua população mudanças significativas de
mobilidade religiosa.
Como alguns araraquarenses identificados pelo Censo Demográfico como
sem religião em tese sendo sem religião criam religiosidades, num estilo faça-
você-mesmo é questão que se coloca a este campo.
2.3 Araraquara do ponto de vista de uma “forasteira”: as mil faces
de Deus.
O olhar de uma mulher sobre a religiosidade em Araraquara-SP só
pode ser diferente. Nascida em outra cidade e vivendo em outro contexto bem
distinto, é impossível que o olhar seja o mesmo. Mas existem semelhanças.
Ao analisar meu campo religioso familiar, percebi que há muito que
pesquisar nesta área. De fato, meu caso, assim como muitos outros, é de uma
junção de elementos de religiões distintas que conseguem dialogar de alguma
forma. De maneira alguma vejo como uma “desordem” ou como um “caos
13 Em Araraquara-SP este população era de 13 % em 2010 segundo o Censo do IBGE daquele ano
semiológico”, afinal, pude compreender desde cedo que Deus tem várias
faces, cada um só escolhe a que mais se identifica. No meu caso, me
identificava com algumas.
O que mais chamava atenção ao olhar para a estrutura religiosa da
minha família, foi perceber que muito além dos ensinamentos devocionais, a
religião constrói tipos específicos de indivíduos que refletem o pensamento
institucionalizado de um grupo social. A religião produz o modo de vida dos
indivíduos, e consequentemente seus olhares perante a vida social, criando
estilos de vida, construindo identidades e formalizando as ações dos
adeptos. Ao notar a presença de um constante trânsito religioso, e outras
formas de pertencimento nas mais diversas instituições, uma análise mais
afunda deve ser realizada de modo a questionar os princípios teóricos dessa
área e produzir mais conhecimento e análises mais recentes de acordo com os
processos de ressignificação no universo religioso.
Frequentava o Kardecismo, no qual teve muita influência no meu
modo de pensar, agir, e questionar algumas questões. Mas questionava os
ensinamentos das grandes obras14 relacionada com o comportamento dos
frequentavam o local, de modo a observar um intenso desvio da teoria, com
as formas em que se relacionavam na sua vida cotidiana. A religião não
supria minhas necessidades e muito me questionava a respeito das formas de
interpretação dos ensinamentos. Mesmo frequentando o mesmo local, meu olhar
era diferente, e minha interpretação não era condizente com a do restante
dos adeptos. O sentimento de exclusão social nesta religião era sempre
presente. Muito perceptível nos adeptos que frequentam, e não na filosofia
dessa religião, o sentimento de superioridade a partir da prática da
caridade para com os seres “menos evoluídos” expressa-se da mais variadas
14 Em especial nas obras O evangelho segundo o espiritismo e O livro dos espíritos
formas. Havia uma grande diferença entre os ensinamentos e como estes se
davam na prática através dos que frequentavam o centro. Mas não era minha
única religião. Por influência materna, tive grande contato com o
hinduísmo, frequentando alguns templos Hare Krishna, e ouvindo mitos de
devotos que viam para o Brasil, contribuindo muito para minha visão de
mundo e meu estilo de vida. A forma de transmissão de conhecimento a partir
de mitos trazia uma outra noção de sabedoria espiritual na qual não seria
possível através da casa espírita. Estes despertavam um lado mais
imaginativo, seus princípios não eram ensinados no formato de leis
escritas, mas de maneira abstrata, capaz de serem compreendidos a partir da
análise que o devoto construía, trabalhando seu lado racional e emotivo.
Por também ter tido a oportunidade de vivenciar experiências intensas em
templos budistas, minha concepção passou a se modificar cada vez mais
contribuindo para uma autonomia no momento de construir minha própria
religiosidade.
Mas o lado místico, além das vivências exteriores, foi sendo
despertado dentro de casa com a transmissão de saberes populares das
mulheres da minha família. Vim de uma família de benzedeiras nas quais seus
ensinamentos foram transmitidos de mãe para filha por gerações,
acrescentando cada vez mais saberes, e criando novas práticas de cura.
Minha avó e minha mãe não deixaram de herdar esses grandes ensinamentos,
mas transmitiram pra mim de outra forma, de modo a unificar o que foi
herdado, com experiências exteriores que lhes trouxeram outras visões sobre
a mesma questão. Assim, o conhecimento matriarcal foi transmitido até a
mim, mas com outros elementos que minhas antepassadas provavelmente não
tinham tanto contato. A magia estava em tudo: nos chás, nos banhos,
remédios caseiros, orações, nos passes, nas saias longas, e nos olhos
pintados. Fui perceber o que significava tudo aquilo, ao olhar para outras
formas religiosas nas quais se diferenciavam bastante da minha experiência.
O outro lhe serve como espelho. Existem fatos que nos chamam mais atenção:
existiam elementos na minha formação nos quais não conseguia identificar
sua origem. Existem elementos que permanecem escondidos até que algo
exterior consiga destacá-los. O pensamento mágico15 já estava presente nas
suas mais variadas formas, mas continha símbolos que não foram transmitidos
pelo meu lado materno. Mesmo que o lado paterno da minha família fosse, em
sua maioria composto por evangélicos, consegui herdar de alguma forma,
elementos da umbanda. Fui descobrir que houve um intenso trânsito religioso
familiar que levou umbandistas a se tornarem evangélicos. Mas mesmo assim,
alguns elementos permanecem. Como sempre tive um vínculo com práticas de
magia, acredito que se tornou uma espécie de “ímã” capaz de atrair
elementos que há muito tempo estavam escondidos sendo estes, resgatados
inconscientemente.
Assim, foi na umbanda que consegui entender todos aqueles
elementos que estavam presentes no meu dia a dia, mas não sabia de onde
vinha. Ao chegar as primeiras giras24 no terreiro, conseguir perceber que de
alguma forma já entendia muita coisa que se passava, mesmo sem ter
frequentado antes. Mas não foi só no terreiro. Pra fechar o círculo,
encontrei respostas para diversos questionamentos a respeito dos ciclos do
corpo feminino e a constante relação com ciclos lunares, a sexualidade
feminina, além do poder das mulheres em praticar magia, a partir da Wicca.
Mesmo não frequentando nenhum coven16, pude adquirir conhecimento com
diversas bruxas praticantes que conseguiram traduzir muita coisa que ainda
não via em nenhuma religião.
15 Ver (MONTERO,1990)
16 De acordo com as informantes, coven seria basicamente um grupo fechado de membros wiccanianos que
realizam suas práticas rituais de acordo com as normas estabelecidas pelos participantes, de modo a criar
vínculos considerados como uma nova expressão de tribo familiar.
Em meio a esse intenso fluxo religioso pude verificar
que eu não era o único caso desse tipo. O que havia em comum entre minha
experiência e as dos demais, era a relação de “não pertencimento”. A
“multipertença” derivava da insatisfação de instituições religiosas, e de
todo o universo em que estava envolvida, de modo que não havia um
sentimento de pertencimento, de origem, por ser impossível se encaixar em
um tipo de classificação rígida e fechada.
Ao iniciar minha pesquisa sobre novas práticas de magia num
processo de entrecruzamento de universos mágicos, pude confirmar que os que
se declaram “sem religião”, conseguem uma liberdade maior para transitar
entre universos religiosos de modo a construírem seus próprios métodos
devocionais. Interessa-me as relações entre as diversas práticas que
permeiam o universo da magia neo-esotérica, que além da dimensão das
práticas rituais, penetram outras dimensões da vida social construindo elos
de pertença e identidades. Ao falarmos do fenômeno neo esotérico, nos
referimos ao universo esotérico que foi ressignificado, adotando valores
diferentes e unificando-os num mesmo contexto. Ao chegar em Araraquara pude
observar como que esse processo se dava na prática relacionando minha
experiência no universo místico religioso.
Em Araraquara, portanto, não era diferente. Construir sua
identidade religiosa a partir do princípio da negação, já é muito comum.
Adeptos da Nova Era, a partir de um sentimento de não pertencimento,
puderam assim construir sua religiosidade, sua identidade e seu estilo de
vida, demonstrando que “não pertença” e “multipertença” podem ser
sinônimos. A “Nova Era”, “Novo Aeon”, “Era de Aquário” ou “New Age”
trouxe consigo a unificação de saberes, práticas e fundamentos oriundos de
diversos recortes religiosos. A relação com o divino se estende a outros
formatos que mais se aproximam com as necessidades dos adeptos, pela
desconstrução de fronteiras rígidas entre as instituições religiosas. As
mulheres passam a ser protagonistas desse processo em Araraquara, ao
construírem a tão almejada “Nova Era”, realizando círculos sagrados,
rituais, vivências que correspondem com essa ânsia de transformação
planetária. Ao frequentar esses espaços pude verificar uma intensa
relação de complementariedade com minha bagagem devocional, considerando
que o mesmo fenômeno pode assumir diversas formas apesar de criar processos
identitários e estilo de vida semelhantes. Mesmo possibilitando infinitas
combinações religiosas, e diversos olhares, acabam por criar identidades
semelhantes pelo vínculo entre os adeptos que procuram em sua essência, a
mesma coisa: o despertar da consciência espiritual em comunhão com todas as
formas de vida religiosa.
O sentimento de pertencimento de uma forasteira que é fruto de
uma multiculturalidade ancestral, e assim pertencente à tudo e à lugar
nenhum, só poderia ser contemplado a partir de elos de pertença entre
grupos que expressam-se da mesma maneira.
3 Aportes teóricos e metodológicos para lidar com estas percepções do campo
3.1 A categoria dos sem religião no censo IBGE 2000
A mobilidade religiosa se constrói como uma questão
privilegiada para as disciplinas que se voltam a pluralidade e a
convivência cultural no contexto brasileiro. Duas visões destas questões,
uma a partir da antropologia e outra da sociologia, nos colocam frente a
esta problemática: o campo religioso (BOURDIEU, 2004)brasileiro não é mais
tão definível e de fronteiras tão demarcadas e contornos tão espessos
quanto acreditava-se até o penúltimo quartel do século XX. As hegemonias
são postas em causa através do aumento dos neo pentecostais mantendo, de
certa forma, as regras do jogo pela captura e troca de fiéis. Os sem
religião aparecem a partir de 1970 com uma força que coloca novas questões
para as denominações religiosas majoritárias em suas disputas por fiéis.
Na virado para o século XXI começarão a aparecer esforços de
outras disciplinas além da teologia e da ciência da religião para fazer
este debate a partir dos Censos do IBGE. Também são usadas outras fontes
evitando os pontos cegos que um Censo nacional poderia gerar. Ronaldo
Almeida em esforço conjunto com Paula Montero investigam, a partir de um
levantamento sobre a saúde populacional, quais eram os principais trânsitos
entre instituições religiosas postos em cursos naquele momento.
A pesquisa Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções
do HIV/Aids, realizada em todo o Brasil, em 1998, revelou que 26% da
população mudou de religião. Concomitante à circulação de pessoas,
ocorreu também a multiplicação das alternativas religiosas, encontrando
sua expressão máxima entre os evangélicos, cuja fragmentação
institucional é estrutural ao seu próprio movimento de expansão. Nesse
processo sempre renovado de divisão por “cissiparidade”, as
denominações continuamente dão origem a novos grupos. (ALMEIDA; MONTERO,
2001, p. 92)
Para nossa reflexão sobre esta categoria censitária adotaremos
a noção de transito religioso como apresenta por Almeida e Monteiro.
Esse macroprocesso de contínua síntese e diferenciação é o fenômeno
que aqui interessa ser descrito. A literatura especializada convencionou
denominá-lo, por economia, de trânsito religioso. Esta noção aponta, pelo
menos, para um duplo movimento: em primeiro lugar, para a circulação de
pessoas pelas diversas instituições religiosas, descrita pelas análises
sociológicas e demográficas; e, em segundo, para a metamorfose das
práticas e crenças reelaboradas nesse processo de justaposições, no tempo
e no espaço, de diversas pertenças religiosas, objeto preferencial dos
estudos antropológicos. (ALMEIDA;MONTERO, 2001, p. 94, glifo nosso)
Antônio Flávio Pierucci analisando o Censo 2000 do IBGE, com
vistas ao nacional, nota que a interpenetração religiosa via fluxo de fiéis
se mostra destoante do que os dados pareciam narrar anteriormente
(PIERUCCI, 2004) . Ao se afirmar que as pessoas estão mudando de direção em
suas novas opções religiosas temos uma situação que nos permite questionar
e tencionar o dado empírico de diversas formas. Que as pessoas mudavam de
religião isto já era percebido desde a intensa urbanização nos anos 1930 e
a inserção acentuada de nossas cidades na teia mundial de informação em
1970 e intensa circulação de bens simbólicos de 1980 em diante. Acontece
que elas estão mudando de forma diferente e fora da curva que se desenhava.
Observando esta dinâmica na Região Metropolitana de São Paulo(RMSP) Almeida
constatava, em escala reduzida, o mesmo comportamento da população que
Pierucci percebeu na dinâmica nacional.
Pesquisas realizadas no município de São Paulo, em 1995 (Pierucci e
Prandi, 1996, p. 262)17, e em microrregiões urbanas de todo o Brasil, em
1998 (Almeida e Montero, 2001), chegaram a um mesmo resultado que
confirma a transformação do campo religioso: uma em cada quatro pessoas
mudou de religião. Em um recente survey realizado pelo Centro de Estudos
da Metrópole (CEM), na RMSP(Região Metropolitana de São Paulo) no
primeiro semestre de 2003, nada menos do que uma em cada três pessoas já
havia mudado de religião. (ALMEIDA, 2004, p. 17)
Neste processo de mobilidade chamava atenção o aumento da
população neo pentecostal no Brasil; a alteração das características
societárias da população religiosa afro-brasileira que se distancia de seu
padrão “clássico” sendo agora de expressiva participação de caucasianos
17 PIERUCCI, Flávio & PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo,
Hucitec, 1996
(a)s e classe média não localizada nas periferias18; a diminuição dos
católicos em números absolutos; o aumento dos sem religião vegetativa e
relativamente.
Em relação ao nosso grupo de interesse, os sem religião, já se
tem dados que dão conta de apontá-los como um dos grupos com maior vivência
religiosa em sua experiência cotidiana apesar do aparente paradoxo com a
categoria na qual se inserem censitariamente. A figura a frente dimensiona
esta expansão frente ao quadro nacional.
Gráfico 1 – Crescimento dos sem religião como captada pelo Censo IBGE 2000 em
relação a série histórica do IBGE
Fonte: Censo Demográfico 2000 IBGE
Acrescente-se, contudo, que a literatura antropológica
demonstrou exaustivamente como muitas pessoas compõem um repertório
particular de crenças e práticas variadas, mas não se identificam com uma
religião específica. Não se trata, portanto, somente de um movimento em
direção ao ateísmo, mas sim a composição de um repertório simbólico 18 Este perfil vem se aplicando cada vez mais às populações outrora tradicionais nas religiões de matriz
africana que agora apresentam uma mobilidade massiva para os credo neo pentecostais
particular, afinal, a não-filiação não significa necessariamente ausência
de religiosidade. Um dos exemplos contemporâneos mais significativo de
composição desses arranjos particulares é formado pelo circuito neo-
esotérico, cuja religiosidade não se expressa prioritariamente pela
filiação a uma instituição, mas é definida por um certo estilo de vida,
fenômeno bastante presente nas classes média e alta dos grandes centros
urbanos (MAGNANI, 1999).
Este grupo denominado como sem religião pela categoria
censitária do IBGE descreve aqueles e aquelas que ao serem perguntados
sobre “qual seria sua religião” informam que não tem religião.
A pergunta que é feita à pessoa recenseada, “Qual é a sua religião
ou culto”, deixa total liberdade de resposta, tanto que não há no
questionário nenhum limite quanto ao número de religiões a serem
declaradas nem qualquer restrição sobre isso no manual do recenseador. O
entrevistado tem então três linhas para responder a essa pergunta, o que
é suficiente para uma resposta detalhada a essa indagação. Aliás, convém
observar que o Censo Demográfico de 2000 permitiu, pela primeira vez, que
a pessoa recenseada declarasse mais de uma filiação religiosa.(JACOB,
2003, p. 9)
Como posto a cima, neste universo estão incluídos ateus,
agnósticos e pessoas com religiosidade desvinculada de instituições,
portanto, sem religião frente a este critério. A partir de 2000 os Censos
passam a ter uma capacidade mais acurada de capitação da realidade social.
Além disso, pode-se pensar que o fato de um individuo se declarar sem
religião não significa, ipso facto, que ele seja ateu. Apesar dessa
tendência, não se deve desconhecer também a religiosidade do povo
brasileiro, no sentido mais amplo do termo. Assim, sem duvida, uma fração
importante das pessoas que se dizem sem religião acredita em Deus, sem
participar, no entanto, das instituições religiosas e sem se sentir
pertencendo a uma comunidade confessional. Nesse sentido, mais do que o
crescimento do ateísmo, trata-se, ao que tudo indica, de um
enfraquecimento das religiões como instituições.(JACOB,2003, p. 133)
Pelo trabalho extenso de Jacob no seu Atlas da filiação
religiosa(2003) vemos o crescimento da categoria dos sem religião figurar
como a terceira maior população no território nacional no início do século
XX. Em números absolutos é maior que as assim chamadas “outras
religiões”. Nas regiões metropolitanas esta categoria se torna mais
perceptível.
Essa diversificação nas metrópoles brasileiras se dá por um duplo
movimento: de um lado, pelo rápido avanço do pentecostalismo,
principalmente em Belo Horizonte (7,2%), Rio de Janeiro (8,3%), periferia
de São Paulo (8,6%), Goiânia (8,9%), Curitiba (9,6%) e, de outro, pelo
crescimento do número de pessoas que se declaram sem religião, sobretudo
na periferia de São Paulo (8%), em Recife (9,7%), em Salvador (10,2%) e
no Rio de Janeiro (14,8%). (JACOB, 2003,p. 33)
3.1.2 Reflexões sobre um trabalho de campo com a categoria dos sem
religião
Destas metrópoles a que mais no chamou a atenção foi a cidade
do Rio de Janeiro tanto pela expressividade dos dados sobre sua realidade,
quanto por termos uma etnografia realizada com esta população de difícil
percepção na paisagem urbana(RODRIGUES, 2007, 2011).
No trabalho de 2007, Religiosos sem igreja: um mergulho na
categoria censitária dos sem religião, Rodrigues faz um campo interessante
ao entrevistar pessoas auto definidas como sem religião. A primeira coisa a
se notar é a dificuldade de identificar quem seriam estes sujeitos.
Diferente de outros grupos religiosos este não pode ser capturado pela
observação imediata ou pela procura de grupos e sociabilidades
determinadas. Ela adota a estratégia de partir das suas conexões pessoais
como estratégia de campo. Aplicando um questionário semi estruturado usando
a pergunta de controle "quando um recenseador lhe pergunta qual a sua
religião, o que você responde?" (RORIGUES, 2007, 33) caso a resposta fosse
que não tinham religião ou que eram ateus/agnósticos a pessoa era
convidados para outra conversa.
Elaborei 36 perguntas fechadas e abertas, começando por aquelas que
me permitiam construir um perfil demográfico e socioeconômico de cada
informante, localizando-o geograficamente. Assim, perguntei sexo, idade,
estado civil, cor ou raça, escolaridade, ocupação e renda, uma vez que
essas características básicas poderiam interferir na experiência de cada
indivíduo com conteúdos e instituições religiosas(RODRIGUES, 2007, 34)
Rodrigues não apresenta em seu trabalho estes questionários.
Entrei em contato com ela pedindo acesso ao questionário que aplicara, mas
não tive respostas. De toda forma, ela define sua estratégia para um campo
pulverizado19.
Ao esbarrar na principal dificuldade imposta pela natureza de meu
objeto, a falta de um referencial, de uma localização geográfica para encontrá-lo,
resolvi partir estrategicamente de minhas próprias redes de sociabilidade para
fazer as entrevistas. Sondei amigos, amigos de amigos, colegas de atividades e
19 Esta parte de seu trabalho parece ser de vital importância para quando fizermos nosso próprio campo que
guarda semelhanças de constituição, apesar de não em escala, com o da autora.
vizinhos, em busca de indivíduos que se definiam como sem religião, como numa
corrente onde um indivíduo conduzia a outro, até formar um grupo diversificado.
Também contei com contatos casuais e, assim, de janeiro a dezembro de 2006,
entrevistei 48 habitantes da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro que
se definiam como sem religião, a fim de mergulhar um pouco na sua individualidade
para esboçar suas principais características e motivações.(RODRIGUES, 2007, p. 33)
Partindo de seu acumulado sobre esta investigação descreverá
suas principais percepções sobre a narrativa de seus sujeitos de interesse.
Sobre o que os une em geral é o fato de terem abandonado as fés
institucionalizadas por desconforto quanto a sua condução nos negócios
religiosos e as representações que estas faziam de outras experiências
cotidianas. A mediação via sacerdócio ou organização comunitária ou até
mesmo corpo de dogmas aparece, aqui, como algo além de desnecessário,
passível de ser evitado. Um informante aponta:
[...]a espiritualidade não tem nada a ver com religião. A religião
foi inventada pelos homens para tentar religar o Homem ao fictício elo
perdido com a divindade e justificar a eterna busca indecifrável do
sentido da vida” (D.B., entrevista, 29/10/2006, Rio de Janeiro). Segundo
ele, cabe a cada indivíduo perceber os “...sinais espirituais e
energéticos que cada pessoa tem” para se orientar independentemente de
“intermediários” que ensinassem o que é o bem ou o mal.(RODRIGUES,
2007,p. 40)
Vemos uma certa analogia com o que nossos informantes
relatavam. Ali um dos pontos mais alegados para a mudança de religião era,
também, este descolamento da representação que o individuo fazia da
experiência religiosa com o que era proposto, explicado ou até imposto,
sobre a condução da vida e das relação em sociedades com seu agrupamento
religioso originário. Também era informado que a espiritualidade de uma
pessoa não precisava ser necessariamente uma religião. No meu campo isto
pareceu-me vago e desinteressante tanto que não tratei este dado com o
devido cuidado, é verdade, mas ali já se apontava para que o que era
necessário a esta experiência: um sentimento pessoal com a divindade e não
estar ligado a uma religião. De conversas informais no contato e
aproximação com informantes atuais também me foi narrado coisas muito
próximas disto. De fato, expressões como "crer em Deus" são bem menos
ouvidas que coisas mais amplas e aglutinantes tais como " tenho uma visão
espiritualizada das coisas", ou "acredito em forças maiores do que eu", "
busco sentir a energia do mundo e das pessoas ao meu redor.
Esta noção de pares opostos entre espiritualidade/religiosidade
e Religião aparecerá frequentemente nas entrevistas transcritas por
Rodrigues. Isto pode se dar tanto por uma questão de jornada rumo ao
sentido quanto por acidentes biográficos. A noção de trânsito religioso
aparece aqui com um primeiro sentido: o de se estar em deslocamento
constante do ponto A para o ponto B. Tudo se passa como se esta
itinerância, peregrinação sem rumo acertado, algo como errar ao sabor do
vento do espírito, tivesse prerrogativa a uma busca pela finalidade deste
caminhar. O peregrino do sentido segue antes de mais nada a sua própria
concepção da experiência mística, transcendente, religiosa, o nome que se
lhe atribua. Ela é sempre pessoal, biográfica, afetiva, mística e centrado
numa hierofania de cunho privado. Caminhando sempre em direção ao novo não
se deslocaria um milimetro de onde está. Assim como o Sidharta de Herman
Hess que ao sair em jornada para procurar seu modo próprio de iluminação só
encontrou as formas de ser outra coisa que não erro de e para si, mas ao
acompanhar o modo de vida do jangadeiro passará a ter suas compreensões e
epifanias atingindo o Nirvana na manhã do homem comum.
3.2 A multipertença da Nova Era Caracterizado, como muitos estudiosos o fazem, de uma “nova
modalidade de sincretismo”, é por esse caráter novo que carrega consigo o
constante movimento em sua formação. Não se tratando, portanto, de um
produto acabado, mas em processo. Práticas neo-esotéricas se expressam
através de serviços, terapias, rituais, vivências, ensinamentos
transmitidos em espaços caracterizados como místicos, podendo facilmente
ser identificados, juntamente aos seus adeptos.
Ao se aproximar do século XXI, intensificou-se uma nova era para uma
transformação social no Brasil e no mundo. Diante das grandes insatisfações
geradas com capitalismo e com a perda de influência da doutrina social
cristã, a nova espiritualidade produz uma transformação social inevitável.
O movimento passa a ser delineado por indivíduos e coletivos nos quais
descobrem que mudanças em pequenas atitudes do cotidiano, podem trazer
benefícios fundamentais à humanidade e à preservação do meio ambiente. Os
anos de 1980 e 1990 trazem consigo o boom do esoterismo, com a produção
crescente de livros esotéricos, filmes claramente inspirados por um
renascimento espiritual, além de discos de música new age. O potencial
divino da nova era passa a se refletir em vários âmbitos da vida social, e
uma rede mundial de valores místico-religiosos, passam a redefinir antigas
normas de comportamento e os papéis das mulheres e dos homens.
O que podemos chamar de fenômeno da Nova Era traz consigo
profundas transformações na consciência de indivíduos que mesmo habitando
lugares distantes, constroem a possibilidade de estarem falando a mesma
língua: a da união de saberes. Possibilitando uma liberdade maior de
trânsito entre religiões, muitos adeptos se consideram verdadeiros
“forasteiros” de cada universo religioso, podendo assim criar sua própria
religiosidade, sem um vínculo restrito a qualquer instituição. Rejeita,
portanto, a distinção doutrinária existente entre as mais diversas
religiões do mundo e as convoca a uma união com o Todo. Englobando
inclusive um compromisso com a coletividade, é um fenômeno capaz de
construir uma realidade, na qual é simbolicamente capaz de gerar sentido
para os sujeitos que estão nela inseridos. Mesmo de alcance mundial, a Nova
Era assume um caráter muito particular no Brasil por meio da procura de um
“reencontro com as raízes brasileiras” trabalhando a noção de um resgate
ancestral. Porém, é inegável seu amplo processo de ressignificação da
espiritualidade e das mais amplas práticas religiosas.
A partir de um significativo resgate acompanhado com a produção de
conhecimento, essas transformações representam uma “retirada de diversos
elementos de seus contextos originais, os ressignificando e
rearranjando”(AMARAL,1999) produzindo uma heterogeneidade de práticas e
valores capazes de interferir não apenas no plano religioso, mas em outras
esferas da vida social. A intensa busca pela convergência entre ocidente e
oriente traz uma proximidade, na qual produz novos símbolos que por sua vez
são realocados adotando novos significados e construindo identidades.
“Surpreendentes bricolages”, Magnani demonstra a capacidade desses
indivíduos de unificar elementos de religiões e cosmologias distantes e
ressignificá-los dentro de um novo contexto que acompanha as novas
exigências dos adeptos. A junção de elementos cria a possibilidade de
moldar a espiritualidade de acordo com a busca de cada indivíduo. Deixando
claro que diferentemente do que nossas pré-noções podem destacar, o
fenômeno não se trata de uma mistura de elementos sem qualquer princípio,
amontoados de qualquer maneira. Apesar de sua grande heterogeneidade, tais
práticas apresentam um princípio claro, e forma de organização não
institucionalizada. Essa nova consciência tem como característica um
conjunto
[...]de iniciativas, e propostas que levam a uma significativa mudança
nos modos de pensar, sentir e relacionar-se, com consequências nos campos
da ciência, política, saúde e religião” (MAGNANI, 1999)
O fenômeno da Nova Era traz portanto aquilo que buscavam e supre uma
insatisfação crescente dos adeptos perante princípios religiosos que não
mais condizem com sua realidade, e com que procuram. A flexibilidade das
participações e a fluidez das pertenças facilitam a mobilidade entre os
grupos, possibilitando que os adeptos criem laços de multipertença por
transitarem entre universos religiosos e construírem “suas próprias
religiões”.
A busca pelo holismo20, por terapias e práticas alternativas,
acompanham princípios que se revelam no estilo de vida dos adeptos, criando
um sistema simbólico articulado que ultrapassa a dimensão religiosa. As
relações de consumo, o campo profissional, afetivo, a alimentação, o modo
de vida e a relação com o próprio corpo passam a se modificar. Busca-se
então outros modos de vida e valores para preencher esse “vazio” e
compensar a imensa insatisfação para com as formas tradicionais religiosas
e com os modelos sociais vigentes na atualidade.
O grande afastamento das instituições não significa, portanto, um
afastamento da religiosidade, mas sim com o rompimento de valores expressos
nas religiões geralmente ligadas ao Cristianismo. A negação de uma
ideologia do consumo que cria padrões, modelos a serem seguidos de forma a
padronizar grupos sociais distintos, e eliminando suas especificidades,
20 A perspectiva holística “implica na não divisão entre corpo, mente e espírito, a substituição
das ideias de pecado e culpa pela busca do auto-aprimoramento e uma importância dada mais ao conhecimento interior do que a verdades reveladas”. (MAGNANI, 2000)
surge como principal impulso a transformações. O sentimento de não pertença
pode ser visto como uma “crise de identidade” no mundo social e cultural
(SOARES, 2007).
Trata-se do surgimento de um novo paradigma que abandona velhos
hábitos de se relacionar, trato com a natureza, de produzir conhecimento e
de se relacionar com o sobrenatural. Tratadas como teorias alternativas
“desprovidas de base científica”, um contato mais próximo com o universo
neo-esotérico mostra que além de um consumidor “ingênuo e crédulo”,
existem tipos mais exigentes que buscam conhecimento e constroem aquilo que
almejam. Nas palavras de Magnani:
Sem entrar, por ora, no mérito da polêmica, cabe assinalar que muitas
dessas críticas consideram que tais oráculos, terapias e cosmologias
fazem parte de um mesmo bloco indivisível, sem diferenciações, e o
público envolvido é encarado como o protótipo do consumidor
indiscriminado, leitor acrítico de livros de auto-ajuda, seduzido por
qualquer sistema dito alternativo e pronto a ver duende por toda parte
(MAGNANI, 1999 ,10)
A união de saberes na construção de uma nova consciência planetária,
além de unificar traços culturalmente distintos, também resgata a sabedoria
tradicional de religiões e filosofias orientais, como o hinduísmo, budismo,
taoísmo, entre outras, sem deixar de considerar a forte influência de
ensinamentos de fontes populares brasileiras. O legado da oralidade por
culturas sem escrita e tradições populares camponesas e urbanas, englobam
novas formas de adquirir conhecimento através de práticas e ensinamentos
resultantes de trocas e fusões entre sistemas religiosos.
Cabe destacar a crença não mais em um Deus onipotente e distante dos
seres humanos. A concepção do divino traz uma visão de uma superioridade
essencial que está presente em todos os seres .Cabe ao despertar da
consciência de cada indivíduo revelar como a divindade atua em cada
processo da vida material e espiritual. O aspecto masculino passa a não
mais protagonizar essa nova era de transformações, abrindo espaço para
grande força de divindades em seu aspecto feminino.
3.2.1 O Renascer do feminino
O renascimento do feminino acompanha o resgate da sabedoria
ancestral feminina, de benzedeiras e curandeiras até antigas bruxas e
sacerdotisas que conseguiram manter seus ensinamentos transmitidos por
gerações. O papel da mulher se modifica e, de maneira consciente ou
inconsciente, resgatam a tradição matriarcal dos tempos da “Grande Deusa
Mãe”.
Resgate do feminino acompanhado de um resgate do paganismo e do culto
a grande deusa, ou “mãe terra”, traz um enfraquecimento da hegemonia da
moral cristã, remodelando o papel de mulheres e homens na sociedade.
Mulheres passam a conhecer muito mais seus corpos, seus ciclos menstruais,
suas vontades sexuais, impulsos e estão produzindo profundas transformações
no sistema patriarcal. Pode-se verificar o grande aumento da procura de
círculos do Sagrado Feminino, por mulheres que carregam um grande peso em
si mesmas, devido a falácia de uma suposta “fraqueza” do sexo feminino
através de imagens midiaticamente difundidas.
Mulheres protagonistas desse processo, passam a construir e
desconstruir perspectivas. O aspecto de uma divindade feminina, nutridora,
mãe, princípio gerador, traz em si a força reprimida em mulheres do mundo
todo que passam a finalmente liberar o poder que carregam no útero e em
seus ciclos. “Nos limiares de uma nova era, o retorno à Deusa é
inevitável” (AZEVEDO, 1996). O resgate do feminino na sociedade atual se
deve pela busca, inclusive de homens, de não mais valores individualistas,
competitivos, dominadores, e racionalismo exacerbado, mas de senso de
coletividade, de união de saberes, e respeito às diferenças.
Essência da feitiçaria, o feminismo político também adota o
olhar acróstico21 (STARHAWK,2003) de observar o mundo a partir de um novo
ângulo, sendo este, um olhar inconfortável pelo simples fato de
desconstruir com tudo aquilo que já foi ensinado, para que assim, possa
direcionar a um olhar interior, em busca de auto-aprimoramento que, de
acordo com os adeptos, trará benefícios a toda humanidade. A grande tarefa
se torna recriar cultura e a concepção de humanidade frente a crescente
construção e desconstrução do “universo interior e exterior”.
A multiplicidade de fontes juntamente com a autonomia do adepto
a construir sua religiosidade, cria um fenômeno que assume diversos termos
referentes a um mesmo processo: transformação da vida social em comunhão
com uma nova relação com o divino; uma transformação no olhar para
espiritualidade, que é refletido nas mais diversas construções de
identidades e de cultura. Mas esse processo, ainda está em formação.
3.2.2 O ethos neo-esô e as relações de consumo
Diferentemente da metrópole, o ethos neo-esô se dá de uma forma
diferente no interior do estado. As relações de consumo são outras, e os
estilos de vida, por mais semelhantes que são por praticamente compartilhar os
mesmos interesses, são diferentes numa cidade com um território menor.
Apesar de esse fenômeno ter se originado no fim do século XX, e com
isso, trazer elementos do movimento hippie e da contracultura, a respeito do
não consumismo, princípios ecológicos, sendo estes, elementos que contrariam
21 Olhar que adota vários ângulos, de modo a não seguir um padrão ao encarar os fenômenos
que devem ser vistos de diversas maneiras.
os interesses da ordem, muita coisa foi se modificando com o passar dos anos.
O neo-esoterismo assume um caráter semelhante, mas também particular.
Trabalhando em cima da noção de “prosperidade”, traz a ideia de que não há
pecado em querer viver financeiramente bem. Distante de contribuir com a
lógica do consumo, na qual prioriza a posse em detrimento de experiências e
valores não materiais, o ethos neo-esô não carrega em si uma visão de possuir
para se sentir bem, mas traz a possibilidade de se estar bem por ter tido a
oportunidade de simplesmente não se privar de algo por não ter condições
financeiras.
Mesmo existindo um forte mercado místico, no qual envolve livros, cds,
pedras, incensos, essências, estatuetas de deuses e seres elementais,
instrumentos para rituais, oficinas, cursos, serviços, entre muitos outros,
não podemos encarar esse fenômeno místico-religioso como mercadológico, ou
como uma “estratégia de marketing”. A questão é que o mercado pode
facilmente se apropriar de tudo aquilo que tiver contato, e assim produzir
mercadoria sobre a crença dos indivíduos. Mesmo que muitos adeptos possam cair
nessa “armadilha” e serem verdadeiros consumistas da Nova Era, ou se
declararem participantes por possuírem um livro de mandalas para colorir, ou
por usar os termos “gratidão”, ou “namastê” fora de contexto, uma
generalização do perfil dos adeptos pode ser extremamente perigosa.
Considerando um fenômeno que atinge basicamente adultos de classe média,
em sua maioria mulheres, vale ressaltar que existe uma ampla diferença entre
os frequentadores do circuito neo-esotérico mais jovens, e os mais velhos.
Dentro de uma faixa etária situada entre 20 e 35 anos, esses frequentadores
buscam experenciar, muito mais do que possuir, deixando para consumir mais
experiências, do que objetos em si. Deste modo, o nível de consumo se extende
preferencialmente a busca de conhecimento, vivências, viagens, e optando
sempre a menos pertences, menos luxo, e à uma forte redução do consumo para
abrir possibilidade de novas experiências, além de produzir muito menos lixo.
Diferentemente dos frequentadores mais velhos, (entre 35 e 50 anos) de outra
geração, nos quais carregam em si valores diferentes, e se preocupam mais com
conforto (“comer bem”, se “vestir bem”), além de possuírem um apreço maior
por decorar a casa e ter objetos que carregam um valor simbólico.
Não pretendo com isso, afirmar que neste contexto são os frequentadores
mais velhos os consumistas, e os que caem na “armadilha do mercado”. É
possível encontrar muitos jovens dentro desse mesmo contexto, que não deixam
de consumir produtos diferenciados por se identificar com os símbolos. A
questão é que a troca entre o “possuir” pelo “experienciar”, se dá
majoritariamente por jovens que estão inseridos neste processo, pelo fato de
buscarem novas descobertas, ensinamentos, e outros modos de vida que
contemplem mais seus anseios e demonstre que é possível viver de outro modo
diferente de sua tradição familiar, ou diante dos padrões expressos na
sociedade.
Mas os neo-esôs, tanto jovens quanto mais velhos, compartilham um estilo
de vida comum que busca um contato maior com a terra, a produção de lixo cada
vez menor, alimentação de produtos orgânicos, tratamentos de cura natural, a
adesão a certas crenças, e buscam frequentar lugares nos quais se familiarizam
mais com seus modos de viver. A procura de espaços que oferecem a venda de
produtos e serviços que compõem o mesmo universo, passa a produzir um vinculo
entre os frequentadores.
O consumo ultrapassa o valor utilitário dos bens, que assumem um papel
de dar sentido e construir um universo simbólico que corresponda aos valores
dos adeptos. Nesses espaços, os indivíduos utilizam-se do consumo como forma
de exteriorizar algo sobre si mesmos e sobre o que os cercam em suas relações
sociais. Os bens e as informações adquiridas, se tornam comunicadores sociais
que criam identidades e estabelecem relações dentro de dimensões culturais
específicas (DOUGLAS, ISHERWOOD, 2005). Frequentar os espaços que compõem o
circuito neo-esô, traz a possibilidade de encontrar tudo àquilo que
corresponde aos interesses dos frequentadores:
[...] não é apenas o tema ou o conteúdo específico de tais atividades que
fazem a diferença. O ambiente [...] assim como a atitude dos
participantes não deixam lugar a dúvidas: trata-se de pessoas cujas
preferências não se pautam pelo que é comumente anunciado nos cadernos de
lazer e cultura dos jornais.(MAGNANI, 1999, p. 100)
Em Araraquara podemos perceber esse fluxo de informações. Muitos espaços
que oferecem produtos e serviços neste contexto, criam uma “aura”
diferenciada na cidade que se amplia a cada dia. O aumento de feiras de
troca, de venda de produtos orgânicos, alimentos veganos, cosméticos naturais,
“abiosorventes” e coletores menstruais, lojas de produtos esotéricos,
compõem o circuito neo-esô da cidade. O surgimento de doulas22, terapeutas
florais, reikianos, instrutores de yoga, artesãos, artistas e músicos
constroem a tão almejada nova era, compartilhando ensinamentos que se expandem
a outros campos da vida social, produzindo um “mercado de bens simbólicos”
que carrega elementos de diversos contextos diferentes.
Como já expresso anteriormente, são as mulheres as protagonistas desse
processo, sendo possível perceber inclusive em Araraquara. O que as adeptas
chamam de “empreendedorismo ecofeminino” traz uma ressignificação do
conceito de “ser um empreendedor” e do papel da mulher. “Estamos mudando o
conceito de “empreendedora”. Não é mais uma forma de colaborar com a lógica
de produção capitalista, mas sim de ser capaz de se sustentar – sim,
precisamos nos alimentar e pagar as contas – de uma forma autônoma,
colaborando sempre que possível, com os pequenos produtores, e não
fortalecendo grandes empresários e a indústria farmacêutica”, declara uma das
jovens empreendedoras ecofemininas.
22 Diferente da função de médica, são mulheres que exercem a função de dar um auxílio
extra á gestantes que buscam um suporte para se prepararem física e mentalmente para o trabalho de parto, promovendo conforto e maior segurança.
Verdadeiras(os) militantes, constroem e reconstroem valores e princípios
através de suas ações, trazendo alto senso de coletividade, de preocupação
ambiental, social, de modo a ser altamente contrastante com os valores da
ordem. A procura de um aperfeiçoamento interior em comunhão com o universo
exterior, traz a ideia de ser possível uma transformação planetária, desde que
se trabalhe suas ações individuais em detrimento de todos.
3.2.3 Práticas religiosas e o consumo em Araraquara-SP
Quando não estão cobertos por faixas ou turbantes coloridos, os cabelos
levemente ondulados da artesã Maria Eduarda Senna Pierri, 22 anos, de
Araraquara, interior paulista, costumam receber elogios: “É meu ativador
de cachos”, dispara orgulhosa. [...] Maria iniciou sua jornada de beleza
sustentável há cerca de quatro anos, após uma viagem pelo interior de
Goiás, onde resgatou hábitos antigos, como tomar banho no rio e passar
dias sem xampus e sabonetes tradicionais. “O contato com a natureza foi
um despertar. Deixar tanta química escorrer pelo ralo da pia passou a não
fazer mais sentido”, explica ela, cujas receitas foram coletadas de
livros, blogs e relatos de avós e mães de amigas. “Pesquisei bastante
para, inclusive, atualizar as receitas dessas matriarcas que, tempos
atrás, só possuíam essa alternativa de cuidado. E funcionava”, diz.
(RODRIGUES, 2016)23
O “Empreendedorismo eco-feminino” não para de crescer. E com ele,
diversos projetos, trabalhos e serviços neo-esotéricos também englobam o
círculo da Nova Era na cidade. Os declarados sem religião produzem novas
formas de se relacionar com a espiritualidade, de modo a criar novos
vínculos religiosos entre os habitantes que compartilham os mesmos
interesses. Vale ressaltar que além desses vínculos, as relações de consumo
23 Trecho da matéria publicada na revista Bons fluídos (ed.204, março 2016) facilmente
encontrada no circuito em questão.
presentes assumem um caráter muito particular ao unificar princípios
religiosos com ecológicos, sociais e econômicos.
Compondo o circuito neo-esotérico de uma cidade do interior paulista,
estão presentes espaços de yoga, meditação e terapias naturais que além dos
serviços fixos prestados, realizam com certa frequência oficinas,
vivências, e rituais que trazem consigo temas referentes à saúde do corpo,
da mente, e do espírito. Estão inseridos, o Espaço Semente, Ganesha Yoga
Om, Ilumina, Fisyoga, que ao todo, oferecem aulas de yoga, terapia floral,
doulagem, reiki24, deeksha25, e além de oficinas de mandalas, respiração,
constelação familiar26, cosmetologia natural, com a união de outros
projetos. Nesse cenário encontra-se a venda de alimentos veganos e
orgânicos como a Padoca da Véia, Cozearte, Forno Vegano, Quitanda do Ipê,
entre outros que compõem o circuito, que juntamente com outros produtos,
acabam se tornando símbolos desse processo pela imagem transmitida. A
produção aumenta conforme o crescimento de adeptos a esse estilo de vida,
que como foi dito anteriormente, cria-se um ambiente capaz de oferecer além
dos produtos, a capacidade de se construir identidades e produzir sentido
diante dos anseios de cada frequentador. As constantes feiras realizadas
nas praças da cidade, fortalecem a transmissão de conhecimento e de trocas
de saberes, fortalecendo os vínculos e ressignificando valores do mercado,
além de disseminar os valores defendidos pelos sujeitos em questão.
Mas além desses espaços, ainda mantém um contato com a religiosidade,
de modo que, mesmo não pertencendo somente a um local, muitos frequentam
24 Sistema de cura natural japonesa, através da transferência de energia vital, podendo ser feita
localmente pela imposição das mãos sobre as zonas do corpo, visando o equilíbrio dos sete pontos energéticos corporais (chakras).
25 Técnica de transmissão de energia indiana, através da liberação sobre a parte superior da
cabeça na qual ativa áreas do cérebro que promovem uma ampliação da percepção
26 Método psicoterapêutico que reconhece a forte influência da consciência familiar que é capaz
de se sobressair sobre a consciência individual, sendo esta uma forma de tratamento de possíveis traumas, sofrimentos, e origem de doenças.
terreiros de umbanda, centros espíritas, institutos xamânicos, sendo estes,
formas de manter contato com a divindade que além de seus vínculos
individuais, possam se relacionar em espaços que praticam a devoção. Não é
incomum encontrar uma mesma frequentadora no terreiro, nos rituais do
sagrado feminino, e que se autodenomina bruxa. A questão é o não
pertencimento, que ao buscar identidade, cria relações de multipertença e
produz vínculos que atingem diversos campos da cidade, rompendo com os
valores tradicionais cristãos. Esse rompimento não impede de frequentarem
as festas juninas tradicionais de algumas igrejas da cidade, e passarem por
outras jogando as “águas de Oxalá27” na escadaria, no mês de dezembro. Há
uma essencialidade divina. Mesmo que assuma diversas formas e que pareçam
estar entrando em contradição, longe de estarem em conflito para esses
adeptos, elas criam novas formas de diálogo não expressas anteriormente.
Mesmo diante de um mesmo fenômeno, olhares diferentes adotam críticas
que não podem ser igualadas, fazendo-se necessário considerar o contexto de
cada visão. Mesmo com o grande alcance do neo-esoterismo dentro e fora de
Araraquara-SP, não podemos afirmar que o mesmo não é motivo de críticas
pelo fato de contribuírem com a falência das instituições. A questão é que
os processos culturais são dinâmicos, e com a religião não seria diferente.
Novos estilos de vida carecem de novas relações com a religiosidade. Desta
forma, é um grande equívoco considerar que escolhas religiosas não alteram
dimensões econômicas, políticas, sociais e culturais. Se há uma tendência
de rompimento total com valores tradicionais religiosos, impossível não
constatar o grande movimento que vem surgindo capaz de produzir fortes
transformações em outras esferas da vida social, desconstruindo com os
princípios da ordem vigente. A união de valores de contextos culturais
27 Segundo os informantes, é uma festa realizada por membros dos terreiros de candomblé,
que ocorre anualmente em homenagem à Oxalá, como forma de rito de renovação através de um cortejo das águas, símbolo primordial da vida.
distintos traz em si uma unificação de grupos distantes que passam a se
comunicar e construir novos sistemas.
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