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O ESTADO QUE MATA OS ECOS DA MARSELHESA: REPRESENTAÇÕES DE
REPRESENTAÇÃO DO ESTADO EM OS MISERÁVEIS, DE VICTOR HUGO,
SOB A INFLUÊNCIA ROMÂNTICA
Lara Cristina Veiga Bernardo
Mestranda pelo PPGHS UERJ FFP, bolsista pela CAPES
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma discussão entre História e Literatura sobre
as representações de repressão do Estado francês do século XIX a partir da obra literária Os
Miseráveis, de Victor Hugo. Como expressão artística, a obra apresenta caráter militante,
pois o autor, além de estar engajado no projeto literário romântico, possuía forte participação
política e social. O trabalho utilizará os métodos de História e Literatura para analisar a obra
literária proposta, de forma a contextualizar o intelectual e seu romance.
Palavras-chave
Os Miseráveis – Romantismo – Século XIX – Literatura – Repressão
Le Résumé
Le present traville ont pour objectif de faire une discussion entre l’Histoire et la Littérature
sur les representations de repression de l’État fraçais de le XIX siècle à partir de l’ouvrage
littéraire Les Miseráble, de Victor Hugo. Come forme d’art, l’ouvrage présente un caractère
militant, parce que l’auteur en plus d’être consacré dans le projet littéraire romantique, il’y a
possédait grand participation politique et social. Cet travaille utilisera les méthodes de
l’Histore e la Littérature pour analyser l’ouvrage littéraire suggérée pour contextuliser
l’intellectuel et son roman.
Les mots-clés
Les Miseráble – Le Romantisme – XIX Siècle – La Littérature – La Repression
1. Introdução
Este trabalho de pesquisa surgiu do anseio de entender a sociedade moderna e a
situação das classes mais pobres. É interessante perceber que, muito inspirados na
historiografia marxista, costumamos entender os processos de transformações históricas a
partir do que Marx chama de “luta de classes”. Quase sempre os livros didáticos solucionam
os problemas históricos com explicações ligadas a situação material das classes laboriosas,
nisso não se exclui a Revolução Francesa de 1789.
Por mais que não se queira admitir, e mesmo tomando como base argumentos mais
ligados à cultura, como o faz brilhantemente Roger Chartier em Origens Culturais da
Revolução Francesa1, não é possível desassociar o episódio da situação em que vivia a maior
parte do Terceiro Estado durante o Ancien Regime. Embora alguns autores, principalmente
aqueles ligados a tradição historiográfica marxista ortodoxa, por vezes tentem reduzir a
Revolução de 1789 a uma Revolução burguesa e urbana, como chega a fazer Eric Hobsbawm
em A Era das Revoluções: 1789 – 18482, em ambos os casos, é impossível ignorar a situação
das classes empobrecidas no século XVIII francês e a participação das mesmas durante o
processo revolucionário.
A partir de uma análise econômica, o próprio Hobsbawm considera que o sucesso da
Revolução teria se dado pela crise, que, por piorar a situação das classes laboriosas a teria
tornado mais apta para a revolução, indignada pela fome e pelo aumento de impostos.
O Terceiro Estado obteve sucesso, contra a resistência unificada do rei e das ordens
privilegiadas, porque representava não apenas as opiniões de uma minoria militante e instruída, mas também as de forças bem mais poderosas: os trabalhadores pobres
das cidades, e especialmente de Paris, e em suma, também, o campesinato
revolucionário. O que transformou uma limitada agitação reformista em uma
revolução foi o fato de que a conclamação dos Estados Gerais coincidiu com uma
profunda crise socioeconômica. (HOBSBAWM, 2006, p. 93)
1 CHARTIER, Roger. Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Unesp, 2009. 2 HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: 1789 – 1848. São Paulo, 2006.
No entanto, no século XIX, parte do antigo Terceiro Estado permaneceu com poucos
direitos, à mercê de repressões e da fome. Algumas perguntas norteiam este trabalho, a fim
de entender a participação e repressão das classes empobrecidas no século posterior à
Revolução Francesa. Como, no processo histórico revolucionário francês, entre suas
diferentes fases, as classes empobrecidas permaneceram miseráveis, sendo obrigadas a
resistirem por motins e revoltas urbanas e camponesas? Até que ponto as mudanças
estruturais foram impactantes para as classes empobrecidas após a Revolução Francesa?
Como a Literatura, enquanto expressão artística, pôde representar a repressão sofrida por
estas classes?
O Romantismo francês surge no século XIX como uma arte burguesa de crítica à
própria burguesia. A crítica ao racionalismo iluminista, voltando as atenções para os
sentimentos logo na sua primeira fase, a melancolia da segunda fase e a crítica social da
terceira, que identificou na sociedade francesa pós-revolucionária um “uma condenação
social”, como categorizou Victor Hugo no Prefácio da edição de 1862 de Os Miseráveis3.
Ao publicar Os Miseráveis, Hugo era tomado de otimismo por um futuro onde as
injustiças sociais que condena não mais existissem. O breve prefácio publicado remete a esta
ideia, sobre a qual, Mario Vargas Llosa destaca: “Estas linhas exaltam um ânimo otimista: a
literatura serve para combater o mal social, contribui para melhorar a história, é ferramenta
de um Progresso no qual o autor acredita cegamente”4. Como nem mesmo o Hugo poderia
prever, mais de 150 anos após a publicação, as palavras do prefácio ainda fazem sentido,
tornando o livro ainda necessário. Este trabalho poderia ser justificado simplesmente por
estas palavras.
Tant qu’il existera, par le fait des lois et des mœurs, une damnation sociale créant
artificiellement, en pleine civilisation, des enfers, et compliquant d’une fatalité
humaine la destinée qui est divine ; tant que les trois problèmes du siècle, la
dégradation de l’homme par le prolétariat, la déchéance de la femme par la faim,
l’atrophie de l’enfant par la nuit, ne seront pas résolus ; tant que, dans de certaines régions, l’asphyxie sociale sera possible ; en d’autres termes, et à un point de vue
3 HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Edigraf, 1952. 4 LLOSA, Mario Vargas. A Tentação do Impossível: Victor Hugo e Os Miseráveis. Rio de Janeiro, Objetiva,
2012, p. 110.
plus étendu encore, tant qu’il y aura sur la terre ignorance et misère, des livres de
la nature de celui-ci pourront ne pas être inutiles. (HUGO, 1862)5
2. Ecos da Marselhesa
Como um dos principais acontecimentos de ruptura mundial, a Revolução Francesa
de 1789 deixou marcas em toda a História posterior, sendo alvo de diferentes discussões e
teorias historiográficas. Em Ecos da Marselhesa: Dois Séculos Reveem a Revolução
Francesa6, Eric Hobsbawm entende que a Revolução teria começado em 1789 e se estendido
ao longo do século XIX, em diferentes etapas, a partir do que chama de “ecos”.
Para o autor, a Revolução em França pode ser classificada como a maior
acontecimento de impacto mundial, antes e depois do século XVIII. Tal ideia é expressa na
introdução de A Era das Revoluções, no qual se refere ao que chama de “dupla revolução”,
Industrial e Francesa.
As palavras são testemunhas que muitas vezes falam mais alto que os documentos.
Consideremos algumas palavras que foram inventadas, ou ganharam seus
significados modernos, substancialmente no período de 60 anos de que se trata este
livro. Palavras como “indústria”, “industrial”, “fábrica”, “classe média”, “classe
trabalhadora”, “capitalismo” e “socialismo”. Ou ainda “aristocracia” e “ferrovia”,
“liberal” e “conservador” como termos políticos, “nacionalidade”, “cientista” e
“engenheiro”, “proletariado” e “crise” (econômica). “Utilitário” e “estatística”,
“sociologia” e vários outros nomes das ciências modernas, “jornalismo” e
“ideologia”, todas elas cunhagens ou adaptações deste período. Como também “greve e pauperismo”. (HOBSBAWM, 2006, p. 15)
Ou ainda, de forma mais enfática, em Ecos da Marselhesa, ao citar Brauschweig, que
declara em 1848, sobre a Revolução Francesa: “Desde que surgiu, tem sido virtualmente o
5 HUGO, Victor. Les Miserable. La Bibliothèque électronique du Québec. Collection À tous les vents, vol. 648:
version 1.0. disponível em <http://beq.ebooksgratuits.com/vents/Hugo-miserables-1.pdf>.
Enquanto existir, por efeito das leis e dos costumes, uma condenação social, que produza infernos artificiais no
seio da civilização, e desvirtue com uma fatalidade humana o destino, que é inteiramente divinal; enquanto os
três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado – a perdição da mulher pela fome – a atrofia da criança pelas trevas – não forem resolvidos; enquanto, em certas regiões for coisa possível a asfixia
social; ou, noutros termos, e sob aspecto mais amplo – enquanto houver na terra ignorância e miséria, não serão
os livros como este, de certo inúteis. (tradução: HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Edigraf, 1952) 6 HOBSBAWM, Eric. Ecos da Marselhesa: Dois Séculos Reveem a Revolução Francesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
único objeto a ser considerado na cena da história mundial”7. Apesar dos exageros de uma
afirmação feita meio século após a Queda da Bastilha e em um momento de efervescência da
Primavera dos Povos, é possível destacar de fato a importância de 1789 para o século
posterior, no que diz respeito a transformações estruturais e inspirações, que inegavelmente,
permanecem até os dias de hoje.
Nos anos de 1830, que deram início a monarquia de Julho (1830 – 1848), a França
foi tomada por motins e revoltas urbanas. Embora décadas após o fim do Ancien Regime, os
revoltosos de 1830, bem como os de 1848, ainda se identificavam e se inspiravam na
Revolução que pôs fim ao absolutismo francês, de forma que “Tocqueville via a Revolução
de 1830 como a segunda edição, mais bem sucedida, de 1789”8.
Portanto, podemos assumir que as pessoas no século XIX – pelo menos as pessoas
letradas – consideravam a Revolução Francesa sumamente importante, um
acontecimento, ou uma série deles, de tamanho, escala e impactos sem precedentes.
Essa consideração não se devia apenas às consequências históricas enormes que
pareciam óbvias aos observadores, mas também à natureza espetacular e
peculiarmente dramática daquilo que aconteceu na França, e através da França, na Europa e ainda além, nos anos que sucederam 1789. (HOBSBAWM, 1995, pp. 20-
21)
Tal qual na política, a Literatura, enquanto expressão artística, por vezes foi resposta
a este “eco”, compartilhando de ideais revolucionários e representando os acontecimentos
históricos, desde os atos revolucionários, até a forma de vida das classes empobrecidas e as
possibilidades narrativas cotidianas, como aponta Carlo Guinzburg em A Micro-História e
Outros Ensaios9.
3. O infinito romântico
O Romantismo, enquanto escola literária, se pretendia grandioso em diferentes
pontos. Tal como o ideal de progresso oitocentista, a sede pelo infinito pode ser destacada
como uma das principais características deste estilo. Nas palavras de J. Guinsburg, “A
7 Ibidem, p. 20. 8 Ibidem, p. 30. 9 GUINZBURG, Carlos; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. São
Paulo: Difel, 1989.
categoria psicológica do Romantismo é o sentimento como objeto da ação interior do sujeito,
que excede a condição de simples estado afetivo: a intimidade, a espiritualidade e a aspiração
do infinito, na interpretação tardia de Baudelaire”10.
Para Victor Hugo, a sede pelo infinito se materializaram de algumas principais
formas: enquanto ideal de progresso eterno; Deus como infinito e perdão ilimitado de toda
criatura. A ideia de progresso, já discutida neste trabalho, está presente em seus principais
romances, tais como Os Miseráveis e O último dia de um condenado. Em ambos os casos, o
progresso da civilização é esperado e profetizado, como um futuro quase inevitável. Suas
obras, aliadas à sua participação política, possuíram um caráter militante para seu tempo,
denunciando as injustiças e proclamando a justiça.
No ano em que foi publicado, Os Miseráveis gerou enorme repercussão. O escritor e
político Alphonse Lamartine, em crítica ao romance, declarou “Os Miseráveis não são um
belo livro e, além disso, são uma má ação.”11, e mais:
O livro é perigoso porque o perigo supremo em relação à sociabilidade consiste em
que, se o excesso seduz o ideal, ele o perverte. Apaixona o homem pouco
inteligente pelo impossível: a mais terrível e homicida das paixões que se pode
infundir nas massas é a paixão do impossível. Porque tudo é impossível nas
aspirações de Os Miseráveis, e a primeira dessas impossibilidades é o
desaparecimento de todas as nossas misérias. (LLOSA, cit., 2012, p. 167)
Em A tentação do impossível: Victor Hugo e Os Miseráveis12, Llosa faz uma crítica
às pretensões infinitas de Victor Hugo, que escreveu um romance grandiosos em diferentes
áreas. Grandioso em tamanho, em conteúdo, em tramas, em infinitude, em progressismo, em
impacto literário, no que pretendia ser e no que se tornou. Em resposta à Lamartine, em 24
de junho de 1862, o autor resume boa parte de suas ideias e pretensões:
Se o radical é o ideal, sim, sou radical. [...] Sim, uma sociedade que admite a
miséria, sim, uma religião que admite o inferno, sim, uma humanidade que admite
a guerra me parecem sociedade, religião e humanidade inferiores, e é na direção da
sociedade do alto, da humanidade do alto e da religião do alto que inclino:
sociedade sem rei, humanidade sem fronteiras, religião sem livro. Sim, combato o
10 GUINSBURG, J. O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978, p. 52. 11 LAMARTINE, cit. WINOCK, Michel. Victor Hugo na arena política. Rio de Janeiro: Difel, 2008, p. 69. 12 LLOSA, Mario Vargas. A Tentação do Impossível: Victor Hugo e Os Miseráveis. Rio de Janeiro, Objetiva,
2012
padre que vende a mentira e o juiz que distribui a injustiça. Universalizar a
propriedade (o que é o contrário de aboli-la), suprimindo o parasitismo, ou seja,
chegar a essa meta: todo homem proprietário e nenhum senhor, esta é, para mim, a
verdadeira economia social e política. A meta está longe. Será um motivo para não
se encaminhar a ela: Abrevio e resumo. Sim, enquanto for permitido ao homem
querer, quero destruir a fatalidade humana; condeno a escravidão, enxoto a miséria,
ensino à ignorância, trato a doença, clareio a noite, odeio o ódio. Eis o que sou, e
por isso fiz Os Miseráveis. Em meu pensamento, Os Miseráveis nada mais são que
um livro tendo a fraternidade como base e progresso como cimo. (LLOSA, cit.
2012, pp. 69-70)
O Romantismo se pretende falar do progresso e da História. No século da
historiografia enquanto ciência, romancistas como Balzac se compararam aos historiadores,
alegando para suas obras um caráter historicista, a partir de uma abordagem da vida cotidiana
e das misérias, como alegavam não fazer os historiadores do período. O próprio Balzac, em
tentativa de parecer humilde declara: “La Societé française allait être l’historien, je ne devais
être que le secrétaire”13, e continua em seguida, já menos modesto: “Peut-être pouvair-je
arriver à écrire l’histoire oubliée par tant d’historiens, celle des moeurs”14.
De maneira análoga à Balzac, Victor Hugo tem a pretensão de que seu romance, Os
Miseráveis, embora ficcional e entendido assim pelo mesmo, representasse uma narrativa
histórica, fundamentada em fatos que o mesmo presenciou, tais como a situação de
miserabilidade das classes pobres de Paris e as revoltas urbanas de 1832. O romance
representa, para o autor, um testemunho da sua conversão de monarquista em republicano,
católico ortodoxo, em anticlericalista. É ao mesmo tempo que um “tratado teológico”15 e uma
ficção, um manifesto político que dialogou diretamente com as causas, problemas e
acontecimentos da França do século XIX. O texto de mais de mil páginas, que demorou quase
13 Cit. GUINZBURG, Carlos; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. São
Paulo: Difel, 1989, p. 190.
“A sociedade francesa seria o historiador, eu o secretário.” 14 Ibidem. “Talvez eu pudessem vir a escrever a história esquecida por tantos historiadores, a dos costumes.” 15 Victor Hugo entendia que sua obra Os Miseráveis, era mais que um romance, um tratado teológico, no qual
profetiza uma sociedade mais justa e o perdão supremo. O autor, partindo de uma perspectiva nada ortodoxa,
acreditava na misericórdia suprema, chegando a crer no perdão do Diabo. Como afirma na citação extraída da carta à Lamartine “uma religião que admite o inferno” não faz sentido para ele, que toma como premissa a ideia
de um Deus bom e misericordioso. Hugo declara estas pretensões teológicas no Prefacie Philosofique, que
nunca chegou a terminar, optando pelo prefácio mais curto. Mario Vargas Llosa trabalha com este documento
em A tentação do impossível, em especial no capítulo intitulado “Das alturas do céu”, no qual desenvolve esta
ideia do romancista francês.
vinte anos para ser escrito, talvez represente um testemunho não somente das percepções de
Hugo, mas de um século de profundas e estruturais mudanças, as quais o autor presenciou.
Depuis deus ans, nous l’avons dit, Paris avait vu plus d’une insurrection. Hors des
quartiers insurgés, rien n’est d’ordinaire plus étrangement calme que la
physionomie de Paris pendant une émeute. Paris s’accoutume très vite à tout, — ce n’est qu’une émeute, — et Paris a tant d’affaires qu’il ne se dérange pas pour
si peu. Ces villes colossales peuvent seules donner de tels spectacles. […]
Cette fois, cependant, dans la prise d’armes du 5 juin 1832, la grande ville sentit
quelque chose qui était peut-être plus fort qu’elle. Elle eut peur. On vit partout,
dans les quartiers les plus lointains et les plus « désintéressés », les portes, les
fenêtres et les volets fermés en plein jour. Les courageux s’armèrent, les poltrons
se cachèrent. Le passant insouciant et affairé disparut. Beaucoup de rues étaient
vides comme à quatre heures du matin. (HUGO, 1862, pp. 1376 – 1377)16
Embora se tratando de obras fictícias, a Literatura apresenta representações da
realidade, na visão de Roger Chartier17, e na visão de Carlo Guizburg18, possibilidades
históricas e verossimilhanças com a realidade, preenchendo as lacunas que a historiografia
não pode preencher por não encontrar vestígios suficientes. Enquanto expressão artística, a
literatura tem liberdade para preencher estas lacunas com invenção, romance, emoção, vida
cotidiana, histórias possíveis, tal como o faz Machado de Assis, de acordo com Sidney
Chaulhoub, que o considera “intérprete incansável do discurso político possível”19.
O mesmo se pode dizer sobre Victor Hugo, que, como intérprete das relações de poder
da França do século XIX, expressou em seus textos discursos políticos e sociais possíveis,
ou como diria Guinzburg, verossímeis. Por vezes, é designado à Baudelaire o título de
16 HUGO, Victor. Les Miseráble. Un texte du domaine public. Une édition libre. Bibeook, disponível em <
http://www.bibebook.com/files/ebook/libre/V2/hugo_victor_-_les_miserables.pdf>
Havia dois anos, como já dissemos, que Paris vira mais de uma revolta. Além dos bairros insurgidos, não há
coisa nenhuma de ordinário mais estranhamente sossegada do que a fisionomia de Paris durante uma revolta.
Paris acostuma-se muito depressa a tudo. Só as cidades colossais podem oferecer semelhantes espetáculos. [...]
Desta vez, contudo, no levante de 5 de junho de 1832, sentiu a cidade alguma coisa que lhe era superior e de
que teve medo. Viram-se por toda a parte, ainda nos bairros mais afastados, as portas, as janelas e os postigos
fechados durante o dia. Muitas das ruas estavam desertas como às quatro horas da manhã. (tradução: HUGO,
Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Edigraf, 1952, pp. 681 – 682) 17 CHARTIER, Roger. O Mundo como representações. Revista das Revistas: Estudos Avançados, vol. 11, n. 5,
1991. 18 GUINZBURG, Carlos; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. São
Paulo: Difel, 1989. 19 CHALHOUB, Sindey. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letas, p. 62.
“intérprete da vida moderna”20. Poderia ser designado à Hugo o título de “intérprete da vida
miserável”, que viu, tocou e representou em seus romances e poesias. Diálogos como aqueles
entre Javert e Jean Valjean21 poderiam de fato ter acontecido. O autor preenche as lacunas
entre os acontecimentos históricos (galés, revoltas de 1832, prisões parisienses, relações de
poder entre polícia e prisioneiros, repressão nas barricadas) com diálogos e sentimentos, tal
como Natalie Zemon Davis acredita ter feito Fellini22.
O literato é capaz de fazer análises estruturais de relações de poder a partir de
possibilidades reais e discursivas. Tal capacidade se dá a partir de uma observação histórica
somada à própria atuação sócio-política do autor, que como sujeito histórico, não está
descontextualizado de seu tempo e território. Assim como Machado de Assis faz uma
descrição estrutural da dominação paternalista do Brasil do século XIX, é possível identificar
em Victor Hugo descrições da opressão do Estado francês da primeira metade do século XIX
contra os pobres revoltosos.
4. Os Estado que mata e reprime os pobres
Embora este trabalho não se refira ao romance O último dia de um condenado, é
preciso iniciar este ponto com a primeira frase do romance “Condenado à morte!”23. Em
meados do século XIX, é provável que esta fosse uma das frases que mais incomodavam
Victor Hugo. O romance de 1829, mais que uma ficção, é um manifesto, que resume boa
parte da luta política do autor, que indignado com uma justiça humana incapaz do perdão,
poderia condenar um sujeito ao fim existencial.
Somando voz aos ecos de 1789, Victor Hugo fez de sua arte parte deste eco, voz de
tantas vozes, espaço para defender a igualdade, ou como Hilário Correia escreveu em 1957,
20 BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994. 21 Personagens de Os Miseráveis. 22 GUINZBURG, Carlos; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. São
Paulo: Difel, 1989. 23 HUGO, Victor. O último dia de um condenado, In: Obras completas. Volume XV, São Paulo: Editora das
Américas, p. 377.
despertar “consciências”24. E é possível enxergar, em especial nas páginas que Lamartine
considerou como perigosas, os impactos deixados pela Revolução Francesa, bem como os
fragmentos de 1830.
Embora não seja exatamente uma literatura de testemunho, Os Miseráveis representa,
em certa medida, o testemunho das revoltas urbanas, que ainda inspiradas na Revolução
Francesa, atingiram Paris na primeira metade do século XIX. Os personagens criados podem
ser classificados como representações de figuras históricas reais, bem como suas questões e
demandas são historicamente contextualizadas.
Tal qual a pena de morte, as relações opressivas entre Estado e populações
empobrecidas são um assunto recorrente na literatura de Victor Hugo. Em O último dia de
um condenado, este se encarna como os guardas, o carrasco, a prisão em si. Em Os
Miseráveis, este se encarna no personagem Javert, nas galés, no subsolo das prisões
parisienses e nos soldados das barricadas.
Em diversos momentos do romance, o autor trata do sistema prisional francês do
século XIX, tendo um de seus principais protagonistas um prisioneiro de galé, condenado a
um total de 19 anos de prisão sob pena de trabalho forçado. Identifica-se logo no início do
romance, a exclusão sofrida pelos prisioneiros e ex-detentos na França daquele período. A
historiadora Michelle Perrot, em Os Excluídos da História: operários, mulheres e
prisioneiros25, aponta que no século XIX o sistema penitenciário da França pós-
revolucionária era extremamente duro, piorando consideravelmente após as revoltas de 1830
e 1848. De acordo com a mesma, em 1854 foi criada uma lei que condena ao exílio perpétuo
todos aqueles que tivessem penas acima de oito anos, aumentando consideravelmente o
número de condenações deste gênero.
Pela lei de 30 de maio de 1854, ele opta resolutamente pela deportação: os trabalhos
forçados serão feitos em “colônias penais transatlânticas”; os forçados libertos,
com a expiração do prazo da sentença, deverão residir nas ditas colônias por um
tempo igual ao de sua condenação, se tiver sido inferior a oito anos, e por toda a sua vida, se exceder a esse tempo. Logo se vê um salto no número de condenações
24Ibidem, Nota preliminar. 25 PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2017.
com mais de oito anos, destinadas a ativar a deportação definitiva: de 55% entre
1836 e 1845, elas passam para 66% entre 1855 e 1860. (PERROT, 2017, p. 280)
A fim de citar detalhes sobre o sistema prisional francês e a repressão do Estado,
Perrot recorre à Hugo, que dentre uma das descrições mais emblemáticas de Os Miseráveis,
cita as prisões de Paris e o calão, como linguagem dos guetos e celas, dos ladrões, meninos
de rua, mendigos e meretrizes. Se referindo ao literato, Perrot destaca “Pois, mais que tudo,
o silêncio e a solidão suscitaram o pavor. Contra eles, para manter a comunicação a qualquer
preço, os prisioneiros inventaram expedientes: uma gíria dissimuladora, ‘o verbo convertido
em forçado’ (Victor Hugo)”26. É o que, em Os Miseráveis o autor chama de “l’argot”,
“calão”.
Qu’est-ce que l’argot ? C’est tout à la fois la nation et l’idiome ; c’est le vol sous
ses deux espèces, peuple et langue. [...]
Depuis, deux puissants romanciers, dont l’un est un profond observateur du cœur
humain, l’autre un intrépide ami du peuple, Balzac et Eugène Süe, ayant fait parler
des bandits dans leur langue naturelle comme l’avait fait en 1828 l’auteur du Dernier jour d’un condamné, les mêmes réclamations se sont élevées. On a répété
: ― Que nous veulent les écrivains avec ce révoltant patois ? l’argot est odieux!
l’argot fait frémir! (HUGO, 1862, pp. 1267 – 1268)27
O que está no cerne da discussão de Hugo, são as injustiças da lei, em especial contra
os pobres, ditos miseráveis. Perrot aponta que as principais vítimas do sistema prisional
francês eram os pobres, que lotavam as prisões como párias. De acordo com a autora, a
maioria das condenações do sistema penitenciário eram por violações a propriedade,
enquanto que as violação à vida eram mais facilmente perdoadas. “Mas enfim aqueles que as
evidências acusam: o pobre e, particularmente, o operário. Eles enchem as prisões a tal ponto
que passam a ser concebidas para eles, em função do seu nível econômico e cultural”28.
26 Ibidem, p. 256 – 257. 27 O que é o calão? É ao mesmo tempo a nação e o idioma; é o roubo sob duas espécies: o povo e a língua. [...]
Depois, dois poderosos romancistas, dos quais um é um profundo observador do coração humano, e outro
intrépido amigo do povo, Balzac e Eugênio Sue, tendo apresentado ladrões falando a sua língua natural, como fizera em 1823 o autor do Último dia de um condenado, viram erguer-se as mesmas reclamações. Repetiu-se:
O que nos querem os escritores com este repugnante dialeto? O calão é odioso! O calão faz tremer! (tradução:
HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Edigraf, 1952, p. 639) 28 PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2017, p. 275.
Nas barricadas de Hugo, é possível perceber esta tentativa de extermínio das classes
mais pobres e repressão dura a qualquer tipo de revolta comandada por estas classes. O
cenário dos últimos momentos do romance se desenha com dois lados claramente distintos,
um representado por trabalhadores, mendigos, estudantes e ladrões e outro pelo estado, que
oprime cruelmente e mata, sem distinções nem mesmo de idade, atirando em crianças e
mulheres como em uma guerra.
Ceux qui ont gardé quelque souvenir de cette époque déjà lointaine savent que la
garde nationale de la banlieue était vaillante contre les insurrections. Elle fut
particulièrement acharnée et intrépide aux journées de juin 1832. Tel bon cabaretier de Pantin, des Vertus ou de la Cunette, dont l’émeute faisait chômer
« l’établissement », devenait léonin en voyant sa salle de danse déserte, et se faisait
tuer pour sauver l’ordre représenté par la guinguette. Dans ce temps à la fois
bourgeois et héroïque, en présence des idées qui avaient leurs chevaliers, les
intérêts avaient leurs paladins. (HUGO, 1862, p. 1564)29
6. Considerações finais
É possível aproximar historiografia e literatura, visto que ambas lidam com ficção e
realidade, se ancorando, especialmente no caso do romantismo, nas realidades históricas e
materiais, que não só inspiraram, mas constituíram as tramas dos romances. No entanto, é
preciso ressaltar que, enquanto o objetivo da historiografia é ser científica e “realista”, o da
literatura é expressar, a partir da arte, as relações sociais e históricas reais. Ambas se utilizam
de fragmentos do passado e presente para construção de narrativas, no entanto, a literatura
não possui as pretensões de cientificidade que a historiografia possui, podendo criar
personagens e tramas fictícias, que preencham as lacunas que os fragmentos do passado
deixaram.
“Faz parte da miséria do homem o não poder conhecer mais do que fragmentos daquilo que já passou, mesmo no seu pequeno mundo; e faz parte de sua nobreza e de sua força o
poder de conjecturar para além daquilo que pode saber. A história quando recorre ao
verissímil , não faz mais do que favorecer ou estimular essa tendência. Então, por um
29 Os que têm conservado alguma lembrança desta época já afastada, sabem que a guarda nacional era valente contra as insurreições. Nas jornadas de junho de 1832 foi singularmente intrépida e encarniçada. Tal ou tal
taberneiro de Pátio, das Vertus ou da Cunett, a quem a revolta deixava deserto o “estabelecimento” tornava-se
leonino vendo a sua sala de dança abandonada, e fazia-se matar para salvar a ordem representada pela baiuca.
Os interesses, naquele tempo tinham também os seus paladinos. ((tradução: HUGO, Victor. Os Miseráveis. São
Paulo: Edigraf, 1952, p. 780)
momento, deixa de narrar, porque a narrativa não é naquele caso um instrumento bom, e
adota em dez dele o instrumento da indução” (GUINSBURG, 1989, pp. 197-198)
É possível identificar em Os Miseráveis, de Victor Hugo, verossimilhanças com a
realidade e possibilidades históricas que não podem ser ignoradas, em especial enquanto
livros como esse ainda forem “necessários”. Em tempos sombrios como os contemporâneos
a este trabalho, se torna importante recorrer àqueles que tiveram esperança em meio às trevas,
e fizeram da sua vida e sua arte uma forma de resistência. A última frase de O Último dia de
um condenado, expressa brilhante e resumidamente aquilo que ainda hoje é vivido, e sobre o
que é necessário refletir: “Ah! Miseráveis! Parece-me que estão subindo as escadas...”30.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
CHALHOUB, Sindey. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letas.
CHARTIER, Roger. O Mundo como representações. Revista das Revistas: Estudos
Avançados, vol. 11, n. 5, 1991.
LLOSA, Mario Vargas. A Tentação do Impossível: Victor Hugo e Os Miseráveis. Rio de
Janeiro, Objetiva, 2012.
GUINSBURG, J. O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
GUINZBURG, Carlos; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A Micro-História e outros
ensaios. São Paulo: Difel, 1989.
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: 1789 – 1848. São Paulo, 2006.
30 HUGO, Victor. O último dia de um condenado, In: Obras completas. Volume XV, São Paulo: Editora das
Américas, p. 476.
HOBSBAWM, Eric. Ecos da Marselhesa: Dois Séculos Reveem a Revolução Francesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
HUGO, Victor. Les Miseráble. Un texte du domaine public. Une édition libre. Bibeook,
disponível em < http://www.bibebook.com/files/ebook/libre/V2/hugo_victor_-
_les_miserables.pdf>
HUGO, Victor. Les Miserable. La Bibliothèque électronique du Québec. Collection À tous
les vents, vol. 648: version 1.0. disponível em <http://beq.ebooksgratuits.com/vents/Hugo-
miserables-1.pdf>.
HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Edigraf, 1952.
HUGO, Victor. O último dia de um condenado, In: Obras completas. Volume XV, São Paulo:
Editora das Américas.
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2017.
WINOCK, Michel. Victor Hugo na arena política. Rio de Janeiro: Difel, 2008.
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