View
224
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O MASCULINO UNIVERSAL COMO CATEGORIA PARA ESTUDOS
EMPÍRICOS SOBRE A PRODUÇÃO CRIMINOLÓGICA-CRÍTICA
BRASILEIRA
Eduarda Toscani Gindri1
Resumo: O intercâmbio entre a criminologia crítica brasileira e os campos do feminismo, estudos
sobre racismo e colonialidade vem produzindo interpelações importantes sobre a produção de
conhecimento em torno do funcionamento do sistema penal. Parte significante das críticas
feministas à criminologia crítica pontuam que o campo negligencia problematizações de gênero e
raça, produzindo conhecimento predominantemente sobre homens que aparecem de forma
essencializada. São questões que nos colocam na urgência de uma reflexão profunda sobre os
limites do que produzimos até agora e motivam a construção de ferramentas teóricas e
metodológicas para compreender e deslocar nossas produções na criminologia crítica desse suposto
masculino universal hegemônico. Diante disso, esse trabalho é um esforço teórico de construir a
categoria do masculino universal levando em conta que trata-se de um ideal de sujeito construído na
modernidade, localizado e atravessado por questões de raça, gênero, classe e sexualidade. Trata-se
de um trabalho prévio ao projeto de pesquisa para a minha dissertação de mestrado “As disputas em
torno do masculino universal como doxa do campo da Revista Discursos Sediciosos - Crime,
Direito e Sociedade”.
Palavras-chave: Masculinidades, Epistemologia feminista, Criminologia crítica
Introdução
Embora presentes desde a década de 1970, os debates sobre gênero e raça na criminologia,
pelo que demonstra a literatura internacional, ocuparam (talvez ainda ocupem) um espaço às
margens do campo acadêmico, como um “puxadinho” onde se fala sobre mulheres e racismo, sem
incorporar de fato essas relações como estruturais dos sistemas de controle, produzindo resultados
singulares em cada situação. No Brasil, a criminologia da reação social é apropriada em conjunto
com o enfoque marxista num esforço coletivo de criminólogos e criminólogas latino-americanos
para entender a realidade periférica local. Mesmo que nos países centrais esses temas estivessem em
disputa e que na América Latina, os mesmos temas estivessem sendo levantados por autores e
autoras de outras áreas, os exemplos de confrontação de gênero e raça com a criminologia crítica só
são marcantes no Brasil a partir do final da década de 1990 e com maior evidência nos anos 2000’.
1 Mestranda no Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Graduada em Direito pelo Centro
Universitário Franciscano e em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria. Brasileira,
residente em Brasília, DF. E-mail para contato: etoscanigindri@gmail.com
2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Junto com esse enfrentamento vem também uma gama de críticas teóricas ao próprio campo
da criminologia brasileira. Esse trabalho é uma proposta de entrada de pesquisa possível para
explorar empiricamente essa crítica. Se confirmamos que o campo da criminologia crítica produz
apagamentos de raça e gênero, e assim, produz teoria enviesada, precisamos evidenciar esse
problema e compreender como essas estruturas se reproduzem. Minha hipótese é de que o
incômodo dos pesquisadores de raça e gênero na criminologia crítica convergem na ideia de que há
uma masculinidade hegemônica que molda o campo - como modelo de quem produz, sobre o que
produz e como produz o conhecimento sobre a questão criminal.
O presente artigo ocupa-se, portanto, em trazer interpelações que ajudem a construir essa
categoria de análise da masculinidade hegemônica universal para que possa ser utilizada em estudos
de crítica epistemológica empiricamente orientada sobre os campos acadêmicos, aqui direcionada
para o campo da criminologia crítica brasileira. A reflexão aliada entre os marcos da epistemologia
feminista e da decolonialidade permite afirmar que o conhecimento moderno é fundado a partir de
uma matriz epistemológica masculina e universalizante.
1 Que críticas são essas? O enfoque de raça e gênero na criminologia crítica
Autores e autoras da criminologia crítica, ao incorporarem questões de raça e gênero,
problematizam a primazia da leitura de classe feita pelo campo. Carmen Hein Campos é uma das
primeiras a produzir um discurso crítico a partir da visão de gênero: “se por um lado, a
Criminologia Crítica revela a realidade oculta do sistema penal, por outro, as criminólogas
feministas demonstram que a Criminologia Crítica não incorporou a crítica feminista ao Direito e à
Ciência” (CAMPOS, 1999, p. 15).
Além dela, Vera Regina Pereira de Andrade, em 1996 introduz na pesquisa “Sistema da
Justiça Penal e violência sexual contra as mulheres: análise de julgamento de crimes de estupro em
Florianópolis na década de oitenta” publicada em 1999, o paradigma de gênero como lente de
leitura para o sistema de justiça criminal. Para a autora, a criminologia crítica brasileira possui três
grandes momentos: a) passagem do paradigma etiológico para o da reação social na década de
1960; b) enfoque materialista dessa criminologia na década de 1970; c) o quase simultâneo
desenvolvimento da criminologia feminista (ANDRADE, 2012). Assim, segundo ela, o feminismo
é um dos “sujeitos monumentais” que aparecem como fonte de um saber-poder cujo “impacto
(científico e político) foi profundo no campo da criminologia, com seu universo até então
completamente prisioneiro do androcentrismo” (ANDRADE, 2012, p. 127). Soraia da Rosa Mendes
3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
também aponta essa crítica: “o discurso competente que oculta a mulher como sujeito no campo da
criminologia não é campo reservado a esta ou àquela corrente. De etiológicos a críticos, todos
incorrem em alguma forma de sexismo” (MENDES, 2014, p. 161) .
Para Campos, as mulheres e seus problemas eram invisíveis aos olhos dos criminólogos e
criminólogas brasileiros até que o movimento feminista, principalmente depois da publicação da
Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (9.099/95), começou a pautar uma agenda
criminalizadora contra as formas de violência destinadas às mulheres. Esse fenômeno tirou da
inércia os agentes do campo da criminologia, majoritariamente homens, ainda que seu movimento
fosse para acusar as feministas de estimular a repressão penal e estarem vinculadas a movimentos
de lei e ordem ou de esquerda punitiva campos. Além disso, ela destaca que a emergência de
mulheres no campo da criminologia crítica ampliou seu objeto “cujo foco no surgimento do
capitalismo e nas mudanças por este efetuadas, descuidou-se da gênese da opressão das mulheres,
que não poderia ser reduzida à sociedade capitalista” (CAMPOS, 2013, p. 215).
Já Ana Flauzina pauta que a criminologia latino-americana vive um momento decisivo, no
qual ou continua tratando a questão racial como “apêndice da estrutura dos sistemas penais para o
conforto de nossas elites”, ou desloca o racismo para o centro da análise, o que “atinge não somente
os aparelhos repressivos, mas a própria narrativa da formação dos estados e tudo o que disso
decorre” (FLAUZINA, 2008, p. 45). Para a autora, a criminologia crítica brasileira tem ignorado o
genocídio da população negra e demonstra uma dificuldade em nomear o sistema penal como
racista por que está inserida num contexto de democracia racial. Assim, a acusação categórica ao
sistema é diluída através da explicação por outras assimetrias: “a narrativa autorizada para a análise
do sistema penal pôde se valer do negro como personagem, mas não do racismo como fundamento”
(FLAUZINA, 2008, p. 52). Além disso, a autora aponta que a criminologia vive uma relação
conflituosa com os movimentos sociais “em que a solidariedade e a troca profícua cedem facilmente
espaço para uma espécie de tutoria arrogante dos caminhos a serem trilhados e de censura a
qualquer tentativa que transborde fora dos horizontes do ideal a ser alcançado” (FLAUZINA, 2016,
p. 95). Nesse sentido, fala de como o campo da criminologia tem o costume de fazer prescrições
sobre como os movimentos devem agir e rejeitar qualquer estratégia que não esteja no horizonte
que o campo considera legítimo, tal como é o caso de reivindicações por respostas penais, através
das quais as feministas (e outros movimentos) são taxadas como “o sinal mais contundente do
apocalipse criminológico” (FLAUZINA, 2016, p. 102).
4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Outras autoras também destacam a cegueira de uma abordagem interseccional da
criminologia “Em que pese as importantes contribuições feministas ao debate criminológico, a
ausência do racismo enquanto fator central na análise das relações das mulheres com o sistema de
justiça deve ser severamente denunciada”, aponta Naila Franklin (2016, p. 642). Camilla Gomes,
por sua vez, diz:
O desenvolvimento das chamadas criminologias feministas no Brasil tem buscado a
inserção do paradigma de gênero na análise das mulheres como criminosas, como vítimas e
como sujeitos de conhecimento da criminologia e alcançado alguns avanços para essa
ciência até então dominada por homens. Mas mesmo a criminologia produzida sob o
paradigma de gênero não é completa e abrangente o suficiente, porque, até aqui, pouco tem
levado em conta a necessária interseccionalidade, considerando outros sistemas de opressão
que funcionam ao lado da opressão de gênero (raça, classe, orientação sexual, capacidade).
E me incluo nessa falha, nessa produção vazia de conteúdos outros que não o gênero, tendo
produzido trabalhos que procuraram criticar a ausência do reconhecimento de que o direito
tem gênero; reproduzindo, no entanto, os discursos hegemônicos do que vou chamar aqui
de feminismo branco essencialista” (GOMES, 2016, p. 19).
Para Freitas, mesmo as constatações do perfil racializado da seletividade não foram
suficientes para que fosse feito “um debate sério sobre as questões raciais e sistema penal, nem para
promover uma qualificada aproximação entre a criminologia crítica e as agendas do movimento
negro e suas denúncias sobre o caráter estrutural do racismo na sociedade brasileira” (FREITAS,
2016, p. 491). Segundo o pesquisador, ainda que a criminologia denunciasse os efeitos do racismo,
não teve interesse em investigar radicalmente como a estrutura do sistema é dada através dele. Não
se trata de rejeitar os trabalhos de autores pioneiros, mas ir além: “o máximo que se tem alcançado
na produção da criminologia é a repetição – enfadonha – de que são negros os corpos caídos no
chão, sem que se faça sobre esta frase qualquer reflexão mais importante ou significativa.”
(FREITAS, 2016, p. 493). É preciso ainda considerar “como as posições (raciais, de classe e de
gênero) dos(as) pesquisadores(as) têm influenciado para que a categoria raça ou gênero sigam
ausentes das escolhas teóricas e metodológicas da criminologia crítica “ (FREITAS, 2016, p. 494).
2 Por que discutir o masculino universal? Um debate a partir da epistemologia feminista e dos
estudos sobre colonialidade
O ideário hegemônico de o que é o conhecimento é fruto de um processo de construção de
significados atrelado à consolidação do que chama-se de modernidade: um conceito em disputa por
tradições do pensamento humano. Harding, no marco da epistemologia feminista, pensa a
modernidade como emergência de uma estrutura social, instituições econômicas, políticas,
5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
religiosas, educacionais, da separação das esferas pública e privada, e pela emergência de um
conjunto de filosofias que pregam a existência de um ideal de homem racional, primam pelas
grandes narrativas universalistas e pela cientificidade objetiva (HARDING, 2008).
Segundo os estudos sobre colonialidade, a modernidade faz nascer uma geopolítica do
conhecimento e do poder, cuja origem está entre os séculos XVI e XVIII (NASCIMENTO, 2010).
Segundo Nascimento, a modernidade é marcada pela noção de Homem, “fundamento da ordem e do
conhecimento do mundo, encontrando na racionalidade o motor das ideias de desenvolvimento,
progresso, melhoramento, superação que se tornaria típica da presença dos seres humanos na ordem
social”(NASCIMENTO, 2010, p. 23).
Segundo Quijano, a modernidade inicia com a descoberta das Américas, quando há a
constituição de todo um novo padrão mundial e de uma nova subjetividade entre os povos, na qual,
os europeus se consolidaram como centro de poder hegemônico capaz de impor uma nova visão e
organização do mundo (QUIJANO, 2005). Além disso, nela é constituída uma nova imagem do
mundo que advém de um olhar eurocentrado de interpretação - objetivo, racional, em progresso - o
qual deve ser seguido, “sob a pena de ser considerado pré-moderno, incivilizado, subdesenvolvido,
deficitário e necessitado de intervenções benevolentes que o coloque na marcha evolutiva da
Modernidade e da humanidade” (NASCIMENTO, 2010, p. 23).
Quijano retoma o processo de colonialismo e afirma que os europeus ocidentais só
conquistaram a hegemonia mundial por que conquistaram acúmulo material através dos recursos
das coloniais - tanto recursos naturais, como o controle do ouro, da prata e outras mercadorias;
quanto humanos, em razão da exploração do trabalho gratuito dos outros povos (QUIJANO, 2005).
Além disso, essa conquista teve o fundamento e o efeito da produção de um poder de inferiorização
do outro colonizado e construção desse enquanto novas identidades: o índio, o negro, o asiático,
seguidas de os colonizados, inferiores, primitivos, pré-modernos e não científicos.
É a hegemonia conquistada pelos europeus que permitiu que eles difundissem e
estabelecessem suas perspectivas sobre o mundo como portadores, criadores e protagonistas da
modernidade, como os seres mais avançados da espécie (QUIJANO, 2005). Os europeus foram
levados a se sentir superiores aos demais povos do mundo, gerando uma nova noção temporal da
história, situando os povos colonizados em um período anterior de desenvolvimento: “como parte
do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de
todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da
produção do conhecimento” (QUIJANO, 2005, p. 121). Na construção de uma nova
6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
intersubjetividade mundial, a modernidade é o momento de imposição das identidades raciais,
segundo as quais, os povos colonizados seriam vistos enquanto seres inferiores através das
características fenotípicas que apresentavam (QUIJANO, 2005).
Esse é o contexto que Quijano expressa ao articular a categoria da colonialidade2, ou seja, o
novo padrão de poder que surge concomitante ao capitalismo e à modernidade, que será exercido
sobre os povos colonizados tanto através de esforços militares, econômicos, quanto
epistemológicos, na medida que transforma o modo de ser e de conhecer (o outro e a si mesmo)
dessas populações. Dois pontos são importantes para pensar a epistemologia da colonialidade e
como ela está presente na imposição de novas intersubjetividades.
O primeiro é o eurocentrismo3, como perspectiva de conhecimento que impõem a
racionalidade europeia-ocidental como a forma por excelência de conhecer o mundo (QUIJANO,
2005). O segundo é imposição de uma ordenação do pensamento em categorias binárias, cuja
ligação com o eurocentrismo está em opor o que é relacionado ao homem branco europeu contra o
que é relacionado com o feminino ou o colonizado primitivo (HARDING, 2008; LUGONES, 2008;
NASCIMENTO, 2010; QUIJANO, 2005).Essas duas características tem como efeito uma
naturalização das diferenças e desigualdades, bem como uma ideologia de desenvolvimentismo
através da supressão dos pares inferiores. Portanto, trata-se de um modelo de marcação da
inferioridade, que atribui processos de vulnerabilização distintos, como “gênero, como
determinação contingente de uma reificação da diferença anatômica entre seres humanos em função
de seus supostos lugares reprodutivos; sexualidade, como reificação contingente da tendência
natural do desejo” (NASCIMENTO, 2010, p. 28)
2 “A colonialidade aparece como o novo padrão de exercício do poder -surgido concomitantemente com a
Modernidade, com o Capitalismo e com a conquista do continente americano [...] não se tratou apenas de dominar
apenas fisicamente aos colonizados, mas de conseguir que a naturalização do imaginário cultural europeu como forma
mais adequada de relação com o mundo (natural e social) e com a própria subjetividade, modificando os modos de
conhecer, agir e desejar das populações dominadas, redefinindo-as em função do modelo ocidental que se forjara
concomitantemente à colonização. A este movimento de adequação das outras populações do mundo aos padrões euro-
ocidentais, costumou-se chamar de processo civilizatório e, mais tarde, de desenvolvimento” (NASCIMENTO, 2010, p.
39-40, grifos da autora). 3 O eurocentrismo, para Quijano, é definido como uma perspectiva de conhecimento cujo início está no século XVII,
segundo a qual os europeus impuseram uma específica racionalidade que se tornou hegemônica no mundo, tomada
como superior em razão da própria auto percepção dos europeus como seres dominantes e superiores às demais
civilizações. Para o autor, são elementos importantes do eurocentrismo: “a) uma articulação peculiar entre um dualismo
(pré-capital-capital, não europeu-europeu, primitivo-civilizado, tradicional-moderno, etc.) e um evolucionismo linear,
unidirecional, de algum estado de natureza à sociedade moderna européia; b) a naturalização das diferenças culturais
entre grupos humanos por meio de sua codificação com a ideia de raça; e c) a distorcida relocalização temporal de todas
essas diferenças, de modo que tudo aquilo que é não-europeu é percebido como passado. Todas estas operações
intelectuais são claramente interdependentes. E não teriam podido ser cultivadas e desenvolvidas sem a colonialidade
do poder” (QUIJANO, 2005, p. 127).
7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Uma das separações centrais da ordenação da racionalidade binária é a separação entre corpo
e mente, a qual retoma a imposição católica segundo a qual o corpo é objeto principal do pecado
(QUIJANO, 2005). Com a teoria de Descartes4 da primazia da razão, há uma secularização da alma
junto à própria secularização burguesa, e essa divisão é consolidada, sendo transposta também para
a relação natureza/cultura (QUIJANO, 2005), contendo sempre um significado sexual: a mente
equivale ao masculino e o corpo ao feminino, o que se alastra para as outras dicotomias (GROSZ,
2000). Para a Grosz, o corpo é o subordinado, é negação, recusa, ausência, expulsão, é o que a
mente não é, é “definido como desregrado, disruptivo, necessitando de direção e julgamento,
meramente incidental às características definidoras de mente, razão, ou identidade pessoal em sua
oposição à consciência, ao psiquismo e a outros termos privilegiados no pensamento filosófico”
(GROSZ, 2000, p. 48).
A divisão entre corpo e mente foi vinculada aos fundamentos do conhecimento por Descartes,
fundamentando as separações entre as ciências naturais e humanas, a primazia da matemática e da
física. Além disso, vincula-se como uma forma de elevação da consciência que está acima da
corporalidade, colocada fora do mundo, removida da comunidade sociológica (GROSZ, 2000, p.
55). Portanto, implicitamente, implica definir o corpo como não-histórico, algo natural e orgânico,
passivo e inerte, como um dado bruto, ao contrário da mente que consegue se elevar a um estado de
pureza e de isenção sobre os contextos, instintos e crenças (GROSZ, 2000).
No olhar de Lugones (2014) a principal dicotomia da modernidade é a ordenação é entre o
humano e o não-humano, a qual se impõem sobre as pessoas, caracterizando-as, classificando-as, de
forma que os corpos tomados como femininos não eram humanos, assim como os corpos
racializados. Assim, na ciência moderna, o sujeito é um indivíduo isolado, que se constitui em si e
diante de si mesmo, que possui a capacidade de compreensão de um objeto externo a ele, o qual, é
constituído de propriedades que o definem e o diferenciam de outro (QUIJANO, 1992).
Para Harding, nas dicotomias da modernidade, “objetividade, racionalidade, bom método,
ciência real, progresso social, civilização - a excelência dessas e outras autoproclamadas conquistas
modernas são medidas em termos da sua distância com tudo que é associado com o feminismo e
com o primitivo” (HARDING, 2008, p. 3, tradução livre).
Para a epistemologia feminista, existe um mundo de emoções, sentimentos, inconsciente, etc.,
muito presente na vida científica, que não só é incompatível com o modo de ver da ciência
4 A separação cartesiana pensa corpo e alma como duas substancias: “uma substância pensante (res cogitans, mente) e
uma substância expandida (res extensa, corpo) e acreditava que apenas a última podia ser considerada parte da natureza,
governada por suas leis físicas e exigências ontológicas” (GROSZ, 2000, p. 53).
8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
moderna, como é uma constante ameaça à racionalidade científica, que nega sua existência
(HARDING, 1993). É na exclusão desse mundo, comumente habitado pelo feminino, que o ser
científico significa “ser desapaixonado, desinteressado, imparcial, preocupado com princípios e
regras abstratas, mas o que significa ser mulher é ser emocional, interessado em um bem estar da
família e amigos, preocupada com práticas concretas e relações contextuais” (HARDING, 1991, p.
47, tradução livre)
Isso implica na exclusão das mulheres enquanto agentes produtoras da ciência e enquanto
interesse da ciência, pois implica na exclusão de uma série de dimensões da vida tidas como “não
racionais”, ou “não científicas”. Em face das exclusões, a crítica feminista deve “refletir sobre tudo
o que a ciência não faz, as razões das exclusões, como elas conformam a ciência precisamente
através das ausências, quer sejam elas reconhecidas ou não” (HARDING, 1993, p. 13).
Nos marcos teóricos trabalhados, conclui-se que a colonialidade e o patriarcado atravessam e
se intercruzam na produção do conhecimento, seja na definição histórica de que corpos produzirão
um saber legítimo, seja na construção de pressupostos da ciência que privilegia uma racionalidade,
enquanto exclui as subjetividades que não servem à hegemonia branca e masculina. Contrapondo-se
à ciência moderna universalizante, a epistemologia feminista propõe que o conhecimento parta das
perspectivas dos grupos econômica, política e socialmente vulneráveis, e não a das instituições e
pessoas dominantes. Assim, Harding acredita que serão encontradas um nova gama de perguntas,
metodologias e informações ignoradas pela ciência e que podem ampliar o campo e a credibilidade
das pesquisas (HARDING, 2015)
É o que Haraway chama de conhecimentos/saberes situados/localizados5. Enquanto o mito da
ciência moderna proclama que todo conhecimento é possível, neutro, universalizante, e essa visão
oculta o caráter androcêntrico e colonial de tal discurso, a proposta da epistemologia feminista
afirma que só é possível conhecer fragmentos de um todo, sob determinadas perspectivas e que a
honestidade com esse enquadramento parcial da realidade é que torna um conhecimento válido e
legítimo na sociedade. Nesse sentido que a autora afirma:
Não buscamos os saberes comandados pelo falogocentrismo [...] e pela visão incorpórea,
mas aqueles comandados pela visão parcial e pela voz limitada. Não perseguimos a
parcialidade em si mesma, mas pelas possibilidades de conexões e aberturas inesperadas
que o conhecimento situado oferece. O único modo de encontrar uma visão mais ampla é
estando em algum lugar em particular (HARAWAY, 1995, p. 33).
5 “Saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou
um terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um escravo do senhor que encerra a dialética apenas na sua
agência e em sua autoridade de conhecimento ‘objetivo’” (HARAWAY, 1995, p. 36)
9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Nesse desafio de questionar a ciência moderna, a postura das epistemologias feministas é de
propor que teoria feminista, enquanto fomenta a criação de um novo horizonte de conhecimento,
deve disputar as ferramentas existentes no campo hegemônico da ciência (HARAWAY, 1995;
HARDING, 1993). É preciso de um “improviso criativo e inspirado” para reunir os discursos que
são úteis e rever os nossos esquemas teóricos como vigilância constante aos androcentrismos
intrínsecos às categorias que utilizaremos (HARDING, 1993). É por isso que ela afirma que as
categorias feministas desenvolvidas no horizonte epistêmico desse marco devem ser instáveis diante
da falta de um esquema permanente, imutável, de construção de explicações:
A razão, a força de vontade, a revisão dos dados, até mesmo a luta política, em nada poderá
reduzir o ritmo das mudanças de uma maneira que encha de júbilo nossos feminismos. Não
passa de delírio imaginar que o feminismo chegue a uma teoria perfeita, a um paradigma de
"ciência normal" com pressupostos conceituais e metodológicos aceitos por todas as
correntes [...]. As categorias analíticas feministas devem ser instáveis - teorias coerentes e
consistentes em um mundo instável e incoerente são obstáculos tanto ao conhecimento
quanto às práticas sociais” (HARDING, 1993, p. 11)
O masculino universal, portanto, não é um masculino qualquer. É o modelo superior para a
epistemologia da modernidade, o qual, se pretende abstrato, homogêneo, mas que esconde a
identidade do homem branco, europeu e racional como medida de todo o conhecimento. Trata-se de
um masculino a-histórico, sem isolado, deslocado de contexto, sobre o qual não se problematiza sua
construção enquanto sujeito inserido no sistema de gênero, de heterossexualidade compulsória e de
branquitude. É essa própria “descorporificação” que legitima a autoimagem de que a racionalidade
desse homem é superior pois é deslocada do natural e é eminentemente objetiva, desapaixonada,
prática, desenvolvimentista, progressista. Todas essas características estão contrapostas ao não-
humano ou ao humano inferior que ameaça a racionalidade europeia com suas dimensões femininas
intangíveis ou suas cosmologias não modernas.
Considerações finais
Esse artigo tratou de uma breve revisão sobre as críticas dos estudos de gênero e raça ao
campo da criminologia crítica que apontam a existência de uma masculinidade hegemônica
universal. Além disso, buscou na epistemologia feminista e nos estudos decoloniais indícios do
significado dessa masculinidade como lente da produção do conhecimento. Desse aporte, resulta
que o conhecimento moderno é construído tendo como sujeito por excelência o homem branco
europeu e sua racionalidade objetiva e abstrata como modelo para produção da ciência. A
10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
criminologia crítica, embora seja uma ciência que se propõe como transformadora e militante, é
criticada por reverberar essa masculinidade.
Em conjunto, essas críticas apontam algumas convergências. A primeira: há uma suposta
primazia de enfoques de classe social e uma cegueira ou isolamento dos estudos sobre raça e
gênero. Além de ser um problema temático, de agenda de pesquisa, é um problema de construção
metodológica e criação de hipóteses, já que a incorporação desses enfoques exige que as
metodologias deem conta de outras dimensões e as hipóteses sejam pensadas a partir de outros
fenômenos sociais. Por fim, há a discussão sobre o acesso aos espaços de produção desse
conhecimento - como as universidades, especialmente, nesse campo, os cursos de direito - e as
estruturas que permitem que uma pessoa permaneça e dedique-se a essa atividade. É possível
inferir, portanto, que existe uma crítica ao androcentrismo e ao embranquecimento da criminologia
crítica (PRANDO, 2016a, b), através da qual percebemos que esses autores e autoras apontam a
existência de um sujeito hegemônico na produção criminológica, pautado por uma masculinidade
universal.
Referências
ANDRADE, Vera Regina Pereira De. PELAS MÃOS DA CRIMINOLOGIA - O controle penal
para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012. .
CAMPOS, Carmen Hein De. Introdução. In: CAMPOS, Carmen Hein De (Org.). . Criminologia e
Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.
CAMPOS, Carmen Hein De. Teoria crítica feminista e crítica à(s) criminologia(s): estudo para
uma perspectiva feminista em criminologia no Brasil. Pontifícea Universidade Católica do Rio
Grande do Sul - PUCRS, Porto Alegre, 2013.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto
genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. .
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. O feminicídio e os embates das trincheiras feministas. Revista
Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade v. Ano 20, n. Número 23/24, p. 95–106 , 2016.
FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. RAÇA E GÊNERO NA OBRA DE NINA RODRIGUES – A
DIMENSÃO RACIALIZADA DO FEMININO NA CRIMINOLOGIA POSITIVISTA DO FINAL
DO SÉCULO XIX. Cadernos do CEAS n. 238, p. 641–658 , 2016.
FREITAS, Felipe. Novas perguntas para criminologia brasileira: poder, racismo e direito no centro
da roda. Cadernos do CEAS n. 238, p. 488–499 , 2016.
GOMES, Camilla de Magalhães. Corpos negros e as cenas que não vi: um ensaio sobre os vazios de
uma pesquisa criminológica situada. Sistema Penal & Violência v. 8, n. 1, p. 16–28 , 2016.
11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu n. 14, p. 45–86 , 2000.
HARAWAY, Donna. Saberes localiazdos: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da
perspectiva patriarcal. Cadernos Pagu n. 5, p. 7–41 , 1995.
HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. Estudos
Feministas v. 1, n. 93, p. 7–32 , 1993.
HARDING, Sandra. Objectivity & Diversity: another logic of scientific research. Chicago:
University of Chicago Press, 2015. .
HARDING, Sandra. Sciences from Below: Feminisms, Postcolonialities, and Modernities.
Durham: Duke University, 2008. .
HARDING, Sandra. Whose Science? Whose Knowledge: Thinking from Women’s Lives. Nova
York: Cornell University Press, 1991. .
LUGONES, María. Colonialidad y Género. Tabula Rasa v. 9, n. Julho-Dezembro, p. 73–101 ,
2008.
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis v. 22, n. 3, p. 935–952 , 2014.
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. 1a ed. São Paulo:
Saraiva, 2014. .
NASCIMENTO, Wanderson Flor Do. Por uma vida descolonizada: diálogos entre a bioética de
intervenção e os estudos sobre a colonialidade. Universidade de Brasília, 2010. 154 p.
PRANDO, Camila Cardoso de Mello. A Criminologia Crítica no Brasil desde os estudos críticos
sobre branquidade. No prelo , 2016a.
PRANDO, Camila Cardoso de Mello. As margens da Criminologia Crítica: desafios provocados
por uma epistemologia feminista. No prelo , 2016b.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad-racionalidad. In: BONILLO, Heraclio (Org.). . Los
conquistados. Bogotá: Tercer Mundo Ediciones; FLACSO, 1992. 5 v. p. 437–449.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. A colonialidade do
saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas p. 227–278 ,
2005.2010062410332.
The universal male as a category for studies on the production of Brazilian critical
criminology
Abstract: The exchange between Brazilian critical criminology and the fields of feminism, studies
on racism and coloniality has produced important questions about the production of knowledge
about the functioning of the penal system. Significant part of feminist criticisms of critical
criminology point out that the field neglects gender and race problematizations, producing
predominantly knowledge about men who appear in an essentialized way. These are questions that
put us in the urgency of a deep reflection on the limits of what we have produced so far and
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
motivate the construction of theoretical and methodological tools to understand and change our
productions in the critical criminology of this supposed and hegemonic universal male. This work is
a theoretical effort to construct the category of the universal male, taking into account that it is an
ideal of a subject built in the modernity, situated and crossed by questions of race, gender, class and
sexuality. Thus, it aims to problematize how the category is present in the composition of the field,
in the epistemological point of view that bases the criminology and in the representations of people
and situations in its discourse. This is a preliminary work to the research project for my master's
dissertation "The disputes around the universal male as doxa of the field of the "Journal Discursos
Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade"".
Keywords: Masculinities, Feminist Epistemology, Critical Criminology
Recommended